A produção de memória biotecnológica e suas conseqüências culturais
E o rei replicou: "Incomparável mestre em artes, oh Theuth (O tekhnikótatú
Theúth), uma coisa é o homem capaz de trazer à luz a fundação de uma arte,
outra aquele que é capaz de apreciar o que esta arte comporta de prejuízo ou
utilidade para os homens que deverão fazer uso dela. Neste momento, eis que em
tua qualidade de pai dos caracteres da escrita (patér òn grammáton),
atribuíste-lhes, por complacência para com eles, todo o contrário (tounatíon)
de seus verdadeiros efeitos! Pois este conhecimento terá, como resultado,
naqueles que o terão adquirido, tornar suas almas esquecidas uma vez que
cessarão de exercer sua memória [...] Não é, pois, para a memória, mas para a
rememoração que tu descobriste um remédio (oúkoun mnémes, allà hupomnéseos,
phármakon heûres). Quanto à instrução (Sophías dè), é a aparência (dóxan) dela
que ofereces a teus alunos, e não a realidade (alétheian): quando, com efeito,
com tua ajuda, eles transbordarem de conhecimentos sem terem recebido
ensinamento, parecerão bons para julgar muitas coisas, quando, na maior parte
do tempo, estarão privados de todo julgamento; e serão, além disso,
insuportáveis, já que terão a aparência de homens instruídos (doxóphoi) em vez
de serem homens instruídos (anti sophôn)"!
Fedro, 274 e 275b, apud Derrida, 1997, p. 49.
Introdução
Um dos traços políticos distintivos do mundo moderno parece ser a transformação
da vida natural em espaço de exercício de poder. Ao desnudar o corpo de
significados culturais específicos, passando a apreciá-lo segundo critérios de
funcionalidade e operacionalidade, a ciência finda por trazer a vida biológica
para o centro da cena política industrial. Assim, o corpo "para a sensibilidade
moderna parece tão fechado, autárquico e fora do reinado do significado"
(Laqueur, 2001, p. 18). Esta linha de argumento é bem conhecida dos leitores de
Foucault. Sugiro, todavia, a necessidade de se perceber nos desenvolvimentos
recentes da biotecnologia molecular algo qualitativamente diferenciado daquilo
que Foucault chamou biopoder. Embora partindo de uma politização da vida
biológica, da "vida nua", as dinâmicas políticas que se abrem ao capitalismo
contemporâneo já não se definem primordialmente por meio do privilégio à
inteireza do corpo individual ou aos limites entre as espécies. Isso é um dado
de partida importante. Para usar o jargão adequado, o biopoder já não pode ser
plenamente compreendido como "disciplina" nem como "regulamentação". A
inteireza dos corpos, condição de um controle científico de sua plasticidade,
assim como os limites entre as espécies, por meio dos quais a idéia moderna de
higiene pode ser pensada, não parecem mais constituir a base inquestionável dos
processos políticos.
A própria inteireza biológica do humano passa agora a ser um conceito
questionável. Entre os achados do Projeto Genoma Humano temos a estranha
constatação de que, ao longo de milênios, incorporamos em nosso patrimônio
genético seqüências genéticas inteiras de bactérias. Em um sentido mais
estrito: a recombinação genética promovida pela biologia molecular aponta numa
direção que, se não contradiz politicamente a noção de inteireza plástica dos
corpos, não depende tecnicamente desse artifício para transformar o mundo
orgânico. Diferentemente do cenário descrito por Foucault, já não se trata
prioritariamente de tornar os corpos mais potentes, ágeis, eficientes,
disciplinados, mas de construir novos seres a partir de informações
moleculares. Diante das possibilidades que se abrem com a fabricação de órgãos,
tecidos a partir de células-tronco, poucos hoje teriam a ilusão de que a
produção de corpos dóceis seja a essência tecnológica da biologia molecular.
A recombinação genética parece indicar não apenas a fragmentação e a
instrumentalização do mundo natural, mas também a indiferenciação de fronteiras
que antes eram tidas como culturalmente sagradas, tais como aquelas que
delimitam o campo do humano, do corpo animal ou do vegetal (Ferreira e Ventura,
2000). Todo um discurso sociológico acerca do organismo cibernético já adianta
em alguma medida este novo contexto. Algo mais radical do que a idéia de
hibridação está em jogo quando uma seqüência genética humana é utilizada para
promover o crescimento de cobaias ou vegetais em laboratórios. Já não se trata
de pensar o corpo de próteses, a comunicação entre o orgânico e o mecânico. Uma
lógica política diferenciada vem se instaurando quando se passa a conceber a
totalidade da própria natureza como um espaço de transitividade virtualmente
perfeita. Algo novo existe em conceber o mundo natural a partir de um alfabeto
de bases nitrogenadas, ou seja, a partir de instruções moleculares que
expressariam a totalidade da vida tal como a conhecemos ou possamos conhecer.
Entender as regras dessa produção significa aceitar uma linguagem elementar a
partir da qual, em princípio, seria possível a perfeita troca de informações
genéticas entre os seres.
Algumas questões podem sinalizar as dificuldades culturais que esse novo
horizonte tecnológico impõe. Diante do que convencionamos entender como mundo
natural, que status teria um ser cuja memória biológica foi fabricada pela
indústria farmacêutica? Distintamente da definição aristotélica de natureza,
deparamo-nos agora com uma estrutura viva que não tem mais em si o seu
princípio de produção. A natureza já não pode ser pensada como o outro da
cultura. Que novos pressupostos políticos e culturais são forjados com a
abertura deste aparente paradoxo, nomeadamente, a produção de memória?
