Clóvis Moura e a sociologia da práxis
Quando começamos a pensar sobre Clóvis Moura, deparamos com muitas indagações.
As mais freqüentes, de meus colegas alunos de pós-graduação, eram "quem foi
Clóvis Moura", e "no que ele contribuiu para pensar o Brasil?" Ao mesmo tempo,
havia pronunciamentos eufóricos, principalmente de professores, tais como: "que
bom que alguém se lembrou dele". Bem, diante deste quadro ' esquecido ou
preterido ', começamos a refletir sobre suas proposições. Este artigo é fruto
de nossa dissertação de Mestrado em Sociologia sobre a obra deste autor, e não
tem a pretensão de ser exaustivo ou de dar uma resposta conclusiva a respeito
do intelectual Clóvis Moura. Nossa proposição é dar o pontapé inicial para
muitos outros estudos sobre sua obra. Buscaremos trazer algumas possíveis
hipóteses de análise da trajetória intelectual ' pode-se dizer radical '1 deste
autor, acima de tudo ético.
Como pretendemos resumir sua compreensão de Brasil, e estamos analisando
algumas de suas interpretações com o intuito de revelar suas proposições, sua
história de vida ganha relevo. Este recorte de estudo traz à tona partes,
consideradas por nós, importantes de sua biografia.
Clóvis Steiger de Assis Moura nasceu no outono de 1925, em Amarante, Piauí,
membro de uma família de classe média-baixa (na linguagem cabocla seria o
equivalente a remediado, isto é, nem pobre, nem rico). Filho de mãe branca e
pai negro tem, entre seus antepassados, um barão do império prussiano, seu
bisavô Ferdinando vön Steiger; pelo lado paterno, a escrava Carlota, sua avó,
diga-se em tempo, escrava de seu avô, mais um dos muitos senhores de engenho do
Nordeste açucareiro. Clóvis, ainda criança, muda-se com a família para Natal
(RN), onde residiu de 1935 a 1941. Inicia seus estudos num colégio de padres
maristas, o Colégio Santo Antônio. Ainda muito jovem funda, à revelia dos
irmãos maristas, o Grêmio Cívico-Literário "12 de Outubro", onde eram
realizadas reuniões semanais para discussão de literatura e política. Segundo
Moura, o grêmio cresceu e prosperou, chegando a possuir quarenta membros,
participantes ativos, "cada um com seu patrono à maneira da Academia Brasileira
de Letras".2 Comenta, ainda, que "o Grêmio contou com sócios honoráveis, como
Luís da Câmara Cascudo, Elói de Souza, dentre outros autores regionais de
renome". Possuiu também um jornal literário de nome O Potiguar, sob sua
direção, no qual publicou o primeiro de muitos artigos sobre o Brasil, este
versando sobre a Inconfidência Mineira.
Quando Clóvis Moura e seu irmão se mudaram para Salvador, em 1942, finda-se o
Grêmio, muito conhecido pelos debates e publicações literárias. Na Bahia,
Clóvis não chega a graduar-se em Humanidades naquele ano,3 e ingressa na
carreira jornalística por meio do jornal O Momento, diário do Partido Comunista
Brasileiro ' PCB. É quando há o contato com o PCB, que se constitui na
oportunidade para que ele se aprofundasse nas teorias marxista e pecebista da
III e IV Internacionais. Já em 1945 torna-se militante e em 1947 elege-se
deputado estadual pelo Partido, mas tem sua candidatura cassada pelo Tribunal
Eleitoral devido a uma manobra política proveniente dos partidos de ocasião, em
torno de um comício no qual estava em Juazeiro, no dia 1º de maio. Sabemos que
houve, em 1947, mais um dos cancelamentos do registro do Partido Comunista,
partido pelo qual se elegera.
Por conta desse acontecimento político, Moura transfere-se para São Paulo em
1949, e começa a atuar na Frente Cultural do PCB, organismo que reunia Caio
Prado Júnior, Villanova Artigas, Artur Neves, dentre outros intelectuais. Além
de militar no Partido Comunista, Moura profissionalmente atua como jornalista,
trabalhando para Samuel Wainer e, posteriormente, para Assis Chateaubriand, nos
Diários Associados. Concomitante a sua atividade profissional, pesquisava sobre
a rebeldia negra, a luta de classes no período colonial, tendo como foco o
importante e ativo papel do negro na formação da nação, não só do ponto de
vista culturalista, que começava a ser abordado no momento, mas ' e
principalmente ' social, desdobrando-se para os planos político e econômico. Em
1959 publica seu primeiro e marcante livro, Rebeliões da senzala.
Foi com esse pioneiro livro, revisionista da escravidão, bem como da história
social do negro, que Clóvis Moura se inseriu no cenário intelectual brasileiro,
sendo que as luzes da ribalta nacional tardiamente voltaram seu foco para ele.
A questão que se coloca é: por que o autor foi preterido da discussão
acadêmica, principalmente logo após sua "inserção" como mais um pensador da
escravidão e da história do negro no país? Talvez a resposta a este
questionamento esteja na própria leitura feita pelo autor da história social
brasileira. Com grande acuidade e criticidade, verificou que para a construção
desta sociedade cobra-se um alto custo dos setores subalternos, em especial dos
negros; esta leitura era incômoda para as classes dominantes.
