Elites intelectuais e a conformação da identidade nacional em Cabo Verde
Introdução
O objeto deste artigo é analisar a relação entre as elites intelectuais e o
nacionalismo em Cabo Verde. Situado a 650 km da costa senegalesa, todo o
processo de construção da identidade nacional cabo-verdiana tem o Continente
africano como referência, seja para uma afirmação de distanciamento, ou para
uma afirmação de proximidade ou de pertencimento. Colonizadas por Portugal
desde 1460, as ilhas foram povoadas por diversas etnias da parte da costa
africana, então conhecida como Guiné. A violência física e simbólica, que
destruiu grande parte da memória étnica dos escravizados, tem sido lida pelos
intelectuais cabo-verdianos como "fusão cultural de europeus e africanos". Essa
"fusão cultural" numa mestiçagem geral é percebida por uma parte da
intelectualidade cabo-verdiana como positiva, no sentido de que se teria
constituído uma unidade nacional antes da implantação de um Estado nacional.
Sob esse prisma, parte da elite cabo-verdiana ostenta com orgulho o seu avanço
em direção à modernidade se comparado com as demais nações africanas. Sua
"fragilidade, em termos de raízes culturais de longa profundidade histórica"
(Duarte, 1994:14), é compensada por uma pretensa unidade cultural e racial.
Desse modo, estaria esconjurada, definitivamente, a situação de grande parte
dos países africanos, constantemente ameaçados de ruptura nacional pelas
divisões étnicas mal assimiladas pelo processo de construção de uma unidade
nacional sobre um território recortado segundo os interesses exógenos do
imperialismo.
Aborda-se, neste artigo, a partir das especificidades cabo-verdianas, em
primeiro lugar as discussões sobre identidades racial e nacional; num segundo
momento pretende-se uma sociologia da importação e uso emblemático de
categorias como instrumentos de lutas sociais. O eixo mais geral de análise é a
problemática da mediação política e cultural, mais precisamente, de como
diferentes lógicas (políticas, literárias) se articulam na relação entre
posição social, posição de produtor cultural e a condição de mediação cultural
e política.
Se a situação empírica em pauta é pertinente para o balizamento das
problemáticas conceituais listadas acima, é na medida em que na sociedade cabo-
verdiana associam-se demandas por importação de símbolos políticos do Ocidente
e a dependência econômica quase total do exterior. Nessa situação, a importação
de modelos, instituições, fórmulas e símbolos políticos tende a ser igualmente
intensa, o que confere às problemáticas da mediação política e cultural e da
importação de modelos uma configuração quase experimental de análise.
A questão do uso social das categorias oriundas das Ciências Sociais ganha uma
tonalidade específica e instigante na história do nacionalismo cabo-verdiano.
Por um lado as representações intelectuais sobre a gênese da nação cabo-
verdiana apresentam Cabo Verde como o caso paradigmático de anulação de
diferenças e desigualdades raciais. Por outro lado, constata-se que a
trajetória ascendente dos intelectuais, desde fins do século passado,
fundamenta-se no acesso limitado às instâncias de importação de modelos e
diálogo com a intelectualidade das metrópoles. Resumindo, até fins do século
XIX, a sociedade colonizada cabo-verdiana se estruturava sob a dominação racial
de uma minoria branca sobre a maioria negra da população; em fins do século XX
Cabo Verde é uma sociedade estruturada sob a dominação de elites que, pela
manipulação dos códigos político-culturais ocidentais, fazem a mediação entre o
sistema internacional e a população local. Desaparecem internamente as
contraposições assentadas em critérios raciais e/ou étnicos, ao mesmo tempo em
que se reforçam as distâncias culturais, não mais diferenciando grupos étnicos,
mas criando elites destacadas pelo desempenho e manipulação dos códigos
dominantes ocidentais.
O caso cabo-verdiano pode ser situado no contexto comum das nações africanas,
no qual as elites, que questionaram a superioridade racial e cultural européia
e que, em alguns casos, empreenderam uma longa luta armada contra o
imperialismo europeu e pela libertação nacional, utilizam hoje o domínio dos
códigos ocidentais como principal instrumento de dominação interna.1
Para os efeitos deste trabalho, não nos interessa tanto a estrutura interna da
economia e da sociedade cabo-verdianas nessa passagem da dominação racial, até
fins do século passado, para a atual dominação de elites nativas formadas no
Ocidente. Buscamos sobretudo o jogo de imposição de novas classificações e
princípios de identidade que se expressam nos diferentes estados do campo
intelectual e político ao longo deste século.
O caráter insólito desse processo cabo-verdiano de dissolução e restauração de
modalidades racistas de dominação pode ajudar-nos a revelar princípios de visão
de mundo e estruturas mentais, que tendo sobrevivido a mudanças objetivas '
como o desaparecimento de um contingente de ascendência exclusivamente européia
' estão de tal modo incorporadas e eufemizadas que raramente são contestáveis.
Nas peculiaridades dessa situação empírica, os temas listados (sobre os
fundamentos das classificações e tomadas de posições identitárias, a formação
de elites, a importação de modelos políticos e sobre as condições de mediação
político-cultural entre grupos orientados para a comunidade e aqueles
orientados para a nação) adquirem toda uma "atualidade sensível que possibilita
pensar não apenas realista e concretamente sobre eles, mas, o que é mais
importante, criativa e imaginativamentecom eles" (Geertz, 1978:34). Não temos a
pretensão de aqui resenhar o conjunto da bibliografia sobre esses assuntos, já
que nos cabe apenas situar este trabalho no ponto de extensão e aprofundamento
dessas problemáticas com relação à situação empírica em análise. É isso que
faremos, em seguida, para cada uma das problemáticas específicas, buscando
sempre mantê-las articuladas entre si.
Concepção racial da intelectualidade cabo-verdiana
Com relação à primeira das problemáticas conceituais listadas acima, aquela do
uso social das classificações raciais, o que a situação empírica que tomamos
para a análise confere de revelador é a forma como, em diversas conjunturas ao
longo de quase um século, a definição da identidade local como mestiça insere-
se num conjunto de práticas de mediação entre a população do arquipélago e a
metrópole ' Portugal.
A afirmação de Sansone, para a situação atual brasileira, de que "a mestiçagem,
além de fenômeno biológico, pode também ser considerada um estilo de vida e uma
maneira de pensar o mundo, envolvendo cordialidade" (Sansone, 1996:214),
adquire, na situação cabo-verdiana, toda uma outra conotação que, em vários
aspectos, poderia, inclusive, lançar novas pistas de análise sobre a situação
brasileira. Exploraremos, sobretudo na conclusão, as possibilidades de tal
estudo comparativo. Por enquanto, sugerimos uma outra leitura passível de ser
comum à "cordialidade brasileira" e à "morabeza" cabo-verdiana. A categoria
cabo-verdiana "morabeza", correspondente à "cordialidade brasileira", pode ser
analisada enquanto inserida numa estratégia de dominação, tomando a conotação
moral da "abertura em relação ao estrangeiro". Nossa argumentação não vai
apenas na direção apontada por Sansone e pelos ideólogos da crioulitude
caribenha que diz que as sociedades definidas como mestiças são sociedades
particularmente aptas a englobar e transformar símbolos e influências que
provêm de outros lugares (ver Mintz & Price, 1985). Pretendemos,
inversamente, verificar em que medida, pelo menos no caso específico da
sociedade cabo-verdiana, as elites fundam sua dominação sobre a fratura entre
modelos simbólicos importados e a cultura local. Uma sociedade cujas estruturas
estatais são exteriores à cultura da maioria da população é uma sociedade
fraturada entre a elite, que tem acesso aos códigos ocidentais, e o resto.