A memória biológica já não é percebida como elemento por meio do qual a
autoprodução do mundo natural se realiza, mas como dado de partida de uma
produção cujos princípios se situam agora no mundo sociotécnico. A memória
biológica passa a ser pensada a partir da lógica informacional, do
armazenamento de informação em um ou vários bancos de dados interligados. Se
dermos crédito às observações da epígrafe que abre este texto, não seria uma
questão menor considerar o suporte em que uma dada inscrição é registrada para
sua futura recuperação e reprodução. A parábola socrática propõe que haveria
dois caminhos básicos a seguir. O registro de uma informação poderia se
realizar de modo imediato em nossa mente, sem auxílio aparente de qualquer
prótese; ou ainda, alternativamente e em benefício da exatidão e do acúmulo de
informação, poderíamos outorgar essa responsabilidade à escrita. Realizar essa
diferenciação permitiria escolher entre, de um lado, um saber legítimo capaz de
manifestar-se como presença de um logos fundador e, de outro, a aparência de
instrução e sabedoria, o discurso pronto, a citação ostentatória, órfã daquele
logos. A partir desse tipo de abordagem, e da necessidade de submeter memória e
escrita à lógica de recuperação de um momento fundador, a metafísica ocidental
concebeu de modo recorrente a legitimidade de sua verdade. Boa memória seria
aquela que reproduz a verdade, a presença de tal origem. Para Platão, a
sabedoria seria a capacidade de despertar por si só, de modo autônomo, a
memória do verdadeiro e não a capacidade de tirar da manga a letra morta, o
discurso pronto. E isto só seria possível se os limites entre o mundo humano
(ou do logos), técnico e natural pudessem ser preservados.
Certamente a sociedade de informação pode ainda aprender algo com Platão acerca
da relação entre quantidade de informação e sabedoria. Não obstante, uma
peculiaridade chama nossa atenção para esse novo contexto sociotécnico. A ação
técnica promovida pela biotecnologia molecular não se restringe a reproduzir a
memória natural. Pelo contrário, ela almeja criar, produzir um novo mundo vivo.
Sócrates pôde ironizar o discurso pronto, a resposta enrijecida, a traição ao
contexto promovida pela escrita. A escrita biotecnológica, todavia, não é uma
receita, mas a linguagem com a qual incontáveis receitas podem ser escritas. O
mapeamento de um genoma abriria, não a planta da vida, mas a sintaxe da vida.
Aquilo que era considerado um mundo à parte - a memória biológica das
espécies, o mundo não-natural e não-técnico, com sua dinâmica autopoiética
- é agora visto como um texto entre muitos outros passíveis de serem
escritos. A memória natural aqui é interpretada, lida, apenas para ser
reescrita, editada, revista e, eventualmente, esquecida pelo desuso em algum
não-lugar de um banco de dados. Quantos bestsellers, quanta literatura
descartável estaríamos dispostos a publicar e consumir neste novo mercado
editorial? Quantos erros de ortografia, concordância, quanto mau gosto
estilístico estaríamos dispostos a suportar para que surgisse uma "obra-prima"
questionável? Digamos inicialmente o seguinte: o livro da vida de que fala a
biologia molecular não constitui um texto convencional, mas um hipertexto, em
que tudo se conecta, todos os viventes se citam. Por isso mesmo, ele não pode
nos retornar identidades circunscritas, corpos bem delimitados, lugares
simbolicamente delimitados para os viventes. Isso é de fato surpreendente se,
como Bernard Stiegler (1996, p. 16), considerarmos que "todo suplemento é
técnico e toda técnica suplementar é um suporte de memória 'que exterioriza' um
programa". Todo suporte de memória, portanto, "todo arquivo [...] é ao mesmo
tempo instituidor e conservador" (Derrida, 2001, p. 17). Se isso é verdade,
poderíamos afirmar legitimamente que o arquivo biotecnológico procuraria
conservar algo sob a dinâmica da metástase que ele promove. Deveríamos concluir
muito simplesmente que na errância da técnica o logos é uma vez mais afirmado?
Afinal, em todo caso, o conhecimento científico se pretende detentor de uma
chave-mestra com a qual o mundo vivo em sua totalidade seria aberto.
Questões como as relações entre escritura e tecnologia, escritura e memória
(biológica e cultural), escritura e tempo, requerem hoje atenção. Por esse
motivo, é necessário investigar o significado da escrita e da memória, e
especificamente da escrita e da memória biotecnológica, na estruturação das
estratégias políticas postas em curso por meio das técnicas de recombinação
genética. O terreno em que se define esse esforço é conceitual, pois acredito
ser grande a necessidade de se desenvolver mecanismos teóricos para enfrentar
um cenário cultural potencialmente novo.
Escrita e memória
Toda memória mobiliza um suporte e, como tal, é inconcebível sem que percebamos
o quanto é porosa a fronteira entre sua dimensão externa e interna, entre sua
inscrição exterior, em papiro, em livro, obra de arte, objeto e sua inscrição
interna, mental. Os códigos que permitem um ou outro tipo de inscrição são
abertos pela tradição. Aquilo que se nos apresenta como "árvore", "explosão",
"morte", quer o percebamos ou não, já é um retorno; todo presente é um legado
de uma linguagem inequivocamente pública. O exercício de uma memória não
protética, puramente mental, é um absurdo quando consideramos sua formação no
terreno de uma linguagem que é sempre técnica, externa. Nossa memória mais
íntima e privada inscreve-se em nossa consciência com o auxílio dessa dimensão
partilhada e pretérita da vida em sociedade, cujo legado nos abre, mas não
determina o horizonte de nossa finitude.
Isso que parece evidente se torna mais controverso quando passamos a refletir
acerca da relação entre memória e escrita. Para Derrida, a metafísica ocidental
estruturou-se a partir de uma certa depreciação da palavra escrita quando
confrontada com a palavra falada. Enquanto a voz traria sempre de volta a
presença do logos vivo, a palavra escrita recuperaria apenas o fantasma, o
simulacro daquela presença. Segundo esta tradição, a escrita seria órfã de um
logos fundador, o qual nunca estaria verdadeiramente disponível para resgatá-
la, torná-la capaz de responder às demandas específicas do presente. Isto
posto, fica fácil concluir que o domínio da escrita seria marcado por uma
gradação de legitimidade: a escrita alfabética, ao recuperar de modo mais fiel
a fala humana, seria mais civilizada do que a escrita cuneiforme, por exemplo.
