Identidades coletivas e mobilização de identidades
Introdução
O Estado nacional é um mecanismo de domesticação dos sentimentos coletivos, que
atua unindo o povo em uma nação. Isso permanece verdadeiro mesmo depois das
mais recentes, e em parte violentas, formações de Estados nacionais na Europa
- Estados que surgiram da dissolução dos últimos impérios no Sudeste e no
Leste do Continente. Paradoxalmente, a Europa revelou-se ao mesmo tempo
pioneira e retardatária no processo de construção do Estado nacional.1 Podemos,
assim, partir da premissa de que o Estado nacional tornou-se um fenômeno
universal, um ator coletivo universal representando um povo civilizado, isto é,
uma nação.
No curso de sua universalização, o Estado nacional depara-se com um paradoxo:
tornar-se um ator central no processo de globalização enquanto sua unidade
cultural, a nação, é solapada por formas "étnicas" de pertencimento que não
mais coincidem com as fronteiras nacionais. O que resta é o Estado nacional sem
a nação. Isso constitui um desafio para todas as teorias que afirmam que os
Estados, isto é, os sistemas de decisão política, devem estar inseridos num
mundo da vida, que proporciona a base da solidariedade, da confiança ou da
identidade. Este suposto, de que os Estados necessitam de uma base cultural, é
mais claramente afirmado por Habermas (1984, 1987), quando argumenta que
qualquer sistema social está ligado a um mundo da vida que lhe dá legitimidade.
Mas é também parte do antigo e do novo comunitarismo, e central para a
sociologia parsoniana ou para a concepção de dominação legítima em Weber.
As teorias do Estado nacional baseiam-se na observação de uma íntima associação
entre unidades simbólicas e unidades sistêmicas: o Estado identificado com o
povo. Essa associação nunca se realizou historicamente, mas funcionou como uma
idéia diretriz ao longo dos séculos. No mundo contemporâneo, observamos uma
dissociação entre as estruturas sistêmicas que governam a reprodução da
dominação política e econômica, tanto no âmbito nacional como transnacional e
subnacional, por um lado, e as estruturas geradoras de identidades culturais,
de sentimentos de pertencer e de entusiasmos coletivos, de outro. A articulação
entre ambas torna-se mais contingente e exige que tenhamos novas idéias sobre
as conexões teóricas entre os sistemas de ação e as pessoas que neles atuam. É
necessário que as teorias dêem conta das conseqüências dessa dissociação para o
Estado e para o mundo da vida.
Acredito que, em virtude dessa dissociação, a forma do Estado está sendo
afetada: o Estado nacional está se tornando um ator racional em escala global,
como ocorre com as empresas econômicas. Tal dissociação tem conseqüências
também para o modo de pertencimento coletivo, para o povo: ela abre a caixa de
Pandora da mobilização de identidades, de sentimentos de pertencimento para
além do Estado nacional, seja acima dele (como as formas transnacionais de
mobilização de identidades) ou abaixo (como as formas regionais ou locais de
mobilização de identidades).
Ambas as conseqüências são teoricamente desafiadoras. O que acontece com o
Estado que não pode mais contar com o consentimento do povo, com o "plebiscito
democrático cotidiano" (para parafrasear Renan)? Pode transformar-se num corpo
deliberativo auto-sustentável de especialistas, capaz de influenciar a opinião
pública por meio da política simbólica. O que acontece com o outro lado do par,
o povo? Pode este ainda se tornar um demos (corpo democrático) ou tende a se
dissipar numa série de demoi ou - pior ainda - numa série de buscas
identitárias por comunidade?2 Ou temos de imaginar que as comunidades devem ser
substituídas por alguma espécie mais abstrata ou mais instrumental de união?
Isso é ainda mais desafiador quando procuramos observar o efeito combinado
dessas conseqüências, isto é, quando analisamos a relação entre o Estado e o
povo. O que acontece com o Estado quando tem de lidar com grupos culturais
antagônicos no interior de suas fronteiras? Tais situações podem ser
constatadas em Estados nacionais com uma coletividade dividida - bons
exemplos na Europa são a Bélgica e a Suíça - ou com uma população de
desconhecidos.
De modo a não confrontá-los com demasiadas interrogações (sem finalmente
apresentar qualquer resposta), focalizarei minha palestra principalmente na
seguinte questão: Como se apresentam as identidades coletivas "desacopladas"?
Em poucas palavras, argumentarei que há um tema dominante - o
"desacoplamento" entre o Estado e a nação - e um contra-tema - a lógica
autônoma da mobilização de identidades.3 Em seguida, esses temas serão
desenvolvidos de maneira histórica, sistemá tica e, finalmente, concreta,
utilizando-se a União Européia como o caso ilustrativo da problemática
estudada. Por fim, discutirei se o Estado nacional seria ainda a forma
apropriada para domesticar os sentimentos coletivos. Não se trata de imaginar o
desaparecimento do Estado nacional (este continuará a existir), mas de saber se
uma de suas funções centrais - transformar um sentimento coletivo num demos
civilizado - será assumida por arranjos institucionais para além dele.