Nesse sentido, a mestiçagem aparece não apenas como a ideologia que alivia as
tensões internas propondo uma imagem de coletividade homogênea, mas é também um
modelo de (Geertz, 1978) encompassamento de diferenças, que operacionaliza a
forma como modelos simbólicos exteriores podem ser integrados e, por fim,
justifica essa importação.
Para se compreender como a categoria mestiçoocupa esse lugar-chave na cultura
dominante cabo-verdiana, é indispensável alicerçar a crítica a essa categoria
na história social da utilização das classificações raciais em Cabo Verde.
Nas primeiras décadas do século XX, na Europa, América do Norte e América
Latina, o discurso do racismo científico começa a sofrer seus primeiros abalos
pela dissociação entre os conceitos de raça e cultura.2 É o início de um
discurso que, cada vez mais, enfatiza a determinação histórica e cultural dos
grupos humanos sobre as determinações biológicas. O discurso de contraposição
de raças começa a ceder lugar ao pensamento da mescla de culturas.
Alguns estudos têm debatido se a apologia da mestiçagem cultural nas décadas
subseqüentes representa apenas um deslocamento retórico em relação ao
cientificismo racista dos finais do século XIX, ou se há, de fato, uma mudança
conceitual tal, que se possa falar de um novo paradigma. Martínez-Echazábal
(1996:121), estudiosa cubana da questão, em uma série de trabalhos tem
defendido que, na verdade, o deslocamento no interior desse discurso sobre
raças tem sido mais retórico do que conceitual.
A invenção da identidade mestiça, em Cabo Verde, é caudatária desse
deslocamento (seja ele retórico ou conceitual3) do discurso do racismo
científico ocorrido na Europa e América no início deste século e retomado na
América Latina no discurso da mestiçagem, tal como reformulado a partir dos
anos 20. Em 1936, Freyre definia a mestiçagem do Nordeste brasileiro como "zona
de confraternização" de brancos, negros e mestiços num clima de intimidade e
cooperação. Não desaparecem os pólos branco e negro, mesmo que possa ser
detectada a presença, "a sombra, ou pelo menos a pinta do indígena ou do negro"
(Freyre, 1957:279) no corpo e/ou na alma do branco. Se há aqui uma
resignificação cultural da cor, ela é parcial, na medida em que não anula "o
alvo, de cabelo louro" como traços identitários, portanto, distintivos, sendo a
presença negra, neste caso, reservada ao plano espiritual. Separados na
superfície, unidos na profundidade espiritual, união essa simbolizada
espiritual e fisicamente por essa crescente massa mestiça.
Em Cabo Verde, mais do que como "zona de confraternização", a mestiçagem é
percebida como ponto de anulação dos pólos de antagonismo numa síntese
completa, na medida em que não há sequer a separação de superfície. É relevante
nesse sentido que, na literatura cabo-verdiana, o fenótipo das personagens não
apareça enquanto negro ou branco, é como se o desaparecimento da classe
dominante de ascendência européia anulasse qualquer percepção de fenótipo. Nos
termos do poeta cabo-verdiano Mariano, o principal teórico da mestiçagem em
Cabo Verde da década de 60, "o cabo-verdiano não se dá conta nem da sua cor,
nem do seu cabelo, nem das suas feições, enquanto está em Cabo Verde" (Laban,
1992:368). Na reciclagem simbólica do discurso latino da mestiçagem, a
intelectualidade cabo-verdiana elimina os pólos branco e negro, vislumbrando a
realização completa da mestiçagem.
Enquanto na América Latina a postulação da mestiçagem aponta no sentido de uma
cultura (racializada) por vir, que eliminaria as contradições ainda presentes,
a peculiaridade do caso cabo-verdiano reside, em primeiro lugar, no fato de os
ideólogos da mestiçagem partirem do pressuposto de que, nessas ilhas, a mescla
racial-cultural anula o conceito de raça. Em segundo lugar, e por conseqüência,
essa enunciação é feita a partir de um ponto diferente (Foucault, 1987:141) com
relação à identidade que o enunciador se atribui. No caso cabo-verdiano, é o
próprio mestiço que fala de sua mestiçagem, diferentemente do lugar do discurso
intelectual sobre a mestiçagem na América Latina, que se faz da posição do vir
a ser mestiço (de quem ainda não é completamente), a partir de uma ascendência
européia, que fala sobre uma maioria mestiça. Um terceiro deslocamento, em
relação ao discurso latino, é quanto ao principal destinatário do discurso:
enquanto o discurso latino sobre raças constitui um espaço interno de debate
sobre as identidades nacionais, o discurso cabo-verdiano visa a convencer a
metrópole sobre o papel que o cabo-verdiano deve desempenhar no processo
colonial.
A anulação dos signos diacríticos, no plano interno, não significa a ausência
de uma concepção racial a partir de parâmetros morfológicos. Na abertura da
década de 60, Teixeira de Sousa, médico e uma das eminências da literatura
cabo-verdiana, definia o cabo-verdiano entre o "branco-europeu" e o "afro-
negro" da seguinte forma:
À estruturação somática ' cuja formação se realiza num ritmo
necessariamente normal, por isso relativamente lento ', respondeu uma
aceleração dos processos culturativos que evoluíram no sentido
ascensional de aristocratização [... ] a aculturação unilateral pela
conquista duma parte e renúncia progressiva da outra. O substrato
afro-negro ressalta mais da estrutura racial do tipo crioulo, da sua
índole e exteriorização emocionais, do que das suas tendências
intelectuais e das atividades ligadas às especulações do espírito.
(Sousa, 1958:8)
Tal definição do ser cabo-verdiano carrega as cinco preposições da versão
clássica da doutrina racialista, segundo Todorov (1989:114-117). Em primeiro
lugar, reafirma-se a existência de raças sob pressupostos biológicos:
pressupõe-se que a "estruturação somática" de brancos e negros permite a
classificação dos dois grandes grupos humanos, e que a mestiçagem ' do ponto de
vista biológico ' dar-se-ia como um processo de (re)"estruturação somática"
"relativamente lento". Isto é, quando a intelectualidade cabo-verdiana na
década de 50 ' em grande parte, ainda hoje ', refere-se às raças, assenta-se
sobre uma idéia biológica de raça nos termos em que se colocava na Europa no
fim do século passado, matizada por conceitos culturalistas como "processos
culturativos" e "aculturação".
A segunda premissa subjacente é a da correlação entre características físicas
das duas raças e características morais, ou seja, a pressuposição de que seres
humanos diferem entre si, também, por características mentais inatas. Vinculam-
se brancos às tendências intelectuais e "atividades ligadas às especulações do
espírito" (associado a "valores aristocráticos") e a afro-negros atribui-se uma
certa "índole e exteriorização emocional". No caso específico da mestiçagem
cabo-verdiana, as características morais ' predominantemente emocionais ' afro-
negras teriam sido complementadas pelas tendências brancas intelectuais.
