Partidos, eleições e democracia no Brasil pós-1985
Introdução
É consenso que partidos políticos e eleições são componentes necessários de um
regime democrático. Eleições livres e justas, nas quais os partidos competem
por cargos públicos, são um critério crucial para identificar se um sistema
político é uma democracia. No entanto, se a presença efetiva de partidos e
eleições é reveladora de um regime democrático, somente a existência continuada
de um situação democrática é que torna possível a consolidação de tais
instituições. Embora evidente, essa observação é relevante no que diz respeito
à experiência política brasileira, uma vez que o regime militar-autoritário '
que se estendeu de 1964 a 1985 ' não aboliu nem os partidos nem as eleições.
Certamente, sob um regime que impõe fortes restrições à participação política,
esse fato não é indicativo do funcionamento efetivo desses mecanismos de
representação, da mesma forma que a presença de partidos políticos e de
eleições em um regime pós-autoritário, por si só, não garante a democratização
desse regime.
Este artigo pretende discutir a relação entre partidos, eleições e democracia
no contexto brasileiro atual. Para isso, a principal preocupação que nos move é
saber em que medida o contexto democrático em vigor desde 1985 tem contribuído
para a consolidação dos partidos, do sistema partidário e, conseqüentemente, da
democracia no Brasil. Assim, a fim de estabelecer os parâmetros deste estudo,
esclarecemos na primeira seção a maneira pela qual entendemos os termos
"partidos", "eleições" e "democracia". Na segunda, o foco da análise volta-se
para as eleições e seu papel de assegurar as condições mínimas de uma polity
democrática. Na terceira, analisamos a experiência partidária atual, suas
principais características e problemas.
Democracia, eleições e partidos políticos: uma nota conceitual
A exemplo de diversos temas analisados pelas ciências sociais, democracia é um
termo complexo. Muitas obras foram produzidas para discutir seus múltiplos
significados e suas implicações teóricas e empíricas. Não é nossa intenção
enveredar nesse debate, o que implicaria rever uma vasta literatura. Faz-se
necessário, porém, delinear uma definição neste contexto. O significado de
democracia aqui empregado circunscreve-se a seu aspecto procedimental, conforme
conceptualização elaborada por Schumpeter,1 o qual prioriza a capacidade
analítica e empírica do conceito de identificar, no sistema político, um método
específico de organização, baseado em regras e procedimentos que garantem a
escolha de líderes por meio da competição política e da livre participação
popular. Em outras palavras, está-se fazendo referência às duas dimensões de
Dahl de poliarquia ' participação e contestação pública ', cuja efetividade
depende de condições livres para a manifestação e a organização política (Dahl,
1971). A ênfase na dimensão política do conceito de democracia não significa
que estejamos ignorando a dimensão social como parte integrante de um contexto
democrático. Não estamos negando que níveis elevados de desigualdade social
possam se constituir em sério obstáculo para a plena realização da democracia.2
Como apropriadamente observou Dahl, a presença de desigualdades prejudica as
possibilidades de contestação pública não apenas em função do acentuado
desequilíbrio na distribuição de conhecimento e recursos políticos, como também
do eventual surgimento de ressentimentos e frustrações que acabam corroendo a
lealdade da população para com a democracia (Dahl, 1971).
Tomar como parâmetro a definição mais restrita de democracia, permite-nos não
apenas estabelecer, de imediato, a diferença entre um regime democrático e um
não-democrático, como também reconhecer a importância, em países como o Brasil,
dos avanços alcançados no processo de redemocratização, mesmo se limitados à
esfera política. E é no âmbito desse significado de democracia que eleições e
partidos políticos são considerados elementos fundamentais em uma
politydemocrática.
O papel das eleições no sistema político é aqui considerado (1) um elemento
essencial no governo representativo, uma vez que a participação ou, na
terminologia adotada por Dahl, a inclusão política esteja assegurada aos
membros da polity, e (2) um meio pelo qual ganha expressão a correlação de
forças dos diferentes grupos políticos, na medida em que a competição entre
eles, organizados em partidos políticos, esteja garantida (a dimensão de Dahl
de contestação pacífica). Eleições possibilitam não apenas a alternância de
maiorias no poder, mas também a realização de dois requisitos de um governo
representativo. Primeiro, representatividade, ou seja, que o Legislativo dê
expressão à diversidade da polity; e segundo, responsividade, que envolve tanto
a noção de um governo agindo em resposta às demandas da população, como a idéia
de eficiência e competência desse governo no que diz respeito a questões que
envolvem a prestação de contas à população (Sartori, 1987). Embora a
representatividade possa ser assegurada pela implementação de um sistema
eleitoral que permita a expressão da diversidade social e política do
eleitorado em uma arena representativa, a responsividade é muito mais complexa.
Sua efetividade depende, em grande parte, das condições de participação, bem
como de inteligibilidade da competição eleitoral.
Com relação ao conceito de partidos políticos, apesar de seus diversos
significados, é possível destacar alguns de seus traços característicos sobre
os quais há um certo consenso. Em primeiro lugar, ao contexto em que os
partidos atuam e, em segundo, às atividades que desenvolvem sob tal contexto.3
Os partidos têm papéis específicos em duas arenas do sistema político: a
eleitoral e a decisória. Nesta última, sua atividade está associada à
formulação, ao planejamento e à implementação de políticas públicas,
participando como atores legítimos no jogo de poder e no processo de negociação
política. São agentes fundamentais no processo democrático representativo, pois
estão respaldados no voto popular. De fato, somente com base neste critério '
apoio eleitoral ' é possível, no contexto das democracias de massa, falar de
partidos como canais de expressão e representação de interesses, como um
vínculo, ainda que frágil, entre a sociedade e o Estado. Na arena eleitoral,
seu papel específico é o de competir pelo apoio dos eleitores a fim de
conquistar posições de poder. É por meio desse mecanismo que a cadeia de
representação política se forma nas democracias representativas, uma cadeia que
vincula os cidadãos às arenas públicas de tomada de decisões.