O fato é que seu primeiro livro, Rebeliões da senzala foi, eufemisticamente,
pouco acolhido pelos intelectuais brasileiros, pertencentes ou não ao Partido
Comunista, que resistiram à sua tese. Talvez por suas acepções estarem em
desajuste com o stalinismo4 pregado pelo PCB, sua ligação com o Partido nunca
foi de aceitação das teorias divulgadas pela Internacional Comunista, daí sua
aproximação das análises de Brasil feitas por Caio Prado.5 Assim como este
autor, suas análises também utilizam o marxismo, mas apenas como instrumento
para diagnosticar as realidades contraditórias das diversas fases históricas do
país, levando em consideração, principalmente, a questão racial. E, por conta
de sua posição, digamos radical, dentro do "Partidão", desde logo, por causa de
suas interpretações consideradas aberrações por seus companheiros de partido,
Moura começa a ser isolado ou "desqualificado" dentro da verdadeira e profícua
bandeira de luta do PCB ' a luta de classes que, à época, para os partidários
do comunismo, nada tinha a ver com questão racial. Segundo Moura, os PCs
brasileiros, bem como os latino-americanos, tinham [e de certo modo ainda têm]
dificuldades em entender a questão "raça"/classe que envolve a problemática do
afrodescendente brasileiro, bem como do afro-descendente latino-americano
(Moura, 1994).
O intelectual radical e a Academia
Sobre a questão "intelectuais e os partidos de esquerda", Marco Aurélio Garcia
coloca uma distinção entre o "intelectual de partido" e o intelectual
"simpatizante". Para Garcia, o "intelectual de partido" é aquele que segue à
risca a disciplina imposta pelos ditames internacionalizantes vindos do Partido
Comunista russo; já o "simpatizante" não tende ao mesmo rigor. Ainda em sua
análise, entende também que a separação entre "intelectual de partido" e
"simpatizante" pode ser arbitrária, pois amiúde os dois conceitos se fundem e
se confundem. Garcia apresenta exemplos da forma "simpatizante" de intelectual
de esquerda:
Pablo Neruda, por exemplo, morreu militante e dirigente do PC
chileno, e Jorge Amado chegou a ser deputado do Partido Comunista
Brasileiro, mas seus perfis se ajustam mais aos de "simpatizantes" do
que propriamente aos de "intelectuais de partido". No caso de Amado,
a crise do movimento comunista dos anos 50, que provocaria tamanhos
desgastes em suas fileiras e entre os "simpatizantes", acabou por
afastá-lo do PCB. [...] Caio Prado Júnior, que também foi deputado do
PCB, a despeito de ter produzido uma das mais significativas obras
sobre a realidade econômica, social e política do Brasil, sempre foi
um marginal no interior do PCB, na medida em que sua produção
historiográfica contraditava fundamentalmente o modelo de
interpretação vigente no PC sobre o caráter da sociedade brasileira".
(Garcia, citado em Soares, 1985:98)
O interessante é percebermos que o "intelectual de partido" possui, na acepção
de Garcia, um sentido muito estrito, referindo-se sempre a um intelectual
acadêmico, desconsiderando o intelectual "radical". Utilizando a intelecção de
Garcia para analisar o intelectual Clóvis Moura, seguramente este se
enquadraria na ala dos intelectuais "simpatizantes", que tal como Pablo Neruda,
Jorge Amado e Caio Prado, não seguia disciplinadamente os ditames do Partido
Comunista. Com isso podemos igualmente explicar a marginalização de Moura no
interior do Partido. Garcia expõe que os intelectuais que pretenderam assumir
seu pensar individual acabaram por sofrer de uma marginalidade que o "espírito
de partido" carrega.
As relações intelectuais/partido aparecem também subsumidas nas
fórmulas "o partido como intelectual coletivo", com o que se pretende
sublinhar o caráter "social" da elaboração teórica e minimizar as
intervenções individuais. Sem subestimar a importância desta proposta
metodológica, é importante assinalar que ela tem ocultado, na maioria
dos casos, um processo monocórdico de reflexão, onde as dissonâncias
teóricas são estigmatizadas como verdadeiras heresias ou,
simplesmente, confinadas a posições onde não têm repercussão. Trata-
se da aplicação dos princípios do "centralismo democrático" à
atividade intelectual. (ibidem:99)
Esbarramos também em outra questão, a do intelectual inserido na universidade e
daquele autônomo. Mas, além da condição de estar ou não no meio acadêmico, essa
situação carrega consigo a ilação de uma ideologia particular, que no caso de
Moura é a de não estar à venda (quer dizer, a serviço do capital), de poder ter
uma desvinculada e mais ampla liberdade de expressão, sem se preocupar em
agradar esse e desagradar aquele, portanto, de possuir integridade, no
significado mais amplo desta palavra. Logo, de postar-se na contramão do
capitalismo e de suas estruturas, no caso a academia. A postura do autor era a
de buscar conhecer a realidade e a partir dela produzir conhecimento por meio
dos questionamentos feitos, sem se preocupar com carreira acadêmica, política
ou militância.
Inserimos a militância nessa nossa abordagem pois Moura, assim que amadureceu,
podemos dizer, intelectualmente, como ele mesmo nos revela, conseguiu verificar
a incongruência entre livre pensador e militante, ou seja, o verdadeiro
intelectual em sua concepção e para evitar possíveis bifurcações de seu
pensamento e conduta, não deve militar em nenhum partido. Esse patamar de
interpretação só pode ser alcançado pela vivência e pela militância. Ele
entende que é possível ser crítico e ser de "esquerda" sem pertencer a um
determinado partido, e ele prefere assim. Desde a década de 80 se desvinculou
da militância, passando a contribuir intelectualmente para uma ou outra causa e
proposta, mas sem levantar nenhuma bandeira partidária, a não ser aquela dos
excluídos do sistema, principalmente negros e não-brancos. Mas não podemos
esquecer de observar que esta postura é individual de Clóvis Moura, e que
outros intelectuais conseguiram militar e continuar sendo pensadores críticos,
como Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes.