As premissas da determinação do indivíduo pelo grupo racial e da hierarquia
única de valores que coloca brancos como superiores aos negros ficam
subentendidas na colocação de que o processo de aristocratização do cabo-
verdiano é, antes de mais nada, o resultado do cruzamento de raças que coloca o
mestiço numa trajetória "ascencional" que vai do negro ao branco. Portanto, o
darwinismo social, assim como o evolucionismo, dominantes na Europa do século
XIX, é ingrediente implícito da formulação da identidade mestiça cabo-verdiana,
pelo menos até a primeira metade deste século.
Finalmente, se levarmos em conta que essa definição do tipo cabo-verdiano tinha
um endereço político, visava a resgatar um tratamento diferenciado para o cabo-
verdiano em relação aos angolanos, moçambicanos e outros nativos da colonização
portuguesa, a quinta premissa racialista fica corroborada: por uma política
social fundada num saber sobre as raças.4
A identidade nacional
Dois tipos de perspectiva teórica têm enquadrado a questão do nacionalismo: sob
um ponto de vista substancialista buscam-se os fundamentos da construção da
nação, os critérios por meio dos quais se pode definir o ser da nação e avalia-
se a natureza mais ou menos incompleta das realidades nacionais emergentes, as
fronteiras que é necessário dar ao próprio objeto para que ele seja algo
palpável e bem delimitado. Esse é o tipo de análise que discute a definição da
nação e/ou do nacionalismo a partir dos atributos considerados mais essenciais:
a língua, a cultura, o território, a religião...
Geralmente esse tipo de perspectiva acaba se apropriando do tempo sob a forma
de uma narrativa mítica em que o passado fornece as justificativas essenciais
da nação ao mesmo tempo que no presente se formulam as bases para uma projeção
da nação no futuro. A esse respeito, Neiburg (1997) aponta o risco que ronda
todas as formulações sobre a nação:
O fato de que para ser compreendida e valorada, toda a formulação
sobre a nação tenha que aspirar a essa dupla legitimidade impõe uma
ameaça aos estudos sobre mitologias nacionais: a de limitar seu
resultado à produção de uma nova versão daqueles mesmos mitos que
pretendiam analisar. (Neiburg, 1997:86)
A segunda perspectiva, a que adotamos aqui, toma as diferentes definições de
nação em jogo, em cada situação empírica sob análise, como partes do processo
de luta em que categorias (inclusive as oriundas das Ciências Sociais) são
idéias-força ou instrumentos utilizados pelos agentes na construção da
"realidade nacional". Sob essa perspectiva, ficam sob o crivo da análise as
próprias relações das Ciências Sociais com as lutas nacionalistas, na medida em
que seus princípios, ostentados sob o estandarte das ciências, convertem-se em
princípios de identidade e oposição.
Por outro lado, nossa própria perspectiva sujeita-se a várias outras críticas:
pode-se objetar que ela tem normalmente uma caráter intelectualista, na medida
em que existem outras narrativas provenientes de outros grupos sociais e que,
ao privilegiar, no recorte do objeto, a narrativa do grupo mais exposto às
influências ocidentais, estaria se submetendo a análise a uma concepção
eurocêntrica e estatal de nação.
Quanto a esse ponto, é nevrálgica a observação de Pinto (1986) de que a escolha
de interrogar os textos eruditos mais do que as profundezas da "alma" ou da
"mentalidade" do "povo" pode parecer ditada por uma tomada de posição
intelectualista " [a ideologia da nação precede o sentimento nacional ] apenas
se nos esquecermos de que as propriedades ligadas ao modo de engendramento dos
princípios de classificação constituem o primeiro objeto que uma análise
científica deve considerar" (Pinto, 1986:48). Parece-nos ainda que a questão do
etnocentrismo fica mal colocada quando definida ao nível do recorte do objeto.
Não é pelo fato de se tomar a intelligentsia e/ou o Estado como delimitações
empíricas do objeto de estudo que se está universalizando uma história
particular.
Sob essa perspectiva relacional, a identidade nacional de um país é analisada
enquanto resultado de lutas sociais, não existindo independentemente dos
agentes que disputam o lugar de intérprete e definidor de sua essência.
As elites comerciais e intelectuais cabo-verdianas, desde o século XVI se
vincularam ao empreendimento imperialista de Portugal na África negra como
mediadores do contato entre as sociedades tradicionais e os portugueses,
sobretudo na Guiné-Bissau. É a partir dessa condição de mediadores dessas
elites que se produz a identidade mestiça enquanto identidade de um grupo. É
interessante a perspectiva de Trajano Filho (1993:15) da sociedade crioula como
sociedade que se estrutura em círculos concêntricos em que, no centro, está uma
elite lusitanizada que mais se articula e se aproxima do reduzido número de
europeus (comerciantes e oficiais da administração colonial). Nas bordas desse
centro crioulo os recém-chegados ' no caso cabo-verdiano ', os camponeses que
se aproximam da periferia dos centros urbanos. Até início desse século a grande
maioria da população camponesa estava inserida em outros círculos
socioculturais com relações pouco intensas com os dois principais centros
urbanos: Praia e Mindelo.
O recorte dessa análise toma essa identidade crioula em seu momento de
emergência ' no início do século ', intelectualizada e formulada enquanto
identidade mestiça geral para o conjunto da população cabo-verdiana. Poderíamos
ver nessa emergência da identidade mestiça o simples efeito da importação de um
modelo identitário externo ' a ideologia latino-americana da mestiçagem
combinada à intensificação de uma situação de liminaridade entre a
africanização e a lusitanização da sociedade crioula.
Não por acaso, será na maior cidade portuária do arquipélago, no auge das
transações marítimas pelo porto de Mindelo no início desse século, que a
identidade mestiça se expressa numa literatura da elite crioula do arquipélago.
Como entreposto situado na zona de contato entre as culturas tradicionais
africanas e a metrópole, "a sociedade crioula defronta-se como o dilema de ser
liminar e intermediária" (Trajano Filho, 1993:15). Deixar a identidade
específica dessa sociedade, dada pela condição de intermediação, submergir em
uma das duas vertentes mais amplas ' a lusitanidade ou a africanidade ' é o
perigo que, rondando a sociedade crioula, estimularia a obsessão pela questão
da identidade ' segundo Trajano Filho.
Pretendemos conjugar nesta análise um terceiro componente que se acresce aos
dois anteriores, à situação de liminaridade da sociedade crioula entre Portugal
e as comunidades tradicionais africanas e à disponibilidade de um modelo
externo para pensar a situação de intermediação ' o modelo da mestiçagem tal
como formulado por intelectuais no Brasil. O terceiro componente a ser
analisado quanto às bases sociais da definição cabo-verdiana da mestiçagem é a
questão dos múltiplos interesses da elite intelectual das ilhas. Efetivamente,
a identidade mestiça só é enunciada como identidade geral para a população das
ilhas quando a ampliação do espaço de exercício da administração colonial
vocaciona os intelectuais cabo-verdianos para cargos intermediários na
administração das demais colônias portuguesas em África. Urgia, então, entre as
décadas de 1920 e 1950, desembaraçar a província de origem desses funcionários
dos sinais de uma pura africanidade. Mestiço, portanto distinto dos demais
nativos, o intelectual cabo-verdiano é o mediador por excelência da colonização
portuguesa em África. É o conjunto desses componentes que torna a questão da
identidade cabo-verdiana tão debatida no seio da elite intelectual de Mindelo
na primeira metade deste século.5 A obsessão em definir o "povo cabo-verdiano"
como não sendo nem português nem africano é a problemática de uma elite
familiarizada com os valores básicos da cultura européia, mas colocado como
cidadão de segunda classe no império português. O primeiro par de contraste,
Cabo Verde versus África, distingue a elite cabo-verdiana como dotada da
capacidade de lidar com os códigos ocidentais. O segundo par de oposição, Cabo
Verde versus Portugal, cria as condições para reivindicações regionalistas
fundamentadas em projeto de inserção na administração colonial.