O privilégio do alfabeto como suporte mnemotécnico obedece à seguinte lógica:
as palavras faladas seriam os símbolos de "experiências mentais" originárias, e
a escrita, constituída de registros simbólicos secundários em relação à fala. A
voz estaria mais próxima do significado, mais próxima do vivo, de sua presença.
Para Derrida, "o fonocentrismo funde-se com a determinação histórica do sentido
do ser em geral como presença" (1994, p. 12).
Antes da invenção dos meios analógicos e digitais de registro sonoro, o som da
palavra falada sempre foi evidência da presença efetiva, viva daquele que fala.
O privilégio metafísico da palavra falada constrói a ilusão da presença em si
do "quem", do sujeito autônomo, como se esse "quem" pudesse esquecer seus
múltiplos vínculos com o domínio do "que", isto é, o mundo técnico e social
(Stiegler, 1996). Segundo esta lógica, ser é estar presente. Mesmo nos casos em
que parece não ser retratada como prótese imperfeita e órfã, a escrita não
deixa de ser pensada segundo aqueles critérios que definiram uma apreciação
antropocêntrica da técnica, ou seja, a escrita seria sempre mediação,
instrumento de um logos autônomo e prioritário. Em alguns casos "escrever num
sentido metafórico, a escrita natural, divina e viva, é venerada; ela se
equipara em dignidade à origem do valor, à voz da consciência como lei divina,
ao coração, ao sentimento, e assim por diante" (Derrida, 1994, p. 17) Em todo
caso, a qualidade da escrita está sempre associada à sua capacidade de repetir,
rememorar uma instância originária.
A escrita, no entanto, não é apenas um instrumento hipomnésico do logos, de um
ser humano autônomo e pensante capaz de mobilizar seus instrumentos, mas a
evidência de que esse logos só estrutura a si e ao seu pensar a partir do
suplemento técnico. A publicidade da inscrição abre a possibilidade da memória.
Por isso mesmo, aquilo que dispomos como escrita, seus possíveis lugares de
inscrição, suas formas de recuperação e estruturação são elementos decisivos
para compreendermos o tipo e o horizonte cultural dentro do qual atuamos e
existimos. Não há, nesse aspecto, contradição entre o que nos diz Derrida e
aquilo que os temores de Platão no fundo revelam.
Evidentemente, interessa-nos aqui analisar um tipo de escrita e de memória
particular, nomeadamente, o tipo em que as próprias "técnicas de arquivamento,
impressão, de inscrição e reprodução, de formalização, de codificação e de
tradução de marcas" são objetos de racionalização (Derrida, 2001, p. 26). Em
outras palavras, interessa-nos a escrita e a memória tecnocientífica, com seu
campo de validade, com autoridades habilitadas para emitir juízos acerca do que
pertence legitimamente ao seu campo e o que deve ficar fora. Esse tipo de
memória configura o que Jacques Derrida chama de arquivo científico. Se
estivermos certos em relação à suposição básica deste texto - a de que um
horizonte técnico não é apenas um meio passível de ser mobilizado por um logos
autônomo, mas oferece a própria possibilidade que o ser humano tem de ter
acesso ao seu mundo -, entender os princípios que orientam e estruturam
esse arquivamento é um investimento importante. O que poderia ser dito acerca
do princípio que define politicamente inscrição, impressão e repetição nesse
processo de arquivamento, ou seja, que define a memória científica? Em primeiro
lugar, que "o arquivamento tanto produz quanto registra o evento" (Idem, p.
29). Em segundo lugar, e mais importante:
Não esqueçamos jamais esta distinção grega entre mneme ou anamnesis,
por um lado, e hupómnema, por outro. O arquivo é hipomnésico. E
notemos de passagem um paradoxo decisivo [...]: se não há arquivo sem
consignação em algum lugar exterior que assegure a possibilidade da
memorização, da repetição, da reprodução ou da reimpressão, então
lembremo-nos também que a própria repetição, a lógica da repetição, e
até mesmo a compulsão à repetição, é, segundo Freud, indissociável da
pulsão de morte. Portanto da destruição. Conseqüência: diretamente
naquilo que permite e condiciona o arquivamento só encontraremos
aquilo que expõe à destruição, introduzindo a priori o esquecimento e
a arquiviolítica no coração do monumento. No próprio "saber de cor".
O arquivo trabalha a priori contra si mesmo (Idem, pp. 22-23).
Muito é dito nesta passagem. Para os propósitos da reflexão que estou propondo
neste texto, entretanto, cabe tentar recuperar precisamente o princípio ao
mesmo tempo instaurador e conservador que define o "arquivo" biotecnológico. De
acordo com Derrida, o "princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de
consignação, isto é, de reunião" (Idem, p. 14). O "princípio de consignação" da
escrita biotecnológica contemporânea, ou seja, aquilo que permite reunir,
agrupar e hierarquizar esta forma de produção tecnocientífica, é, a meu ver,
dado pelo pensar matemático. Se isto está certo, é necessário mostrar como a
definição deste arquivo e da lógica matemática que o legitima induz ao
esquecimento de sua violência instauradora e o modo pelo qual este esquecimento
constitui uma força arquiviolítica.
A importância da matemática no desenvolvimento do raciocínio científico moderno
constitui um tema abundantemente explorado. Qual seria, por exemplo, o
fundamento da crítica bergsoniana ao pensamento de Kant senão a reprovação de
que a filosofia pudesse aceitar de modo irrefletido a matemática como base do
conhecimento científico? Em seu ensaio "A filosofia e a crise do homem
europeu", Husserl (1965) já não nos fala da idealização matemática como
fundamento da ciência moderna? Sob a influência dessa observação, Adorno e
Horkheimer escreverão no final da Segunda Guerra Mundial:
Quando, no procedimento matemático, o desconhecido se torna incógnita
de uma equação, ele se vê caracterizado por isso mesmo como algo de
há muito conhecido, antes mesmo que se introduza seu valor. A
natureza é, antes e depois da teoria quântica, o que deve ser
apreendido matematicamente. Até aquilo que não se deixa compreender,
a indissolubilidade e a irracionalidade, é cercado por teoremas
matemáticos (1985, p. 37).
