Dimensões cativas e construção da emancipação: relações morais nas lógicas de
sociabilidade de escravos e livres. Sudeste, 1860-1888
Introdução: para entender o contexto
Uma vez terminado o tráfico internacional de escravos, 1850, a reposição da
mão-de-obra escrava estava comprometida, ou melhor, eliminada. Automaticamente,
o preço do escravo subiu com rapidez. Nas províncias do Sul, especificamente
Rio de Janeiro (Vale do Paraíba) e São Paulo (região oeste) a expansão do café
impunha aos senhores de terras e escravos maior quantidade de trabalhadores, de
modo a produzir mais para ganhar mais, sendo o produto perecível e de cultivo
delicado. Rapidamente o tráfico/comércio inter-regional de escravos tornou-se
grande negócio, ganhando um volume nunca dantes visto.
Além disso, a cada ano que se passava aumentava o número de crioulos em relação
aos nascidos na África. Os cafeicultores também conseguiam empréstimos mais
vultosos de acordo com o número de escravos que possuíam, garantindo aos bancos
maior probabilidade de retorno financeiro. Assim, vários bancos emprestavam
dinheiro a longo prazo ' 15 anos ', e sob juros bem favoráveis aos fazendeiros.
Nas regiões assinaladas, a partir de 1870, foi feita a mais intensa
movimentação de compra e venda de escravos, uma vez que os cafeicultores já
anteviram a queda dos lucros com o café: tinham um tempo "definido" para
conseguirem lucrar o máximo que pudessem com sua mercadoria, necessitando cada
vez mais da mão-de-obra escrava. Assim acreditavam, pelo debate político, no
breve final da escravidão no Brasil, mesmo sem saber quando seria a data
específica, sendo fundamental adquirir escravos antes disso. Definitivamente, o
escravo havia se tornado a mais cara "mercadoria" nestas terras, pois a mão-de-
obra cativa continuava a ser lucrativa (Slenes, 1986).
Em resumo, acreditamos que o preço real do escravo ' ou seja, o valor da
produção feita pela escravaria da fazenda, dividido pelo número de escravos da
mesma ', do ponto de vista dos senhores engajados na produção de café e açúcar,
efetivamente aumentou depois do final do tráfico. Sobre o tráfico de escravos
para o Sudeste, Florentino & Góes (1997) defendem, para a primeira metade
do século XIX, que os senhores de grande quantidade de escravos das fazendas do
Sudeste tinham consciência das transformações que a compra de escravos poderia
trazer nas relações sociais estabelecidas entre os mesmos. Desta forma, tais
senhores teriam incentivado políticas de desintegração dos laços sociais de
solidariedade entre escravos, na construção ou não de famílias, desde que a paz
social estivesse mantida. Para os autores, isto realmente ocorreu, tendo
continuação na intensificação do tráfico interno de escravos para o sudeste,
depois de 1850. Entretanto, Slenes (1991-1992; 1999:43-53) aponta para uma
cultura africana de referências semelhantes no sudeste que, ao contrário, pela
rota do tráfico internacional, teria alimentado a formação de uma consciência
de comunidade coletiva nas fazendas de café, onde vários protestos escravos
ocorreram. Tal afirmativa deixa de lado a idéia de uma possível política
senhorial eficaz para atingir e manter a paz social. Neste artigo, será mais
adequado operarmos com a última posição, pois trabalharemos com casos ocorridos
em meados da segunda metade do século XIX, numa conjuntura social mais afeita
às perspectivas dos estudos de Slenes.
Tal fato criou condições mais severas da exploração dos senhores sobre os
escravos ' por exemplo, reduzindo drasticamente a inclinação a "conceder" a
alforria aos cativos, tal como o número de dias santos católicos reconhecidos
como dias de descanso (Reis & Silva, 1989:68); por outro lado, há casos
muito instigantes encontrados em documentação criminal que apontam para
políticas de afrouxamento no trabalho dos africanos novos, em contra partida ao
dos ladinos e crioulos, principalmente os imigrados das províncias do norte do
Império.
Assim, argumentamos que, depois de 1850, houve uma espécie de quebra de
"acordo" entre escravos e senhores, elaborado no período anterior ao final do
tráfico.1 Daí, lermos com mais cautela as situações diversas encontradas na
documentação que será assinalada adiante. Com o final do tráfico, desapareceram
os africanos novos, e com a intensificação do tráfico interno, justamente os
antigos privilegiados pelos senhores ' os africanos ladinos, e os crioulos '
foram vendidos das propriedades onde trabalhavam ' e onde esperavam ver
recompensadas suas estratégias de aproximação com os senhores ' e enviados às
fazendas do sudeste, onde passaram a ser tratados como verdadeiros
estrangeiros. Chalhoub (1992) trabalha com as intervenções dos escravos vindos
das províncias do Norte, ainda nas Casas de Comissão da Corte, para não irem às
fazendas, pois assim ficaria mais difícil encontrar familiares ou mesmo
adaptarem-se ao novo tipo de trabalho. Propomos estudar o que aconteceu com
alguns dos escravos vindos do norte, no mesmo período, que realmente chegaram
às fazendas, e nelas trabalharam. Uma vez nelas, como se adaptaram e mesmo
construíram as regras sociais com os escravos já estabelecidos e mesmo com
demais agentes sociais? Houve resistência dos escravos do Sudeste, criando uma
anomia social para os recém chegados? Se a idéia de Slenes (1991-92) estiver
correta, sobre a "proto-nação-bantu" na região, os códigos culturais africanos
dos escravos vindos das províncias do Norte eram diferentes o bastante para que
o impacto de sua chegada fosse maior ainda do que podemos pensar. Talvez
tenhamos aí a pista para tantos processos criminais envolvendo estes grupos,
entre 1860-1888, numa convivência bastante nova e dolorosa para ambos.
Uma vez que os senhores de escravos eram obrigados a lidar com a escassez de
sua mão-de-obra, não poderiam desperdiçá-la em castigos mais violentos, que
obliterassem a sua atividade econômica. Quem iria substituir um escravo
incapacitado fisicamente pelos castigos de um feitor? Uma vez acontecido um
crime, quem iria substituir o escravo que fosse condenado? Complicava-se mais
ainda se houvesse mais de um escravo envolvido. Por outro lado, os escravos em
alguma medida reconheciam as mudanças no contexto social mais amplo, sabendo da
impossibilidade de traficar escravos da África para o Brasil, e como este fator
modificava o seu valor econômico. Avançando, teriam chances de negociar com
feitores, administradores e senhores as regras do trabalho, exigindo até certas
"regalias", como os dias de descanso, as horas de trabalho, o livre trânsito
para outras regiões, assim como praticar pequeno comércio, se compararmos com
os tempos anteriores a 1850. Machado (1988) utiliza-se do termo "espaço de
negociação" para falar sobre as estratégias de alargamento das regras de
trabalho, como um mecanismo para os escravos conquistarem seus objetivos
diversos. Em vez de optarem pelas revoltas envolvendo assassinatos de brancos
da região, partiriam para as mais variadas construções de alianças sociais.