A ruptura com o Estado colonial e a reivindicação nacionalista só se dá na
década de 60, quando o crescimento do número de intelectuais ao nível de Cabo-
Verde esbarra na ausência de espaços de inserção e ascensão nos quadros da
administração colonial.
Cabo Verde ' imaginado como a nação mestiça por excelência ' a é a ficção da
possibilidade de se engendrar um grupo corporado a partir das relações de
dependência em relação ao Ocidente. A possibilidade de se engendrar grupos
corporados a partir de relações diádicas passa pela transcendentalização do
grupo, por esse ato de sacralização que torna imortal o corpo social. Daí os
atos de "naturalização" da identidade de grupo: fundada na natureza, por isso
eterna.6
A descolonização, a seu modo, reconstrói a epopéia da gênese Européia do Estado
moderno esmerando-se em garantir a "unificação do território ou, mais
exatamente, a construção, na realidade e nas representações, do Estado como
território unitário, como realidade unificada para a submissão às mesmas
obrigações" (Bourdieu, 1993:54).
É importante concentrarmo-nos na seguinte nota de Pinto (1986) de que a nação
não se edifica sob a ruptura completa com a fidelidade pessoal, ela reformula-
a. Na idade média européia, mais precisamente no século XIII, a sociedade
política, escapando simultaneamente aos particularismos locais da fidelidade,
ao universalismo cristão e à fidelidade pessoal, produziu a representação de
societas civilis, com suas ordens em vias de formação e sua consciência de
comunidade.
Simplificando e esquematizando muito (passando aqui para o nível da
teoria política) diria que o nacionalismo moderno nada mais é do que
a associação de elementos teóricos que não se juntaram ao de
"comunidade política" senão após a Antiguidade: do conceito de
"comunidade política" (autoridade, origem e exercício do poder e do
direito à soberania, pessoa jurídica, contrato social etc.) e do
conceito original de lealdade política, isto é, de "fidelidade", no
quadro muito antigo da "nacionalidade" que por esse fato torna-se a
nação moderna. (Pinto, 1986:46)
No caso cabo-verdiano é como se a fidelidade ao patrão ganhasse um conteúdo
transcendente: fidelidade à nação. Essa redefinição não rompe como o princípio
da fidelidade que sustenta o clientelismo. Essa problemática da construção da
identidade nacional se liga assim ao tema do clientelismo, que por sua vez
remete à reciprocidade e à temática da dádiva, tratados primeiramente por
Malinowski (1976) e por Mauss (1974).
Vários autores, nomeadamente Legendre (1976), Lagroye (1985), têm explorado o
tema do dom no exercício legítimo do poder nas sociedades modernas. Se é
difícil seguir Legendre quando este vincula às manifestações simbólicas Estados
burocráticos contemporâneos ao direito, dividindo-o entre o direito público
situado do lado do puro, do nobre, da dádiva sem contrapartida, enquanto o
direito privado estaria do lado do impuro, certamente é pertinente analisar as
manifestações da "velha" concepção do poder doador em outros fenômenos como as
redes de clientela "intersticiais, suplementárias ou paralelas" ao sistema
institucional de poderes (Wolf, 1980).
No caso cabo-verdiano, mais do que isso, a nação e seus governantes se
constituem como o núcleo de um imaginário do poder como doador e como mediador
de doações. É na imagem de um país sem recursos, que recebe ajuda das potências
estrangeiras e as redistribui para a população garantindo a sobrevivência
desta, que se edifica uma concepção global e personalizada do poder.
O que exploramos neste trabalho é a hipótese de que ' no caso cabo-verdiano '
uma identidade assentada sobre uma certa noção de fidelidade (o crioulo como o
dependente do senhor branco), ao elevar-se a identidade nacional manter os
esquemas de pensamento e as relações sociais da qual se originou. Pretendo que
na concepção de mestiçagem está inserido um modelo de relação de reciprocidade
branco-nativo, com o qual a concepção de nação não rompe, mas sim reformula.
Isso tanto para o nacionalismo enquanto doutrina e como sentimento nacional
(Smith, 1979:168).
O deslocamento da soberania que antes residia nos símbolos portugueses, para os
novos símbolos de uma nova identidade emergente ' a identidade nacional cabo-
verdiana ' certamente exigirá uma reinterpretação das categorias éticas ligadas
à sujeição pessoal. Assim se produz um deslocamento da própria criolitude que
de símbolo de fidelidade pessoal ascende a símbolo de identidade nacional.
A nação ' como comunidade imaginária ' constitui-se nesse deslocamento da
sujeição pessoal à dependência internacional com relação às potências
ocidentais "doadoras", "financiadoras" e "investidoras". Em outro trabalho
(Anjos, 2002) utilizamos o conceito de patronagem internacional, nos termos de
Dezalay, como relação "tanto mais difusa quanto repousa sobre linhas de
relações pessoais e que ela se inscreve nos saberes". Com efeito, ela cria nos
"Estados-clientes" toda uma categoria de clero que deve o essencial de sua
legitimidade e, portanto, muitas vezes também as posições privilegiadas que
detêm no aparelho de Estado ' a um saber ocidental de que são os depositários e
os importadores (Dezalay, 1995:29). Se o dois termos ' Cabo Verde como nação
(cliente) e o Ocidente como potência (patrão) são construtos em grande parte
imaginários, a atualização concreta dessas construções permite à elite
político-intelectual cabo-verdiana se sustentar politicamente como
intermediária privilegiada dessas doações, financiamentos e investimentos. É
através das estratégias de importação de modelos simbólicos do Ocidente para a
configuração da nação que essa elite se constitui como cliente numa relação de
patronagem internacional.
Não desprezamos aqui a possibilidade de haver outras narrativas nacionalistas
que não as da elite intelectual vinculada ao Estado, mas, para os objetivos
deste trabalho, trata-se, basicamente, de expor as propriedades ligadas ao modo
de produção dos princípios de classificação, que, estando na base da definição
da identidade nacional, foram institucionalizados e consagrados pelo Estado. As
identidades sociais legitimadas enquanto identidades nacionais pela sanção de
uma autoridade Estatal competem de forma desigual com outras narrativas de
identidade na medida em que "o Estado, que dispõe de meios de impor e de
inculcar princípios duráveis de visão e de divisão conforme a suas próprias
estruturas, é o lugar por excelência de concentração e exercício de poder
simbólico" (Bourdieu, 1993:55).
Através do sistema de ensino, o Estado consagra e repassa as narrativas
(sobretudo literárias e históricas) que constituem a nação enquanto conjunto
definido de representações com as quais os indivíduos de um determinado espaço
social e geográfico devem se identificar.
Isso não significa que esses princípios dominantes de identidade ' impostos
principalmente pelo sistema de ensino ' não possam ser reavaliados pelos grupos
e classes dominados de acordo com os respectivos ethos. Porém, mais do que as
reelaborações práticas, interessam-nos as propriedades ligadas ao modo de
engendramento dos princípios de classificação fundamentais na definição da
identidade nacional.