Laço histórico entre o Estado e o povo
Contingência
Historicamente, deparamo-nos com um interessante paradoxo na construção do
Estado nacional: o Estado, criado pelo povo, transformou-se em algo do qual o
povo emergiu. O povo esteve na origem do Estado moderno, seja por meio de um
contrato, seja através de outras formas de construção da vontade coletiva
(incluindo a de ser súdito de um governante esclarecido). E então, surgido do
povo, o Estado transformou-o num corpo político, a nação.4 Esta
transubstanciação (verdadeiramente mística) do povo em nação, isto é, numa
outra espécie de povo, está na base do Estado moderno, que se constituiu no
curso de vagas revolucionárias ou de reformas democráticas.5
A conexão entre Estado e nação foi objeto de muita discussão entre filósofos e
teóricos políticos a respeito das qualidades desse corpo emergente, descrito
idealmente como um demos, um povo capaz de ser seu próprio soberano. A
construção desse demos baseou-se na língua e nos valores culturais
compartilhados que asseguravam o caráter reconhecível do povo. Diferenças de
classe, regionais e de gênero foram mediadas por um novo modo de pertencer: a
cidadania.6 Esta baseou-se num vínculo exclusivo, a saber, ser parte de uma
nação. Pertencimento e vinculação são os dois processos relacionados por meio
dos quais foi construída a nação.
Podemos descrevê-los em termos da criação de um espaço social de comunicação no
qual são institucionalizados códigos específicos de distinção entre um "nós"
coletivo e um "outro" coletivo.7 O resultado é a construção de uma identidade
coletiva que se manifesta como a idéia de um ego capaz de ter ou expressar uma
vontade coletiva. Essa identidade permite superar interesses particulares,
criar a disposição de pagar impostos, de entregar os filhos a instituições
educacionais controladas pelo Estado e de, até mesmo, morrer pelo Estado. As
pessoas agora fazem essas coisas não porque alguma autoridade externa as
obrigue, mas porque acreditam que todos devem assim proceder. Quem estuda a
evasão fiscal, o absenteísmo escolar ou a deserção, bem sabe o quão difícil é
esta solução. O Estado nacional é uma "instituição de baixa probabilidade", o
que explica por que precisou de uma forte identidade coletiva para superar tais
atos de defecção bastante prováveis.
Ao mesmo tempo, as sociedades criaram um novo problema, qual seja, o de
identidades coletivas pautadas pela lógica do conflito de grupo. Essa lógica
pressupõe um confronto de identidades que pode resultar em enfrentamentos
violentos, um padrão que conhecemos tanto na Europa do passado como na dos anos
de 1990. A domesticação das identidades coletivas é algo difícil de ser
alcançado, mas parece que a instituição do Estado nacional conseguiu fazê-lo
(pelo menos na Europa, a proporção de guerras diminuiu significativamente nos
últimos sessenta anos).
Isso tudo é plausível como um balanço descritivo, mas existiria uma razão
teórica para que o Estado moderno necessite de uma identidade coletiva?
Identidades versus interesses: uma primeira proposição teórica
As identidades coletivas proporcionam um princípio de integração social. Outro
princípio é constituído pelos interesses. Há uma complementaridade teórica
específica a ser identificada na relação entre identidades e interesses. As
identidades definem fronteiras em relação ao mundo exterior; excluem os
outros.8 Os interesses conduzem a estratégias que incluem os outros mediante um
cálculo racional, ou seja, levam a prover um mundo de pessoas suficientes para
dele se beneficiarem. As identidades definem as fronteiras de um espaço em que
se incluirão os interesses. Estes, por sua vez, rompem fronteiras, ligando as
pessoas como indivíduos que seguem suas estruturas de preferências e
transgridem as obrigações e as normas coletivamente compartilhadas. Trata-se da
função liberadora da ação racional, já observada pela sociologia histórica
comparada, segundo a qual os entrepostos de comércio, as cidades comerciais e
as culturas mercantis parecem ter desenvolvido os regimes mais liberais, embora
instáveis.9 Esse aspecto liberador transformou-se na ideologia neoliberal,
segundo a qual o bem coletivo é considerado resultante da ação baseada no
interesse próprio.
A proposta teórica em que se baseiam as observações que se seguem não opõe
identidades e interesses, antes supõe sua constituição recíproca.10 Esta
proposta começa com um enunciado defendido pelo neo-institucionalismo
econômico: a busca racional de interesses cria relações sociais instáveis. Tais
relações precisam, portanto, de instituições fortes para criar laços sociais
estáveis. As instituições econômicas não podem fazê-lo. Isso é, exatamente, o
que compete às instituições políticas, que impõem restrições aos atores em sua
busca racional de interesses - como um sentido de justiça ou uma identidade
coletiva. Esta é a lógica da appropriateness11, como argumentaram enfaticamente
March e Olsen (1984, 1989). A solução moderna foi um Estado baseado numa
identidade nacional que proporcionou o arcabouço para o desenvolvimento do
capitalismo.
Disso se segue uma proposição teórica: é a configuração particular de
interesses e identidades o que explica a dinâmica das relações sociais num dado
espaço social e num determinado tempo. O Estado nacional moderno é um caso
particular dessa combinação de identidades e interesses. Pode-se dizer que se
trata mesmo do caso ideal de sua convergência: a busca racional do interesse é
maximizada onde existe um Estado que produz uma percepção compartilhada de sua
appropriateness, isto é, uma identidade coletiva.12 O demos nacional foi a
ficção ideal de uma identidade asseguradora da inclusão - algumas vezes da
inclusão igualitária - dos interesses de um povo. Essa foi a solução
encontrada pelo Estado nacional em sua evolução.
A dissociação entre interesses nacionaise sentimentos coletivos
Esta ficção ideal tem dois modos de existência: o material e o simbólico. Como
algo material, raramente conseguiu ser realizada. Como dispositivo simbólico,
sobreviveu por longos períodos e forneceu o suporte ideológico para o processo
de modernização, especialmente para o processo de democratização e de
desenvolvimento capitalista. O modo de existência simbólico das instituições
modernas gerou o discurso moderno sobre "o" povo.