A questão aqui não é desmerecer os verdadeiros intelectuais acadêmicos, mas sim
sublevar a modéstia e a coragem que possuiu nosso autor, que pregava e vivia o
que realmente deveria ser a figura do intelectual, em nosso entendimento, o de
exercer diariamente o papel da rebeldia, sendo um criador e procriador do
desassossego e da dúvida, tomando partido do progresso das minorias, que no seu
caso, são os negros na sua luta contra o racismo, logo, contra a desigualdade e
o capitalismo. O autor não se preocupou em fazer carreira acadêmica, mas sim em
contribuir com uma interpretação, no mínimo, autêntica da realidade brasileira,
e acima de tudo em bases dinâmico-rebeldes, isto é, com uma postura crítica e
uma proposta radical de mudança da sociedade. Portanto, podemos aplicar o
conceito de "intelectual6 revolucionário" a Clóvis Moura, com todo o peso e o
significado que este conceito possui e agrega. Konder, analisando o papel do
intelectual, escreve: "O artista, o escritor, o intelectual não devem 'servir
aos donos da vida'. [...] Devem, no entanto, preservar sua autonomia
individual" (Konder, 1991:48). Ainda utilizando as acepções de Konder, podemos
adotá-las para averiguar a contribuição de Clóvis Moura e seus estudos para o
revisionismo da história do negro no país:
A concepção da história como um processo no qual a dilaceração da
comunidade humana, a divisão social do trabalho, a competição em
torno da propriedade privada, a exploração e a opressão impedem os
seres humanos de aproveitarem a crescente dominação das forças
naturais para se tornarem mais livres é uma concepção que cobra
daquele que a adota uma reflexão mais crítica a respeito dos caminhos
que os homens têm percorrido e uma disposição mais resoluta no
sentido de superar o peso morto do passado e forjar uma história
nova, diferente, melhor. (ibidem:131)
Daí podermos pensar no grande incômodo que, para muitos, caracterizou as
proposições mourianas. Neste ínterim, ressaltamos o pano de fundo histórico da
cultura brasileira na qual se inclui a fase de sua obra mais representativa.
A década de 1960 foi marcada, a princípio, por uma tentativa de reorganização
mais democrática e justa da sociedade por parte de um setor social que, como
sabemos, não obteve sucesso, devido ao contragolpe de parte das elites,
concretizado na tomada do poder pelos militares e sua conseguinte ditadura, com
isto evitando o fim de alguns privilégios e a modificação da estrutura social
vigente.
Para esta análise, buscamos em Carlos Guilherme Mota (2000) a periodização que
para nós mais cabe aos estudos mourianos, que se inserem na "Era de ampliação e
revisão reformista" que Mota data entre 1957 e 1964. Esse momento caracteriza-
se pelo revisionismo nos estudos sociais, principalmente em leituras histórico-
sociológicas, e um dos temas desta grande releitura foi a revisão da história
do negro. Fora um momento fecundo nas Ciências Sociais no país, pois a escola
de Florestan Fernandes dá os primeiros, de muitos frutos. Também não podemos
deixar de mencionar, para o fértil momento, a contribuição profícua da política
desenvolvimentista que atingiu também a vida cultural e universitária do país.7
De acordo com a análise de Mota, esse período é um momento em que os estudos
históricos se unem aos estudos sociológicos e políticos. Observa:
A temática central dessas produções [da produção intelectual dessa
fase] está ligada ao estudo das mudanças sociais e políticas no
Brasil, em perspectiva histórica. Muitos autores foram diretamente ao
cerne do processo histórico, procurando estudar a fisionomia própria
(ou não) dos modos de produção no Brasil, e suas manifestações nas
diversas instâncias da realidade, não descuidando totalmente da
inserção do Brasil na economia mundial. A perspectiva geral era
antiimperialista, mas o estudo cuidadoso da temática da dependência
ainda não se impusera. (Mota, 2000: 41)
É nesta fase que também ocorre a institucionalização dos quadros intelectuais.
Ainda utilizando suas análises, concordamos que: "A tradição radical [de
intelectuais] ' que se opõe à tradição afortunada ' não se constitui em setor
dominante, mas em fração diminuta da intelectualidade" (ibidem:51) Então, mesmo
em momentos de transição, a locomoção dos intelectuais, ou seja, do mundo da
cultura, é lenta com relação à maior velocidade da esfera da produção; logo, os
momentos de crise não foram suficientes para acelerar uma transformação maior
na esfera dos intelectuais vinculados ao sistema. O que ocorreu foi que os
intelectuais tradicionais tornaram-se "intelectuais orgânicos"8 de uma
determinada classe social, neste caso, muitos da classe dominante.
O poder da academia também se verifica nas citações; foi o que notamos em
muitas obras de inúmeros intelectuais brasileiros que não citam Clóvis Moura,
principalmente nas décadas revisionistas de 70 e 80. Podemos cogitar que talvez
não tinham realmente o conhecimento de sua análise, mas não podemos descartar a
possibilidade de não citá-lo porque este autor não fazia parte do seleto grupo
dos intelectuais vinculados à academia. Interpretamos essa preterição como
sendo uma questão de poder, ou seja, Moura era um intelectual autônomo, isto é,
sem poder, então, citava-se um autor ou não como forma de fazer política.
Muitos, digamos, pseudo-intelectuais por pura demagogia citavam as obras de
autores vinculados a determinados grupos e a instituições de pesquisa, por
suposto, recheados de poder, com outra intenção desta de contribuir para a
compreensão das esferas da vida, das estruturas e relações sociais da
sociedade, e sem a pretensão de contribuir de alguma forma para buscar a
modificação e transformação da realidade em prol da construção da verdadeira
democracia, e da nação.