É certo também que as próprias narrativas populares tendem a ser reatualizadas
ou reinventadas pelo Estado sob a forma de coleta de tradições (orais)
consagradas e repassadas para o sistema de ensino. Assim, as contradições
inerentes à importação de modelos exteriores de autoridade sobre a necessidade
de ostentar valores próprios é um dos campos fecundos para a análise.
Pretendemos tomar a mestiçagem como ícone de uma narrativa elaborada pelas
elites cabo-verdianas que atua junto às populações que têm acesso à
escolarização e aos meios de comunicação de massa, no sentido da construção da
identidade nacional. A narrativa do processo da mestiçagem tem um grande poder
retórico no sentido de demarcar e manter fronteiras entre a comunidade
imaginada ' Cabo Verde ' e as referências de contraposição: a África e
Portugal. Essa narrativa emerge de forma típica na fala do escritor já citado,
Teixeira de Sousa, uma dos mais acérrimos defensores da mestiçagem:
O povoamento das ilhas foi iniciado, pouco depois do seu achamento
(1460), com africanos e portugueses. Ao longo de séculos, foram
trazidos para o arquipélago contingentes africanos de diversas
etnias. Desenraizados das culturas de origem, esses grupos étnicos
haviam forçosamente de olvidar os valores próprios para se integrarem
noutros padrões, embora num processo de transculturação entre colono
e colonizado que viria mais tarde a definir a identidade cultural
cabo-verdiana. Identidade cultural que hoje se confunde com a
identidade nacional. Ao fim e ao cabo, o meu país deixou de ser
África e deixou também de ser Europa para apenas ser Cabo Verde.
(Laban, 1992:205)
A narrativa do processo de mestiçagem define a cabo-verdianidade no espaço, no
tempo e na concepção de pessoa. O espaço das ilhas, enquanto deslocado do
Continente, estabelece-se na narrativa como fronteira "natural". No tempo,
cinco séculos de encontro entre portugueses e africanos teriam definido essa
unidade fundamental da nação que é a pessoa cabo-verdiana. Nesse sentido,
analisamos a mestiçagem como termo-síntese de um mito de fundação da
nacionalidade.
Ao apresentarem-se as evidências de uma mestiçagem geral, que teria atingido a
todos os cabo-verdianos, a operação essencialmente política de montagem de uma
unidade nacional nos é apresentada como processo "natural" ' o fenótipo é
naturalmente mestiço; logo, a unidade nacional está naturalmente alicerçada por
essa evidência biológica que a todos atinge. A naturalização da mestiçagem,
cujo modelo é dado pelo fenótipo, reaparece na língua, na culinária e na
música. Toda uma série de signos são exibidos como distintivos de uma essência
mestiça.
Entre os obstáculos que o estudo científico da constituição da
identidade deverá transpor, o mais importante é certamente
constituído pelo obstáculo essencialista: ele resulta, com certeza,
da tendência de apreender os grupos de forma ingenuamente realista
encontrando neles mesmos seu princípio explicativo; mais resulta
também da lógica de sacralização ideológica que implica em celebrar a
identidade do grupo pela negação das contingências históricas. Pode
se ver em qualquer populismo [... ] a forma acabada de um discurso de
legitimação visando fundar a nação na natureza. (Pinto,1986:46)
Todos os grandes empreendimentos políticos em Cabo Verde, desde o fim do século
passado, precisaram se fundamentar num discurso racialista-culturalista que
constitui e unifica o povo cabo-verdiano, seja na mestiçagem ou na
africanidade. A naturalização do grupo sobre uma territorialidade, como a que
confere autoridade e justificativa ao empreendimento nacionalista, já foi
ressaltada por vários autores, nomeadamente Smith (1979) e Shafer (1955). No
caso cabo-verdiano, é sobre uma definição racial homogênea que se disputa a
"natureza" da nação.7
É a partir de uma identidade de grupo, fundada em relações de reciprocidade,
que emergiu a identidade mestiça. Pretendo mostrar que essa identidade mestiça
só muito recentemente se apresentou como identidade geral de todos os cabo-
verdianos e, mais recentemente ainda, ela busca apresentar-se como a identidade
nacional. Essa identidade, elaborada nos círculos intelectuais, sobrepõe-se às
identidades locais dos bairros, das vilas, das ilhas e das formas de
religiosidade, com a pretensão de unificá-las numa essência comum e natural: a
mestiçagem cultural e biológica.
A naturalização da identidade cabo-verdiana na mestiçagem, até a primeira
metade deste século, não implicou numa postura nacionalista. Quando, na década
de 60, emerge um movimento de reivindicação nacionalista ' conformando o
Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) ' é numa
concepção contrária à ideologia da mestiçagem, isto é, no resgate da
africanidade do arquipélago.
Tanto a reivindicação regionalista da primeira metade do século, que institui
uma elite literária cabo-verdiana, quanto o movimento de libertação nacional,
fundamentam na natureza racial da população uma identidade que territorializa o
arquipélago. Se, na década de 90, o processo de abertura democrática
institucionaliza de novo a identidade mestiça como a essência da nação cabo-
verdiana, o trabalho do antropólogo, menos do que o de definir qual dessas
identidades corresponde de fato à essência nacional, é o de "desconstruir o
trabalho de universalização imposto a todos os grupos sociais de se reconhecer
numa categoria política, cuja aparição está ligada a interesses sociais
historicamente condicionados" (Pinto,1986:46).
O intelectual como produtor cultural e como mediador
O caso cabo-verdiano é mais uma demonstração do quanto as identidades
(sobretudo as nacionais) são fluidas, de como se desmancham e se recompõem no
tempo, do quanto mudam, retornam e desaparecem. O que se pretende evidenciar
aqui é o caráter ideológico da identidade nacional, no sentido de construto
mental que visa legitimar construções e relações políticas. Sob esse aspecto,
as diferentes versões da identidade nacional adotadas pelas elites
politicamente dominantes buscam construir a "evidência" de que as principais
opções da governação estão fundadas nos "traços" mais sólidos da identidade do
"povo".
Se o estudo da identidade nacional não pode ser reduzido ao seu aspecto
ideológico, certamente sua proclamação pelos "mediadores", numa situação
marcada por certas relações de poder, exige da análise um enfoque privilegiado
sob o quanto essas identidades mascaram, legitimam, justificam, servem de
modelo para ou de ações de poder.
No caso da identidade cultural forjada pelos intelectuais cabo-verdianos, se
tem enfatizado, além da mestiçagem, os temas também míticos das grandes secas e
mortandades que teriam homogenizado cultural e socialmente os diversos estratos
da população cabo-verdiana. Certamente, a imagem recriada e repetida na
literatura (ensinada ao longo de toda a adolescência) dos cenários de fome
funciona como uma memória extremamente violenta que imprime nos espíritos a
imagem da morte física dos indivíduos que compõem o grupo e, portanto, da
ameaça latente de desaparecimento do grupo. Seu poderoso narcótico reside no
fato de se associar a ameaça da morte abstrata do grupo à necessidade
individual de se continuar subsistindo.