Antes mesmo dos recentes desenvolvimentos nas ciências biológicas, não pode
causar estranheza que a ciência tenha passado a perceber a vida de modo
matemático. Há, todavia, algo historicamente específico em afirmar a matemática
como princípio arcôntico da biologia molecular. Primeiro, o grande impulso
obtido por essa área de conhecimento a partir da década de 1950 deve-se, sem
dúvida, à incorporação da matemática à sua estratégia de pesquisa. O exemplo
óbvio e bem conhecido é o fato de a estrutura helicoidal do DNA só ter sido
descoberta por Watson e Crick graças ao auxílio da matemática. Segundo, o
próprio fato de a dinâmica natural passar a ser pensada como informacional, ou
seja, a influência da cibernética no tratamento de assuntos da biologia,
demandou esse tipo de tratamento.
A importância da matemática na estruturação das ciências da natureza constitui
o dado de partida a partir do qual poderemos chegar a um tipo de percepção que
nos toca mais diretamente, ou seja, a natureza como expressão de um programa
informacional. Observemos o que Derrida tem a dizer acerca da escrita
matemática:
Dentro das culturas praticantes da chamada escrita fonética, a
matemática não é apenas um enclave. Isso é mencionado por todos os
historiadores da escrita; eles lembram ao mesmo tempo as imperfeições
da escrita alfabética, que por muito tempo passou como a escrita mais
conveniente e "inteligente". Esse enclave também é o lugar onde a
prática da linguagem científica desafia intrinsecamente e com uma
profundidade cada vez maior o ideal da escrita fonética e toda a sua
metafísica (a própria metafísica) (1994, p. 10).
Esse desafio reside no fato de que a escrita matemática não derivaria sua
importância do grau de fidedignidade com o qual recupera a palavra falada; sua
relação com o logos é qualitativamente diferenciada da escrita fonocêntrica,
pois não requer sequer uma articulação segundo a lógica linear de uma
narrativa. Em compensação, essa relação, em princípio, radicalizaria o projeto
logocêntrico em seu afã instrumentalizador porque por meio da escrita
matemática tem-se a sensação de poder mobilizar a totalidade dos objetos
possíveis. Mas o que é de fato a escrita matemática?
A escrita matemática
É bem conhecida a influência da física newtoniana no surgimento de uma
estratégia científica que procura conhecer as leis da natureza a partir de sua
expressão matemática. Depois de Newton, abre-se a perspectiva de que o mundo
biológico esteja submetido às mesmas leis mecânicas que explicam o movimento
dos astros. Compartilhando dessa visão, por exemplo, Descartes escreve no
Formation de l'animal:
Se se conhecesse bem todas as partes da semente de uma espécie animal
em particular, por exemplo do homem, seria possível deduzir, por
razões certas e matemáticas, a forma e a conformação de cada um de
seus membros (apud Jacob, 1983, p. 61).
Bem visionárias foram essas palavras. Mais acima, considerávamos, a partir de
Derrida, que um traço do arquivo científico seria um certo "saber de cor",
conhecer de antemão aquilo que se nos apresenta. Esse traço tão caro ao
arquivo, aquilo que lhe permite acumular, ser veloz e eficiente, era
considerado por ele, paradoxalmente, uma força de autodestruição subjacente à
configuração do próprio arquivo: "naquilo que permite e condiciona o
arquivamento só encontraremos aquilo que expõe à destruição, introduzindo a
priori o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento" (Derrida,
2001, p. 23). Essa linha de argumentação ajuda-nos a entender aquilo que
Heidegger define como a essência da matemática. Para ele, antes de ser algo
numérico, essa essência é dada por um conhecer as coisas de antemão:
A mathmata são as coisas na
medida em que delas tomamos conhecimento como aquilo que já sabemos
antecipadamente, o corpo como corpóreo, o caracteristicamente-planta
da planta, o animalesco do animal, o caracteristicamente-coisa da
coisa, e assim por diante (Heidegger, 1996, p. 275).
Mais adiante, ele observa:
Assim, nós não a derivamos das coisas, mas, de certo modo, nós já a
trazemos conosco. A partir disso podemos agora entender por que, por
exemplo, o número é algo matemático. Nós vemos três cadeiras e
dizemos que há três. O quê "três" é as três cadeiras não nos dizem,
nem três maçãs, três gatos, nenhum outro três coisas. Antes, nós
podemos contar três coisas se já soubermos "três" (Idem, p. 276).
Heidegger não aceitava que a diferença básica entre ciência moderna e pré-
moderna pudesse ser radicada em diferentes apreciações acerca da importância do
experimento na consolidação de um conhecimento sistemático. Trata-se antes da
medida de penetração do matemático num e noutro contexto. Enquanto para a
física moderna a natureza se encontra completamente unificada por esta forma
antecipadora de conhecimento, para Aristóteles e toda a astronomia medieval
cada corpo se esforçaria para assumir seu lugar no universo. "Em volta da terra
está a água, em volta disto, o ar, e em volta disto, fogo - os quatro
elementos. Quando um corpo se movimenta para um lugar, esse movimento concorda
com sua natureza" (Idem, p. 284). Assim, "o tipo de movimento do corpo e sua
relação com o seu lugar dependem da natureza do corpo" (Idem, p. 285). Se
compararmos essa concepção com o princípio da gravitação universal dos corpos,
perceberemos algo de especial sendo produzido pela "matematização" da natureza
na física newtoniana: o natural se tornando uno.
