Segregação residencial e políticas públicas: São Paulo na década de 1990
Introdução
Grande parte das literaturas sociológica e urbanística brasileiras toma a
segregação residencial como um fato incontestável. De um lado, a forte
heterogeneidade de renda e de condições sociais entre os bairros e os distritos
das metrópoles brasileiras dão base lógica a tal proposição (Villaça, 2001;
Taschner e Bógus, 2000; Ribeiro e Telles, 2000). De outro, o grande tamanho da
população favelada e seu crescimento no período recente servem também de
inspiração ao argumento de que a segregação seria um fenômeno real e cada vez
maior (Kowarick, 2001). Numa outra perspectiva, o crescimento dos chamados
condomínios fechados, bem como o aumento dos aparatos de segurança e exclusão
existentes nos bairros e prédios de alta renda, também têm sido utilizados como
evidência de uma sociedade cada vez mais segregada residencialmente (Caldeira,
2000).
Paradoxalmente, a segregação residencial existente nas cidades brasileiras
quase nunca foi medida em termos empíricos, no que pese a longa tradição
internacional de medir o fenômeno, sobretudo nos Estados Unidos (Massey e
Denton, 1993; Mingione, 1999; Wilson, 1990).1 O desinteresse por tal comparação
pode ser talvez ser explicado pelo fato de a tradição norte-americana de
estudos de segregação ser nitidamente voltada para a questão racial, enquanto
no Brasil o debate sempre se focou nos aspectos habitacionais e socioeconômicos
mais gerais. No entanto, esse tipo de estudo empírico tem também se tornado
freqüente em outros países latino-americanos, como, por exemplo, o Chile
(Sabatini, 2001) e o México (Schteingart, 1987), sugerindo que medidas de
segregação que permitam análises comparativas podem dar uma noção mais precisa
dos níveis de segregação existentes em cada país e a sua evolução recente.
Nesse sentido, este artigo é organizado em torno de dois objetivos principais.
Em primeiro lugar, pretendemos discutir por que a segregação residencial é
importante do ponto de vista das políticas sociais. Em segundo, buscamos medir
a evolução da segregação residencial na região metropolitana de São Paulo na
última década. Trabalharemos aqui com o índice de dissimilaridade, indicador
amplamente utilizado em estudos de segregação residencial (Massey e Denton,
1993; Briggs, 2001; Sabatini, 2001). Utilizaremos também diferentes escalas
geográficas (setores censitários e distritos), de forma a tentar distinguir
como as chamadas micro e macro segregação variaram no período.2
Apresentamos na primeira seção uma discussão sobre o significado da segregação
para as políticas públicas, bem como o problema de como medir o fenômeno. A
seguir, apresentamos diferentes alternativas de estimativa para o índice de
dissimilaridade em São Paulo, tanto na escala de distritos do IBGE, como na
escala de setores censitários. Mostraremos que a segregação residencial
aumentou substancialmente, tomando como referência a distância entre as
famílias cujos responsáveis tinham entre zero e três salários mínimos e entre
vinte salários mínimos e mais.3 Adiante, tratamos de observar como o fenômeno
se distribuiu no interior da região metropolitana de São Paulo. Ao final,
extraímos algumas conseqüências analíticas desses resultados.
Segregação e políticas públicas
O que é segregação residencial? Tratado de forma genérica, é o grau de
aglomeração de um determinado grupo social/étnico em uma dada área.4 Nesse
sentido, a formação de condomínios fechados de alta renda ' como os da Barra
(Rio de Janeiro) ou os de Alphaville (São Paulo) ' poderia ser considerada uma
forma de auto-segregação.