Não sendo mero derivado das heterogêneas culturas dos múltiplos grupos, ilhados
não apenas geograficamente, a proclamação da identidade nacional muda as
culturas, pela mobilização emblemática de alguns traços que, sendo
superestimados, levam a desequilíbrios nas anteriores correlações de valores. A
construção da identidade nacional supõe, portanto, um trabalho sobre as
culturas particulares. Mais precisamente,
o acesso de uma língua ou de uma cultura particular ao universalismo
tem como efeito reenviar os outros à particularidade; em outros
termos, pelo fato de que a universalização das exigências assim
instituídas não se faça acompanhar da universalização do acesso aos
meios de satisfazê-lo, ela favorece simultaneamente a monopolização
do universal por alguns e a não-posse de todos os outros, assim
mutilados, de alguma forma, em sua humanidade (Bourdieu, 1993:55)
Esse trabalho sobre as culturas se dá por uma reapropriação do espaço e do
tempo pela linguagem mítica do poder, sendo o espaço percebido como o lugar que
fornece (e retira) as condições de vida material para a reprodução do grupo e,
que, portanto recria formas específicas de sociabilidade. Nos termos de
determinados arautos da mestiçagem, é a peculiaridade do espaço cabo-verdiano
que fez com que negros e brancos colocados numa situação de insularidade e de
carência material de espaço quase inóspito se fundissem numa cultura original.
A apropriação do tempo nessa linguagem mítica se dá, por um lado, por uma
espécie de "amnésia" que visa eliminar das consciências formas de expressão de
experiências que possam colocar em risco a unidade do grupo. Por outro lado, o
passado se torna particularmente propício à "invenção de tradições", atividade
essa hoje em grande parte estatizada num setor do Ministério da Cultura ' o
Instituto Cabo-verdiano de Investigação Cultural (INIC) ' que tem como projeto
coletar traços tradicionais antes que desapareçam sob o efeito da modernização.
Martin (1992:586) conceitua como "intemediários" a esse tipo de atores sociais
especializados na harmonização da identidade política:
O processo de construção identitário vai consistir em harmonizar, de
um lado, as estratégias em vistas do poder por um grupo de
"intermediários" políticos e, de outro, sentimentos difusos
compartilhados por uma parte tão vasta quanto possível da população
[... ]. A identidade supõe a eliminação, o recalque, mesmo que
temporário, de tudo o que pode dividir; ela impõe um núcleo ou mais,
de aglutinação, ao lado dos quais outros elementos do vivido devem
ser considerados secundários. (Martin, 1992:587)
A comunidade nacional recriada por essa apropriação mítica do espaço e do tempo
é, em todo o caso, uma "comunidade imaginária", na expressão que Anderson
(1993) cunhou para o senso comum antropológico.
É comum também à abordagem clássica da antropologia da identidade (Barth,
1976), tomar a construção e a qualificação da identidade como o resultado de um
mecanismo dialógico: a construção de Si com relação aos Outros é indissociável
da definição de si pelos Outros, sendo que tanto as endodefinições como as
exodefinições são móveis, podendo existir várias exodefinições de um mesmo
grupo. O que se destaca no caso das identidades mestiças é a forma como a
exodefinição é incorporada pelo grupo estigmatizado (na categoria mestiço) como
estratégia de reforço da estigmatização de um outro grupo que não aquele que o
definiu como tal. O mestiço se assume como tal ao se vislumbrar como sendo
superior ao negro. Tal como a tendência geral o indica, no processo de
construção dessa identidade dominada, o arauto da mestiçagem lança mão da
linguagem do dominador a fim de proclamar a positividade de seu "ser" coletivo.
Assim o fazendo, ele reforça os princípios hierárquicos estabelecidos pelo
dominador.
É claro que esse processo de identificação e estigmatização, aderência ao
estigma e reforço do estigma sobre um terceiro não pode ser analisado apenas
sob o ângulo da manipulação. Para a maioria dos que encarnam uma determinada
identidade, estão em jogo sentimentos difusos, freqüentemente elaborados sob os
registros do medo, angústia, revolta diante da dominação e da exploração.
Porém, os mediadores (literatos, ideólogos, políticos) poucas vezes escondem os
objetivos mobilizadores que os levam a defender determinadas identidades em
detrimento de outras, a dizer que o grupo existe sob determinadas insígnias, a
produzir narrações míticas para se apropriarem do passado e conformá-lo aos
seus projetos atuais.
Resumindo, algumas das conjunturas de transformações sociais em Cabo Verde, à
luz dessa perspectiva de análise exposta acima: a primeira dessas conjunturas é
a da virada do século em que os morgadios começam a entrar numa decadência,
cujo golpe final seria dado pelo Banco Nacional Ultramarino na década de 20. As
mudanças na estrutura social que levam a um processo crescente de diferenciação
social contudo não atenuam o grau de estruturação social sobre a base da
dependência pessoal, mesmo que provocando alterações na estrutura de
distribuição e concentração da dependência. A agricultura reduzida à
subsistência e ameaçada pelos freqüentes anos de seca diminuem a importância do
controle da terra como recurso que pode assegurar a proteção das clientelas. Ao
longo do século, a esperança de proteção passa cada vez mais a ser depositada
na possibilidade de intervenção de forças externas ao universo local. O
controle das relações com a administração colonial8 se transforma em recurso-
chave de mediação. Funcionários de nível intermediário, os primeiros
intelectuais cabo-verdianos, disputavam os cargos da administração ao mesmo
tempo em que intercediam a favor do "povo cabo-verdiano". Faziam da publicação
de poesias o veículo de auto-apresentação e reconhecimento junto à
administração colonialista e vinculavam a resolução dos "problemas" do
arquipélago a sua intervenção e solicitações junto à administração colonial.
Uma segunda conjuntura de forte reestruturação das relações sociais no
arquipélago se dá na década de 30 e tem como marco simbólico o aparecimento da
revista Claridade. O contexto é o da ditadura salazarista, instalada em 1926,
que limita violentamente as aspirações nativas e, portanto, atenua a tensão na
disputa nativos-metropolitanos pelos cargos administrativos na província. Daí a
necessidade de reforço dos canais de mediação "cultural" (entre as quais se
destaca a revista Claridade) para a formulação das "demandas populares".
Processa-se a mediação das necessidades locais por meio de cartas de
intercessão dirigidas à administração e, sobretudo, por meio da criação de um
poderoso imaginário da seca e da fome por vias literárias. Não apenas cartas
dirigidas à administração ' o que já era um canal para a geração do seminário
', mas também romances e poesias falando da "seca" e do "sofrimento" do "povo
cabo-verdiano" constituíram a geração Claridadecomo um importante mediador
cultural entre as demandas locais e o sistema colonial. É nessa conjuntura de
intensa produção em nome da "cultura" e quase sem atividades exibidas como
"políticas" que emerge o imaginário de Cabo Verde como comunidade.
As duas últimas conjunturas de intensa mobilização de símbolos nacionalistas
foram a segunda metade da década de 1970, a era dos combatentes, e o fim da
década de 1990, com a abertura política, a era dos quadros. Com a independência
nacional, é o controle dos cargos do Estado o que assegura a mediação local e
com as instâncias internacionais. Durante a Primeira República se estabelece
uma rede de mediações com base em princípios de reciprocidade que assegura a
ascensão social privilegiada aos mais afetos aos combatentes.