Todo corpo natural é essencialmente do mesmo tipo. [...] O próprio
conceito de lugar mudou: o lugar não é mais onde o corpo pertence de
acordo com sua natureza, mas uma posição em relação a outras posições
(Idem., p. 286)
Não apenas a física newtoniana já não procura explicar o movimento natural pela
essência dos corpos, mas também sua compreensão de lugar a leva a entender esse
movimento em termos de posições relativas.
Assim, a determinação do movimento desenvolve-se por algo que diz
respeito a distâncias, extensões do mensurável [...]. O movimento é
determinado como a quantidade de movimento e, de modo análogo, a
massa é determinada como peso (Idem, pp. 287-288).
Esse princípio fundamenta o comércio absoluto entre as coisas, a possibilidade
de substituição e transitividade perfeitas entre os viventes: o movimento só
pode ser pensado em termos de posições relativas, provisórias e não-essenciais.
O matemático é baseado em uma tal reivindicação, isto é, a aplicação
de uma determinação da coisa que não é derivada experimentalmente da
coisa e, no entanto, situa-se na base de cada determinação das
coisas, possibilitando-as e abrindo espaço para elas (Idem, p. 289).
Heidegger desenvolve aqui o que Husserl já havia dito acerca da idealização da
realidade pela matemática. O projeto matemático, então, "salta sobre as
coisas", determinando-as, prefigurando-as antes de as conhecer, "deduzindo-as",
como diria Descartes. E, posto que esse projeto estabelece a "uniformidade de
todos os corpos", ele passa a requerer uma medida universal, uniforme, ou seja,
requer a medida numérica. Partindo dessa constatação, é possível dizer, com
Merleau-Ponty, que as descobertas científicas que caracterizam o mundo moderno
foram resultados desse desenvolvimento radical da idéia matemática de natureza.
Assim, foi uma concepção qualitativa do mundo que impediu Kepler de
admitir a lei da gravitação universal. Faltou-lhe substituir a
Natureza dividida em regiões qualitativamente distintas por uma
Natureza em que o Ser é homogêneo em toda parte e sempre (Merleau-
Ponty, 2000, p. 10).
A descoberta do cálculo infinitesimal e diferencial é o resultado mais ou menos
óbvio de uma nova axiomática, em que a natureza passa a se situar num espaço-
tempo uniforme e cuja tarefa primeira será a de buscar princípios, chaves que
abram a lógica interna desse arquivo unificado. Há assim uma relação estreita
entre a matemática e o caráter totalizador que assume a razão científica
moderna.
A busca pela origem do mundo fenomênico, tema sobre o qual o logos buscou
tradicionalmente sua legitimação, é o eixo central em torno do qual se poderá
pensar acerca da influência da matemática na ciência moderna. O significado do
que seja origem nesse contexto só pode ser desvelado dentro deste mundo criado,
causado, que é o judaico-cristão. A percepção de uma oposição causal entre uma
natureza desdobrada em um naturante e um naturado (uma causa e um efeito) é o
caminho pelo qual a ciência moderna procurará no conjunto das evidências
sensíveis princípios primeiros. "O sentido refugia-se no naturante; o naturado
torna-se produto, pura exterioridade" (Merleau-Ponty, 2000, p. 10). Do mesmo
modo que um dia o pensamento ocidental procurou um ser causador de todo o real,
procurará agora o mecanismo irrevogável e inapelável que determina o
funcionamento da natureza em sua totalidade, ou seja, procurará a lei. Esta
nova prioridade, que impele o projeto matemático em direção às suas
conseqüências mais radicais, determina em Descartes os limites dos quais a ação
do próprio Deus Criador não poderia deixar de respeitar: "mesmo que Deus
houvesse criado muitos mundos, não poderia haver nenhum onde elas [as leis da
natureza] deixassem de ser observadas" (apud Merleau-Ponty, 2000, p. 12)
A natureza é um grande relógio, um grande mecanismo, cujo funcionamento pode
ser categoricamente reconstituído por meio da matemática. De Descartes até o
pensamento cibernético, é precisamente o prefigurar matemático, seu caráter
abstrato, causal e universalista, que fundará a compreensão mecanicista do
mundo natural. Para Descartes, cada ser vivo como tal, em seu funcionamento
natural, não passava de um autômato. Radicalizando este tom, até o ponto em que
se possa pensar o próprio cérebro como máquina de pensamento, W. Ross Ashby
afirmará:
Todo movimento corporal pode ser especificado por coordenadas. Todo
movimento conjugado pode ser especificado por ângulos. Tensões
musculares podem ser especificadas por sua tração em dynes.
Movimentos musculares podem ser especificados por coordenadas
baseadas na estrutura óssea ou em algum ponto externo e fixo, podendo
assim ser registrados numericamente (1960, p. 30).
Algo diferencia a especificação do pensamento matemático numa biologia de base
mecanicista, que se impõe no capitalismo industrial, e a biologia molecular, de
base informacional, cibernética. Esta é a diferença entre esquadrinhar e
maximizar a potência de um corpo já existente e conceber o próprio corpo como
atualização contingente de uma matriz informacional. No primeiro caso, o corpo
individual, ou o corpo da espécie, é um dado de partida; trata-se de conhecer
seu funcionamento mecânico para discipliná-lo, potencializá-lo. No segundo
caso, a informação molecular, o gene, é o dado de partida, e a unidade do corpo
é apenas uma contingência. A especificidade das técnicas de recombinação
genética diz respeito ao status da memória. A característica central desse
processo é a produção de memória biológica e não mais a suplementação técnica
dessa memória através de próteses, ou a seleção artificial e limitada de
determinados padrões genéticos produzidos pelas espécies.
Escrevendo a vida
Quando refletimos acerca do significado de conceber a vida como expressão da
informação somos remetidos necessariamente para um campo de conhecimento
bastante específico. Digamos, pois, algo sobre esta forma consumada do
pensamento científico moderno - a cibernética. Seu problema central é
garantir a comunicação entre elementos instrumentais e humanos mobilizados na
consecução de uma tarefa qualquer. Essa comunicação articularia uma compreensão
de linguagem e escrita que não circunscreve uma comunidade de humanos.