Peter Marcuse (2001), porém, defende uma definição mais rigorosa do fenômeno,
considerando-o o processo por meio do qual uma determinada população é forçada
de modo involuntário a se agrupar em uma dada área.5 Entre os componentes que
induziriam essa aglomeração forçada estariam tanto mecanismos de mercado ' que
induzem à valorização ou à desvalorização imobiliária de determinadas áreas '
como instrumentos institucionais (taxação, investimentos públicos, remoção de
favelas etc.) e práticas efetivas de discriminação (por exemplo, por parte de
agentes imobiliários).6
Essa definição também ressalta o aspecto, algumas vezes menosprezado, de que a
segregação é ' sobretudo ' um fenômeno relacional: só existe segregação de um
grupo quando outro grupo se segrega ou é segregado. É nesse componente
relacional que as medidas de segregação vão se basear, buscando medir o grau de
isolamento de um determinado grupo social em relação a outro.
Cabe também discutir com alguma profundidade por que a segregação residencial é
importante do ponto de vista das políticas sociais. De modo geral, seis
elementos principais podem ser apresentados como evidência de que a segregação
residencial contribui para o aumento e/ou a perpetuação da pobreza7:
Má qualidade residencial, riscos ambientais e para a saúde: A principal
maneira por meio da qual as famílias de menor renda lidam com a disputa pelo
espaço urbano no mercado de terras tem a ver com a busca por residências e/ou
áreas desvalorizadas, isto é, domicílios pequenos, pior dotados de infra-
estrutura urbanística e, muitas vezes, sujeitos a riscos de diversos tipos
relacionados à ausência de saneamento e a problemas ambientais como inundações
e deslizamentos.8 Evidências para outros países indicam que os custos diretos
associados à perda de horas de trabalho devido a doenças, bem como os gastos
com medicamentos e procedimentos médicos, contribuam substancialmente para a
redução da renda disponível para o consumo, acentuando a pobreza, a mortalidade
e a instabilidade econômica da família (Yinger, 2001). No caso do Brasil, os
gastos com saúde são regressivos, incidindo mais acentuadamente sobre os mais
pobres (Gráfico_1). Isso significa que riscos para a saúde decorrentes das
condições de moradia contribuem adicionalmente para agravar essa situação de
regressividade.
Custos de moradia desproporcionais: De modo geral, famílias mais pobres
tendem a apresentar um gasto com moradia (como proporção da renda) superior ao
de famílias de classe média e alta. Segundo a pesquisa de orçamento familiar
(POF-96) do IBGE, por exemplo, enquanto os gastos com habitação correspondem a
24,9% dos gastos das famílias com rendimento familiar inferior a dois salários
mínimos, essa proporção é declinante segundo a renda, atingindo 17,7% para as
famílias com renda familiar superior a trinta salários mínimos (Gráfico_1).
Como conseqüência, a renda disponível para o consumo de alimentos e outros bens
e serviços é proporcionalmente menor, contribuindo para o empobrecimento
relativo dessas famílias. Em outras palavras, ao contrário do que se poderia
imaginar, a segregação da população em favelas e periferias ' em média ' não
contribui para contrabalançar a regressividade dos custos de moradia,
provavelmente devido à escassez de espaço disponível (ao preço que essas
famílias podem pagar) e o conseqüente aumento de seu custo relativo.9
Efeitos de vizinhança: Diversos estudos evidenciam que crescer em bairros com
alta concentração de pobreza tem efeitos negativos relevantes em termos de
avanço educacional, emprego, gravidez na adolescência e atividade criminal
(Duralauf, 2001; Briggs, 2001; Cardia 2000). Embora os mecanismos que explicam
a relação entre pior desempenho educacional e residência em locais de elevada
concentração de pobres, por exemplo, não sejam bem conhecidos, é evidente que o
pior desempenho educacional nessas áreas contribui para perpetuar e reproduzir
a pobreza a longo prazo. Por outro lado, na medida em que a rede de relações
sociais de um indivíduo ou família contribui para seu acesso a empregos e a
serviços públicos, o isolamento social presente nas áreas segregadas tende a
contribuir significativamente para a redução das oportunidades das famílias
residentes nesses locais.