Após a década de 90 é o período da mediação exercido privilegiadamente pelos
quadros. O que se mantém constante é que os novos e antigos literatos, os
experts da importação dos mais variados modelos simbólicos do Ocidente, e os
ocupantes dos principais cargos políticos estão ligados aos círculos do poder e
saber ocidentais por linhas de patronagem e clientelismo.
Um traço que essas quatro conjunturas de transformações nas relações de
mediação carregam em comum é a crença de todos esses grupos poderosos de
sucessivos de empreendedores da identidade cabo-verdiana, que se definem como
intelectuais, de que Cabo Verde só subsiste por uma intervenção "auxiliadora"
de instâncias externas. E o controle dessa relação com o "exterior" passa pelo
domínio dos códigos ocidentais.
E isso certamente tem a ver com o princípio de extroversão com que essa
intelectualidade pensa a identidade cabo-verdiana. O estudo de Niane (1995)
sobre Senegal mostra como "as exigências da planetarização da economia" levam a
um cosmopolitismo "que impede, recusa ou pelo menos freia toda a postura
identitária nacional". E se isso não é um fenômeno que possa ser lido apenas
segundo o prisma atualmente em voga da "globalização", ou seja, da imposição de
um modelo de pensamento e de comportamento pelos meta-estados que são as
organizações multinacionais ou transnacionais. A sugestão de Niane (ibidem:193)
para o caso senegalês e que pode ser estendido para os demais países africanos,
guardadas as especificidades, é que as elites nativas desde a colonização
sempre se colocam sob uma estratégia de recuperação de desvantagens em relação
ao colonizador, primeiramente, e aos agentes e instituições internacionais,
após a independência, e depende do domínio dos códigos metropolitanos. Sob uma
lógica de que não detêm as regras, investem numa estratégia que os confina à
posição dominada de exercer o poder sem deter o poder.
No caso cabo-verdiano, os princípios da própria identidade nacional, sobretudo
na sua versão da mestiçagem, já privilegia a exogenidade. A idéia de que Cabo
Verde só "sobrevive" à custa disso que o escritor Teixeira de Sousa chama de
"sagesse" de sua elite política, que nas relações internacionais significaria
habilidade na busca da "ajuda para o desenvolvimento" tanto do bloco socialista
quanto do Ocidente, não deixa de estar relacionada aos princípios dessa
estratégia de exogenidade. Com outros termos, o escritor Germano Almeida repete
o mesmo discurso estratégico, sob o mesmo princípio exógeno: "efetivamente Cabo
Verde não pode sobreviver sozinho, tem que estar ligado a alguém" (Laban, 1992:
675). Sob esse ponto de vista, como constata o artista e depois Ministro da
Cultura, Leão Lopes, a "preocupação" com a África, desde o golpe de Estado na
Guiné, é mais "político" do que "cultural". Assim, podemos chegar às mesmas
conclusões a que chega Niane para o caso do Senegal:
Por seu atraso ou por erro de apreciação, as elites senegalesas
[assim como as cabo-verdianas ] têm contribuído fortemente, não
apenas para a efetivação, mas também para a perpetuação de um poder
hipertrofiado, não autônomo com relação aos centros de imposição
exteriores. (Niane, 1995:193)
Desde o início do século, quando os intelectuais falam da identidade cabo-
verdiana, pensam na cultura como algo associado à raça (no sentido importado
das reconstruções conceituais de Gilberto Freyre), para correlacioná-la à
Europa e à África (e ainda ao Brasil). Nesse sentido, diferentemente do caso
senegalês, desde pelo menos a década de 30 as elites cabo-verdianas não
deixaram de elaborar discursos identitários próprios para Cabo Verde, mas
paradoxalmente esses discursos e essas posturas nunca foram contrárias ao
cosmopolitismo. Criado sob o modelo do exocruzamento, o discurso da mestiçagem
é uma importação que modela e justifica o regime de importações subsequente e
legitima as estratégias de exogenidade.
O que a análise do caso específico cabo-verdiano tem a contribuir numa
discussão mais geral é a pertinência da relação entre importação de bens
simbólicos estrangeiros, o clientelismo dominante nas relações internas e com
os agentes estrangeiros e os próprios símbolos e conceitualização da identidade
nacional. Tentamos analisar como o mito da mestiçagem serve de modelo para
ambas as estratégias: da importação e das relações clientelísticas.
Mas as outras versões da identidade nacional (a lusitanidade e a africanidade)
também privilegiam a exogenidade ao recortarem o minúsculo Estado cabo-verdiano
como um espaço interno fundamentalmente dependente das forças que lhe são
externas.9 As diferentes versões da identidade nacional são aqui princípios de
legitimação de vínculos com instâncias externas e que justificam a dominação
interna.
Em todas as suas versões (luso-crioula das primeiras décadas do século, mestiça
da Claridade, africana do PAIGC, mestiça e lusófona com o MpD), o discurso de
reivindicações "nacionalistas" e "culturais" da elite indígena cabo-verdiana
imbrica uma estratégia de dominação interna com a submissão a forças externas.
Mesmo na versão mais africana da identidade cabo-verdiana, a lógica da
exogenidade acabou modelando de forma paradoxal as práticas políticas
implementadas: Cabo Verde não se incorporou à Guiné-Bissau, mantendo esse
símbolo da africanidade (de fato a unidade não foi proposta com relação a um
país real mas sim com a africanidade que esse país simbolizava), como uma
"alteridade" irredutível ao mesmo tempo em que próxima, numa série de laços
institucionais e clientelísticos entre as elites dos dois países (ambas se
definindo como mestiças e mantendo internamente e externamente símbolos de
africanidade próximos, mas nos quais não se deixam dissolver).
Com o golpe de Estado de 14 de novembro de 1985 na Guiné Bissau, e a
conseqüente ruptura do binacionalismo, o governo do PAICV pôde enfim, numa
série de atos de reconciliação, oficializar sua aproximação dos ideólogos da
mestiçagem ' nomeadamente a geração Claridade. A posição do governo da primeira
república quanto à definição da identidade nacional passa a ser cada vez menos
clara. Por um lado, o PAICV, enquanto herdeiro do PAIGC, não podia romper
completamente com uma epopéia de libertação nacional que lhe conferia
legitimidade política para continuar monopolizando toda a expressão política.
Por outro lado, suas vinculações diplomáticas cada vez mais privilegiadas com
os Estados Ocidentais, particularmente com Portugal, mais a dependência
econômica, faziam com que sua versão africanista parecesse uma retórica
ultrapassada que destoava das alianças efetivamente implementadas no campo
internacional. Os ideólogos da mestiçagem reconhecem que o governo do PAICV se
aproxima satisfatoriamente da Europa, mas mal suportam que os signos da
africanidade continuassem "destoando" da "verdadeira" identidade "cultural"
cabo-verdiana. Logo após a "abertura política", em 1991, a bandeira nacional
(que era semelhante a da Guiné Bissau), foi mudada e um dos deputados
justificava o ato alegando em assembléia a diferença cultural e racial do cabo-
verdianos em relação aos guineenses.
Em qualquer uma das suas versões, o processo de elaboração e legitimação da
identidade cabo-verdiana é o resultado da aplicação de um conjunto de
classificações derivadas das ideologias racistas européias do século XIX. O
princípio de oposição subjacente a essas versões se dá entre África e Europa,
que funcionam como pólos que podem ser valorados positiva ou negativamente.