Estamos pisando em terreno minado, pois caímos na velha discussão da
parcialidade ou imparcialidade das Ciências Sociais, e conseqüentemente do
intelectual, o que não é nossa pretensão fazer, mas aproveitamos para lançar
mão da acepção de Michael Löwy, com que concordamos:
Entretanto, contrariamente ao que permite deduzir Mannheim, que tende
a absolutizar esta autonomia, não há intelligentsia verdadeiramente
"neutra" e acima das classes. A flutuação dos intelectuais, como
aquela dos balões de ar quente na noite de São João, é um estado
provisório: eles terminam, geralmente, cedendo à lei da gravidade,
sendo atraídos por uma das grandes classes sociais de luta
(burguesia, proletariado, às vezes campesinato). (Löwy, 1979:2)
No caso de Moura, o seu balão caiu na classe proletária e excluída, que é a da
maioria dos negros brasileiros. Deparamos aqui com o seguinte questionamento:
por que essa exclusão? E é em cima dessa desigualdade entre negros e brancos
gritante no Brasil, que o autor parte para teorizar o preconceito racial, e o
grande e importante outrora papel dos negros na transformação da estrutura
brasileira pretérita, bem como de seu caráter relevante para que haja as
vindouras e futuras transformações.
Moura incorre no viés hegeliano de marxismo, conjetura o passado permeável à
razão, e assim apropria-se do fato histórico consubstanciado para entender o
processo de construção nacional. Sendo assim, a nação apresenta-se como uma
etapa necessária na ultrapassagem das relações capitalistas de produção. Logo,
nosso autor explica a realidade social brasileira a partir de bases materiais e
de relações de classe, bem aos modos marxianos, mas deixando bem claro que
apenas utiliza o marxismo como ferramenta para pensar o Brasil, e não o seu
contrário, o de encaixar o país num modelo engessado de marxismo. Daí sua
proximidade com as análises de Caio Prado Júnior.
Ele questiona a sociologia acadêmica em sua obra A sociologia posta em questão,
escrita em 1971, publicada no Brasil em 1978. É interessante analisarmos suas
colocações nesse trabalho para podermos entender sua postura intelectual. Moura
divide as Ciências Sociais, enfocando, principalmente, a Sociologia em duas
categorias: a acadêmica e a dinâmico/radical da práxis. A sociologia acadêmica
é aquela estreitamente vinculada às classes dominantes e divulgadora de sua
ideologia. No seu entender, é aquela que apresenta soluções parciais para
diversos tipos de conflitos, procurando bloquear soluções mais radicais. Ainda
em sua generalização sobre a sociologia acadêmica, deslinda que esta não
contempla a dinâmica da sociedade e não contém a crítica radical ao sistema
capitalista, e expõe o por que da sociologia acadêmica não poder conter a
radicalidade:
[...] a sociologia acadêmica pode, no máximo, em determinados
momentos, ser uma ideologia crítica de alguns segmentos, das classes
dominantes, porém nunca uma ciência que esteja em consonância com o
ritmo do dinamismo emergente da sociedade. É sempre um elemento
estruturalmente limitado porque não acompanha as contradições que se
manifestam em conseqüência do próprio desenvolvimento do seu objeto
de estudo. Em outras palavras: a sociologia acadêmica, em
determinados momentos, pode, quando muito, refletir apenas uma
consciência crítica, reformista, mas nunca uma consciência
revolucionária. (Moura, 1978:11-12)
O autor compreende a sociologia acadêmica engessada pela estrutura
estruturante, por assim dizer, do sistema capitalista, e desde logo, sem a
radicalidade, dinamicidade e plasticidade que a sociologia dinâmico/radical ou
sociologia da práxis revolucionária, entendida pelo autor como sendo a
verdadeira sociologia, possui. E, justamente, fica a cargo dessa sociologia
dinâmico/radical uma proposta real de mudança social, bem como de uma nova
estruturação das Ciências Sociais. Escreve:
A sociologia acadêmica reflete, interpreta e justifica, assim, na sua
estrutura conceptual e na sua aplicação prática, a inércia social e o
conservadorismo político nas suas diversas conotações. Desta forma há
necessidade, nesta constelação de teorias que configura a
decomposição do pensamento social e das ciências sociais acadêmicas,
de uma reformulação radical dessas categorias. [...] Na sociedade
capitalista ' especialmente na sua etapa atual ' qualquer tipo de
reformismo é, portanto, uma forma refinada de impedir a revolução
social. Daí o gradualismo da Sociologia acadêmica funcionar como
força de retrocesso ou estagnação social. Sua vinculação com a ordem
estabelecida impede-a de colocar-se ao lado daquelas forças, grupos
ou instituições que são a expressão da necessidade de projeção de uma
nova sociedade. Nasce, então, toda uma sistemática justificatória do
que existe e condenatória do vir a ser que passa a ser considerada
utopia ou pensamento quiliástico. (ibidem:116-117)
Por essas análises sobre as Ciências Sociais institucionalizadas ou acadêmicas,
tecidas por nosso autor, podemos compreender a posição tomada por ele, que
dentro do que entende por ser intelectual, fez jus ao seu papel ou missão de
intelectual, pois, não só trabalhou teoricamente, mas principalmente pôs em
prática suas intelecções. Para Moura, a intrínseca ligação entre a academia e a
classe dominante da sociedade capitalista pode ser facilmente detectada pelos
fomentos destinados a tal ou qual projeto feitos por agências mantenedoras