Isto seria o alargamento dos limites da escravidão contidos nas mais diversas
formas de experiência social.
Desta feita, identificamos o problema senhorial de continuar operando com os
mesmos mecanismos de controle do trabalhador escravo, e deste por achar
"brechas" nesta nova conjuntura, lutando por acordos nas regras trabalho, como
encontramos em várias fazendas, nos casos retirados da documentação.
Portanto, podemos falar numa espécie de "regra das regras", que una tantos
casos de conflito entre escravos e senhores e seus representantes nas fazendas
do Sudeste, entre 1860-1888, sem que isto evite, muito pelo contrário, realce,
torne mais visíveis, as regras sociais de convívio e conflito existentes no
bojo da tessitura social mais específica.2 Pensamos, portanto, cada fazenda
como uma comunidade escravista, identificando na documentação criminal suas
diferenças e semelhanças. Para tanto, operamos com a idéia de "fato social"
como a compreensão da visão dos atores sociais envolvidos num mesmo contexto e
por uma questão muito próxima, formando uma teia de relações onde podemos
identificar como se deu a participação de cada um. Este "fato social" contém
lutas sociais, jogos de alianças políticas cotidianas a partir de regras de
convivência estabelecidas permanentemente nas relações em sociedade/comunidade
pelos agentes. Aqui, as querelas que vemos vêm do que aproximou os escravos e
senhores e seus representantes de nós, criando uma narrativa jurídica, onde
procuramos traduzir para a linguagem de historiadores, antropólogos e
sociólogos, ou melhor, do nosso tempo, do nosso interesse. Priorizamos
encontrar seus limites nas ações dos atores sociais, onde uns tentam manter as
regras, até mesmo propondo novas para que isto aconteça, e outros tentam
subvertê-las, conforme seus interesses.
Escravos x escravos: tensões e solidariedades nas comunidades escravas de
fazenda
O fato de estarem vivenciando o mesmo martírio da escravidão não fazia com que
escravos fossem "parceiros" em todos os momentos, pois interesses distintos
faziam com que freqüentemente escravos entrassem em confronto. A defesa de seus
horizontes demandava uma luta vertical entre escravos e livres, e horizontal
entre escravos da mesma comunidade ou de comunidades diferentes.
A forma como a escravidão e conseqüentemente os escravos foram tratados pela
historiografia dos anos de 1960 e 1970, tornava turva a visão dos pesquisadores
em relação aos escravos e suas relações entre si. Encarados como um bloco
uniforme que sofria com a crueldade senhorial, os escravos não eram
considerados agentes ativos na construção do processo histórico (Gomes, 1995;
Slenes, 1999). Pode parecer estranho, mas a todo o momento estamos nos
diferenciando em relação aos outros, e isso não é um privilégio do presente,
sendo difíceis de serem notadas, mas comprovadamente presentes, as
diferenciações numa comunidade escrava geravam conflitos, alianças e barganhas.
A primeira grande divisão se dá na origem do escravo: africano ou crioulo.
O receio que rondava os senhores em relação aos africanos foi potencializado
após 1835 com a revolta malê, no centro de Salvador. Visto como selvagens e
perigosos, os africanos tiveram que encontrar formas de se inserirem num mundo
permanente novo (Reis & Silva, 1989:33). Levando relativa vantagem, os
crioulos eram os mais "sociáveis", desempenhavam as funções mais técnicas,
conheciam os possíveis espaços para negociações em prol de seus interesses
(Reis, 1993). Como maior prova disso podemos utilizar o manifesto feito pelos
escravos ' crioulos ' do Engenho de Santana, na Bahia, em 1789, quando escravos
crioulos reivindicavam ao senhor a hierarquização das tarefas menos arriscadas,
exigindo que tais coubessem aos africanos (Reis & Silva, 1989:123-124).
Baseados nesse argumento, poderíamos supor que os conflitos entre escravos
respeitassem essa divisão "clássica" entre crioulos e africanos. Entretanto,
muitos processos criminais mostram que para os escravos que conviviam em
comunidade esse era um dos fatores de possíveis atritos, mas não o único.
Quando interesses maiores estavam em jogo, ser crioulo ou africano não se
tornava o mais importante e sim a parceria que se estabelecia pelo interesse
comum. Esse foi o caso de Francisco, escravo e feitor de Manuel Maximiliano da
Silveira em Nova Friburgo, Província do Rio de Janeiro, no ano de 1865 (Arquivo
Nacional, Corte de Apelação, processo-crime, caixa 3700, processo 1). João
Cebola, também escravo de Manuel Maximiliano, tramava com o escravo fugido
Gregório a sua evasão da fazenda quando foram abordados pelo feitor. Como
Francisco tentava há muito tempo capturar Gregório sem sucesso, viu que aquela
seria a ocasião perfeita para pôr seu plano de apresamento em prática.
Entretanto, não contava que João Cebola fosse intervir em favor de Gregório. Na
luta, o escravo fugido conseguiu escapar deixando Francisco e João Cebola em
confronto, no qual o feitor levou a melhor, matando João.
Por ironia do destino, o feitor Francisco de caçador se transformou em caça,
pois, ao cometer o assassinato, fugiu para os matos da fazenda, não mais como
agente da ordem senhorial, mas sim como "parceiro" de fuga de Gregório. Ao ser
capturado, Francisco alegou desconhecer João Cebola, e negou que tivesse
cometido o crime, mesmo que seu senhor, Manuel Maximiliano, afirmasse que
embora tivesse uma certa confiança no réu ' a ponto de fazê-lo feitor '
acreditava que este teria sido capaz de cometer o crime. Por fim, o feitor
Francisco foi condenado à Galés Perpétua, ou seja, encarcerado realizando
trabalhos forçados para o Estado.
Francisco experimentou os dois lados da moeda, o de captor e o de capturado,
posto que na fazenda sentiu o gosto de ter sob seu controle todos os escravos,
e nos matos, o gosto amargo de ser perseguido. Nos depoimentos das testemunhas,
fica claro que o desentendimento entre o feitor Francisco e o escravo João
Cebola já vinha de longa data, talvez pela cobertura que a vítima tenha dado à
fuga de Gregório ou por Francisco ter exercido seu controle de forma violenta,
sem respeitar os limites morais da gramática das sociabilidades construída
naquela comunidade de fazenda. O fato é que, a menos que Gregório tenha sido
capturado posteriormente, o senhor, Manuel Maximiliano, teve um prejuízo de
três escravos. Não dispomos de informação alguma acerca do tamanho da
propriedade do senhor, mas levando em consideração a região de Nova Friburgo e
o que ela representava para a economia da Província, esse prejuízo foi
considerável. Podemos ver neste processo que o fato de todos os escravos serem
crioulos não fez a menor diferença no estabelecimento e no desfecho do
conflito.
Muitas vezes um crime se dava devido às circunstâncias do momento, sem que
tenha ocorrido, necessariamente, algum desentendimento entre os escravos
envolvidos. Para exemplificar esta idéia, temos o caso de Félix e Domingos,
escravos do Comendador Manoel Pereira de Souza Barros, acusados de matar João
Moange (Arquivo Nacional, Corte de Apelação, processo-crime, caixa 3669, no.