Minha hipótese é a de que estamos vivendo o apogeu do Estado nacional, mas
podemos também já ser observadores da sua superação. Meu argumento empírico é o
de que o modo simbólico de existência de um povo, o demos, foi posto em questão
por vários processos, como a diferenciação de laços sociais e os discursos que
já não dão por certa a unidade simbólica do povo. Ademais, surgiram identidades
coletivas que atravessam as estruturas de vinculação e de pertencimento
constitutivas do Estado nacional. Em suma, a nação dissociou-se do Estado e
novas identidades surgem paralelamente às nacionais. As razões para essa
dissociação são:
Reflexividade: conhecimento de que a nação é algo construído.
Diferenciação étnica: competição entre identidades coletivas
igualmente legítimas.
Migração: surgimento da formação de identidades coletivas
secundárias.
Permissão de residência a estrangeiros: aumento da cidadania
parcial, que cria modos de pertencimento cruzados, solapando assim a
idéia de uma filiação unitária ao Estado.
Essa dissociação produziu uma "dissociação secundária", negligenciada em grande
parte do debate sobre novas identidades coletivas, a saber, a dissociação entre
o ser membro de um Estado como cidadão e o estar integrado num povo através de
laços comunitários. Em outras palavras, o desacoplamento entre o ser cidadão e
o sentimento de identidade coletiva. Podemos pertencer formalmente a um Estado
e, ainda assim, sentirmo-nos parte de uma comunidade cujos limites não
coincidem necessariamente com o âmbito por ele abrangido. Podemos, por exemplo,
nos identificar como parte da humanidade de maneira geral, o que evidentemente
cruza as fronteiras do Estado nacional. Intelectuais e burgueses podem ter uma
identificação cosmopolita; trabalhadores podem estar mais marcados pelo
localismo, e vice-versa.
Essa dissociação "secundária" separa a dinâmica das identidades da dinâmica dos
interesses. É preciso compreender as conseqüências desse processo. Por isso, no
próximo passo do desenvolvimento de minha argumentação, procurarei dar uma base
teórica à minha descrição "sistemática" dessas conseqüências.
A transformação da relação entre o Estado e o demos
O Estado nacional como ator coletivo no processo de globalização
Contrariamente à hipótese de que o Estado nacional estaria perdendo terreno,
acredito que ele está ganhando espaço, mas não como identificado com o povo, e
sim como um ator coletivo com interesses "nacionais". O desacoplamento entre
identidades e interesses possibilitou transformar o Estado nacional em um ator
coletivo racional, um grupo de interesse. O Estado nacional torna-se um ator
global, como ocorre com as firmas transnacionais. Esse é, provavelmente, o
fenômeno básico denotado pelo termo globalização: os Estados nacionais competem
em escala global, constituindo-se em grupos de interesse globais diferenciados
dos atores econômicos. Afirmar que, uma vez iniciada, essa competição produz
sistemas de posições desiguais (como, por exemplo, o mundo da OECD e o dos que
não pertencem àquela organização) não elimina o argumento de que a ação
orientada pelo interesse torna-se o modo predominante de existência do Estado
nacional.
Teoricamente, o Estado nacional, pelo menos no Ocidente, está racionalizado no
sentido weberiano: trata-se de um ator coletivo que barganha e negocia com
outros Estados nacionais para garantir vantagens relativas e que assegura o
consentimento popular por meio da demonstração de êxito da ação de interesse
próprio contra outro Estado nacional. Os próprios indivíduos são consideradas
atores racionalmente interessados.
Esta transformação do Estado moderno em grupo de interesse é estimulada pelo
surgimento de coalizões entre Estados, visando à minimização recíproca de
custos transacionais, de modo a se tornarem atores mais poderosos na arena
global. Um caso particular desse tipo de coalizão desenvolveu-se na Europa com
o Mercado Comum e, posteriormente, com a União Européia. Essa realidade
institucional emergente foi concebida (pelo menos no início) como uma mera
Zweckverband, um tipo de instituição empresarial.13
O que restou do demos? Um conjunto de atores, movidos por seus próprios
interesses, que não mais compartilham o sentido de laços coletivos. Pode-se
observar, contudo, a persistência de uma busca latente por vínculos. A
transformação do Estado em um poderoso grupo de interesse leva apenas a que os
sentimentos coletivos dele se desacoplem. Liberadas, as identidades coletivas
nacionais passam a competir com outras reivindicações de identidade coletiva. A
afirmação da identidade nacional perde seu monopólio e encontra-se agora
atuando, por assim dizer, num mercado de reivindicações de identidades
coletivas.
A lógica das reivindicações de identidade:uma segunda proposição teórica
Essa liberação obriga-nos a pensar com mais atenção a lógica das reivindicações
de identidade, que difere da que preside à busca racional de interesses. Como
explicá-la? As reivindicações de pertencimento a algum "nós" baseiam-se em
narrativas (como as narrativas de vitórias ou derrotas), por meio das quais um
povo se reconhece como coletividade. Por intermédio de tais narrativas, um povo
define um mundo da vida compartilhado, que distingue claramente quem é parte
dele e quem não é. Essas narrativas constituem poderosos sinalizadores de
fronteiras de exclusão. Além disso, elas reivindicam um bem particular: uma
identidade entendida como um bem coletivo. A identidade não é algo que se
negocie com outros; trata-se de um bem indivisível. Não há termo comum entre
identidades. Quando ocorre uma colisão entre reivindicações de identidade,
podem-se imaginar idealmente dois resultados: reconhecimento recíproco ou mútua
aniquilação. Em outras palavras, ou ambas se reconhecem plenamente, o que
significa dizer que afirmam sua diferença e requerem tolerância, ou entram em
conflito até que atinjam o ponto da completa separação ou da aniquilação
recíproca. Na realidade, esses conflitos situam-se em algum lugar entre esses
dois pontos ideais que sugerem os extremos de uma série de possibilidades, no
interior da qual se dão as especificidades dos choques de identidade nos casos
concretos. Essa teoria ajuda-nos a explicar por que as identidades coletivas
são tão importantes para o Estado: elas fornecem uma narrativa integradora.