estatais ou privadas que, por suposto, seguem a cartilha racionalista e
teoricista da ideologia capitalista. Colocando a academia numa posição de
instituição tática subordinada e, portanto, auxiliar da manutenção da estrutura
em vigor, aponta que:
[A sociologia acadêmica é] uma técnica refinada que racionaliza as
suas contradições. Os institutos de pesquisas, as fundações de
auxílio, todo o conjunto de instituições que beneficiam esse tipo de
atividade através de compensadores financeiros, corrói a visão
dinâmico/radical do cientista social, deixando-o ideologicamente
desarmado para entender a irracionalidade global do sistema, pois,
através de um condicionamento habilmente preparado, vai sendo
alienado pelo próprio reflexo das idéias dominantes e passa a aceitar
como ciência ' embora isto não se manifeste num plano consciente '
apenas aquelas técnicas altamente refinadas que são elaboradas nos
círculos universitários. (ibidem:12)
Neste pequeno trecho, parece-nos que ele mesmo se questionou sobre a sua
"exclusão" do debate intelectual no meio acadêmico, talvez por apresentar uma
posição ímpar da praticada nesse meio. Nessa análise, nos dá a impressão que o
intelectual, para ser reconhecido por seus pares, deve ser moldado de uma mesma
forma, com um mesmo molde, ou seja, dentro de determinados padrões. Caso essa
modelagem ou padrão não seja seguido à risca, como numa linha de montagem, o
produto em deformidade é descartado e ou inutilizado. Cabe aí o seguinte
questionamento: podemos entender que, sendo assim, só é reconhecido como
intelectual aquele que aceita a institucionalização das Ciências Sociais,
fazendo parte dela em algum momento? O capitalismo corrói todas as esferas da
vida, infectando também a esfera intelectual e, portanto, apresenta-se bastante
difícil digressionar-se de sua abrangência e, neste viés, observa Giannotti que
a esfera intelectual está atrelada à lógica capitalista:
O autor escreve um valor-de-uso, cujo direito de reprodução cede ao
editor; este o reproduz em milhares de exemplares com o fito preciso
de auferir lucros, uma parte dos quais cede ao escritor. Sob esse
aspecto, cientista e autor surgem como uma espécie de latifundiário
ou de usurário transferindo ao capitalista industrial o direito de
explorar um monopólio. (Giannotti, 1977:24-25)
Entendemos que, devido a sua postura radical contra o capitalismo, Moura adotou
a posição de intelectual radical, ou seja, minimamente ligado ao sistema.
Devemos ressaltar que Clóvis Moura, como tantos outros intelectuais, teve
problemas quanto ao recebimento de direitos autorais. Numa destas pelejas com
editoras, doou mais de duzentos exemplares, não vendidos pela editora e que
iriam ser incinerados, para o MST Movimento dos Sem-Terra.
Ainda analisando o intelectual Clóvis Moura, colocamos em questão o assim
denominado por Bourdieu "campo intelectual". Entendemos que o campo intelectual
do qual fala Bourdieu é o que conhecemos como campo intelectual-acadêmico, e
não campo intelectual como um todo. Bourdieu expõe em seu conceito de campo
intelectual, que este se caracteriza
em interesses específicos, não somente em Paris, mas também em
Moscou, cargos acadêmicos ou contratos editoriais, resenhas ou cargos
universitários, e também sinais de reconhecimento e gratificações
freqüentemente imperceptíveis para quem não pertence ao universo em
questão, mas através das quais ocorrem todos os tipos de pressões e
censuras sutis. (Bourdieu, 1983:56)
Podemos entender, de acordo com a compreensão de Bourdieu de campo intelectual,
que seu conceito é amalgamado e generalizado, não cabendo nele a ala dos
intelectuais radicais, desvinculados de instituições de ensino e pouco
seduzidos pela fama ou reconhecimento de sua genialidade intelectual. Podemos
concordar com o conceito de campo intelectual somente em dois aspectos: quando
Bourdieu ressalta as percepções dadas aos indivíduos que estão inseridos neste
campo, que mesmo os intelectuais radicais sabem entender e decodificar os
códigos daí provenientes, e pela questão dos jogos de poder e sua vinculação
com o campo político. Devemos, então, levar em conta essas particularidades no
que diz respeito ao campo intelectual como um todo, mas sempre considerando as
diferenças entre intelectuais acadêmicos e radicais, que, por suposto, comungam
de distintos interesses, quer em Paris, Moscou ou em outra parte do mundo.
Clóvis Moura está claramente preocupado com a transformação social, e com isso
norteia sua postura intelectual entendendo que o pensador independente possui
maiores e mais concretas possibilidades de fomentar a mudança da sociedade,
pois não está preso a nenhum tentáculo do sistema. Em sua ilação, expõe que "o
sociólogo profissional usa de um conjunto de técnicas para servir à estrutura;
não é um cientista independente que procura uma práxis para transformá-la"
(Moura, 1978:28). Moura não se aliava ao Estado9 (entendido por ele como
expressão das elites); muito pelo contrário, questionava-o diletantemente,
juntamente com suas instituições, que, para ele, se mostravam coniventes com o
atual sistema. Ele guiou-se por uma ação vinculada a uma proposta extremamente
radical de mudança, atitude esta que foi entendida por muitos como sendo
anticientífica. Analisamos a marginalidade, principalmente de suas primeiras
obras dentro da academia durante algum tempo,10 e, por este viés, sua postura.