6831).
Num domingo, 20 de março de 1870, na localidade conhecida como Chacrinha, em
Valença, Província do Rio de Janeiro, o escravo João Moange foi assassinado a
golpes de foice, com facadas e pauladas, na lavoura de seu senhor. Informado
por Félix, o filho do Comendador mandou o administrador da fazenda, Luiz
Antônio Pereira Batista, e alguns escravos averiguarem o que ocorrera. Na carta
enviada ao Delegado de Polícia Joaquim José do Amaral, Manoel Pereira de Souza
afirma que, por volta das duas horas da tarde, soube pelo moleque Félix que
João Moange lutava com dois pretos desconhecidos, nos cafezais da fazenda.
Quando lá chegaram alguns escravos mais o administrador da fazenda, encontraram
o africano morto (ibidem: 2).
Assim, depois de ser informado pelo Comendador, o delegado iniciou as
investigações, chamando para depor o tal escravo Félix que, teoricamente,
assistira ao homicídio. Ao ser perguntado sobre a morte de João Moange, Félix
afirmou que, morando na fazenda de seu senhor, vinha pela estrada com seus
anzóis de pescar, quando ouviu gritos. Foi em direção ao lugar de onde
acreditava terem partido, e, chegando lá, viu João Moange ensangüentado tendo
numa das mãos uma foice, e na outra uma faca, com os quais havia se defendido
do ataque de dois pretos. Um seria alto e magro, trajando calça de algodão,
camisa branca e um lenço da mesma cor na cabeça, e o outro seria baixo e gordo,
trajando também calça de algodão, camisa branca e tendo na cabeça uma carapuça
(ibidem:9-9v).
A descrição feita por Félix ajudaria ao delegado, pelo menos, a identificar os
principais suspeitos. Não satisfeito com os detalhes, Félix continuou a
fornecer mais indícios de que sabia muito mais do que àquela autoridade podia
supor. Desta forma, afirmou que, quando chegou ao local do crime, os dois
agressores se dirigiam para o alto do morro, onde existia uma plantação de
milho, divisa por meio de um ralo com as terras de Manoel Antônio Esteves. Os
dois pretos estariam armados, um com uma foice e o outro com um porrete, e que
eles não pertenciam à fazenda de seu senhor, pois Félix conhecia a todos
(idem).
Pelo depoimento de Félix, o Comendador possuía muitos escravos, a ponto de
haver a possibilidade de um escravo não conhecer outro que trabalhasse na mesma
fazenda. Para a alegria do Delegado Joaquim José do Amaral, Félix continuou a
ajudá-lo na captura dos possíveis culpados, afirmando que encontrara João ainda
vivo, e que o mesmo havia-lhe dito que se encontrava em tal estado por querer
defender o milho e os palmitos que pertenciam a seu senhor. Depois disto,
Félix, por ter ficado com medo, encaminhou-se para a residência de seu senhor a
fim de dar-lhe parte do ocorrido (ibidem:10).
A autoridade policial já possuía a descrição dos assassinos assim como o motivo
do crime, ou seja, o roubo de milho e palmito das terras do Comendador, só
faltando iniciar as buscas para a captura dos possíveis criminosos, contando,
para isso, com a fundamental colaboração de Félix.Perguntado sobre alguma
divergência existente entre os escravos da fazenda de seu senhor e os da de
Manoel Antônio Esteves, Félix afirmou que sabia, "por ouvir dizer", que uma vez
o falecido João Moange, indo às terras de Manoel Antônio Esteves para juntar
laranjas, fora destratado pelos escravos deste senhor. Por conseguinte, o
primeiro local investigado pelo delegado Joaquim José de Amaral foi a fazenda
de Manuel Antônio Esteves. Tendo por base a descrição dada por Félix, o
delegado colheu o depoimento do escravo Elizeu, que, ao ser perguntado onde
estava no domingo, dia do crime, respondeu que trabalhava no cafezal juntamente
com os seus parceiros, perto de um vale, que serve de divisa entre a fazenda de
seu senhor e a do senhor Comendador Barros ' assim como Felix relatou (ibidem:
13).
Até esse momento Félix estava dizendo a "verdade", posto que realmente havia
escravos de Manuel Antônio Esteves no local onde João Moange aparecera morto.
Pode parecer uma "inverdade" o depoimento de Elizeu informando que seu senhor
havia feito ele e seus parceiros trabalharem em pleno domingo, dia sabidamente
destinado aos escravos trabalharem em suas lavouras. Porém, Elizeu informou que
Esteves havia estabelecido um acordo com seus cativos no intuito de trabalharem
aos domingos, tendo a segunda-feira como dia livre. Ainda por cima, todos os
escravos eram mantidos sob os olhos dos feitores, evitando a possibilidade de
alguém se ausentar do serviço.
Portanto, se algum escravo de Esteves cometera o crime isto deveria ter
ocorrido com a conivência dos feitores da fazenda. Quando perguntado como ficou
sabendo da morte de João Moange, o escravo Elizeu respondeu que na do dia
seguinte ao crime, seu senhor colocou todos os escravos em formatura para
receber o Comendador e o escravo Félix para o reconhecimento dos possíveis
assassinos. Félix apontou Elizeu como o autor do crime, sendo o acusado
imediatamente detido. O suposto réu negou ter conhecido a vítima, e muito menos
ter cometido o assassinato, atribuindo tal acusação a um "engano".
Quando tudo parecia estar resolvido, o Comendador enviou uma carta ao Juiz
Municipal de Valença, pedindo que se cumprisse com justiça o caso do
assassinato de seu escravo João Moange. Quem foi enviado detido junto com a
carta? Félix e Domingos, outro escravo da fazenda do Comendador. Em seu novo
depoimento, Félix, nascido no Rio de Janeiro, com 16 anos de idade, trabalhador
de roça, mudou a sua versão dos fatos, dizendo que havia se retirado no
domingo, indo em direção à outra parte da fazenda de seu senhor, em companhia
do seu parceiro Domingos, cada um munido de uma faca. Tinham a intenção de
roubar milho de seu senhor, para vender. Quando o milho estava quase todo
debulhado, apareceu João Moange, ameaçando-os de denunciar ao senhor o roubo
que praticavam (idem: 18). Para que o fato não chegasse aos ouvidos do
Comendador, Félix e Domingos ajoelharam-se ante João Moange, implorando para
que não contasse nada a seu senhor. Quando se retirava, João deixou cair uma
faca, que Félix apanhou, e, desconfiando dele, João voltou para agarrá-lo. Foi
aí então que, com a mesma foice que tinha usado para colher o milho, Félix deu
um golpe na fronte da vítima (ibidem:33).