Consideramos habitualmente a comunicação e a linguagem como dirigidas
de pessoa a pessoa. No entanto, é muito possível a uma pessoa falar
com uma máquina, e a uma máquina falar com uma pessoa ou outra
máquina (Wiener, 1954, p. 75).
Como ciência da comunicação, a cibernética não pode deixar de pensar a essência
da linguagem: a linguagem é instrumento da ação, da realização de tarefas. É
esta visão antropocêntrica da linguagem que levará a cibernética a negar que
outros animais, exceto o ser humano, possam "construir" uma linguagem -
embora sustentando a existência de uma comunicação entre estes últimos e as
máquinas.
Pode parecer curioso ao leitor admitirmos máquinas ao campo da
linguagem e, no entanto, negarmos quase totalmente linguagem às
formigas. Todavia, ao construir máquinas, é-nos amiúde muito
importante estender até elas certos atributos humanos que não são
encontrados entre os membros inferiores da comunidade animal (Wiener,
1954, p. 76).
O mundo da linguagem é o mundo do agir humano, do esquecimento da morte, da
entropia, na ação eficiente.
Voltemos ao ponto. Para que ela se torne uma executora de tarefas
inequivocamente preestabelecidas, a essência da linguagem é estabelecida de
antemão e, nesse sentido, torna-se matemática: informar para que, mediante um
processo de retroalimentação contínua, o logos possa comandar e controlar a
realização de objetivos. Uma compreensão da linguagem totalmente a serviço do
operar, da instrumentalização de todas as coisas, inclusive da própria vida,
tal é o grande feito da cibernética. Por isso mesmo, esta linguagem já não
determina necessariamente o registro de sons humanos, o eco da palavra falada
ou passível de ser enunciada como sua forma protética mais acabada. Trata-se,
antes, de conceber uma escrita inequívoca. Trata-se de informar para controlar.
Seu compromisso é, pois, antes com a velocidade e efetividade da execução do
que com o pensar. Se em sua definição do que seja linguagem a cibernética pôde
estender até às máquinas "atributos humanos", isto só foi possível porque em
grande medida a comunicação tipicamente humana, a linguagem, foi também
reduzida à ação instrumental. Sob essa perspectiva, não pode causar espanto que
o mundo biológico possa ser compreendido como expressão de um programa (com uma
dada linguagem e uma determinada sintaxe) que, sob vários aspectos, é
paradigmático para as próprias ciências da informação. Não obstante, permanece
o fato de que formigas não possam ser consideradas operadoras de uma
comunicação do tipo lingüístico. A relação entre o logos e o mundo natural
permanece ambígua na cibernética: a linguagem tanto é aquilo que permitirá
dissolver as fronteiras existentes entre o humano, o natural e o técnico, como
deve constituir-se em elemento diferenciador capaz de colocar o humano a salvo
dessa dissolução. E esta é a tensão com a qual viemos lidando: em que medida o
logos ainda pode controlar os princípios arquívicos que a escrita matemática
determina?
Ora, quer do ponto de vista da utilização eficiente de energia, da eliminação
de possíveis erros de transmissão de mensagens, ou da efetividade das ações que
determina, a expressão de instruções genéticas deve ser considerada um processo
de comunicação extremamente sofisticado e bem-sucedido. O DNA instrui o RNA
que, por sua vez, se encarrega de transmitir mensagens que resultarão na
síntese de proteínas necessárias à formação e ao funcionamento do corpo. Na
medida em que a natureza é compreendida como um programa informacional e, por
meio da ação técnica, submetida à lógica da cultura, poderíamos dizer que o
obstáculo que nos impedia de percebê-la como linguagem já não existe. A
natureza já não é o outro da cultura. O mundo biológico e o mundo da cultura
foram reduzidos à dinâmica informacional. Talvez por isso já seja possível para
Nobert Wiener (1954, p. 95), em 1950, dizer algo como: "Não passamos de
remoinhos num rio de água sempre a correr. Não somos material que subsista, mas
padrões que se perpetuam a si próprios" (Wiener, 1954, p. 95). Essa
desmaterialização da vida é um elemento importante da nova dinâmica biopolítica
que se abre com a biologia molecular. Por esse motivo será possível para os
teóricos da sociobiologia considerarem que nada mais somos que naves, barcos
contingentes onde navegam e se perpetuam os genes.
Mas o que exatamente Wiener tem em mente quando diz que a vida humana é um
"padrão que se perpetua"? Ele mesmo nos responde: "Um padrão é uma mensagem e
pode ser transmitido como tal" (Idem, ibidem). Se bem que tendo em mente algo
mais próximo ao terreno da ficção científica, como a possibilidade de
teletransportação, ele já depunha acerca de uma nova concepção de vida; a vida
como atualização de informações escritas nesta língua fundamental:
[...] o fato de não podermos telegrafar, de um lugar para outro, o
padrão de um homem, parece dever-se a dificuldades técnicas, e, em
especial, à dificuldade de manter um organismo em existência durante
tal radical reconstrução. [...] Quanto ao problema da reconstrução
radical do organismo vivo, seria difícil descobrir qualquer
reconstrução dessa espécie que fosse mais radical que a de uma
borboleta durante o seu período de crisálida" (Idem, p. 102).
Quando, a partir de sua influência, a biologia passa a falar de uma linguagem e
uma escritura da vida, a principal dificuldade para o cientista social é
perceber que esse entendimento de língua e escrita, embora ainda enredados em
metafísica de presença, na possibilidade de determinar um logos original que
tudo subordina, age contra a tradição fônica do mundo ocidental e contra aquilo
que essa tradição oferece como sendo a essência do humano. O humano nesse
discurso não se perde em próteses que o reconfiguram, mas em não poder mais
opor o mundo natural ao da cultura. Os programas da vida já não precisam falar
de uma origem e de seu esquecimento. Isso significa, entre outras coisas, que
tal escrita não precisa se estruturar a partir da compreensão temporal
característica das narrativas fonocêntricas: começo, meio e fim.