Assim, se, de um lado, a obtenção do poder político legítimo, no contexto de um
eleitorado de massas, tornou-se factível por meio da organização de partidos
políticos, de outro, a representação política democrática tornou-se viável à
medida que os partidos modernos, ao se constituírem como tais, assumiram as
tarefas de: (1) estruturar a disputa eleitoral, ou seja, definir e diferenciar
as opções a serem oferecidas ao eleitor, facilitando o ato de votar e
possibilitando a construção de identidades políticas; e (2) mobilizar o
eleitorado, isto é, incentivar o eleitor a ir às urnas e a votar em uma das
opções oferecidas, opções que se constituem como agregações de preferências, ou
seja, representação de interesses. Se, no que se refere à questão da
democracia, os partidos políticos são um aspecto fundamental, é sua atividade
eleitoral a que tem caráter primordial. É em função disso que a análise sobre
os partidos no presente contexto democrático brasileiro aqui empreendida tem a
arena eleitoral como foco principal.
Eleições em um contexto democrático
Um breve exame do panorama político brasileiro da atualidade nos permite
afirmar que o regime ganhou características nítidas de uma democracia. Se
tomarmos como ponto de referência as duas dimensões de poliarquia propostas por
Dahl, o Brasil certamente aprimorou as condições de participação e contestação
pública.
Com respeito à primeira dimensão ' a da inclusão ' nota-se um avanço
considerável nas condições de participação política. Destaca-se, em primeiro
lugar, o crescimento expressivo do número de eleitores potenciais em
conseqüência da universalização do direito de voto, estabelecida com a inclusão
dos analfabetos em 1985; direito que se ampliou ainda mais com a Constituição
de 1988, que reduziu para 16 anos a idade mínima para votar. Como evidenciam os
dados do Gráfico_1, o eleitorado brasileiro saltou de 15,5 milhões, em 1960,
para 94,7 milhões, em 1994, atingindo 115 milhões, em 2002. Isso significa que,
se em 1960 o eleitorado abarcava apenas 43% da população adulta, já no início
da década de 1980 a proporção quase duplicou, atingindo, em 2002, a cifra de
94%.
Trata-se, em segundo lugar, de um eleitorado predominantemente urbano, ou seja,
a massa de eleitores residentes nas grandes cidades passou a decidir as
eleições. Apesar de a maioria possuir níveis muito baixos de escolaridade e,
por conseguinte, de informação política, são eleitores não mais circunscritos
em pequenas cidades das zonas rurais, ambiente facilmente controlado por
líderes políticos locais e onde a corrupção eleitoral era uma prática
generalizada. Quanto a esse aspecto, cabe mencionar as transformações
econômicas e sociais por que passou o país nas últimas três ou quatro décadas
bem como suas conseqüências.
Não há dúvida de que o modelo econômico adotado pelos governos militares foi
responsável, de um lado, por distorções que levaram ao agravamento da pobreza e
das desigualdades sociais e regionais no Brasil; de outro, por um rápido
processo de industrialização e urbanização. Esse processo resultou na inserção
de um grande contingente de pessoas na arena eleitoral,4 o qual, embora não
plenamente integrado à sociedade,5 passou a ter um peso considerável nas
eleições (às vezes, valendo-se delas para protestar contra toda sorte de
privações). Resultou também no aumento substancial do contingente de
trabalhadores urbano-industriais, base para a emergência de movimentos sociais
e a formação de partidos de massa. Ainda que menos proeminentes do que durante
os primeiros anos da democratização, os movimentos sociais urbanos são um
elemento importante da nova polity democrática. No meio rural, o processo
combinado de expansão capitalista no campo e preservação de formas arcaicas de
produção e de propriedade da terra teve como conseqüência o agravamento do
problema da exclusão social. Em contrapartida, produziu o cimento social para a
intensificação do movimento pela reforma agrária que, liderado pelo MST
(Movimento dos Sem Terra), tornou-se a mais importante manifestação de
desobediência social no país.6 Todas essas transformações políticas e sociais
são indicações relevantes da revitalização da sociedade civil e, certamente,
tiveram impacto sobre o grau de inclusão da polity democrática brasileira.
Também indicativo de avanço democrático é a instauração da incerteza como traço
característico do jogo político eleitoral brasileiro. Decorrência não apenas da
dimensão e das características do eleitorado ' que se tornou menos sujeito ao
controle político de qualquer ordem -, mas também do avanço significativo das
condições de livre exercício do voto. A esse respeito, vale ressaltar o papel
importante desempenhado pela Justiça Eleitoral, instituição que se consolidou
como garantidora da lisura do processo eleitoral. A implantação da urna
eletrônica, que desde as eleições municipais de 2000 passou a ser utilizada em
100% dos locais de votação, reduziu sobremaneira as chances de fraude
eleitoral.
No que se refere à segunda dimensão de Dahl ' contestação pública ' os avanços
foram igualmente significativos se compararmos com o período democrático entre
1945 e 1964. Nesse período a competição política era limitada não apenas pelo
baixo grau de aceitação das regras do jogo ' cujos sinais mais visíveis foram
as diversas tentativas de intervenção militar -, mas também pelas restrições ao
direito de a oposição competir livremente. Vale lembrar que o Partido
Comunista, que entre 1945 e 1947 teve um significativo desempenho eleitoral nas
áreas industriais do país, passou a ser considerado ilegal a partir de 1947,
permanecendo fora da política partidária até 1985 (Chilcote, 1982; Brandão,
1997).
Desde o restabelecimento do governo civil em 1985, o Brasil confrontou-se com
uma sucessão de problemas econômicos e políticos graves, como a hiperinflação,
os diversos choques econômicos, as elevadas taxas de desemprego, os escândalos
de corrupção de toda sorte e, sobretudo, o impeachment de um presidente. A
inexistência de qualquer tentativa de responder a essas crises ultrapassando os
limites da ordem constitucional revela uma maior aceitação e, de certa forma, a
consolidação das regras democráticas. Além disso, a existência de organizações
políticas, sindicatos e movimentos sociais com orientação ideológica ou base
social diversas evidencia uma maior tolerância com a oposição. O mesmo se pode
dizer em relação à incorporação, no sistema político, dos partidos de esquerda
' hoje competidores reais na disputa eleitoral e partícipes efetivos no
processo decisório. O exemplo mais expressivo disso é a emergência do Partido
dos Trabalhadores (PT) como um dos principais competidores nas eleições, tanto
em nível local e regional como nacional. Nesse aspecto, a democratização
brasileira foi bastante inovadora, isto é, o restabelecimento do jogo
partidário competitivo propiciou a criação de uma organização política com
características típicas de um partido de massa, e cuja identidade coletiva foi
construída por meio da associação dos trabalhadores assalariados com os setores
organizados da sociedade civil.