Não havendo mais chance de negar o crime, Félix contou toda a verdade, pelo
menos a sua verdade. Junto com seu cúmplice Domingos, Félix viu João Moange
rolar ribanceira abaixo, sem condições de se levantar. Certificando-se que a
vítima estava morta, o "moleque" saiu em disparada para a casa do Comendador
para contar o que ocorrera, sem, contudo, revelar quem havia cometido o crime.
Félix alegou ter mentido a todos pelo medo de ser castigado.
Domingos, nascido na Bahia, filho de Manoel de tal, trabalhador de roça, negou
veementemente que tivesse cometido o crime. Em seu interrogatório, afirmou que
havia combinado com Félix de roubar milho para vender. Com a chegada de João
Moange, Domingos teria corrido para o cafezal, indo para sua "casa" sem tomar
ciência do que havia ocorrido com a vítima. Em algum momento, Domingos e Félix
se encontraram para combinar qual versão dariam para explicar a morte de João
Moange. Vários dias se passaram até a prisão dos escravos do Comendador. Assim,
cabe a nós perguntar: como se justifica o silêncio de Domingos?
Na primeira fase de depoimentos, o escravo Domingos não foi ouvido pelo
delegado, o que pode indicar que Félix e Domingos planejaram como deveriam se
comportar perante o senhor e as autoridades policiais. O que Domingos não
esperava é que o "moleque" Félix não sustentaria por muito tempo a versão do
ataque dos escravos inimigos a João Moange. Portando, ao relatar o ocorrido ao
Comendador, Félix estava selando o seu destino. Na acareação feita, os dois
continuaram mantendo versões diferentes para o mesmo assassinato. Félix afirmou
que Domingos deu uma facada em João Moange, por sua vez, Domingos afirmou que
tal versão era mentirosa, pois ele não estaria presente quando ocorrera o
crime.
Cinco testemunhas foram ouvidas após a mudança no desfecho do crime. Uma delas,
Antônio de Araújo, 20 anos, pedreiro, nascido em Portugal, disse que viu quando
Félix confessou o crime, quando era interrogado pelo próprio Comendador.
Pode parecer claro que se tratava de um crime entre crioulos e africanos, tendo
os primeiros como algozes que haviam sido contrariados. A tentativa de furto do
milho foi apenas um meio utilizado para explicitar as constantes disputas
existentes entre africanos e crioulos na fazenda do Comendador Barros. Contudo,
o depoimento de uma das testemunhas nos faz pensar exatamente o contrário.
Francisco Joaquim de Oliveira, 29 anos, trabalhador, solteiro, nascido em
Valença, relatou que:
[...] os acusados sempre respeitavam o ofendido como o preto mais
velho da fazenda, e não contava ele, testemunha, nem qualquer pessoa,
que houvesse entre os acusados [...] motivos que determinassem tão
deplorável acontecimento. (ibidem:33)
Outra testemunha que confirma as informações dadas por Francisco Joaquim é
Manuel de Oliveira de Souza Júnior, 19 anos, pedreiro, natural de Valença e
morador no distrito de Rancho Novo, dizendo que não havia inimizade entre os
acusados e o preto João, muito pelo contrário, davam-se bem com a vítima,
respeitando-o como um dos escravos mais velhos da fazenda (ibidem:37).
O assassinato de João Moange não foi um conflito entre crioulos e africanos,
foi muito mais do que isso. Foi o confronto de gerações na comunidade escrava
da fazenda. O fato de João ter um alto respeito perante todos os escravos da
fazenda do Comendador foi um fator fundamental para que a versão de Félix em
nenhum momento fosse contestada. Podemos pensar que a atitude que João tomaria
de contar ao seu senhor o que os "moleques" estavam fazendo talvez tenha sido a
forma encontrada por ele de repreender, mostrar para os mais novos que o
"caminho certo" não era aquele. A consciência de Félix pesou, tanto por matar
um velho africano respeitado na fazenda ' o castigo que a própria comunidade
escrava poderia dar seria pior do que o chicote do Comendador ou da Justiça ',
quanto por acusar um escravo inocente pelo crime praticado.
A prisão de Elizeu poderia indispor mais ainda os escravos de Manuel Barros com
os de Antônio Esteves. No processo-crime, não encontramos nenhuma referência
acerca da participação dos escravos da fazenda vizinha no sentido de descobrir
quem foi o verdadeiro criminoso, mas podemos supor que não deram descanso aos
escravos do Comendador enquanto não viram Elizeu solto. No julgamento, ficou
provado que Domingos não teve participação no crime, sendo absolvido. Quanto a
Félix, foi condenado a seis anos de prisão com trabalhos, pena pequena se
comparada com as demais para o mesmo tipo de crime. Provavelmente as atenuantes
foram consideradas, o prestígio que o Comendador Barros deveria ter em Valença
e a idade do réu pesaram favoravelmente na sentença dada pelo Júri.
Escravo x escravo ou senhor x senhor: uma "nova" equação?
Em 8 de julho de 1877, Valencio, escravo do Comendador João Pereira Durão, foi
condenado a cem açoites e ferro ao pescoço durante seis meses (Arquivo
Nacional, Corte de Apelação, processo-crime, no. 104, maço 8, galeria C). Havia
"fugido" com o consentimento do senhor, sempre voltando, e jamais saindo das
redondezas da fazenda.3 Eduardo Teixeira Gouvêa, um caçador de escravos,
profissão tão comum no Rio de Janeiro do século XIX que até mesmo Machado de
Assis (1962) dedica um conto ao assunto, ao tentar capturar Valencio levou
deste uma facada. Daí o processo-crime, daí a condenação.
O protesto do senhor de Valencio foi imediato, pois a Justiça não entendia sua
relação com o escravo, e por isso poderia prejudicá-lo. Como deveria argumentar
com o juiz, depois da condenação de seu escravo? Apelando da sentença, o
advogado e curador de Valencio, Joaquim Matozo Duque Estrada Câmara, afirmou
ser este processo muito estranho, pois nenhuma testemunha foi ouvida, sendo a
sentença baseada na versão da vítima. Seu argumento foi refutado pelo promotor
público, tendo o juiz afirmado que tudo ocorreu dentro da lei, com todas as
testemunhas sendo ouvidas. Mas, o que fica deste caso?
Encontramos o escravo Valencio utilizando as relações políticas que construiu
com seu senhor, para que pudesse viver seus projetos de liberdade, trabalho e
vida, sem que a questão da escravidão fosse pensada apenas considerando a
vontade do senhor. Para o senhor, o prejuízo era alto, para o escravo, a
condenação seria um castigo que não deveria sofrer, pois havia conquistado o
direito de sair da fazenda. Para a Justiça, escravo fora de sua fazenda,
escravo longe de seu senhor, era fugido, criminoso, e deveria ser punido. Os
motivos pouco importavam. O senhor acabou com o escravo podendo trabalhar, pois
o ferro no pescoço, para senhores, feitores e administradores, não era um
empecilho. Empecilho seria, isto sim, se o juiz condenasse o escravo a seis
anos de prisão, quando o promotor público achou muito branda a pena. Mas, como
dissemos, o juiz manteve a sua sentença. A conquista escrava foi malograda mais
adiante, com outros atores sociais barrando tal atitude, pois não fora com
estes que havia construído sua base de ação política.