Diante da então sociologia acadêmica, Moura chega ao prognóstico nefasto da
crescente fragmentação do conhecimento. Nesta está intrínseco um grande
problema, a falta de perspicácia investigativa dos cientistas, que resulta numa
estreiteza ideológica intelectual, lógica esta imanentemente fomentada pelo
capitalismo. Escreve:
O refinamento metodológico, a necessidade de corpos de especialistas
em aspectos menos relevantes, cada vez mais requintados e bem
remunerados, no entanto, conduz à apatia ideológica e à miopia
teórica. [...] Apesar [dos intelectuais] trabalharem em equipe são
cada vez mais introvertidos, virados para dentro de si mesmos, vendo
em cada colega mais um concorrente na carreira universitária do que
um colaborador científico. (ibidem:27)
Quanto à questão da profissionalização do intelectual, o autor observa que, de
uma certa forma, o assalariamento do intelectual contribuiu para que ele,
juntamente com outros trabalhadores, pudessem, juntos, questionar a estrutura
social vigente, na busca pela real democracia e por uma renovação social. Mas,
ele depara com o fato de que a ordem dos intelectuais não é coesa, e muitos
sucumbiram às benesses do capital e abandonaram o barco da mudança social,
chegando a desqualificá-la por completo. Em sua análise, para realmente termos
verdadeiros intelectuais é preciso buscar a concretização de uma sociedade mais
justa, nos quais estes possam realmente desempenhar seu papel, que muitos se
olvidaram (Moura, 1978).
Walnice Galvão, em sua acepção incisiva sobre o intelectual acadêmico
brasileiro, expõe:
[...] que, com maior ou menor boa vontade, voluntariamente ou a
contragosto e mesmo com raríssimas exceções honrosas, os intelectuais
brasileiros aderem à ideologia da classe dominante e procuram não
enfrentar o Estado, do qual depende diretamente sua subsistência.
(Galvão, citada em Coutinho, 2000:53)
É, no mínimo, interessante uma das ilações a que chega Pécaut (1990) sobre o
"mundo" dos intelectuais, que estes "formam um mundo heteróclito", ou seja, um
mundo extravagante. Não concordamos com essa acepção de Pécaut, pois entendemos
que o "campo intelectual" é, assim como outros campos específicos, pululado de
linguagens e códigos só reconhecidos e decifráveis pelos seus componentes, mas
esta característica não permite dizermos que o mundo dos intelectuais é um
mundo singular; pelo contrário, é o mesmo mundo, os intelectuais são cidadãos
como os outros cidadãos, mas com uma significante particularidade, a
possibilidade de questionar o que está dado, o que está no lugar. O legítimo
intelectual tem a função de colocar as "idéias fora do lugar", tirá-las da
"ordem", e não só as idéias, mas essencialmente as atitudes, a começar pela
sua, no fomento de um movimento verdadeiramente democrático que transforme a
sociedade.
Clóvis Moura seguiu à risca a premissa de que o intelectual deve ser solidário
às minorias, aos subjugados, aos oprimidos, aos discriminados, quando em seu
trabalho intelectual buscou enaltecer a importante participação do negro na
constituição da sociedade brasileira, este discriminado, preterido etc., e sua
luta ofuscada, principalmente no que tange à incansável batalha para pôr fim à
escravidão. Colocou-se também como um dos porta-vozes dos negros em sua luta de
séculos por uma verdadeira cidadania social e política, quando questiona o
modelo atual de globalização, o capitalismo dependente brasileiro, o conceito
de "democracia social"11 e a historiografia "oficial" que ofuscou e esvaziou a
importante participação negra na construção do Brasil.
Compreensão e reconhecimento tardio de um grande intérprete do Brasil
Percebemos que é a partir da década de 80 que a obra de Moura passa a ser mais
consultada e compreendida. Talvez a resposta a este congelamento e
descongelamento de sua obra se dê pelo próprio processo social, que fez com que
muitas idéias fossem postas à prova, e também à evolução das Ciências Sociais
como um todo, principalmente as pesquisas, que trouxe à tona um outro lado da
história social brasileira, fazendo com que as pioneiras acepções mourianas não
fossem vistas mais como um simples trabalho romântico e diletante, ou de
qualidade científica duvidosa.
Schwartz, em fins da década de 1980, exalta que os trabalhos sociológico-
historiográficos mais interpretativos da rebelião negra12 foram os de Clóvis
Moura, dentre aqueles feitos pelos revisionistas da história do negro no
Brasil. Escreve Schwartz:
O interesse pela resistência escrava aumentou muito nas duas últimas
décadas [70 e 80]. Isso aconteceu, em parte devido à conscientização
cada vez maior da desigualdade racial no Brasil, a uma pesquisa
autocrítica de exemplo e tradição historiográficos feita pelos
intelectuais revisionistas e afro-brasileiros e a um clima histórico
geral no qual cresce o interesse pelos atos dos escravos. [...] Mais
interpretativos são os trabalhos de Clóvis Moura, que se concentram
nas comunidades de escravos fugitivos (quilombos) e nas rebeliões.
(Schwartz, 2001:39-40)
Para Lilia Moritz Schwarcz, a interpretação de Clóvis Moura é a primeira de uma
série de outras que surgiriam posteriormente, principalmente das décadas de 60
e 70, provenientes da chamada "Escola Paulista", com os trabalhos de Roger
Bastide e Florestan Fernandes. Reconhecendo o pioneirismo de Moura, Lilia
Schwarcz deslinda que:
[...] alguns procuravam mostrar os sofrimentos por que passava o
negro cativo, bem como sua revolta com relação à própria condição.