Em 2000, o PT venceu a disputa para a prefeitura em seis capitais e em 29
cidades com população acima de duzentos mil habitantes. Além disso, ampliou
consideravelmente sua presença em todo o país: a proporção de municípios
brasileiros em que o PT saiu vencedor na disputa para o executivo municipal
triplicou entre 1992 e 2000. Mesmo nas regiões em que sua participação relativa
no poder municipal era limitada, o partido obteve resultados significativos: no
Nordeste, em 2000, conquistou o dobro de prefeituras em relação a 1996; no
Centro-Oeste chegou a triplicar o número de prefeituras conquistadas entre 1996
e 2000 (Tabela_1).
Mais notável ainda foi o desempenho eleitoral do PT em 2002: não apenas
conquistou a presidência da República com a eleição de Luis Ignácio Lula da
Silva, que pela quarta vez se candidatava, como ampliou consideravelmente sua
representação nas casas legislativas. Como mostram os dados da Tabela_2, o
partido ocupou, em 1990, o sétimo lugar na distribuição relativa da
representação na Câmara dos Deputados, e a primeira posição em 2002; no Senado,
sua força relativa não cresceu da mesma forma, mas foi suficiente para deter a
terceira maior representação nesta Casa.
Em suma, as condições fundamentais para o funcionamento de um sistema
democrático representativo estão instauradas. Trata-se, no entanto, de saber em
que medida o jogo democrático tem propiciado a realização de dois importantes
princípios associados a um governo democrático: representatividade e
responsividade política. Em outras palavras, é preciso analisar se o
funcionamento das instituições e dos mecanismos democrático-representativos tem
assegurado que o corpo de representantes seja, de alguma maneira, um retrato da
sociedade, e que os governantes eleitos prestem contas à população e exerçam
suas funções com responsabilidade e eficiência (Sartori, 1987).
Quanto à questão da representatividade, podemos afirmar que o sistema de
representação proporcional que rege as eleições para a Câmara dos Deputados e
assembléias legislativas estaduais e municipais vem garantindo, ao menos, a
representação das minorias. Ademais, o amplo leque de partidos que detêm a
representação nas câmaras legislativas também faz supor que o sistema político
tem alcançado um elevado grau de representatividade, permitindo que todos os
setores da sociedade brasileira possam ser representados. Isso a despeito de a
representação proporcional, como princípio, não ser de fato plenamente
respeitada. As distorções na proporcionalidade da distribuição da representação
dos Estados da federação na Câmara dos Deputados foram bastante discutidas na
literatura (Soares, 1971; Lamounier, 1980; Kinzo, 1980; Lima Júnior, 1993;
Nicolau, 1996). E o fato de os Estados menos populosos estarem sobre-
representados em detrimento dos mais populosos tem um impacto significativo na
força relativa dos partidos. Ou seja, a divisão desproporcional de cadeiras por
Estado faz com que a representação partidária no Congresso não reflita com
precisão a força relativa dos partidos resultante das urnas, posto que o apoio
eleitoral por eles obtido não é distribuído igualmente entre os Estados. Assim,
partidos como o PT e o PSDB, cuja base eleitoral, ao menos até recentemente,
concentrava-se nas regiões mais urbanizadas e industrializadas do Sul e Sudeste
do país, acabam conquistando proporcionalmente menos cadeiras do que obteriam
se o critério de proporcionalidade fosse plenamente respeitado (Nicolau, 1997).
Contudo, é em relação à responsividade que a democracia brasileira apresenta
problemas mais sérios. O sistema político está longe de possuir mecanismos
capazes de assegurar um grau razoável de
accountability
.7 Para isso, o sistema teria de oferecer aos eleitores (1) condições de
escolha entre distintas plataformas políticas ou alternativas partidárias, e
(2) uma estrutura de conexão com seus representantes, aspectos que não estão
inteiramente contemplados napolity brasileira.
As instituições brasileiras pouco têm contribuído para elevar o grau de
inteligibilidade do processo eleitoral. Pelo contrário, diversos fatores
dificultam o exercício da cidadania, como, por exemplo, o discernimento no
momento de votar. Há um complexo sistema de escolha eleitoral que envolve
cargos em diferentes níveis de poder ' nacional, estadual e municipal ' e
métodos eleitorais diversos ' representação proporcional para as câmaras
legislativas federal, estaduais e locais, sistema de maioria simples para o
Senado e sistema majoritário em dois turnos para presidente e governadores.
Além disso, por ser um sistema de representação proporcional com lista aberta,
as eleições para deputados federais e estaduais são primordialmente uma disputa
entre candidatos individuais. E ainda, o grande número de partidos dispostos a
enfrentar a disputa eleitoral em distritos de grande magnitude8 resulta em um
excesso de candidatos, o que torna as opções menos nítidas para os eleitores.
As regras eleitorais, ademais, têm incentivado a formação de coligações
partidárias, inclusive em eleições regidas pelo sistema de representação
proporcional. Isso significa que as opções eleitorais se apresentam seja como
candidaturas individuais (de tal monta que impossibilita aos eleitores o acesso
às informações necessárias para uma distinção mais aprimorada dos candidatos),
seja como alianças eleitorais formadas por uma grande variedade de partidos.
Os problemas em torno da capacidade de o sistema propiciar um vínculo
representacional relacionam-se, em grande medida, ao tamanho e à magnitude dos
distritos eleitorais. Como as fronteiras das circunscrições eleitorais
coincidem com as fronteiras geográficas dos Estados, cujo número de
representantes (ou magnitude do distrito eleitoral) varia de acordo com o
tamanho da população, torna-se difícil identificar a quem os representantes
deveriam prestar contas. Como assinalamos em estudo sobre os padrões de
competição na disputa para as câmaras federal e dos vereadores de São Paulo
(Kinzo, Martins Jr. e Borin, 2003a e b), a concentração eleitoral ou a
distritalização do voto está longe de ser o padrão dominante de competição.
Identifica-se uma tendência maior à dispersão e ao fracionamento do apoio
eleitoral do que redutos eleitorais claramente perceptíveis.9 Em outras
palavras, o estabelecimento de vínculos entre eleitores e representantes,
possível quando estes possuem base eleitoral definida, não é algo generalizado.