Como as regras socioculturais não conseguem impor ao comportamento dos agentes
sociais um eterno padrão, o aparecimento de um acontecimento inesperado, de uma
variante comportamental pode ser uma chave de compreensão de relações sociais
no interior de um determinado grupo (Malinowski, 1984). Estes dois planos se
completariam no entendimento da vida social. No intuito de compreendermos
alguns dos vários modos de construção de experiências sociais entre escravos,
senhores e outros homens livres, partimos do princípio de que ' apesar dos
casos estudados até o momento terem como elemento central as atitudes dos
cativos sobre as formas de exercício do poder senhorial ' as estratégias
utilizadas pelos escravos não foram as mesmas, muito menos as maneiras de se
formarem tipos diferentes de alianças, vislumbrando suas possíveis vitórias.
Nos preocupamos, assim, em avaliar o caráter incerto das experiências dos
escravos, senhores e demais homens livres, nas diversas estratégias para
construção e manutenção de alianças nas comunidades escravas de fazenda, assim
como o seu malogro, pois vida social e experiência estão em permanente contato
na análise de tais questões (Thompson, 1982:181). Dito isto, vamos a mais um
caso.
Outro escravo fugido de fazenda de café, outro caso de Cantagalo, outro
problema envolvendo interesses diversos nas mesmas questões. Em 1873, o escravo
Domingos, do Capitão Landegário Gonçalves de Lima, "fugiu" de sua fazenda, como
era de hábito (Arquivo Nacional, Corte de Apelação, processo-crime, nº 1. 200,
maço 233, galeria C). Do mesmo modo, foi parar na fazenda de dona Felisarda
Lopes de Moraes. Esta acabou apadrinhando-o, intercedendo de maneira direta na
devolução do escravo fugido, evitando maiores traumas para senhores e escravos
da região, uma vez que montassem a sua busca, alastrando o medo de outras
fugas, e mesmo de insurreições escravas organizadas a partir de sua figura.4
Desta feita, nomeou um escravo seu, Raimundo, para levar Domingos de volta.
Domingos estava amarrado, depois de uma fuga malograda, para ser conduzido por
um cativo de outra propriedade para a de seu senhor. Sua situação não era das
mais confortáveis, ainda mais com a presença de um outro escravo garantindo
para os senhores da região que tudo em muito breve seria contornado.
Novamente, estamos diante de uma fazenda onde trabalhavam lado a lado escravos
e livres, com pessoas de ambas as condições sociais depondo no processo.5 No
meio do caminho, Raimundo parou na casa de Manoel Antonio de Moraes, para quem
sua senhora havia endereçado um bilhete. Os planos de Raimundo haviam sofrido
um golpe, pois no bilhete constava o pedido de sua dona para que Manoel levasse
o escravo Domingos para seu senhor, encaminhando um outro bilhete seu para
este. Contudo, "querendo o dito escravo Raimundo receber uma gratificação dela
testemunha, este determinou que ele mesmo o fosse levar ao referido Capitão
Lima, e que então lá receberia a gratificação" (ibidem:8).
Tal pedido ocorreu na presença de Domingos, que passava a ser instrumento do
ganho de dinheiro de outro escravo. Dois escravos juntos, porém com objetivos
diferentes, com sentimentos diferentes. Domingos, com a fuga interrompida, e
conduzido por Raimundo, que com isto, através da confiança que recebera de sua
senhora para realizar tal tarefa, viu uma maneira de ganhar algum dinheiro. Não
era missão designada a qualquer escravo, pois uma união entre o fugido e seu
condutor poderia desencadear grande revolta, mas sim para quem dona Felisarda
confiava não ceder a possíveis jogos de sedução do escravo Domingos. Esta
senhora, ao invés de ignorar a fuga, a presença de Domingos em sua fazenda, não
somente tomou as providências para a sua devolução, mas utilizou de métodos os
mais diplomáticos ' com a troca de bilhetes, e a gentil condução do fugitivo
por um seu escravo de confiança ' para resolver o problema sem maiores traumas
sociais para as comunidades daquelas fazendas. Portanto, Felisarda queria
evitar o que, se acontecesse, teria provavelmente conseqüências muito maiores,
ou seja, um crime envolvendo escravos, revoltas políticas de todo o tipo com a
sua participação.
Mas o crime ocorreu, Domingos não se conteve ante a atitude de seu condutor.
Segundo o lavrador Cristóvão Máximo de Carvalho, quando estava indo para a casa
de seu pai, encontrou no caminho, perto da fazenda de Manoel de Moraes,
[...] um homem ferido que lhe pediu água, e como ele testemunha
dissesse ao ofendido que não tinha com que desse água, o ofendido lhe
pedira para vir chamar uma pessoa na casa de Manoel de Moraes, para o
conduzir para lá. Então, ele o fez, chamando um rapaz de nome
Herculano, lavrador, que ficou em companhia do ofendido, enquanto
ele, testemunha, dirigiu-se para o seu destino. (ibidem:11v)
Lembremos que, neste lugar, já havia alguma solidariedade entre escravos e
livres, lavradores que trabalhavam ao seu lado nas plantações de café, para que
uma mobilização a favor da resolução do ocorrido fosse rapidamente montada, uma
vez que se soubesse do acontecido. Herculano, natural do Ceará, também era
escravo de Manoel de Moraes, embora Cristóvão não tenha se referido a este
detalhe uma só vez ' compartilhando das condições de outros escravos vindos
pelo tráfico interno, que tinham como desafio a construção rápida e eficiente
de alianças com os trabalhadores das fazendas para onde eram levados. Disse que
ele e Valentim foram surpreendidos por Cristóvão com a notícia, indo
imediatamente dá-la ao seu senhor. Valentim também pertencia a Manoel de
Moraes, e, na hora em que soubera do acontecido, encontrava-se na cozinha de
seu senhor, jantando. Era do Rio de Janeiro, mas Domingos, tal como Herculano,
era do Ceará, com idades muito próximas.
Uma vez tendo recebido a notícia, Antonio de Moraes chamou os lavradores
Jerônimo de Castro e José Botelho Lames, e, com os seus escravos, foram até o
pasto, onde encontraram Raimundo. Ferido no ventre, respondeu, segundo a versão
de Antonio de Moraes, que "indo banhar-se no rio, na ocasião em que vestia a
camisa, o réu apanhara a sua faca, que estava no chão, e com ela lhe fizera o
ferimento, cuja faca ele mesmo puxara depois" (ibidem:19v).
Levado para a casa de seu senhor, foi tratado pelo médico, dr. Davino, vindo a
falecer no mesmo dia, às nove horas da noite. Interessante foi a resposta de
Antonio de Moraes ao ser perguntado, num segundo depoimento, se Raimundo disse
alguma coisa antes de morrer, que pudesse incriminar Domingos. Mesmo tendo
perdido seu jovem escravo, afirmou que não havia-lhe feito tal pergunta,
sabendo apenas que o dito culpado era escravo de Landegário Gonçalves de Lima
Gaeto, embora não soubesse seu nome. Por que não queria saber sobre o assassino
de seu escravo, uma vez sendo de um outro senhor da região? Por que, tal como
dona Felisarda, sua parente, não haveria de fazer maior alarde com relação à
atitude de Domingos?