Desde o começo do século passado percebemos em escritores como Proust a
possibilidade de narrativas não lineares. No campo científico, a narrativa
psicanalítica identificou uma certa imbricação entre passado e presente. A
intervenção psicanalítica procura restabelecer a possibilidade de uma narrativa
ao dissolver os nós que fazem do presente repetição patológica do passado e não
um momento de abertura para o novo, para o futuro. A lógica cibernética desfaz
a narrativa linear da escrita fônica de um outro modo. A consecução de um
futuro determinado, modificar a memória genética de uma árvore em vias de
extinção de modo a torná-la resistente a pragas, por exemplo, orienta a
recuperação do passado. O futuro determinado corrige o presente e o passado.
Ocorre-me o caso tão divulgado pela mídia de uma mulher norte-americana que
decidiu engravidar por meio de fertilização in vitro, utilizando para isso o
esperma de seu marido armazenado num banco de sêmen. O marido, no entanto,
estava morto. Alguns poderão argumentar que esse exemplo, como tantos outros do
mesmo gênero - gestações mantidas mesmo após a morte clínica da mãe
biológica - não pertencem a rigor ao horizonte da biologia molecular. Chamo
a atenção, todavia, para a idéia de arquivamento, do ato de pôr em reserva,
como um dado importante deste horizonte técnico-cultural. O passado já não nos
comove, com sua reivindicação de constituir uma instância originária e
pretérita, uma chave para a leitura do presente - chave que em seu não-
mais-ser demanda a fidelidade da memória. A linearidade da escrita anterior ao
hipertexto e a experiência cultural de um tempo linear parecem se harmonizar
perfeitamente. Mas, eis que estamos diante de um horizonte tecnológico em que o
passado pode ser trazido de volta, e isso não apenas virtualmente como
rememoração, mas de fato atualizado como contemporâneo do presente. Um exemplo
ilustrativo pode ser encontrado no bioterrorismo. Em 1979, a vacinação
antivaríola foi abandonada por um motivo simples, a doença foi considerada
extinta. Após o atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, as
agências de segurança nacionais passaram a temer que a varíola pudesse retornar
deixando em descoberto uma grande parte da população do globo para a qual um
eventual processo de imunização seria agora ineficaz. Bactérias causadoras da
varíola, peste, botulismo, antraz ressurgem para testar a capacidade de
convivência de pelo menos três temporalidades distintas: um presente de
perplexidade diante de uma arma de efeito retardado, um passado preservado em
laboratório e uma eventual, futura, modificação genética destas bactérias que
as tornem mais letais do que já o são hoje. Outro exemplo. Um dos principais
problemas que a clonagem terapêutica hoje enfrenta é de ordem ética: deveríamos
tratar fetos humanos de três a seis dias como se fossem simplesmente meios para
a produção de tecidos ou órgãos? Uma das maneiras de evitar esse tipo de
dificuldade seria dada pela perspectiva de reprogramar células adultas de modo
que elas possam ser reconduzidas à sua forma embrionária, como mostra artigo de
Steve Connor, publicado no jornal inglês Independent, de 17 de agosto de 2000.
O passado está arquivado e disponível - coisa surpreendente se
considerarmos que o acesso à nossa própria finitude, mortalidade, acesso ao
nosso ser-para-a-morte, sempre nos foi tradicionalmente dado na imagem do
irremediavelmente pretérito. Na escrita, como na foto de nossos avós, a
evidência de nossa mortalidade, a evidência de um mundo que continua,
independentemente de nossa presença. O fato de a memória biológica arquivada,
seus genomas e proteomas, não estar comprometida com a reprodução do mundo
natural tal como ele nos foi legado desfaz em grande medida o conforto e a
segurança de uma compreensão linear da história da vida. A ovelha Dolly,
primeiro mamífero clonado, envelheceu mais rapidamente que sua própria "mãe".
Podemos ainda falar de papéis centrados numa lógica de origens, como "pai" e
"mãe", diante deste fato irrefutável: Dolly foi menos uma cria que um
desenvolvimento celular de sua suposta "mãe"? Dolly foi a possibilidade do
presente visitar um futuro possível, assim como a possibilidade do futuro
desenvolver-se como algo pretérito. Se no filme Intervista, Fellini, Marcello
Mastroianni e Anita Ekberg visitam o seu passado e constatam sua mortalidade
(Stiegler, 1996), no envelhecimento precoce da ovelha Dolly, o presente tem a
possibilidade de visitar seu futuro biológico, e este futuro teria a
oportunidade de reconhecer o passado como algo que lhe sobreviverá.
A perspectiva de produção de memória biológica requer uma compreensão
matemática da natureza por um motivo simples: primeiro, ela pressupõe a
perfeita transitividade entre os viventes. Agora percebemos que essa
transitividade se opera também num campo temporal. Da linearidade das
narrativas de progresso do capitalismo industrial passamos ao tempo matricial
dos fluxos de informação. Apenas uma natureza unificada pode ser objeto de uma
ação tecnológica capaz de reunir traços genéticos de seres aparentemente tão
distantes quanto algas e macacos.
Como entender o espanto que organismos geneticamente modificados, como a Dolly,
tendem a suscitar? Creio que essa surpresa decorre do fato de ainda nos
localizarmos dentro de um horizonte cultural no qual a inteireza dos corpos,
sua materialidade e a possibilidade de delimitação visual clara, ainda
constitui um fator orientador para o modo de produção capitalista. Entre os
séculos XVII e XIX, o capitalismo pôde conceber o corpo escravo como um
instrumento produtivo e de reprodução. Apenas dentro deste novo horizonte
técnico-cultural, entretanto, a vida pode ser pensada, de modo genérico, como
produto. A escritura matemática da biologia molecular, assim, propõe novas
formas de enunciar nossa relação com a vida. Em um artigo de 1º de novembro de
2001, lia-se na Folha de São Paulo o seguinte título de matéria: "USP lança
animal transgênico no Brasil". A partir de quais pressupostos podemos pensar no
"lançamento" (comercial ou não) de um animal? Mais adiante, no corpo da
matéria, lemos: "Christian, camundongo que nasceu em julho, foi fruto do
trabalho de três anos do grupo coordenado pela pesquisadora Lygia Veiga
Pereira".