Certamente há deputados com vínculos eleitorais definidos, seja com um grupo
específico (profissional, religioso etc.), seja com uma região (a exemplo dos
redutos eleitorais típicos do clientelismo). Entretanto, de modo geral, os
deputados desfrutam de grande autonomia em sua atividade parlamentar, o que é
particularmente comum entre aqueles eleitos nas grandes cidades. O fato de a
maioria dos eleitores não lembrar quem é o seu deputado ou em quem votou nas
últimas eleições legislativas é uma boa indicação da inexistência de um vínculo
de representação claro entre parlamentares e eleitores.
O conjunto desses fatores impede a accountability vertical efetiva, produzindo
uma situação que tende a distanciar os eleitores de seus representantes. Torna-
se, portanto, extremamente difícil para a população conferir responsabilidade
pelo desempenho governamental. Esse talvez seja um dos fatores que contribui
para aumentar a disparidade entre o sistema partidário eleitoral e o sistema
partidário nas arenas decisórias,10 traço esse que já caracterizava a política
partidária durante o período democrático de 1945 a 1964 (Lavareda, 1991), e que
nos leva a deslocar o foco de análise para a questão partidária.
Partidos, sistema partidário e democracia no Brasil
Uma avaliação da experiência político-partidária do Brasil a partir de 1985
requer resposta para pelo menos três indagações. Em que medida os partidos
brasileiros têm desempenhado um papel relevante na integração dos eleitores ao
sistema político, mobilizando-os para participar dos pleitos e para votar em
uma das opções apresentadas (partidos e/ou candidatos)? Em que medida eles
oferecem opções claras e diferenciadas ao eleitor, ou seja, como têm
contribuído para estruturar a escolha eleitoral e criar identidades políticas?
A experiência político-partidária dos últimos dezoito anos foi capaz de
produzir um padrão que possa ser consolidado no futuro?
Mobilização partidária
Uma das atividades principais dos partidos políticos é buscar apoio nas urnas.
Na verdade, eles se tornaram organizações políticas em função da necessidade de
mobilizar os eleitores para votar. Assim, a capacidade de o sistema partidário
desempenhar esse papel revela-se pelo comparecimento eleitoral. O poder de
convencimento dos partidos pode ser, portanto, medido pelo índice de
participação eleitoral. No caso brasileiro, porém, o comparecimento ao pleito
não é uma boa indicação de participação política, uma vez que o voto é
obrigatório. Há situações, por exemplo, em que o índice de comparecimento é
elevado, mas os resultados eleitorais registram um número expressivo de votos
brancos e nulos.11 Isso implica que precisamos, para avaliar a capacidade dos
partidos de mobilizar os eleitores, restringir o conceito de participação
eleitoral à parcela de eleitores que, em uma determinada eleição, tenha
expressado sua preferência por uma das opções oferecidas no pleito, isto é, o
percentual da população com direito a voto que compareceu às urnas e,
efetivamente, votou em um candidato ou partido. Essa conduta de análise
viabiliza mostrar em que medida os partidos estariam ou não desempenhando bem
uma de suas funções principais, qual seja, a de mobilizar sua base eleitoral.
A Tabela_3 mostra os percentuais de eleitores que votaram num candidato ou
partido nas eleições para presidência da República, governo estadual e Câmara
dos Deputados no período de 1986 a 2002. De um modo geral, as taxas de
participação eleitoral no Brasil não são tão diferentes das registradas nas
democracias consolidadas, onde a média foi de aproximadamente 78% nos anos de
1950, caindo para 70% no final da década de 1990 (Dalton et al., 1984, 2000;
Wattenberg, 1998). No Brasil, a taxa média de participação nas eleições
presidenciais realizadas desde a redemocratização é de 73%.12 No entanto, os
números apresentados na tabela apontam três aspectos importantes: primeiro,
comparadas às eleições presidenciais, as taxas de participação nas eleições
para governador e Câmara dos Deputados são muito mais baixas em 1990 e 1994 (as
médias para o período são 66% e 59%, respectivamente); segundo, um declínio
significativo nas taxas registradas nos três tipos de pleito entre 1986 e 1998
(nas eleições presidenciais, entre 1989 e 1998, a taxa caiu em 19%, declínio
semelhante (17%) ocorreu nas eleições para governador entre 1986 e 1998);13 e,
terceiro, um aumento considerável nas taxas de participação entre 1998 e 2002
nos três tipos de eleição.
Tomando esses dados como indicadores de mobilização partidária, poder-se-ia
concluir que o processo de democratização no Brasil não foi acompanhado por um
aumento gradual da mobilização eleitoral; pelo menos é o que apontam os dados
até as eleições de 1998. No entanto, a mobilização eleitoral começou bem antes
de 1985. De fato, esse foi um dos traços característicos do processo de
transição democrática no Brasil, em cujos primórdios ' ainda em fase de
distensão do regime autoritário ' a oposição conseguiu mobilizar o eleitorado
contra o regime, iniciando o engajamento da população no processo eleitoral.
Assim, a primeira eleição presidencial, em 1989, significou o auge do processo
de mobilização. A partir daí, observa-se o declínio do engajamento político,
uma vez que o jogo eleitoral democrático adquiriu um caráter rotineiro. O mesmo
fenômeno verificou-se nas eleições para governador. No primeiro pleito,
realizado em um contexto plenamente democrático (1986), a taxa de participação
foi bastante elevada, declinando consideravelmente nas duas eleições seguintes.
Essa tendência foi, contudo, revertida em 2002, quando as taxas de participação
subiram dez pontos percentuais.