Acreditamos que, uma vez tendo acontecido o crime, a atitude de Domingos seria
identificada como perigosa com relação ao medo que pudesse gerar nos senhores
da região, e o quão arriscado seria para tais senhores pagar para ver como tal
atitude soaria para seus escravos. Domingos não fugiu do lugar, mas sim voltou
sozinho para a fazenda de seu senhor. Vamos repetir: feriu o outro escravo,
quem dele queria tirar proveito, depois da honra de conduzi-lo, e retornou
sozinho para onde deveria ser guiado, e presenciaria a possível recompensa,
prêmio, por ser devolvido em segurança garantida por outro escravo. A morte de
Raimundo somente aconteceu às nove horas da noite, muito tempo depois da hora
em que acreditavam ter acontecido o crime, qual fosse, por volta das três da
tarde ' intervalo entre a saída dos escravos da fazenda de Antonio de Moraes, e
a notícia trazida por Cristovão.
A versão dos fatos apresentada por Manoel de Moraes, adotada em nossa
narrativa, foi confirmada pelos escravos que depuseram, assim como pelos
trabalhadores livres. Todos incriminavam o escravo Domingos, mesmo sem que
ninguém, a não ser o morto, tivesse presenciado o crime, e que somente para
Moraes e Cristóvão o dito Raimundo tivesse narrado o seu esfaqueamento. Mas era
esta a história tida como verdadeira. Daí, o medo da "quebra da paz", da
"aparente harmonia", com a intervenção senhorial para evitar algum ato que
desequilibrasse com aquela comunidade política, e com a adoção de uma versão
única dos fatos pelas várias testemunhas arroladas.
Desta vez, todos estão com a mesma versão dos fatos, e não temos sinal algum de
feitor para controlar o trabalho dos escravos, nem muito menos a revolta
senhorial por ter o escravo fugido. O problema estava na maneira como foi
conduzida a negociação para a devolução do escravo, uma vez que dona Felisarda
capturou-o, sinal de confiança em poder contornar a situação. Contudo,
equivocada quanto ao que para Domingos significaria chegar de uma "fuga
autorizada" na fazenda de seu senhor, sendo guiado por um outro escravo, de
outra fazenda, tendo este recebido uma recompensa por tal ato. E mais,
lembremos que, no caminho, Raimundo deixou de lado Domingos, e foi se banhar no
rio. Qual o significado que esta atitude representou para Domingos? Certamente,
não foi o frescor do banhar de seu condutor. Qual foi o comportamento do juiz
neste processo em que o medo do exemplo político de Domingos era um elemento
chave para os envolvidos?
Vamos começar a resposta com uma informação: o curador e advogado do escravo
foi o filho de seu senhor, Eduardo Gonçalves de Lima. Assim, podemos afirmar
que seu senhor estava empenhado em defender seu trabalhador de todas as
acusações, arcando com as despesas do processo. Mas, a partir de qual
parâmetro? Vendo que a condenação seria inevitável, o que o advogado poderia, e
muito bem, era evitar uma condenação que tirasse o escravo do trabalho. No
primeiro julgamento, a sentença foi de Galés Perpétua. Já na apelação, com a
convocação de um novo júri, uma vez que o juiz entendeu os argumentos da defesa
de que o primeiro júri havia cometido erros técnicos graves em seus
procedimentos de argumentação, o desembargador designado para dar um parecer
sobre o primeiro processo discordou da sentença.
Concordou com todas as decisões do júri, exceto quanto à decisiva questão do
ferimento ter sido grave, e mortal. Diz, em seu parecer, o desembargador Sayão
Lobato, que "[...] o paciente morreu não porque o mal causado fosse mortal, mas
porque não aplicou toda a necessária diligência" (ibidem:86).
Bem, o desembargador reconheceu que houve um motivo para o ferimento, fruto de
um conflito entre os dois escravos, mas que tanto não era mortal que entre o
ferimento e o falecimento de Raimundo se passaram sete horas. O senhor do réu,
segundo Lobato, tinha razões para apelar da sentença, tal a injustiça cometida
na interpretação do acontecido, que fora dada em 24 de maio de 1874. Passados
vários meses sem o trabalho de seu escravo, pois que esperava o julgamento
preso na delegacia local, saiu, enfim, a nova sentença. Em 15 de julho de 1875,
Domingos foi condenado à pena de duzentos açoites, e dois anos de ferro ao
pescoço.
Neste caso, a atitude do escravo Domingos teve conseqüências diferentes para
ele e para o seu senhor. O primeiro não havia se dado conta de que provocaria
uma desestabilização tão grande entre os trabalhadores e senhores daquela
região, com a sua atitude, que acabaria como um rígido exemplo à futuras
revoltas. Para o Capitão Landegário Gonçalves de Lima, seu escravo estava em
demorado julgamento, fora do trabalho no eito, e, quando de seu retorno, não
teria mais garantias sobre o seu comportamento. Para os demais senhores da
região, embora não tenham conseguido afastá-lo definitivamente, pelo menos
conseguiram manter Domingos isolado de seus escravos durante algum tempo.
Vejamos que a prática da "fuga" era um costume para Domingos, não sofrendo,
aparentemente, punição de seu senhor. Entretanto, quando é reconduzido à sua
fazenda, a atitude de outra senhora de escravos demonstra alguma discordância
de tal acordo, discordância das relações de trabalho assumidas por um senhor
vizinho com seu escravo, que poderiam ser perigosas para as suas relações de
trabalho. Lembremos que na sua fazenda, escravos e livres trabalhavam lado a
lado, assim como na de seu parente, Manoel de Moraes. Eles providenciaram a
apuração do caso, a montagem da versão incriminadora do escravo, e sobre a qual
tinham confiança que tirariam-no, ao menos por algum tempo, do convívio com os
outros, também mandando o recado a seu senhor. O escravo Domingos percebeu que
recebera tratamento diferenciado daquela senhora, e que a vítima também lhe
tratara de maneira diferente. Um diferente contundente para as suas relações
construídas com muita dificuldade, com seu senhor e seus companheiros, livres
ou escravos.
Afinal de contas, o que estava escrito no bilhete que a senhora de escravos
Felisarda havia endereçado ao senhor de Domingos, nós não sabemos. Ou sabemos?
Conclusão: forjando a emancipação, revendo a conjuntura social da escravidão
As versões dos crimes são similares, tanto nos depoimentos dos escravos, quanto
nos dos feitores, administradores e trabalhadores livres. Percebemos
incongruências na lógica factual das versões, ao analisarmos a construção das
sociabilidades e nos "acordos invisíveis" entre aqueles agentes, tendo como
pano de fundo rupturas das regras de convívio em comunidade. Os que não se
adaptavam a tais acordos, deveriam ser expulsos, excluídos pelos próprios
membros da comunidade escrava da fazenda.