Explica também por que tais identidades precisam de uma forte inserção
institucional: as instituições criam o monopólio de uma narrativa, evitando
assim guerras de identidade dentro do Estado. Isso implica, ainda, a supressão
de narrativas competidoras - até mesmo violentamente, quando necessário.14
Com a emergência de Estados multiculturais e de formas políticas
transnacionais, identidades distintas foram obrigadas a se relacionar como
identidades igualmente legítimas, isto é, foi necessário que se encontrasse um
espaço de coexistência para as identidades coletivas. A solução normativa do
reconhecimento recíproco evita a verdadeira questão, pois pressupõe a igualdade
de poder das reivindicações de identidade em situações reais. Tão logo se
introduza a dimensão do poder, as soluções normativas não mais nos ajudam. Tem-
se antes de prover instrumentos teóricos não em termos do que gostaríamos de
ver, o que é certamente o reconhecimento recíproco de diferentes identidades,
mas em termos das reais conseqüências que decorrem do desacoplamento entre as
identidades coletivas e o Estado, isto é, o fim do monopólio da nação como
narrativa criadora de identidade. É necessário, pois, que examinemos esta
"marketização" (marketization)15 das identidades coletivas.
O futuro do demos
Venho argumentando que o desencantamento do Estado nacional, sua redução a um
ator coletivo racional, não conduz ao desaparecimento do problema das
identidades coletivas. Elas são simplesmente liberadas e podem exercer papéis
muito diferentes. Ademais, a emergência de uma pluralidade de narrativas
destrói o pertencimento exclusivo do povo ao Estado. O caráter contingente das
narrativas nacionais abre a porta para o pluralismo e mesmo para a disputa
entre narrativas. Em outras palavras, a dissociação entre a nação e o Estado
transforma as identidades em narrativas que flutuam livremente. Em
contrapartida, com a liberação das identidades, surge a necessidade de um novo
tipo (ou de novos tipos) de comunidade para representá-las.
Se não a nação, o que estaria surgindo como um possível suporte para narrativas
de identidade? Há um demos nascendo para além da nação? Ou temos de lidar com
uma pluralidade de demoi ou com comunidades de tipo não-demos, ou, ainda, com a
existência simultânea desses diferentes tipos?16 Quais as opções para se
construir uma comunidade que compartilhe uma narrativa e que esteja além do
Estado nacional? Gostaria de distinguir três opções.
A primeira é a volta a comunidades pré-políticas, especialmente ao equivalente
funcional das comunidades políticas, a saber, as comunidades religiosas
tradicionais. Trata-se de um fenômeno bastante comum nas sociedades atuais. Os
grupos sociais, particularmente aqueles com experiências migratórias ou
coloniais, tendem a construir uma coletividade definida por algumas crenças
religiosas compartilhadas. Essas crenças são tão mais fortes quanto mais possam
estar inseridas em tradições religiosas canônicas, isto é, tradições religiosas
com textos sagrados escritos.
A segunda pode ser considerada uma variante moderna da modalidade
tradicionalista. Trata-se da construção de novas comunidades religiosas que
compartilham a experiência direta de seus participantes, não mediadas por
autoridades presentes (como os grupos pentecostais, grupos de Novas Igrejas ou
New Age). A diferença reside no fato de que, neste caso, o vínculo que une a
comunidade é a experiência comum no "aqui e agora".
A terceira reside na construção de uma comunidade de interesses com uma
identidade coletiva minimalista, isto é, uma comunidade constituída por pessoas
que compartilham basicamente o interesse de a ela pertencer, definindo seus
laços em termos de solidariedade aos que a ela pertencem. É isso,
provavelmente, o que se entende por sociedade civil: um povo com uma identidade
coletiva que, no curso de sua ação política, cria as condições para a
existência de uma associação igual e livre.
Evidentemente, essa classificação não se refere apenas a tipos empíricos de
construção de comunidades nas sociedades modernas. Pode-se inferir também, a
partir dela, um aspecto normativo, visto que nem todas essas opções são
compatíveis com uma política democrática. Assim, a opção por vínculos
democráticos é possível, mas não há um argumento do por que tal opção possa
acontecer e do por que não se realizaria uma outra.
Quais são as conseqüências dessas opções para os conflitos de identidade? No
caso da opção tradicionalista, desencadear-se-á com facilidade a espiral de
desentendimento e de autofechamento. Trata-se do melhor caminho para a guerra
entre identidades coletivas. As comunidades tendem a uma reunificação do
político e do comunitário, a um substituto direto e inflexível para o Estado
nacional. Não é sem razão que os Estados nacionais a consideram uma ameaça
real, não apenas militar, mas também cultural.