Digno de nota são os percentuais registrados para a Câmara dos Deputados, que
até 1994 são bem inferiores aos registrados nos pleitos para governador e
presidente. A explicação para isso tem a ver, em grande medida, com a posição
central ocupada pelos cargos executivos no presidencialismo, particularmente na
versão brasileira, cuja experiência é marcada por uma concentração acentuada de
poder no executivo. Essa prática contribuiu para que os eleitores se
acostumassem a prestar atenção muito mais nos presidentes, governadores e
prefeitos do que em seus representantes parlamentares, tornando-se, pois, menos
predispostos a participar das eleições legislativas. Ademais, não podemos
esquecer de que o grande número de candidatos nesse tipo de pleito dificulta a
tomada de decisão do eleitor, o que denota uma tendência à elevação de votos
brancos e nulos em eleições legislativas proporcionais. No entanto, esse padrão
modificou-se consideravelmente nas eleições de 1998 e 2002, quando as taxas de
participação eleitoral passaram a se equiparar às registradas nos pleitos para
presidente e governador (Tabela_3). É provável que o desempenho do Legislativo
no processo democrático ' a começar pela relevância que adquiriu durante os
trabalhos da Constituinte e por seu papel no processo de impeachment do
presidente Collor de Melo ' possa ter contribuído para sua valorização aos
olhos do eleitor, aumentando a predisposição deste a participar das eleições
parlamentares. Mas esse novo padrão deve-se também a uma ação deliberada, por
parte da Justiça Eleitoral, no sentido de reduzir as taxas de absenteísmo em
eleições legislativas. Refiro-me à introdução de uma nova seqüência de escolha
eleitoral nas urnas eletrônicas: a partir das eleições de 1998, os eleitores
passaram a votar, primeiro, nos candidatos para as casas legislativas (sob o
sistema de representação proporcional) e, depois, nos candidatos a presidente e
governador (sob o sistema majoritário). Isso tornou imperativa a escolha de um
candidato a deputado, e é provável que uma parcela substancial de eleitores
tenha digitado o número correspondente ao seu candidato a governador ou a
presidente quando a tela da urna eletrônica solicitava a escolha para deputado,
repetindo-o novamente nas opções para os cargos executivos. Embora não se possa
comprovar a ocorrência desse procedimento, é bem possível que o mecanismo
criado pela Justiça eleitoral para diminuir os votos brancos e nulos nas
eleições proporcionais tenha surtido efeito, mesmo porque causa estranheza o
fato de nas eleições de 2002 a proporção de votos válidos para a Câmara de
Deputados ter superado a registrada para governador e presidente da República.
Um segundo aspecto a ser considerado ao se analisar a questão partidária no
Brasil, relaciona-se à capacidade do sistema de oferecer opções diferenciadas
aos eleitores, ou seja, de estruturar a escolha eleitoral e de criar
identidades partidárias. Isso nos leva ao exame da dinâmica da competição
partidária e da inteligibilidade do sistema.
Fragmentação, inteligibilidade e volatilidade do sistema partidário
A despeito da controvérsia gerada em torno de a questão partidária no Brasil
ser ou não um problema para a consolidação democrática,14 não há dúvida de que
o sistema partidário atual é um dos mais fragmentados do mundo. Como indica a
Tabela_4, o grau de fragmentação na Câmara dos Deputados, medido pelo índice de
fragmentação (N) de Laakso e Taagepera (1979),15 foi de aproximadamente 3 em
1986, subiu para 9, em 1990, caiu para 8, em 1994, e para 7, em 1998, subindo
novamente para 8,5 nas últimas eleições.
É certo que a dinâmica de três partidos, observada em 1986, refletia muito mais
a sobrevivência de um jogo eleitoral bipartidário, que ganhou força no
crepúsculo do regime militar, do que a emergência de um novo pluralismo
partidário com condições de se consolidar. De forma que a fragmentação que se
seguiu era esperada, especialmente em reação à camisa de força instaurada pelo
bipartidarismo compulsório do regime militar. No entanto, passado este período
inicial, poder-se-ia esperar uma reacomodação das forças políticas no sentido
de tornar o sistema partidário mais enxuto. No entanto, a ligeira queda no
índice de fragmentação partidária registrada entre 1990 e 1998 não se definiu
como uma tendência, dado sua reversão em 2002. Assim, o sistema partidário
continua tão fragmentado como no início da década de 1990. Além disso, como
mostram os dados da Tabela_4, a intensa fragmentação não é um atributo apenas
do sistema nacional de partidos; está também presente em vários Estados: treze
dos 27 Estados possuem um número de partidos efetivos superior a cinco; em 22
deles os índices de fragmentação aumentaram significativamente entre 1990 e
2002.
A fragmentação do sistema partidário não seria um problema para o funcionamento
da democracia caso não afetasse a inteligibilidade do processo eleitoral, isto
é, a capacidade de o sistema produzir opções claras para os eleitores,
permitindo-lhes escolher com base em seu conhecimento sobre os partidos ou sua
identidade com eles. O problema é que no Brasil a intensa fragmentação
partidária está acompanhada por uma pequena inteligibilidade do processo
eleitoral. Em geral, um sistema partidário fragmentado tende a ter partidos de
contornos mais definidos, alicerçados em algum tipo de clivagem social,
regional ou política, proporcionando aos eleitores opções mais estruturadas e
diferenciadas na disputa eleitoral. Isso não é o que ocorre no caso brasileiro,
dado que a maioria dos partidos, como organizações distintas, não possui
contornos claramente definidos. Isso não significa negar a existência de
diferenças entre eles no plano ideológico, como vários estudos indicaram ao
dispor os partidos num continuum esquerda-direita (Kinzo, 1989, 1993;
Lamounier, 1989; Rodrigues, 1987, 2002; Figueiredo e Limongi, 1999). No
entanto, trata-se mais de gradações ou variações do que propriamente diferenças
estruturais.
Disso decorre a facilidade com que os candidatos eleitos migram para outro
partido sem nenhum constrangimento16 ' o que denota, aliás, a fragilidade dos
partidos, no sentido de que não são organizações relevantes o suficiente para
manter seus próprios quadros. Evidência mais forte é o fato de os partidos
raramente se engajarem nas disputas eleitorais como atores distintos;
apresentam-se, ao contrário, em alianças partidárias. Ou seja, os competidores
do jogo eleitoral não são os partidos como unidades diferenciadas, mas
candidatos e coligações formadas por diversos partidos, não raro de diferentes
orientações ideológicas.
Pode-se argumentar que, em um contexto de multipartidarismo e de eleições
majoritárias para os cargos executivos, é natural que os partidos formem
alianças, principalmente em se tratando de eleições nacionais ' como são as
presidenciais ' em um país com as dimensões do Brasil. Mas, as coligações são
prática disseminada em todos os níveis ' do nacional ao municipal. Tanto nas
eleições para governo de Estado como para prefeitura municipal, todos os
partidos, independentemente de sua dimensão ou linha ideológica, recorrem às
coligações. Além disso, esse recurso é utilizado também nas eleições
legislativas sob o sistema de representação proporcional, o qual se destina,
justamente, a garantir a representação das minorias que, por sua vez, desejam
se diferenciar dos grandes partidos.