Distância entre moradia e emprego: Este fenômeno, identificado na literatura
internacional como spatial mismatch, diz respeito à baixa freqüência de
empregos nos locais de moradia da população de baixa renda (Kasarda, 1993). No
caso da região metropolitana de São Paulo, por exemplo, a maior parte do
emprego nos setores dinâmicos de comércio e serviços concentra-se num número
restrito de distritos do Centro e ao longo do corredor Sul-Sudoeste do
município de São Paulo (Jardim Paulista, Itaim, Pinheiros, Moema e Vila
Mariana). A maior parte desses distritos é ocupado por moradores de média e
alta renda (Emplasa, 1994). Além disso, o deslocamento espacial entre empregos
e moradia foi acentuado pela significativa perda de empregos industriais na
Zona Leste de São Paulo e nos municípios do ABC. Como conseqüência, a moradia
em periferias distantes e em cidades-dormitórios além de aumentar os custos de
transporte ' com impactos para a renda disponível e conforto dos moradores '
trás também efeitos sobre o acesso à informação sobre postos de trabalho, bem
como eleva substancialmente os custos de procurar emprego.
A moradia em situação irregular: A posse irregular da terra, em favelas ou
loteamentos clandestinos, induz pior acesso a serviços públicos. Tal fenômeno
ocorre porque a provisão de serviços públicos nesses locais tende a ser
problemática, uma vez que ' em muitos casos ' a oferta de serviços depende da
existência de terras pertencentes ao Estado (ou passíveis de aquisição),
disponíveis para a construção de escolas, infra-estrutura urbana e outros
equipamentos sociais (Maricato, 1996).
A moradia como fator de geração de renda: Por diversas razões, a moradia pode
ser também entendida como um fator de geração de renda. Espaço residencial pode
ser utilizado para fins produtivos: cômodos podem ser alugados; produtos podem
ser estocados; a casa pode ser o locus de produção de roupas, alimentos e
serviços; a casa pode ser utilizada como ponto de venda. Além disso, em algumas
circunstâncias, a casa pode ser usada como garantia para empréstimos passíveis
de serem utilizados para fins produtivos.10 Todas essas possibilidades são
menos prováveis em locais muito segregados, em virtude da fragilidade do
mercado local, da ausência de espaço disponível, da precariedade tanto de
residências como do status jurídico dos domicílios.
Em suma, existe grande evidência na literatura de que, por diferenciados
mecanismos, a segregação espacial contribui para a reprodução da pobreza e de
problemas sociais nas áreas de emprego, educação, habitação, saúde,
transportes, geração de renda e segurança pública. Daí a sua centralidade para
o debate metropolitano no Brasil e a importância de mensurar o fenômeno para
compreender sua evolução ao longo do tempo.
Medidas de segregação
De modo geral, o conceito de segregação remete-se a duas dimensões principais:
os padrões de concentração espacial de determinados grupos sociais e o grau de
homogeneidade social de determinadas áreas.11 Essas dimensões são medidas por
meio de indicadores baseados na composição da população de cada área estudada.
Provavelmente, o indicador mais utilizado neste campo é o índice de
dissimilaridade, embora outras medidas, como os chamados "índices de
isolamento", sejam também utilizadas (Sabatini, 2001; Massey e Denton, 1993).
O índice de dissimilaridade mede a proporção da população (de um dado grupo
social) que teria de mudar para que a distribuição de cada grupo social em cada
área fosse similar a essa distribuição para o conjunto da cidade.12 No geral,
um índice de 0 a 30% implica uma segregação suave, de 30 a 60% uma moderada e
de mais de 60% uma severa (Massey e Denton, 1993; Briggs, 2001). Trata-se,
porém, de um indicador relativamente limitado e que pode ser criticado de duas
maneiras:
O indicador não capta a segregação no interior das zonas utilizadas como
unidade de análise (distritos, bairros etc.). A população de um dado grupo
social pode viver no interior de um único condomínio ou dispersa por todo
distrito, e o indicador é o mesmo para aquele distrito.