Quanto à segunda opção, a avaliação é mais difícil. As novas comunidades
religiosas ou quase religiosas parecem ser apolíticas, uma vez que proporcionam
nichos para o compartilhamento coletivo de uma experiência subjetiva. Tais
nichos formam demoi pré-políticos, caracterizados por motivações sociais -
solidariedade e responsabilidade comunitária -, e agrupam crentes que
constroem sua identidade coletiva como uma emanação de uma experiência
compartilhada.17 Esses grupos não contestam o Estado nacional, mas criam
espaços transnacionais (e subnacionais) que escapam ao seu controle. Requerem
de seus membros todas aquelas obrigações que o Estado nacional requer de seu
povo: às obrigações para com o Estado (pagar impostos, enviar as crianças a
escolas controladas pelo Estado, morrer pela nação, caso necessário)
correspondem obrigações para com o grupo (dar apoio material à comunidade dos
crentes, socializar as crianças nas crenças da comunidade, dar a vida pela
comunidade, se for preciso). Assim, pode-se vislumbrar o surgimento de uma
competição particular entre o Estado nacional e essas comunidades subnacionais
ou transnacionais, politizando-as, mesmo que não intencionalmente.18 Trata-se
do latente desfazer-se da nação, que contesta ou desafia o Estado nacional.
Por fim, a terceira opção baseia-se na idéia de que, em seu reconhecimento
mútuo como concidadãos, os indivíduos criam laços frágeis entre si. Essa idéia
relaciona-se ao que considero identidade coletiva "fraca", pois as pessoas não
são forçadas a acreditar em algo ou a compartilhar uma experiência coletiva de
revelação. A única imposição é a de que aceitem as regras de procedimento do
debate aberto e igual entre indivíduos portadores de interesses. Reiterando o
já sugerido, isso envolve a idéia de uma sociedade civil que constrói sua
identidade coletiva por meio de alguns códigos de interação civilizada entre
seres humanos iguais e livres no interior de um espaço de interação social
institucionalmente definido. Trata-se de uma exigência fraca, mas como
kantiano, não conheço nenhum argumento pelo qual isso não possa ser suficiente.
Como sociólogo, entretanto, sei que há outros que pensam ser preciso mais.
As conseqüências dessa opção são certamente menos beligerantes do que as da
primeira. Elas são moderadoras por natureza. Se isso é o bastante para que ela
sobreviva à competição com as outras construções de identidade, é uma questão
que deixarei em aberto.
Há uma possível quarta opção, que funcionou em algumas partes do mundo, a
saber, uma identidade forte baseada na tradição, na religião, em grandes
vitórias políticas e no orgulho pelo passado imperial. Os impérios, contudo,
desapareceram nos últimos cinqüenta anos: o britânico, o português, o espanhol,
o holandês, o soviético; e antes desses, o otomano, o austro-húngaro e o
prussiano, que desapareceram em um passado mais distante.19 Não precisamos
lidar empiricamente com novos impérios, mas temos de tratar de novas formas de
construção institucional - os "quase Estados" transnacionais.
Em vez de especular sobre possíveis cenários de construção e de mobilização de
identidades na constelação pós-nacional (Habermas, 1998), podemos tomar uma
outra linha interpretativa: examinar os casos existentes de instituições
transnacionais que parecem seguir a opção da identidade "fraca".
Tenho em mente o caso da União Européia. Os fundamentos históricos e teóricos
estão estabelecidos, o caso é claro e único. Acredito que a União Européia
constitui um caso de experimentação com identidades "fracas" como um vínculo
social para instituições políticas fortes. Trata-se de um laboratório em que o
problema da construção e da mobilização de identidades encontrará um novo foco
histórico.20 Quanto mais a construção política institucional se moverem direção
a arranjos transnacionais, mais o Estado nacional se tornará um ator coletivo
que não tem mais razão de ser em si mesmo, mas em seu papel de ator racional
coletivo, forçado a participar de um jogo com outros Estados nacionais. O
desencantamento do Estado nacional, transformado em ator coletivo racional,
desloca a questão da identidade coletiva do âmbito da nação para o plano
transnacional, onde são tomadas as decisões legais imperativas, e é preciso que
surja uma identidade coletiva compatível para controlar essas instituições.
Europa: um caso de identidade coletiva pós-nacional
Especificidade
Na constelação "pós-nacional", a idéia de uma sociedade européia, e sobretudo a
de uma identidade coletiva européia, parece ser algo atávica. O discurso sobre
a Europa aparece, à primeira vista, como um discurso que tenta simplesmente
traduzir o simbolismo nacional num simbolismo transnacional. Contudo, esta
interpretação seria demasiado simplista, pois a idéia de uma unidade da Europa
não é mais tão evidente como o foi a idéia de nação.
Confrontamo-nos com a busca de um denominador comum que difere do modelo que
fundamenta a construção de uma identidade nacional. A busca de uma identidade
européia é um exemplo da tentativa de se criar uma preocupação comum a partir
de relações baseadas nos interesses dos cidadãos. Esses interesses, que dão
forma às relações sociais, têm uma dupla natureza: são materiais mas também
ideais (como formulou Max Weber). A Europa é mais do que a "Europa do burguês".
Entretanto, é difícil definir este "mais", pois não há um referente real. A
solução teórica desse paradoxo é a radicalização da idéia de integração social
por meio da comunicação: a ordem social surge onde os indivíduos levantam suas
vozes e lutam para serem ouvidos.