A prática da coligação, evidentemente, se torna necessária em virtude da
fragmentação do sistema partidário. Mas isso faz com que o sistema permaneça
fragmentado, já que é permitido aos políticos e aos partidos formarem tais
alianças. Em outras palavras, as estratégias eleitorais são construídas de
forma a obter o melhor resultado no contexto institucional em que os políticos
operam. A formação de alianças constitui, pois, a melhor estratégia tanto para
os grandes partidos como para os pequenos. De um lado, ao se coligar com um
grande partido que lança uma candidatura ao governo do Estado, os pequenos
partidos garantem sua participação na coligação para as eleições proporcionais,
aumentando suas chances de conquistar uma cadeira na Câmara dos Deputados ou
nas assembléias legislativas. De outro, ao se aliar aos pequenos, os grandes
partidos aumentam seus recursos eleitorais (o que inclui tempo maior de
propaganda eleitoral no rádio e na televisão) e, portanto, suas chances de
vencer a eleição majoritária. Em contrapartida, sua chance de eleger uma grande
bancada no legislativo torna-se mais restrita, pois ao concorrerem nas eleições
legislativas em uma lista de candidatos coligados (não previamente ordenados)
os grandes partidos abrem espaço para os candidatos bem votados dos pequenos
partidos da coligação.
Se para os políticos e os partidos esta é, sem dúvida, a estratégia mais
racional, seu impacto sobre os eleitores está longe de ser positivo, uma vez
que se vêem diante de uma disputa em que atores partidários não são claramente
distintos, isto é, entidades que constroem alternativas eleitorais e
identidades. Em outras palavras, torna-se difícil para o eleitor identificar e
distinguir os partidos em disputa: são muitos os partidos, muitas as alianças
eleitorais, cuja composição varia de um lugar para o outro e de uma eleição
para outra. Ademais, a disputa eleitoral põe em evidência muito mais os
candidatos do que os partidos. Em suma, a intensa fragmentação e a falta de
nitidez do sistema partidário fazem com que os eleitores tenham dificuldade em
fixar os partidos, distingui-los e, assim, conseguir criar identidades
partidárias.17
Uma conseqüência visível desse processo é a volatilidade eleitoral ' dimensão
importante da estabilidade do sistema partidário (Pedersen, 1990; Bartolini e
Mair, 1990). Quanto menor a inconstância, maior a probabilidade de as siglas
partidárias desempenharem mais plenamente na arena eleitoral sua função de
determinar as preferências eleitorais independentemente do apelo de algum
candidato particular, de posições políticas pontuais ou de acontecimentos
inesperados. A institucionalização do sistema partidário dificilmente pode
ocorrer em contextos de grande volatilidade eleitoral. Seria esse o caso no
Brasil?
Entre as democracias consolidadas, os níveis de volatilidade, segundo o índice
de Pedersen, variam de um país para outro, mas raramente atingem as cifras
elevadas do Brasil.18 Os dados apresentados por Nicolau (1998a) indicam que no
período de 1982 a 1998, em média, cerca de 30% do eleitorado brasileiro mudou
seu voto de um partido para outro em eleições consecutivas. Uma análise mais
detalhada a esse respeito encontra-se em Braga (2003): os índices para a Câmara
dos Deputados (reproduzidos na Tabela_5) foram calculados com base nos
resultados eleitorais por município, e são apresentadas as médias por Estado
nos três pares de eleições no período de 1990 a 2002. O exame desses dados nos
revela, primeiro, que os valores são bastante elevados nas eleições ocorridas
entre 1990 e 1994. De fato, o nível de instabilidade do sistema partidário
alcançou seu ápice em 1990, o que era reflexo das mudanças por que passaram os
partidos durante o período de elaboração dos trabalhos da Assembléia
Constituinte (1987-1988) ' por exemplo, a criação do PSDB a partir de uma
dissidência do PMDB e a reorganização do PDS após uma fusão com dois outros
partidos. Em segundo, tomando como parâmetro a média total dos valores dos
Estados, verifica-se que o índice de volatilidade decresceu entre 1994 e 1998
(de 46,2 para 40,4), mas se manteve inalterado entre 1998 e 2002 (40,1). Ou
seja, o índice de volatilidade estabilizou-se em um nível bastante elevado. Em
terceiro, observa-se que esse índice varia consideravelmente de um Estado para
outro, independentemente do tamanho de seu eleitorado,19 e, em alguns Estados,
aumentou. Esse crescimento deve ter a ver com o fato de alguns partidos terem
conseguido se expandir nacionalmente, mudando, assim, a dinâmica eleitoral
anteriormente estabelecida em alguns Estados. A manutenção de um número
bastante elevado de partidos na competição política, obriga-os a se expandir
nacionalmente, expansão que ainda se encontra em processo, o que significa que
a volatilidade deverá se manter elevada. Ou seja, ainda não se estabeleceu no
Brasil um padrão definitivo de apoio partidário. O sistema partidário
brasileiro está, portanto, distante de uma consolidação.
Considerações Finais20
Observando o período de mais de dezoito anos de experiência democrática no
Brasil, pode-se afirmar que a via eleitoral e a saída constitucional se
afirmaram como caminho de alternância no poder e de resolução dos impasses
políticos. E a eleição presidencial de 2002 foi certamente um marco no processo
de consolidação da democracia. Isso, não apenas pelo que representou a eleição
de Lula para presidente da República (um líder político de esquerda, oriundo
das camadas populares), como também pelo fato de ter ascendido ao poder um
partido de peso na arena política que ainda não havia sido eleito para o poder
executivo em âmbito nacional. Completa-se, portanto, o ciclo de consolidação
democrática no Brasil ao se ultrapassar todos os possíveis obstáculos à livre e
efetiva alternância no poder.21
Desse modo, podemos afirmar com segurança que eleições e democracia estão
asseguradas no Brasil. O que dizer, no entanto, da temática relativa aos
partidos e ao sistema partidário e sua relação com a consolidação democrática?
A esse respeito, contudo, não se pode afirmar que o avanço tenha sido
considerável.