Identificamos, desta forma, a existência de um choque entre a Justiça do Estado
e a justiça da comunidade de fazenda. A primeira, cada vez mais atenta aos
problemas das formas de controle dos senhores sobre sua mão-de-obra, julgando
os criminosos de maneira a voltarem para o convívio na fazenda; a segunda,
montando versões que incriminavam em grau tão grande os escravos que ofendessem
suas regras, que ficaria difícil não serem condenados ao menos a vários anos de
reclusão, senão à Galés Perpétua.6 A "sensibilidade senhorial" se fazia
múltipla, a partir da forma como os senhores atuavam afim de resolver o
problema que, naquele momento, causava grande agitação entre os trabalhadores,
escravos, e demais homens livres, de sua fazenda e outras próximas. A questão
reside entre perder poucos escravos para a cadeia e ter um prejuízo incômodo,
alterando o ritmo de trabalho na fazenda, assim como a ordem na comunidade da
mesma, ou sofrer o risco de prejuízos ainda maiores (Machado, 1994:21-66).
Ao analisarmos tais documentos nos deparamos com as dúvidas recorrentes de
outros autores quando tratam das mudanças ocorridas a partir de 1850, com a
intensificação do tráfico interno para o Sudeste. Vale lembrar que, com a
influência das fortes secas que abalaram a economia das Províncias do Norte, na
década de 1860, o tráfico interprovincial ganhou novo fôlego, atraindo mais e
mais escravos para o sudeste. Isto elucida em parte o problema da
intensificação dos processos criminais, envolvendo escravos, ter aumentado a
partir de meados da década de 1860. Estes escravos oriundos do norte, e os
africanos e crioulos já estabelecidos no sudeste já tinham idéias de liberdade
e de ritmo de trabalho construídas nas relações específicas com seus senhores
(Costa, 1989:31-37). Estamos diante, então, de um novo elemento enfrentado
pelos senhores e escravos do Sudeste, na formação das alianças e nas
negociações de regras de trabalho, até das regalias e das formas de
reivindicação ' na admissão de relações sociais aparentemente incompatíveis com
uma sociedade escravista.7
Em três de agosto de 1873, o governo imperial enviou aos presidentes de
província uma Circular (Arquivo Nacional, IJ6-27/1869-1874) se posicionando
quanto aos deveres e limites das atitudes das autoridades policiais locais, uma
vez que "das comunicações recebidas nesta Secretaria de Estado e do que consta
da imprensa de quase todas as províncias, observa-se que, apesar das
diligências empregadas na prevenção e punição dos delitos, reproduzem-se com
freqüência atentados contra a segurança individual".
O pito estava sendo passado, não somente questionando à eficiência dos
representantes do poder policial e da Justiça do Estado Imperial, mas afirmando
sua ineficiência para evitar os delitos, exatamente contra "a segurança
individual". Segurança esta que estava ameaçada por ser teoricamente
negligenciada, aos olhos de vários membros da elite imperial que conviviam com
escravos muito mais nas letras das leis, mas não aos olhos de quem com os
escravos conviviam, no dia-a-dia. Vejamos a seguinte notícia, publicada na
coluna "Notícias", da primeira página da Revista Comercial de Santos, em oito
de junho de 1872 (Biblioteca Nacional, Seção de Obras Raras, documento
microfilmado):
Tribunal do Júri ' Entrou em julgamento no dia 5 do corrente o
processo em que é réu o escravo Sebastião. Usando de um nome suposto,
o réu há muito tempo fingindo-se livre, trabalhava por engajamento em
um sítio da Cubatão. Constando à polícia a existência deste
indivíduo, e havendo mesmo promessa de gratificação a quem o
capturasse, o sargento comandante do destacamento desta cidade, José
Maximino de Britto Alambert, fazendo-se acompanhar de um praça foi ao
lugar mencionado afim de conduzir o réu à presença da autoridade, e
verificar a sua identidade. Horrível luta deu-se então, e o
companheiro do sargento procurando livrar este deu algumas cacetadas
no réu, e verificando que já não existia a vítima e que o réu queria
também matá-lo, tanto que indagava por sua faca que havia perdido na
lama, voltou para traz a chamar gente, e assim procedeu porque
cansado e ferido também não podia mais resistir a tanta ferocidade e
valentia do réu. O sargento sucumbiu com um ferimento que lhe
atravessou o coração, outro no dedo, que chegara até a palma da mão,
duas escoriações no nariz, outras no dorso da mão, uma contusão no
lado esquerdo da fronte, e doze feridas no braço direito em forma
circular, em dentadas. Preso dias depois da perpetração do crime,
compareceu perante o tribunal do júri, onde alegou ter cometido o
crime por ter sido primeiro provocado, e estar convencido de que
morreria se não tratasse com energia de defender-se.
Percebamos que a notícia chama a atenção para a condição de gente do escravo,
misturando-a com a idéia de raiva social que ela carregaria, podendo ser
percebida através da feroz luta com o sargento e seu companheiro. Foram dois
contra um, e mesmo assim os dois policiais são retratados quase que como
heróis, que domaram perigosa fera quando solta de uma jaula.
Nas correspondências das autoridades policias locais com as da Corte,
encontramos notícias de menor alarde, mas preocupantes para os atormentados
homens livres com as possíveis atitudes dos escravos.8 Em 12 de junho de 1867,
temos as seguintes palavras do chefe de polícia interino, João da Costa Lima e
Castro, ao senhor de escravos insurretos em três fazendas de Nova Friburgo: "Se
as ordens expedidas forem bem executadas, penso que se conseguirá não só a
prisão dos assassinos, como reduzir à obediência os escravos daquelas fazendas,
que se acham insubordinados, e cujo número excede a cem" (Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro, PP, coleção 5).
Já em Bananal, em 24 de dezembro de 1872, numa correspondência reservada entre
a autoridade policial local, Manoel Antonio Duarte de Azevedo, e a presidência
da província de São Paulo, há o tom de frustração por não terem "indício algum
de insurreição de escravos no termo de Bananal nessa província, nem no de
Queluz, na de Minas Gerais". Contudo, algo ocorreu que, em 30 de dezembro, não
apenas já haviam sido descobertas tais insurreições, como também reforços eram
pedidos à Corte para delas os senhores conseguirem se livrar, no que o
Ministério da Guerra respondeu, também em "reservado" que "não é possível por
hora mandar mais força para essa província à vista da escassez de pessoal"
(Arquivo Nacional, IJ6-27/1869-74).
Voltemos à Circular, de agosto de 1873, que continua com recomendações para a
tomada de atitudes enérgicas visando a apuração dos delitos. Será que o governo
realmente achava que esta seria uma atitude enérgica de sua parte? A resposta é
não! Acreditava o governo que nas províncias faria representar a sua vontade de
ordem social, orientando os seus presidentes e funcionários da Justiça, uma vez
que pretendia organizar a representação local de seu poder efetivo, na forma de
ordenação, assim como dos meios pelos quais lançava mão para concretizar a sua
proposta. Daí podermos entender que
escolhendo o melhor pessoal possível para os cargos de promotor
público, suplente do juiz municipal, delegado e subdelegado de
polícia, estimulando o zelo das autoridades judiciárias e policiais
no cumprimento dos seus deveres e fazendo-lhes sentir que o Governo
terá em consideração os serviços recentes que prestarem na repressão
do crime, provendo de força militar os municípios em que a segurança
pública estiver ameaçada.