Interesses ideais têm a ver com idéias, e estas existem numa forma lingüística:
são as referências ao mundo exterior contidas nos símbolos. As referências ao
mundo podem envolver mobilizações diferenciadas de carga simbólica. Há áreas em
que o elemento comunicativo exerce um papel mais propriamente secundário. Tais
são as questões distributivas. Em que medida a mobilidade social deve ser
estimulada, que direitos sociais as pessoas devem ter, são questões que podem
ser tratadas com habilidades comunicativas medianas. Interesses não requerem
muita interpretação, nem precisam de muita compreensão (Verstehen). As questões
distributivas são solucionadas nos jogos estratégicos de conceder e negar. Há
um "bolo", e os nele interessados têm de maximizar sua distribuição
igualitária. Em contrapartida, as questões relativas à identidade e à diferença
necessitam de uma maior ação comunicativa. A identidade existe apenas por ser
verbalizada e, portanto, essas questões só podem ser vislumbradas a partir da
comunicação e da compreensão. Isso explica por que uma língua comum foi tão
importante na construção das identidades nacionais. O sentimento de união
mediado por vínculos sociais pressupõe uma língua compartilhada.
Mas, esse terreno cultural comum não ocorre na Europa. Nem mesmo podemos
invocar a dominância da língua inglesa, quando consideramos o papel do francês
em questões administrativas ou a importância cada vez maior do espanhol no
mundo globalizado. Não pode haver integração cultural com a ausência do meio,
isto é, de uma língua comum. A europeização da cultura, portanto, transferiu-se
para outros meios de comunicação, como a música, a linguagem pictórica, o
reconhecimento de símbolos por meio dos filmes, da televisão e da publicidade.
Essa forma de criação de significado produz uma cultura comum para além das
culturas separadas por línguas nacionais. E, ainda assim, isso não servirá de
base para a formação de uma identidade européia. Onde coincidem, a cultura
lingüística e as formas simbólicas de comunicação se reforçam reciprocamente. O
exemplo histórico é o do nacionalismo como um movimento cultural que reuniu a
comunidade lingüística e a comunidade simbólica e, assim, foi capaz de criar
claros elementos de distinção em relação ao mundo exterior. Onde não houve
coincidência, a Europa encontrou problemas.
Para evitar esse bloqueio cultural, a integração européia tomou o caminho da
integração econômica. O objetivo foi criar condições para uma efetiva barganha
de interesses.21 Desde Maastricht, o objetivo tem sido encontrar esse espaço
com base em uma identidade "fraca", definida seja em termos políticos, seja em
termos culturais. Contudo - e aqui retomo meu argumento -, a abertura
ao debate sobre identidade "fraca" significou também o retorno às disputas por
identidades fortes.22
A volta das identidades fortes na Europa: uma terceira proposta teórica
Tão logo seja superada a pura barganha de interesses e estes estejam ligados a
formas simbólicas coletivamente compartilhadas, a dupla face da cultura torna-
se visível, provocando dissenso. Esse é finalmente inevitável porque a barganha
de interesses não pode ficar restrita a puros interesses. Ela se mistura com
motivações que têm a ver com a proteção de uma identidade coletiva. Discutirei
dois mecanismos que levaram a mobilizar fortes identidades coletivas na Europa.
O primeiro diz respeito ao Estado de bem-estar social.
A íntima conexão entre idéias e interesses caracteriza a lógica nacionalista
envolvida na defesa do Estado nacional de bem-estar social na Europa. A
experiência de ser um competidor no mercado de direitos sociais conduziu não só
ao fechamento de identidades grupais específicas, mas a uma dinâmica do cultivo
da distância em relação às outras e a sua desvalorização cultural. O Estado
nacional de bem-estar social revela-se uma barreira à integração européia, pois
restabelece o modelo de Estado-nação e, com ele, a busca por uma identidade
coletiva forte o suficiente para proporcionar a solidariedade necessária a um
Estado com tal característica. Isso colide com reivindicações igualmente fortes
de outros tipos de identidade coletiva. Assim, a integração européia estimula o
ressurgimento da questão étnica na esfera nacional.
A segunda revivescência de identidades fortes é uma reação direta à busca de
uma identidade européia fraca. O resultado das tentativas de pensar uma
identidade européia foi - paradoxalmente - o de marcar limites em todos
os níveis, particularmente nos níveis regionais. Redescobrem-se símbolos de
fronteiras regionais e de relações locais; identidades regionais são
revitalizadas e contrapostas a formas de integração nacionais e supranacionais.
A Europa das "comunidades étnicas" constitui uma tentativa de restaurar
fronteiras simbólicas que a memória nacional já esquecera. Mesmo com um século
de "comunismo", a imposição de ideologias destradicionalizantes na Europa do
Leste não teve êxito na produção desse esquecimento. Para além das fronteiras
nacionais, são redescobertas novas fronteiras simbólicas contra o "outro": a
defesa do Oeste, o Ocidente, a Cristandade. O dissenso é provocado pela
alteridade, por um consenso cultural concorrente que, no caso mais acentuado,
deve ser explicado por diferenças religiosas, no mais superficial, por
diferenças estéticas, e no mais usual, por diferenças sociais.
O novo etnonacionalismo, surgido especialmente nos países do Leste europeu, não
permite mais distinguir entre diferenças primordiais e artificiais. Esse
sentimento re-mobiliza velhas marcas e projeta novas fronteiras simbólicas.
Renascem "antigos" significados, nos quais o "antigo" é repensado e enriquecido
com novos atributos. O "antigo" é apenas um meio para a alegação de uma
comunalidade, um gatilho para a barganha coletiva que, no curso de sua
realização, se dissocia daquilo que a desencadeou. Nesse processo, os símbolos
da comunalidade original são ulteriormente transformados, a ponto de perderem a
conexão com o mundo real. Tornam-se mera construção social. O regionalismo, que
surgiu em algumas sociedades do Ocidente europeu, apresenta um padrão similar:
sua referência a lealdades primordiais é cada vez mais uma construção de
difícil sustentação contra o esquecimento institucional.