O cenário partidário aqui delineado ' marcado por intensa fragmentação,
fragilidade partidária, baixa inteligibilidade da disputa eleitoral e elevada
volatilidade eleitoral ' são evidências de que, ao longo desses dezoito anos de
democracia, os avanços em direção à consolidação do sistema partidário foram
bastante modestos. De modo que, a despeito de as eleições do último ano terem
sido um marco na consolidação da democracia, o evento democrático que delas
resultou ' ascensão de um novo governo, apoiado por um partido de esquerda '
está longe de significar um passo decisivo rumo ao fortalecimento do sistema
partidário.
Primeiro porque o resultado da disputa para os governos estaduais e para as
casas legislativas reproduziu, em grande medida, o quadro anterior,
caracterizado por uma elevada fragmentação de poder: nada menos que dezenove
partidos conseguiram representação na Câmara (sete deles com representação
superior a 5%, mas nenhum com força parlamentar superior a 18%), e oito
partidos diferentes elegeram governadores de Estado. Essa situação torna
imperativos a formação de um governo de coalizão bastante heterogêneo, porque
formado por inúmeros partidos, e a ampliação artificial da representação
partidária de forma a fortalecer uma base aliada. Não é mero acaso que o
governo Lula tenha formado uma coalizão ainda mais ampla do que a do governo
anterior ' dez partidos fazem parte da base do governo.
Segundo porque foi reeditado, já no início do novo governo, o fenômeno de
"troca-troca partidário" na direção da base aliada. Assim, parlamentares recém-
eleitos por um partido migram para outro sem qualquer constrangimento. Apenas
como indicativo, até outubro de 2003, 11% dos deputados encontravam-se filiados
a um partido diferente daquele que os elegeu.22 Se considerarmos que apenas
quatro partidos conseguiram eleger uma bancada com mais de 10% das cadeiras na
Câmara, esse remanejamento tem efeito considerável na correlação de forças no
Parlamento e, acima de tudo, no peso relativo dos parceiros da coalizão
governamental.23
Assim, o que parecia a emergência de um novo alinhamento governo/oposição '
assumindo o poder aqueles que dele estavam alijados ' tornou-se uma situação
sem contornos nítidos, em que partidos ligados ao governo anterior passaram a
integrar a nova coalizão, e antigos adversários ideológicos passaram a
compartilhar o mesmo bloco.
A despeito desses problemas no front partidário, o governo Lula construiu sua
base de apoio parlamentar com sucesso, e tem conseguido, até o presente,
administrá-la satisfatoriamente, garantindo sua governabilidade, o que também
ocorreu na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Ademais, o fato de os partidos
políticos mostrarem-se incapazes de manter seus representantes eleitos não tem
suscitado qualquer questionamento quanto a uma possível crise de representação.
Em vista desse quadro podemos questionar até que ponto o fortalecimento do
sistema partidário é realmente um fator fundamental na consolidação da
democracia brasileira.
Essa indagação é ainda mais pertinente se levarmos em consideração o que tem
ocorrido nas democracias consolidadas. A problemática partidária nas chamadas
"velhas" democracias tem sido ampla e profundamente examinada na literatura
internacional.24 O intenso debate nos últimos trinta ou quarenta anos sobre as
novas tendências nas atitudes e nos comportamentos políticos, que criam formas
alternativas de participação, tem questionado a centralidade da instituição
"partido político". Baixas taxas de mobilização e participação, filiações
partidárias em declínio e avaliações negativas das instituições de
representação são tendências há muito presentes nas democracias consolidadas.
Não obstante a controvérsia a respeito da extensão e do significado de tais
transformações, o fato é que elas indicam que os papéis desempenhados pelos
partidos deixaram de ter a centralidade de outrora, ou esses papéis foram, de
fato, substituídos por outros.
É necessário, então, que reflitamos nesse contexto peculiar as perspectivas da
política partidária na democracia brasileira. De fato, no período de
experiência democrática pós-regime militar, o Brasil tem enfrentado uma
situação paradoxal, qual seja, a de consolidar instituições partidárias que, a
despeito do papel fundamental que desempenharam na consolidação das democracias
ocidentais, deixaram de ocupar a posição central que ocupavam no sistema
político. Talvez Philippe Schmitter (2001) tenha razão quando argumenta, ao se
referir à presente experiência político-partidária na América Latina, que a
existência de sistemas partidários pouco consolidados não necessariamente
resulta em democracias não consolidadas. Por não mais desempenharem as mesmas
funções das quais resultaram sua força no passado nas "velhas" democracias, os
partidos perderam a centralidade a ponto de não constituírem mais um fator
fundamental para a consolidação das novas democracias. Conclui Schmitter:
[...] o que parece mais provável é que as novas democracias, como as
várias antigas democracias, terão de sobreviver com muito menos
agregação e intermediação que no passado. Seus partidos políticos
produzirão muito menos estruturação eleitoral, identificação
simbólica, governança partidária e agregação de interesses do que
seus predecessores. O que isso implica para a qualidade dessas novas
democracias é uma outra questão! (2001, pp. 86-87).
As implicações para a qualidade da democracia, estão, no entanto, no terreno
normativo. Embora essa possa ser uma discussão pouco afeita ao debate que hoje
domina a ciência política brasileira, não há por quê evitá-lo. Além disso, não
se conhece, até o momento, meios alternativos de construção e consolidação de
uma forma democrática de convivência política capazes de substituir os
mecanismos institucionais que foram os pilares das democracias ocidentais.
NOTAS
1 Nas palavras de Schumpeter, "o método democrático é aquele arranjo
institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem
o poder de decidir por meio de uma luta competitiva pelo voto da população"
(1976, p. 269).
2 A controvérsia entre democracia política e democracia social é bem conhecida.
Essa questão foi bastante debatida durante os primeiros anos de
redemocratização no Brasil (ver, em especial, Reis e O'Donnell (1988), e sempre
ressurge quando se examina as experiências atuais das chamadas democracias
emergentes. Ainda que não seja nossa intenção enveredar para as argumentações e
as implicações dessa controvérsia, convém fazer uma observação: é certo que o
conceito estrito de democracia, baseado nas regras procedimentais, deixa de
considerar a questão da desigualdade social e o conseqüente acesso desigual ao
chamado mercado político. Mas é verdade, também, que pensar a democracia em
termos abrangentes, como querem os defensores da democracia social, destitui do
conceito a propriedade de distinguir um regime democrático de um regime
autoritário ou totalitário. Em função dessa característica, Sartori formulou
sua definição de democracia como sendo, antes de tudo, "um sistema no qual
ninguém pode escolher a si mesmo, investir-se do poder de governar e, portanto,
ninguém pode arrogar para si um poder incondicional e ilimitado" (Sartori,
1987, p. 206).