Para a biologia molecular a inteireza corpórea dos seres é apenas um espaço
onde a informação genética se torna passível de arquivamento e modificação. Um
exemplo contundente dessa forma de pensar a vida pode ser percebido na atitude
que, para muitos, orienta iniciativas científicas como o Projeto da Diversidade
do Genoma Humano. Capitaneado pelo professor Luigi Luca Cavalli-Sforza,
geneticista da Universidade de Stanford na Califórnia, este projeto tem por fim
seqüenciar e arquivar o genoma de grupos étnicos com patrimônio genético raro
- patrimônio hoje ameaçado por constantes movimentos migratórios. Muitos
desses grupos resistiram ao projeto com base num argumento simples: o único
interesse do PDGH era o de arquivar, preservar um patrimônio genético
potencialmente lucrativo, pouca importância sendo atribuída à questão premente
da preservação, sobrevivência, concreta desses grupos. A biologia molecular
percebe o corpo da mesma forma que o pensamento neoliberal percebe o
funcionamento das economias nacionais. Embora tanto o corpo como a nação possam
continuar existindo, o poder que sobre eles se instaura num e noutro caso é
impessoal, descorporificado (disembodied) e, na medida em que o princípio de
seu modus operandi é o livre fluxo entre fronteiras, esse poder tem pretensões
totais.
A tecnociência hoje trabalha para detectar uma origem não viva da vida, a
instrução já escrita capaz de produzir o vivente. Uma escrita e uma memória não
originariamente humanas, uma escrita "a serviço" da feitura da vida, inclusive
da vida humana. Ao menos duas possibilidades técnicas se apresentam nesse
contexto. O pensamento antropocêntrico parece se fortalecer quando nos é
oferecida como alternativa inevitável a apropriação instrumental desta escrita,
que já não pode mais ser compreendida apenas como mnemotécnica da cultura.
Independentemente do fato de hoje nos percebermos como partes integrantes da
escritura de uma vida terrestre, "lançamos" animais transgênicos, como
lançaríamos uma nova marca de roupa íntima - afinal, para alguns, produzir
alimentos geneticamente modificados é apenas mais uma opção comercial.
Produzimos a vida e a vida nos escapa. Escapa em conseqüências não previsíveis
da ação técnica. Escapa porque a vida, reduzida a uma operação, fica esvaziada
de significado. Uma tal reinstauração do pensamento antropocêntrico, todavia,
radicaliza uma ambigüidade profunda do pensamento ocidental - tenhamos
sempre em mente que a matéria e os instrumentos sobre o qual o logos
supostamente se debruça são errantes. Como realizar uma apropriação
logocêntrica, instrumental, das instruções responsáveis, entre outras coisas,
por nossa "configuração vital" quando percebemos, de partida, que o texto da
vida é um hipertexto?
O hipertexto, mais que nenhum outro tipo de escrita, é errância e vocação para
o mundo. Por isso, a estrutura mnemotécnica da escrita da vida, sua
hipertextualidade, já não pode oferecer a originariedade, a força do pai como
força legitimadora do logos, nem o tipo de narrativa a ele associado. A força
arquívica deste logos, da digitalização da vida que ele promove, reside na sua
ambição de tudo incluir - o que significa dizer que em sua dinâmica
totalizante ele se estrutura como pulsão de destruição do próprio arquivo.1
Vem-me à lembrança o estranho caso de "Funes, o memorioso" que, por ter
desenvolvido a prodigiosa capacidade de tudo arquivar em sua memória, vê-se
privado da possibilidade epistemológica e política de verdadeiramente conhecer.
Seria uma pena, todavia, concluir este artigo em termos tão neokantianos, ou
seja, sugerindo que apenas por estarmos largados na coisa em si do universo ou
dos arquivos biotecnológicos, teríamos perdido a capacidade de ativamente
conhecer e de definir, ou ter acesso a, princípios políticos claros de
arquivamento. Em vez disso, concluiríamos elaborando duas questões acerca das
inquietações políticas que resultam desse contexto de transformações profundas:
deveríamos, diante de tudo que foi exposto, tomar como ponto de partida a
possibilidade de redefinir um lugar, garantias mínimas, em meio ao não-lugar
dos arquivos da vida ou aceitar como inevitável a sua dinâmica errante como um
ponto de partida para nossos esforços políticos? E, assim, estamos de volta a
Platão. O problema para o cientista social é tentar entender um princípio de
arquivamento que não mais depende da idéia de origem e perceber que, embora não
se oriente por meio de uma lógica fundacionalista, pois o matemático não
necessita desta centralidade para operar, a nova realidade tecnocientífica
ainda promove o logos. Mas hoje esse logos é condição de enunciação exatamente
do quê, se aceitarmos que ele já não pode mais enunciar de modo coerente a
presença?
NOTAS
1 A força totalizadora do arquivo biotecnológico talvez possa ser ilustrada
pela dificuldade de se lhe fazer oposição em bases racionais. "Houve na França
experiências com milho que foram objeto de cólera de certos ecologistas suíços
e alemães; parece que foram destruir essas experiências de Colmar, mas que
aniquilaram no local recursos raros cuja proteção eles geralmente preconizam...
Considerando que nada estava rotulado, eles se enganaram. Na verdade, entende-
se ao mesmo tempo mal e bem esse ecoterrorismo: mal, porque as experiências
feitas até agora ainda não foram nocivas; bem, porque se essas pessoas querem
lutar contra riscos biotecnológicos, duvido que lhes dêem meios de fazê-lo com
inteligência" (Marie Angèle-Hermitte em entrevista a Ruth Scheps, 1996, pp. 87-
88).