Dessa forma, passa a ser contestável a expectativa de uma teoria de
modernização que presume a convergência do particular para o universal no
desenvolvimento da sociedade moderna. Tornou-se obsoleta até mesmo a variante
crítica que viu no colonialismo e no imperialismo os elementos destrutivos da
diversidade cultural. O particular prevalece sobre esse poder destrutivo e, ao
mesmo tempo, destrói o culturalmente outro. A perspectiva otimista do
Iluminismo com relação à idéia de racionalidade, exercida na intercomunicação
dos indivíduos livres e iguais, é demolida pela experiência do fechamento da
comunicação, da exclusão por meio da comunicação e da redução desta a formas
interativas empobrecidas. O apoio intelectual para isso é fornecido pela ênfase
na diversidade cultural e seu uso como um argumento contra o universalismo.
Contudo, a integração européia prossegue. Apesar da divisão da Europa em
unidades culturais com identidades particulares, observa-se o aumento da
interação baseada em interesses. O estágio atual do desenvolvimento da
integração européia caracteriza-se por uma situação paradoxal: heterogeneidade
cultural e, ao mesmo tempo, homogeneidade baseada em interesses.
Qual é a solução buscada para esse paradoxo? Primeiramente, tentou-se construir
um contexto para coordenar interesses econômicos; em seguida, a busca voltou-se
para a formação de uma identidade européia. A primeira resposta não é
suficiente, uma vez que interesses necessitam restrições legítimas, isto é,
restrições aceitas por todos. A segunda pode ser considerada até mesmo perigosa
porque, por trás da ilusão harmonizadora da existência de laços culturais na
Europa, oculta-se a lógica perversa das construções identitárias fortes.23
Discussão em torno de uma proposta alternativa
Haveria uma forma de integração social situada entre a barganha de interesses e
o consenso cultural, entre a ruptura da comunicação e o ideal de uma harmonia
comunicativa, uma forma de integração social que não se baseasse apenas no
benefício recíproco, tampouco na necessidade de valores compartilhados? Essas
questões estão subjacentes à idéia de que a elaboração de uma constituição pode
ser um projeto gerador de identidade (esta é a idéia do patriotismo
constitucional24). Se assim fosse, teríamos um caso de identidade coletiva
fraca. Mas, para isso, será preciso não só que se forme essa espécie de
identidade constitucional, mas também que ela crie vínculos fracos entre os
povos europeus. Com isso, talvez pudéssemos responder se o demos, que era
uniforme e homogêneo no contexto do Estado-nação, seria substituído por uma
pluralidade de demoi, que compartilhasse a crença em uma constituição para a
regulamentação da vida conjunta. Nesse caso, teríamos muitos demoi
compartilhando tão-somente a idéia daquilo que torna um povo um demos. O que os
uniria seria uma narrativa antiga e particularmente "fraca": a narrativa da
cidadania como tal.25
Conclusão
Para concluir, algumas considerações sobre os problemas levantados no curso
desta argumentação. Discutimos primeiramente o paradoxo contido na idéia do
Estado nacional que se desencanta ao tornar-se um ator coletivo racional, um
grupo de interesse em escala global, e, ao mesmo tempo, se re-encanta com a
pluralização de reivindicações de identidades coletivas em seu interior, opondo
identidades nacionais a outras identidades, o que o transforma em cenário de
formas mais ou menos violentas de mobilização de identidades.
Analisamos também os riscos relacionados à evolução dos acontecimentos que
giram em torno dessa transformação do Estado nacional. Quando os sentimentos
nacionais são postos contra outros sentimentos coletivos, o Estado nacional
certamente se enfraquece ainda mais, uma vez que deve assumir o arriscado papel
de garantir um espaço onde a identidade nacional possa se defrontar com outras
reivindicações de identidade. Há muitas identidades coletivas convivendo no
Estado, as quais, no curso de seu re-encantamento, entrarão na espiral viciosa
da mobilização de identidades.
É de fato possível domesticar os sentimentos coletivos? O desencantamento do
Estado nacional conduziu à desconexão entre o modo de pertencer e os
sentimentos de união, entre a filiação ao Estado e a identidade coletiva. Isso
abre caminho a uma concepção diferente de identidade coletiva, qual seja, uma
identidade fraca baseada na filiação e fundada na crença em garantias
constitucionais de direitos (e obrigações) a ela associados. Por conseguinte,
uma identidade que se consubstancia em uma narrativa altamente secular: a
narrativa da própria cidadania. Aí reside a importância do debate sobre a
"cidadania européia", que é uma construção de identidade coletiva fraca.
Por fim, como exemplifica o caso europeu, nem mesmo instituições de tipo
estatal com identidades fracas geram um mundo para além do poder. Mas, nessas
circunstâncias, a formação de identidades para a ação coletiva pode tornar-se
mais fácil e não permanecer atada à lógica perversa da mobilização de
identidades em sentido próprio. A disputa entre detentores de poder e
movimentos que os desafiam é inevitável, mas acredito que se possa evitar becos
sem saída nesse tipo de conflito, como o risco da mobilização de identidades em
sentido próprio que caracterizou a trajetória histórica do Estado-nação.
A Europa, na realidade, é mais uma vez um laboratório histórico onde os
paradoxos são abundantes e desafiam a imaginação teórica.
NOTAS
1 A China é um caso em que ainda se mantém a estrutura de um império, cujas
partes, entretanto, não constituem unidades que possam ser consideradas
embriões de Estados nacionais emergentes. Taiwan, por outro lado, mesmo dentro
daquela estrutura, aponta para essa opção.