3 Emprego a definição estrutural de partidos, contida no trabalho de Panebianco
(1988).
4 Vale lembrar que no Brasil o voto é obrigatório.
5 No sentido de que seus direitos de cidadania não estão plenamente garantidos.
Sobre os problemas de cidadania no Brasil, ver Carvalho (2001).
6 A despeito de suas posições radicais e formas de ação questionáveis, a
mobilização do MST não só tem mantido o tema da reforma agrária na agenda do
governo, mas também instituiu uma forma diferente de relacionamento com o
Estado. Citando a excelente análise de Martins sobre o MST e a reforma agrária,
o que existe de inovador nas relações entre o MST e o Estado é o fato de este
não agir preventivamente para neutralizar as tensões sociais, mas agir em
resposta às iniciativas e às pressões da sociedade. Martins conclui: "[esta é]
uma mudança politicamente importante que inverteu o processo típico, que aqui
no Brasil fez do Estado o criador da sociedade civil" (Martins, 1999, p. 121).
7 Refiro-me à accoutability vertical e não horizontal. A esse respeito ver, em
especial, O'Donnell (1998).
8 Em oito Estados são mais de vinte partidos, e, em dois deles, mais de
cinqüenta.
9 Discordamos, portanto, da tese defendida por Ames (1995), Mainwaring (1991) e
Pereira e Rennó (2001) de que, de um modo geral, os deputados controlam
determinada área mediante benefícios clientelistas, uma vez que esses autores
se apóiam no pressuposto de que os parlamentares brasileiros, todos eles,
seriam representantes de distritos informais, o que nem sempre é o caso.
10 A esse respeito ver, em especial, as importantes observações de Lima Jr.
(1993).
11 Esse foi particularmente o caso das eleições realizadas sob o regime
militar. Por exemplo, nas eleições de 1970, os percentuais de votos brancos e
nulos ultrapassaram o percentual de votos no partido da oposição (cf. Kinzo,
1988).
12 Optamos por considerar como eleitorado a parcela da população maior de 18
anos, já que entre 16 e 18 anos a inscrição e o voto não são obrigatórios. Os
números sobre população acima de 18 anos são estimativas para os anos de 1986,
1994, 1998 e 2002, levantadas pelo IBGE ' Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística.
13 Diferenças marcantes entre regiões e entre Estados indicam que a capacidade
de os partidos mobilizarem os eleitores também varia consideravelmente de um
Estado para o outro. De qualquer maneira, as taxas de participação eleitoral
diminuíram neste período em todo o país.
14 A esse respeito ver, principalmente, Lamounier e Meneguello (1986); Kinzo
(1993); Mainwaring (1995, 1999) e Figueiredo e Limogi (1999). Uma boa síntese
deste debate encontra-se em Rodrigues (2002).
15 O número efetivo de partidos é calculado por N = 1/ (1-Âpi2 ), onde p é a
proporção de votos obtidos por cada partido para a Câmara dos Deputados. Sobre
o índice de fragmentação, ver também Rae (1975).
16 Sobre o fenômeno da migração partidária, ver, em especial, Melo (2000).
17 Vale salientar, porém, que há pelo menos dois dispositivos que podem, a
longo prazo, ajudar os partidos a fixarem suas siglas junto ao eleitor. Referi-
mo-nos, em primeiro lugar, à identificação dos partidos e de seus respectivos
candidatos por meio de números usados para votar na urna eletrônica. Como no
caso dos partidos os números são permanentes, estes podem fortalecer uma
associação entre número e partido, a qual poderia prevalecer sobre a coligação.
Em segundo, os partidos têm direito a uma hora de propaganda gratuita no rádio
e na televisão para divulgar sua imagem, duas vezes por ano. Nessas ocasiões
são destacados os partidos e seus líderes principais.
18 A média do índice Pederson para os países da Europa, entre 1985 e 1996, foi
11,0 (cf. Nicolau, 1998b). Sobre volatilidade eleitoral, ver, em especial,
Bartolini e Mair (1990) e Mair (1997).
19 Essa variação é também grande entre diferentes grupos de municípios. De
acordo com os dados de Braga (2003), curiosamente, os índices são mais elevados
nas categorias de cidades média e pequena do que nas cidades grandes e capitais
de Estado.
20 Parte da discussão exposta nesta sessão foi apresentada na mesa redonda
"Eleições, partidos e governos no Cone Sul: Argentina, Brasil, Chile e
Uruguai", do XXVII Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 21-25 out. 2003.
21 Isso não significa que anteriormente não tenha havido alternância no poder.
Na verdade, alternância e incerteza eleitoral são traços característicos do
processo de democratização no Brasil, pois tanto o primeiro como o segundo
presidente eleito diretamente (Collor e Fernando Henrique Cardoso) não são
provenientes de partidos que dominaram inicialmente o jogo político da Nova
República, embora houvesse, de alguma forma, uma linha de continuidade ' no
caso de Collor, seus vínculos políticos com a oligarquia nordestina; no caso de
FHC, seus vínculos políticos originários do MDB/PMDB. A diferença da eleição de
2002 foi o fato de a alternância ter se dado com um partido que até então
estivera alijado totalmente do poder nacional, embora tivesse se apresentado
como principal competidor em todos os embates anteriores.
22 De acordo com a distribuição das bancadas partidárias fornecida pela Câmara
dos Deputados em 15/10/2003.
23 Note-se que, menos de um ano após a eleição, o PTB teve sua bancada
engrossada em 100 % (de 26 passou para 53 deputados). O PL aumentou de 26 para
42 deputados; o PFL diminuiu sua bancada de 84 para 67 e o PSDB, de 71 para 51.
24 A esse respeito a bibliografia é bastante ampla. Entre os trabalhos mais
importantes, destacam-se Kirchheimer (1966), Lawson e Merkl (1988), Katz e Mair
(1994), Mair (1997), Wattenberg (1998), Broughton e Donovan (1999), Dalton et
al. (2000) e Diamond e Gunther (2001).