Clóvis Moura faz a primeira tentativa no sentido de entender os
movimentos de rebelião negra. (Schwarcz, 1987:20)
Também para Carlos Magno Guimarães, a análise mouriana foi a pioneira nos
estudos valorativos da rebeldia negra, contribuindo, por sua vez, para a
liquidação da escravidão e, desde logo, para que houvesse a transição do
trabalho compulsório para trabalho livre e assalariado. Relata Carlos Magno
Guimarães:
Clóvis Moura, dentro desta corrente, merece destaque por ter sido
quem, pela primeira vez, afirmou a importância do estudo das várias
formas de rebeldia escrava para se entender a dinâmica da sociedade
escravista. É dentro desta perspectiva que vê o escravo rebelde
enquanto elemento de desgaste do escravismo, contribuindo para a
transição para o trabalho livre".(Guimarães, 1988:20)
Daí a importância da acepção de Clóvis Moura, pioneira em ressaltar a história
e a contribuição dos negros à nação brasileira de uma forma revisionista da sua
ação como ator social ativo, elencando suas revoltas e participações em
inúmeros levantes. A maior força dos seus estudos está em identificar a grande
atuação do negro, esboçando resoluções, mas, detidamente se atém a sublinhar o
papel do negro como ator social no processo de transformação da sociedade
escravista, bem como na capitalista. O autor buscou conhecer a sociedade
brasileira com o intuito de seriamente tentar desvendar os liames obscuros de
sua formação, com relação ao negro. Dedicou-se a diagnosticar imperfeições
pelas diversas veredas interpretativas oficiais, indicando-as e,
concomitantemente, pesquisando rigorosamente vias alternativas que, melhor
categorizadas, pudessem verter-se em caminhos seguros na interpretação da
história do negro no país. Nas palavras de Antônio Cândido:
A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da sua relativa
intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da
função total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a
prendem a um momento determinado e a um determinado lugar. (Candido,
2000:41)
O intelectual Clóvis Moura é, com certeza, um intérprete relevante da história
brasileira, e sua obra uma profícua contribuição para se pensar o Brasil.
Atualmente podemos dizer que sua contribuição para se pensar sociologicamente a
história da formação do país, tendo como premissa a história crítica e
revisitada do negro, conseguiu atingir o zênite das respeitáveis interpretações
do Brasil, ou seja, o de gerar desdobramentos por meio de seguidores e mesmo
críticos.
Atualmente, muitos sociólogos e historiadores compreendem a grandeza de suas
proposições, quer em concordância ou tecendo críticas, e dando forma a outras
interpretações com base na sua. Muitos movimentos negros tomam suas premissas
como fundamentação teórica para nortear suas ações nas diversas lutas sociais
que travam. Contudo, poder balizar movimentos negros em prol de uma verdadeira
democracia e, mesmo tardiamente, serem valorizadas suas intelecções no meio
acadêmico, significa o reconhecimento deste singular intelectual como mais uma
das importantes figuras da inteligência brasileira.
A obra de Clóvis Moura é atuante em alguns dos muitos movimentos negros,
principalmente na UNEGRO ' União de Negros pela Igualdade. Ressaltamos que a
UNEGRO busca exclusivamente nas obras de Clóvis Moura sua fundamentação
teórica, no entender de que a sociedade e o Estado brasileiros têm no racismo
um de seus pilares de edificação e formação. Diante deste quadro nefasto, Moura
propõe uma "mudança radical" do sistema econômico e da estrutura social. Dennis
de Oliveira, membro da Coordenação Estadual, da Executiva Nacional e um de seus
fundadores, comenta:
Clóvis Moura fez uma análise que a gente acha interessante do racismo
brasileiro [...]. Essa idéia que o Estado brasileiro foi formado com
base racista. [...]. É também uma homenagem ao Clóvis Moura [...]. A
questão racial para Clóvis Moura não é mais um estudo. É o estudo
dele. E a gente acha uma injustiça da academia com ele. Eu acho que
ele deu grandes contribuições, porque ele sistematizou, ele se
debruçou sobre o tema. Outros também se debruçaram, mas tem outros
temas também, não foi o tema central. (Depoimento citado em
Calderano, 2002:100)
Segundo a leitura de nosso autor sobre as revoltas negras, principalmente no
período colonial, o negro apresentou sua potencialidade na modificação do
Estado brasileiro e criação de uma verdadeira nação. E, talvez seja a grande
utopia do nosso autor a transformação radical do Brasil, encabeçada por aqueles
que são duplamente oprimidos, os negros. Essa abordagem de Moura serve como
inspiração e argumento para a UNEGRO nos debates sobre a questão racial e,
desde logo, social no país. Nas palavras de Dennis de Oliveira:
Você não vai superar o racismo se for mantido esse Estado brasileiro
' essa é uma discussão nossa. Essa foi a grande inovação que a UNEGRO
colocou. Lógico, você vai lutar por políticas públicas de combate ao
racismo, ação afirmativa... nós estamos nessa luta, sem dúvida.
Agora, nós temos a convicção que sem mudar esse Estado brasileiro,
essa estrutura básica, o racismo não acaba. Pode melhorar, mas não
acabar com o racismo. (ibidem:108)
Moura, deslindando a problemática racial, questiona também, em sua análise, a
dependência econômica do país e suas conseqüências nefastas para a ocorrência
da democracia em todos os sentidos. A questão é que nosso autor dá crédito à
revolução proletária com o intuito de modificar o modelo atual capitalista, que
traz consigo a desigualdade social e, desde logo, dando ênfase às diferenças de
cor da pele, mas não de uma forma romântica, e sim madura e científica,
embasado nos estudos que fez do pretérito e da atual realidade. Ele crê que a
Revolução acontecerá, mas não será para agora, e que virá como resultado de um
processo lento de deterioração da sociedade que vem se apresentando, e de uma
conscientização proveniente da periferia do capital. E, essa revolução, no seu
entender, será comandada pela classe que é majoritariamente pobre e duplamente
oprimida quer social e etnicamente, que são os negros (Moura, 1994).
Como podemos perceber, felizmente as análises feitas por Clóvis Moura, mesmo
não canônicas, e repletas de dissonâncias com o pensamento historiográfico e
sociológico "oficial" desde a época de sua aparição, vem paulatinamente
galgando preciosos degraus no scoredas mais autênticas e fecundas
interpretações do Brasil. Sua postura crítica e radical de entender e analisar
a história social do país, com certeza contribuiu para que além de
compreendermos melhor o passado, possamos vislumbrar uma outra história para o
futuro.