O indicador varia segundo o tamanho da unidade de análise. Geralmente, o
nível de dissimilaridade tende a ser mais baixo para áreas grandes (como
distritos) do que para áreas menores (como setores censitários), no chamado
problema do grid (Sabatini, 2001).13
De qualquer modo, para tentar controlar esses problemas, adotaremos aqui dois
procedimentos principais. Trabalhar com a menor unidade de análise possível (no
caso o setor censitário), de modo a tentar minimizar o problema da distribuição
da população no interior de cada área. Calcular os índices de dissimilaridade
tanto para setores censitários, como para distritos, de modo a considerarmos o
problema do grid.
Apesar dessas dificuldades, este indicador tem sido bastante utilizado, sendo
capaz de evidenciar, por exemplo, os altíssimos níveis de segregação
residencial de negros e brancos em todas as grandes cidades norte-americanas,
com níveis mais elevados para Chicago, Detroit e Kansas City (Massey e Denton,
1993). A utilização de setores censitários como unidade de análise também
permitiu mostrar que essa forma segregação se manteve elevada entre os anos de
1940 e 1990, com uma única exceção para a queda relativa observada na cidade de
São Francisco. Apresentamos a seguir os resultados observados para São Paulo em
1991 e 2000, tendo por referência a chamada segregação socioeconômica e não a
racial.14
Avaliação da segregação residencial em São Paulo
O que tentaremos medir aqui é a evolução da segregação residencial nos anos de
1990 tendo por referência a separação entre famílias cujos chefes têm alta e
baixa renda e entre famílias cujos chefes têm alta e baixa escolaridade.
Calcularemos a medida tanto para distritos como para setores censitários nos
anos de 1991 e 2000.
Todavia, antes de apresentarmos os resultados propriamente ditos, vale a pena
discutir como os indicadores de rendimento e escolaridade ' disponíveis na
escala de setores censitários ' variaram no período nos 21 municípios da mancha
urbana de São Paulo considerados na análise.15 Apresentamos na Tabela_1 a
evolução da renda dos chefes de domicílio nos anos de 1990. Podemos observar
que a proporção de chefes com zero a três salários mínimos de rendimento mensal
caiu substancialmente de 41,8 para 35,4%, enquanto crescia ligeiramente a
proporção de chefes com mais de dez, mais de quinze e mais de vinte salários
mínimos. Provavelmente essa evolução está subestimada em valores reais, uma vez
que o salário mínimo apresentou alguma apreciação depois do Plano Real.16 De
todo modo, é preciso tomar algum cuidado com essa comparação em função
diferença entre os critérios de captação da informação sobre os "sem
rendimento" entre os censos de 1991 e 2000.17
Os dados censitários também indicam que, para a década de 1990, a proporção de
chefes com menos de três anos de estudo caiu de 24,5 para 19,3%. Analogamente,
a proporção de chefes com onze anos de escolaridade ou mais (segundo grau
completo) passou de 24,7 para 31%, embora a proporção de chefes com superior
completo (quinze anos de estudo e mais) tenha ficado praticamente estagnada, de
10,61 em 1991 para 11,32% em 2000.
Em outras palavras, ao longo da década, a população de baixíssima escolaridade
e de baixíssima renda parece ter caído significativamente na região
metropolitana de São Paulo. Esses dados são consistentes com os indicadores
educacionais mais gerais e com os dados de rendimento disponíveis a partir de
outras fontes de dados, como a PED e as PNADs e a PME.