Ora, a segurança pública vinha depois da segurança da propriedade privada, dos
indivíduos? Sim, encontramos esta hierarquia entre "casa e rua", formando um
par dialético tendo como fim a idéia de ordem, da civilização vencendo a
barbárie, introjetado por parte representativa e influente da elite política
imperial, delegando este serviço ao seu corpo jurídico-policial. Vimos no
trecho anterior, o "zelo", cremos que no sentido de vigilância, de olhar para
as possíveis insurreições escravas, e mesmo distúrbios causados por outros mais
elementos das ruas, "desordeiros" ' como aparece amiúde nas cartas trocadas
entre os presidentes de província na década de 1870.
A formação do olhar do poder central, não sobre o que estava acontecendo nas
"propriedades" ' em nosso caso, e certamente no das autoridades provinciais,
"fazendas" com grande número de escravos ', mas sim sobre o que não deveria
mais ocorrer, ou mesmo, caso ocorresse, fosse devassado com eficiência, é o
cerne de uma discussão que estamos apenas tocando.9 A vida que devia ser
preservada era apenas daqueles que a tinham ligado à propriedade, pois criam os
membros do Estado Imperial envolvidos no planejamento da Circular que "com
estas e outras medidas, além das que requisitar o Governo Imperial, conseguirá
Vossa Excelência manter o respeito da lei e a garantia de vida e propriedade
dos habitantes da Província confiada à sua administração".
Enfim, não eram todos que deveriam ser vigiados, mas sim aqueles que ofereciam
perigo aos que estavam ligados, ao menos por hierarquia social, aos homens que
faziam as leis do Estado naquele momento. A perspectiva, então, era vigiar os
possíveis insurretos e desordeiros, sem perder o controle para evitar o que
ainda não aconteceu, mas de alguma forma, em medida forte, poderia, quiçá
deveria, ocorrer. Uma idéia burguesa importada da elite vitoriana, a ordenação
dos espaços públicos, a educação do olhar das autoridades, na inversão da idéia
de medo que carregava a hegemonia social dos senhores de escravos do sudeste
cafeeiro, em sua marcante presença na política imperial.10
Como último conselho às autoridades políticas oficiais supremas das províncias,
ao menos em teoria, dizia-se que "entre os muitos serviços que o Governo espera
da coadjuvação dos seus delegados, capacite-se Vossa Excelência de que nenhum é
maior nem os poderá recomendar mais, do que aqueles que forem prestados à
polícia de segurança e à administração regular da Justiça".
NOTAS
1. Segundo Castro (1995), os senhores passaram a operar com um fator jamais
existente até então, a perspectiva do final do trabalho escravo ' mesmo sem uma
data fixada. Desta forma, estariam se dirigindo para "encaminhar de maneira
mais segura as transformações do trabalho" (p. 210). Ver esp. cap. 9, "Sobre o
poder moral dos senhores", e cap. 10, "O fantasma da desordem", nos quais a
autora apenas sinaliza as revoltas dos escravos assenzalados, e o medo das
elites do Vale do Paraíba quanto às conseqüências do alastramento destas
revoltas. A pesquisa proposta visa, recuando uma década, até 1860, dar conta
das várias formas de protesto escravo, na elaboração destes novos "acordos",
interpretando as atitudes dos senhores quanto ao final do tráfico.
2. Sobre o "fato social" para este tipo de trabalho, utilizamos Thompson (1967,
1998) Davies (1990). Também sobre este tema, foi-nos fundamental, como
contraponto crítico às idéias de Thompson (1967) e Davies (1990), a leitura de
Desan, (1992: 63-96). Para uma avaliação acerca dos usos dos conceitos de
Thompson pela historiografia brasileira da escravidão, ver Lara (1995).
3. Sobre a complexidade de situações que envolvem as fugas de escravos, em
motivações plurais dando ênfase nas estratégias de esgarçamento das relações
entre escravos e senhores, ver Silva (1989), Gomes (1996) e Araújo (2001).
4. Sobre o medo das revoltas escravas, que tomariam grandes proporções quase
que como em "efeito dominó" nas fazendas de café paulistas, ver Azevedo (1987);
sobre as revoltas escravas na mesma região, no mesmo período, ver Machado
(1994).
5. Sobre escravos e livres trabalhando juntos, algumas reflexões são
apresentadas em Castro (1995).
6. Há autores que avaliam, uns mais, outros menos, as relações entre Direito,
elite política e burocrática Imperial e atitudes dos escravos diante destes
debates político-jurídicos, que servem de suporte para este ponto. São eles, em
ordem cronológica de publicação: Lamounier (1988); Grinberg (1994); Mendonça
(1999); Rodrigues (2000); Pena (2001).
7. A idéia de relações sociais e econômicas estranhas ou anômalas numa
sociedade escravista é contestada com os conceitos de "contraponto escravo" e
"transações sociais" Morgan (1998) que muito nos ajudaram a pensar este texto.
Agradecemos a Flávio dos Santos Gomes por esta indicação.
8. Neste sentido, o plano mental não estaria desconectado das demais relações
sociais, muito pelo contrário. O que pode ser entendido como cultura para nós
pode ser visto em estudos de E. P. Thompson, ou seja, está ligado ao estudo das
relações sociais, nas formas de articulações dos grupos de homens entre si na
transformação de suas formas de produção e reprodução dos meios materiais de
vida. Ver Thompson (1966) e (1998). Ver também Burguièrre (1998).
9. Estamos operando com a discussão das formas de controle social que a chamada
"boa sociedade imperial", no Segundo Reinado, apresentou, ora dando ênfase ao
poder local, de senhores de escravos e grandes proprietários de terras, ora no
central, dos ministros e altos burocratas do Estado Imperial. Numa certa
medida, a estrutura deste quadro se estende para as décadas finais do regime
monárquico brasileiro, quando projetos de organização social se tornam cada vez
mais fortes ' exemplo das discussões e leis para o combate à varíola e febre
amarela, associando aos cortiços, e às "classes perigosas", na Corte ' ver
Chalhoub (1996), esp. "1. Cortiços" e "2. Febre amarela", pp. 15-96.
10. Esta importação de referências sociais, da elite brasileira com relação à
inglesa e francesa no século XIX, tem como matriz a análise de Michel Foucault
sobre a articulação entre poder político, poder policial, elite política e
ordenação dos espaços. Não queremos dizer com isto que nunca dantes houvesse
medo de insurreições escravas no Brasil, e mesmo demais "crimes", mas sim no
sentido "orgânico" da relação entre os conceitos apontados. Ver Foucault
(1999).