Notas
1. Utilizaremos o termo radical como Michael Löwy utiliza em sua obra Para uma
sociologia dos intelectuais revolucionários. A evolução política de Lukács
(1909-1929), no qual ele utiliza o adjetivo para expressar a posição dos
intelectuais que pretendem, no mínimo, questionar veementemente o capitalismo.
Em suas palavras, "O intelectual 'radicalizado' é aquele que vê no capitalismo
a causa profunda do 'mal da civilização', e que por isso deseja aboli-lo"
(Löwy, 1979:4).
2. A Academia Brasileira de Letras, durante as três primeiras décadas do século
XX, foi uma das instituições culturais mais prestigiadas, e "lugar de fala" da
intelectualidade brasileira. Temos que ressaltar que nesta época, a ABL ainda
estava nos tempos áureos de sua existência, coisa que já não acontece
atualmente.
3. Conclui sua graduação nove anos mais tarde.
4. O stalinismo, em sua forma mais ortodoxa, segundo Löwy, "implica a
obediência acrítica e incondicional a todas as tendências e manobras da direção
soviética e de seus instrumentos internacionais (Comintern, Cominform etc.)"
(Löwy, 1979: 230).
5. Podemos dizer que a análise mouriana foi grandemente influenciada pela
interpretação marxista caiopradiana.
6. Löwy analisa de forma bastante fecunda o que seria a categoria de
intelectual e, teorizando, escreve: "Que é um intelectual? Trata-se, sem
dúvida, de um ser bizarro e difícil de classificar. A primeira evidência é que
o intelectual pode ser recrutado em todas as classes e camadas da sociedade:
pode ser aristocrata (Tolstoi), industrial (Owen), professor (Hegel) ou artesão
(Proudhon). Em outros termos: os intelectuais não são uma classe, mas uma
categoria social; não se definem por seu lugar no processo de produção, mas por
sua relação com as instâncias extra-econômicas da estrutura social; do mesmo
modo que os burocratas e os militares se definem por sua relação com o
político, os intelectuais situam-se por sua relação com a superestrutura
ideológica. Quer dizer: os intelectuais são uma categoria social definida por
seu papel ideológico: eles são os produtores diretos da esfera ideológica, os
criadores de produtos ideológico-culturais" (Löwy, 1979:1).
7. De acordo com Madeira e Veloso (1999:180), foram nas décadas de 40 e 50 que
as ciências sociais começaram a se institucionalizar, rompendo com a tradição
"ensaística" dos anos de 20 e 30. Duas instituições de ensino se destacaram: a
USP ' Universidade de São Paulo e o ISEB ' Instituto Superior de Estudos
Brasileiros, desde logo com posicionamentos distintos. Segundo as autoras, "a
USP adota critérios que afirmam a autonomia da pesquisa acadêmica e da
universidade diante de outras instâncias de poder, buscando pôr em prática um
ethos e os procedimentos científicos internacionalmente válidos. Surge, nessa
instituição, um grupo de pesquisadores, liderados por Florestan Fernandes, que
garante a continuidade dos estudos sobre o modo de desenvolvimento do
capitalismo no Brasil". O ISEB, vinculado à estrutura do Ministério da
Educação, por sua vez reúne um grupo de cientistas sociais, dentre eles,
Guerreiro Ramos, Roland Corbisier, Nélson Werneck Sodré e Álvaro Vieira Pinto,
que se propõem a elaborar um modelo de desenvolvimento para a sociedade
brasileira. "Formulam também um tipo de ideal desenvolvimentista, entendido
como possibilidade de inserção autônoma do país no sistema capitalista
internacional. O grupo participa da elaboração do 'plano de metas' do governo
do presidente Juscelino Kubitschek (1955-1960), responsável pelo surto
modernizador do período" (ibidem:181). Ver mais sobre o assunto em Daniel
Pécaut (1990).
8. Essa análise nos remete a Gramsci e seu conceito de "intelectual orgânico",
que se caracteriza justamente por intelectuais provenientes de um determinado
grupo, e que passam a ser porta-vozes desta ou daquela organização social. Este
conceito gramsciano cabe muito bem para caracterizarmos o intelectual Clóvis
Moura, por suposto "intelectual orgânico" de alguns movimentos negros, que
trataremos adiante. Ver Gramsci (1978).
9. Na concisa interpretação de Florestan Fernandes, "O Estado é uma realidade
histórica. Ele não existe e tampouco se transforma em si e por si. A primeira
denúncia a ser feita contra um Estado que espolia os cidadãos de seus direitos,
a Nação de seu caráter de comunidade nacional, e que só se realiza em favor do
crescimento do privilégio e dos privilegiados, consiste em ressaltar que ele é
usado socialmente contra a coletividade" (Fernandes, citado em Bosi, 1992:221).
10. Lembramos, aqui, do conceito foucaultiano de "formação discursiva", que nos
permite analisar como surgem os discursos, e o peso relativo de cada discurso
em determinada época histórica. Podemos sumariar que os discursos são
representações cuja vigência dependerá do poder e da influência institucional
que irá sustentá-la. Logo, o prestígio de tal ou qual representação depende do
aval favorável da instituição encarregada de conferir este poder. No caso do
discurso mouriano, não houve o aval da instituição encarregada do ordenamento e
"controle" dos mesmos.
11. Moura contribuiu para retirar o véu da existência, no país, de uma
democracia racial, enfocando que o capitalismo e a democracia são, por
essência, contraditórios.
12. O estudo da resistência negra tenta ligar a forma e a freqüência dos atos
rebeldes dos escravos a situações sociais e econômicas amplas.