No entanto, nem sempre a redução dos níveis de pobreza implica a redução da
segregação. Massey e Denton (1993), por exemplo, defendem o argumento de que
entre 1910 e 1940 a segregação residencial aumentou substancialmente nos
Estados Unidos, no que pese a significativa elevação dos níveis de renda. No
caso de São Paulo, quando consideramos ' para a escala de setores censitários '
os índices de dissimilaridade por renda entre chefes com zero a três salários
mínimos e aqueles com mais de vinte, podemos observar que a segregação aumentou
significativamente, passando de 71,9 para 77,0 entre 1991 e 2000 (Tabela_2).18
Além da importância do crescimento da segregação, como indicador de
deterioração das relações sociais na cidade na década de 1990, vale destacar
que os níveis observados são muito impressionantes, superiores à
dissimilaridade entre negros e brancos existente em Nova York em 1980 (Massey e
Denton, 1993), embora essa comparação deva ser tomada com ressalvas.19 Além do
mais, quando consideramos a dissimilaridade para outros estratos de renda, como
para as faixas de zero a três e dez salários mínimos e mais, observamos que '
também neste caso ' os níveis são elevados (indicando severa segregação) e cada
vez maiores ao longo da década. Em outras palavras, o fenômeno do isolamento
social parece não ter se restringido apenas aos extremos da distribuição de
renda, mas também a estratos intermediários de classe média.
Os dados de segregação por estrados educacionais, no entanto, narram uma outra
história. A segregação cresceu ligeiramente entre as famílias com chefes com
curso superior (quinze anos de estudo e mais) e aquelas cujos chefes tinham
baixa escolaridade (até três anos). Porém, ela caiu substancialmente, de 57,5
para 51,6, na comparação entre chefes com até três anos de estudo e aqueles com
segundo grau completo (onze anos de estudo e mais).20
De um lado, observamos o aumento da segregação residencial quando tomamos renda
como parâmetro; de outro, observamos sua redução tendo por referência a
escolaridade. Esse fenômeno parece ser reflexo do aumento substancial da
escolaridade ocorrido na região metropolitana de São Paulo na década de 1990
(Alesp, 2000), fazendo com que, cada vez mais, pessoas com segundo grau
passassem a residir em bairros populares. No entanto, esse movimento não se
traduziu em mudança efetiva dos padrões de segregação socioeconômica medidos
por rendimento.
Quando tratamos de medir a segregação numa outra escala ' a de distritos ',
observamos movimentos semelhantes. A segregação cresce segundo os parâmetros de
rendimento, e cai segundo os parâmetros de escolaridade (Tabela_3). Como era
esperado, os níveis de segregação são mais baixos neste caso, em função da
variação da escala de observação. Cabe destacar que distritos são unidades
espaciais de grande porte, podendo conter em seu interior uma heterogeneidade
espacial relevante (como a ocorrência de favelas) não captadas pela medida
nesta escala.21 Mesmo assim, os níveis observados ainda são relativamente
elevados, sobretudo quando consideramos a dissimilaridade entre os chefes de
zero a três salários mínimos e os de vinte salários mínimos e mais.
Ao contrário do observado em Santiago (Sabatini, 2001), onde foram constatados
queda na macrosegregação e aumento na microsegregação, em São Paulo a
segregação medida por rendimentos aumentou nas duas escalas. Essas medidas
sugerem um crescente isolamento social, tanto na comparação entre grandes
áreas, como localmente, no interior de cada distrito. Indicam também a extensão
e a profundidade do fenômeno.
Em síntese, os resultados aqui apresentados apontam uma evolução complexa da
"situação social" paulistana na década de 1990. De um lado, observamos redução
da pobreza e da proporção de chefes de família com baixíssima escolaridade. De
outro, constatamos um aumento substancial da segregação residencial, quando
observada por parâmetro de renda. Esse fenômeno não é de todo inesperado para a
região metropolitana de São Paulo. De fato, a década de 1990 foi sempre
contraditória em relação a outros indicadores sociais, com melhora
significativa em alguns deles (como educação e saneamento) e deterioração
relevante de outros (como desemprego e violência) (Alesp, 2000).