Associada a estereótipos raciais, raramente explicitados enquanto tal, a
afirmação da identidade cabo-verdiana como mestiça é tão racialista quanto a
afirmação da europeidade ou da africanidade.
Da estrutura social de divisões étnicas da escravatura foi herdado todo um
mundo de representações raciais, reformuladas na década de 1930 pela
incorporação das concepções racistas de Freyre. Apesar do desaparecimento da
oposição racial entre brancos e negros em Cabo Verde, as representações raciais
persistem como um sistema de crenças e de categorias depositadas na linguagem e
perpetuadas pelo uso, como totalizações irredutivelmente práticas e simbólicas,
disponíveis e prontas para serem empregadas, sendo simultaneamente
significações culturais, crenças e categorias.
Em Cabo Verde, como de resto no Brasil, o discurso mestiço é uma reelaboração
do discurso racialista do século XIX. Ele se estabelece a partir de um pequeno
número de oposições que geram um termo mediano que anula as negatividades
associadas ao pólo africano (negro). Nesse sentido, esse discurso é apenas mais
uma variante daquela "revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação
pública do estigma, constituído assim em emblema" que Bourdieu (1989:125)
aponta no paradigma do "black is beautiful". O mestiço valorado negativamente
no discurso racialista do século XIX foi tomado como emblema das identidades
nacionais de alguns países latino-americanos, reelaborados positivamente e
exportados, pelo menos por Freyre, com relação a Cabo Verde.
O discurso da Claridade, nas décadas de 30 e 40, sobre a identidade cabo-
verdiana, cada vez mais retomado e prestigiado, abrigado e reproduzido por meio
do ensino a título de literatura, pretende que os valores africanos se diluíram
"na circunstância da terra, da pobreza, da seca". Entrevistado por Laban (1992:
676), nesses mesmos termos, Germano Almeida, que representa a mais nova geração
de intelectuais cabo-verdianos já consagrados, reproduz o mesmo discurso
citando a fonte: "Culturalmente, de fato, nós não somos africanos. O Baltasar
uma vez respondeu a uma pergunta desse tipo dizendo: 'Isto aqui não é África, é
Cabo Verde!' E é verdade".
O patrimônio literário cabo-verdiano, que muda muito lentamente de geração em
geração, funciona como uma espécie de forma a priori de sensibilidade
incorporada que contém os princípios geradores das atuais formulações da
identidade nacional, mas que remonta às revelações raciais da década de 1930,
elas mesmas elaborações da Claridade a partir do cientificismo racista europeu
do século XIX, apropriado de segunda mão e após reelaborações por Gilberto
Freyre.
É sob os princípios dessa noção de raça que os intelectuais cabo-verdianos
continuam pensando a identidade nacional, sendo cultura um eufemismo que
subentende a idéia de raça e permite classificar povos não mais biológica, mas
culturalmente. O termo intermediário entre as duas matrizes culturais (européia
e africana) situaria Cabo Verde junto ao Brasil, Cuba e talvez toda a América
do Sul, segundo formulações recentes do escritor cabo-verdiano mais prestigiado
na atualidade, Germano de Almeida.
Mas se a mestiçagem é o melhor modelo de e para (expressão cunhada por Geertz,
1978) a importação de bens simbólicos, é certamente porque seu princípio de
universalidade (em contraposição ao particularismo africanista, por exemplo) se
realiza na imitação do universalismo imperialista que lhe antecede e ao qual se
subordina: a europeidade.
Notas
1. O interessante trabalho de Kwame Appiah sugere entre outras razões para a
persistência das línguas européias como línguas oficiais nas nações
independentes da África "a possibilidade menos nobre de que essas línguas
estrangeiras, cujo domínio havia marcado a elite colonial, tenham-se
transformado em marcas de status preciosas demais para serem abandonadas pela
classe que herdou o Estado colonial" (Appiah, 1997:21). Trabalho esse aspecto
quanto ao caso específico de Cabo Verde em Anjos (2002).
2. Martínez-Echazábal (1996:109) atribui a Boas (1940) o deslocamento do
conceito de raça para o de cultura, posteriormente retomado pelos intelectuais
latinos.
3. Em outro trabalho (Anjos, 2002), discuto mais detalhadamente a forma como em
Cabo Verde se importa e se transforma o imaginário da mestiçagem nacional.
4. Tratando da problemática da identidade e da diferença no pensamento francês,
Todorov (1989) constata que enquanto "a pluralidade das culturas, no interior
de um Estado, não conduz necessariamente ao conflito [... ] a pluralidade das
raças coloca um, grave, desde que se sobreponha ' e esse é normalmente o caso '
a uma estratificação social real". Ainda segundo Todorov (1989:119), a solução
desse grave problema passaria pela mestiçagem. De certo modo, a situação
empírica que tomamos para análise permite testar, em toda a sua complexidade
concreta, essa avaliação otimista em relação à "mestiçagem".
5. No caso cabo-verdiano se impõe uma análise à semelhança da análise de
Pécault para o campo intelectual brasileiro que dê conta da multiplicidade de
interesses em jogo. "Seria igualmente plausível detectar, na origem de cada
engajamento, alguma concepção de interesse, mas este não poderia ser reduzido à
busca de um emprego público sem prejuízo de se esquecer da variedade dos tipos
de interesses e das estratégias para consegui-los. Essa complexidade não é
surpreendente, pois decorre da inexistência de uma justaposição entre um campo
intelectual regido por suas próprias modalidades institucionais de legitimação,
e um campo político igualmente submetido a outras modalidades de legitimação.
De imediato se produziu, não uma interferência, mas uma mescla. Toda as
estratégias individuais se colocam sobre os dois registros" (Pécaut,1990:89).
6. No Ocidente, à medida que o Estado nasce de "numa constelação intelectual
marcada pela aliança entre direito romano, filosofia escolástica e doutrina
cristã do 'corpo místico' a autoridade tende a ser pensada em contraste com as
propriedades das pessoas naturais vulneráveis à degradação e à morte, ou
simplesmente ao erro, o pensamento político foi levado a se atribuir
explicitamente, a ponto de quase torná-lo seu próprio objeto, o tratamento de
'ficções': a ordem social (civil ou política) faz existir corpos organizados,
tem esses privilégios de escapar de forma relativa, pelo menos, ao tempo. É o
caso das 'ordens', das corporações, sociedades e igreja [... ] ficções na qual
a propriedade de generalização tem por correlato a propriedade de
universalização [... ]" (Pinto, 1986).
7. "Tomar a nação como unidade natural da história é recuperar parte do sentido
original da natio, que etimologicamente gravita no mesmo campo semântico de
natura (natureza)" (Trajano Filho, 1993:3).
8. E até a possibilidade de se acionar recursos mais distantes e poderosos
entram no imaginário da proteção clientelística. Na década de 40, Pedro
Cardoso, um dos mais prestigiados intelectuais cabo-verdianos, vai aos EUA
"pedir auxílio para seu povo". Arquétipo da intervenção a favor do "povo cabo-
verdiano" junto a instâncias externas é sobre esse tipo de prática que se molda
após a independência o imaginário da proteção que os governantes podem dar à
população.
9. Nesse sentido, a luta pela incorporação numa grande nação africana que
incluísse toda a África do Oeste teria instaurado um princípio de identidade
profundamente diferenciado. Nenhum dos agentes do nacionalismo cabo-verdiano
aposta seriamente nessa possibilidade.