2 A discussão sobre demos ganhou proeminência no interior do debate sobre a
construção da nova Europa. Para um levantamento sistemático a respeito dessa
questão na Europa, ver Lepsius (1990) e Weiler (1995). Este debate foi mais
desenvolvido em Abromeit (1998) e Abromeit e Schmidt (1999).
3 Essa lógica foi explicitada em diferentes tradições teóricas. Ver,
especialmente, Hardin (1994), para uma explanação racionalista do conflito de
grupo.
4 O processo de construção da nação é um lócus clássico da sociologia
histórica. Ver Kriesi (1999) ou o trabalho clássico de Rokkan (1999).
5 Esse processo de acoplamento foi também instrumentalizado por regimes não
democráticos, com elevados custos e resultados fracassados, como mostram os
casos da Alemanha, da Itália, da Espanha, de Portugal, da Europa do Leste e da
América Latina.
6 A inclusão de trabalhadores, mulheres e minorias étnicas é um dos resultados
do processo de modernização política, dada a resistência dos grupos dominantes
em conceder tais direitos. O debate sobre a cidadania tornou-se um importante
tópico da análise sociológica nos anos recentes. Ver os trabalhos clássicos de
Marshall (1950) e Bendix (1977). Para um maior desenvolvimento a esse respeito,
ver Brubaker (1992), Tilly (1996), Crouch, Eder e Tambini (2001) e Eder e
Giesen (2001). Uma boa visão geral do assunto encontra-se em Kymlicka e Norman
(1995) e Turner (1993).
7 Trata-se de códigos primordiais, que naturalizam as diferenças, códigos
tradicionalistas, que ancoram a identidade na memória do passado, e códigos
universalistas, que ligam a identidade coletiva a uma vocação universal de um
povo. Para esta distinção, ver Eisenstadt e Giesen (1995) e Giesen (1998).
8 Para uma versão sociopsicológica deste argumento, ver Jenkins (1996, 1997).
9 Esta busca racional de interesses foi identificada por North como a causa da
dinâmica particular da sociedade européia desde o século XII (cf. North e
Thomas, 1971; North, 1990).
10 A distinção das identidades como opostas a interesses foi analisada de
maneira particularmente esclarecedora por Pizzorno (1986). As idéias
apresentadas muito devem a essa análise.
11 Não há, em português, um equivalente preciso para appropriateness, que é a
qualidade de ser apropriado (adequado, próprio, conveniente). A expressão
"lógica da appropriateness" tem a ver com a idéia de regras definidoras do que
pode ser considerado apropriado pelos atores envolvidos numa determinada
situação. "Numa metáfora do dever [por oposição a uma metáfora da escolha],
presumimos que os atores [...] associam certas ações com certas situações por
meio de regras de appropriateness. O que é apropriado para uma determinada
pessoa numa situação particular é definido pelo sistema político e pelo sistema
social, e transmitido por meio da socialização" (cf. March e Olsen, 1989, p.
741).
12 A melhor explicação desta noção encontra-se em Giesen (1998).
13 É difícil Ter um domínio completo sobre a profusa literatura a respeito da
União Européia. Sobre seu caráter multi-nível, ver especialmente Kohler-Koch e
Eising (1999).
14 O papel social das narrativas foi enfatizado por Somers em seu trabalho
histórico-sociológico sobre a cidadania na Inglaterra a partir do século XVII
(cf. Somers, 1993, 1995).
15 "Marketização" significa simplesmente que a narrativa tem de competir num
mercado onde as narrativas são ofertadas. Esse mercado deve ser tão mais
esperado quanto os fluxos de comunicação possam cruzar as fronteiras nacionais,
e os meios de comunicação de massa e a educação ofereçam acesso a diversas
espécies de narrativas. Para uma análise desse conceito, ver Crouch, Eder e
Tambini (2001).
16 Comunidades de tipo demos são as que têm seu fundamento na vontade comum.
Comunidades que não possuem demos são as que se baseiam em algo que está fora e
acima da comunidade, em última instância em Deus ou em algo equivalente. Para
uma discussão a esse respeito, ver Abromeit (1998).
17 Ela se funda, aliás, não em Jesus, mas no Espírito Santo!
18 O primeiro indicador desse fato é a intensidade com que a cientologia é
policiada em muitas partes da Europa.
19 É preciso esperar pelo que acontecerá com o império chinês, o último a
sobreviver. Ver conclusão em Eder e Giesen (2001).
20 Para uma exploração dessa tese, ver Eder e Giesen (2001).
21 Isso se reflete no que foi chamado de "teorias de integração", que explicam
a integração européia variando de teorias realistas a teorias funcionalistas.
Apenas recentemente, as teorias normativas ganharam terreno em relação a essas
teorias clássicas. Para uma interessante discussão a esse respeito, ver Lepsius
(2001).
22 Sobre a idéia de "identidades coletivas fracas" como um modelo para uma
identidade européia, ver Eder (2001).
23 Para uma crítica da noção de uma identidade européia em virtude de seus
conteúdos ideológicos, ver Stråth (2002).
24 Essa idéia foi proposta e popularizada por Habermas (1992, 1998), todavia,
recebeu duras críticas tanto de autores que a consideram muito frágil como
cimento para as sociedades, como de outros que a consideram muito forte para
manter coesa uma sociedade pós-tradicional.
25 Tomei de Margaret Somers (1993, 1995) a idéia de considerar a própria
cidadania uma narrativa.