Hipóteses sobre a evolução observada nos anos de 1990
Para justificar o aumento da segregação observado para a década de 1990,
poderíamos ' com base na literatura ' formular três hipóteses diferentes, não
excludentes:
Incremento no padrão de auto-isolamento dos grupos de renda mais elevada: Tal
hipótese pode ser derivada, por exemplo, do trabalho de Caldeira (2000), que
aponta para o impacto do crescimento de condomínios e áreas fechadas, sobretudo
na porção Oeste da região metropolitana.22
Maior grau de isolamento da população favelada: Este argumento foi utilizado
por Kowarick (2001), por exemplo. Porém, deve-se chamar a atenção para o fato
de que o crescimento demográfico das favelas não pode ser utilizado per si como
indicador de segregação. Se esse crescimento é acompanhado de uma maior
heterogeneidade social das favelas, por exemplo, ele pode implicar em redução
da segregação, ao menos nos termos de um indicador como o índice de
dissimilaridade.23
Continuidade do processo de periferização: Tem-se observado esse processo com
o consistente aumento da população de municípios e distritos mais afastados do
centro de São Paulo (Villaça, 1999). Trata-se de um fenômeno em curso deste os
anos de 1950, mas a partir da década de 1970 os distritos centrais passaram a
apresentar taxas negativas de crescimento, enquanto os distritos da periferia
urbana continuaram a apresentar taxas elevadas.24 No entanto, nem sempre o
crescimento demográfico implica maior segregação.
Para discutir com mais profundidade esses elementos, apresentamos no Mapa_1 e
na Tabela_4 a distribuição dos setores censitários da mancha urbana de São
Paulo, classificados segundo o estrato de renda predominante dos chefes de
domicílio desse setor.25
Do ponto de vista espacial, podemos observar que as famílias cujos chefes têm
renda superior a dez salários mínimos são localizadas de forma predominante no
centro da metrópole, o que é consistente com o modelo centro-periferia
(Villaça, 2001). Observa-se, no entanto, uma importante heterogeneidade, dada
pela significativa presença de núcleos de maior renda nos bairros de Santana e
Tatuapé, bem como nos núcleos dos municípios do ABC e de Guarulhos e nos
condomínios dos municípios do Oeste da região metropolitana (Marques e Bitar,
2002).
De modo análogo, os grupos de renda intermediária localizam-se num anel
intermediário, e os grupos de menor renda ao longo de todo anel periférico.
Cabe porém destacar a significativa presença de áreas de baixa renda
incrustadas ao longo de todo anel intermediário, elemento que pode ser
explicado em função da presença de setores subnormais (favelas) tanto no anel
intermediário como no periférico.
A rigor, a divisão da região metropolitana nestes três grupos de setores
censitários permite-nos refletir com mais profundidade a respeito dos processos
subjacentes ao aumento da segregação observado na seção anterior. Esses
resultados podem ser observados na Tabela_4.
Podemos observar que, na comparação entre 1991 e 2000, a proporção de chefes
com mais de dez salários mínimos que residem em setores predominantemente
ocupados por famílias pertencentes a este grupo de renda cresceu de 48,6 para
50,9%. Em outras palavras, as áreas mais ricas da região tornaram-se um pouco
mais "exclusivas" no período, em função da redução da proporção de famílias
cujos chefes tinham entre três e dez salários mínimos. Esses resultados parecem
consistentes com a hipótese proposta por Caldeira (2000), relacionada ao
aumento da auto-segregação dos mais ricos.26
Por outro lado, nas áreas predominantemente ocupadas por famílias cujos chefes
recebiam entre zero e três salários mínimos, observou-se um aumento substancial
da participação das famílias mais pobres, sendo que a proporção de pobres
residindo neste tipo de setor passou de 32,7 para 46,9%.27 Isso quer dizer que
as áreas com predominância de pessoas muito pobres se tornaram menos
diversificadas socialmente. Ou seja, esses dados mostram que o crescimento
demográfico observado na periferia de fato contribuiu para o aumento da
proporção de pobres neste tipo de área, conforme a hipótese sugerida por
Villaça (1999).
Para melhor interpretar os resultados, apresentamos a seguir o mesmo problema
em termos do indicador de dissimilaridade (Tabela_5). Para isso, lançamos mão
da chamada "contribuição de cada área para a dissimilaridade".28
De fato, quando tomamos ' nos setores normais ' o índice de dissimilaridade
para os dois extremos da distribuição de renda, podemos observar que a
contribuição para a segregação dos setores predominantemente pobres aumentou
entre 1991 e 2000, ao mesmo tempo em que também crescia a contribuição da
segregação nos setores predominantemente ricos. Quando tomamos isoladamente os
setores subnormais (favelas), podemos também observar que esse grupamento
contribuiu também para o aumento da segregação residencial no período.
Em termos absolutos, a maior contribuição para a dissimilaridade é dada pelos
setores censitários com elevadas proporções de famílias mais ricas. No entanto,
observou-se um maior crescimento do grau de isolamento social das populações de
favela e periferia, reforçando sua relevância na explicação da elevação dos
níveis de segregação residencial na região metropolitana de São Paulo ao longo
da década de 1990. As áreas de renda intermediária ' aqui caracterizada pelas
áreas com predomínio de famílias de três a dez salários mínimos (Mapa_1) '
continuam sendo importantes para explicação dos elevados níveis de segregação,
mas seu impacto foi reduzido na última década.
Conclusão
De certa forma, os resultados aqui apresentados permitem a inserção do tema da
segregação no âmbito do debate sobre a chamada "década perdida". Vários autores
discutiram o paradoxo da melhora dos indicadores sociais nos anos de 1980 vis-
à-visa dinâmica negativa da economia brasileira.29 O fenômeno foi explicado em
função da ação dos movimentos sociais e, sobretudo, como fruto do caráter
inercial das políticas públicas urbanas (Marques e Najar, 1995; Torres, 1997).
Aparentemente, os dados de segregação caminham no sentido de reafirmar, para a
década de 1990, paradoxo análogo.
Em outras palavras, embora a ação estatal tenha contribuído nas últimas décadas
para reduzir a desigualdade em termos de acesso a serviços públicos '
particularmente educação e saneamento ', essas intervenções não contribuíram
para reduzir de modo significativo o grau de isolamento entre os grupos sociais
existentes em São Paulo. Os níveis de segregação já eram elevados em 1991 e
cresceram na última década.
Aparentemente, uma das poucas políticas sociais que poderia ser utilizada de
modo consistente para combater a segregação residencial ' embora possa agravá-
la ' é a política habitacional (Briggs, 2001).30 Infelizmente, essa política
parece ter sido pouco prioritária, tanto na agenda nacional como local na
década de 1990.31 Enquanto volumes significativos de recursos eram alocados '
inclusive mediante reformas constitucionais ' para as áreas de saúde e
educação, os recursos para a área de habitação ficaram relativamente
contingenciados, até mesmo devido aos problemas observados com o FGTS nos anos
de 1990.
De modo geral, políticas habitacionais ' sobretudo aquelas voltadas para os
grupos de menor renda ' precisam ser subsidiadas. Esse elemento, somado ao
elevado déficit habitacional,32 pode ter desencorajado programas habitacionais
em larga escala, sobretudo num contexto de severa restrição orçamentária. De
qualquer maneira, ainda precisamos entender em profundidade por que as
políticas habitacionais avançaram lentamente na década, quando outras políticas
sociais apresentaram resultados mais significativos.
Num artigo publicado na imprensa,33 por exemplo, o presidente da Caixa
Econômica Federal ao longo do Governo Fernando Henrique Cardoso (Emílio
Carazzai) argumentava que os mecanismos de crédito não subsidiado não eram
adequados para as famílias que recebiam menos de três salários mínimos. Além
disso, o programa público mais importante na área (Programa de Arrendamento
Residencial ' PAR) naquele momento não podia ser adequadamente implantado em
regiões metropolitanas em função da inadequação do valor dos financiamentos aos
altos custos dos terrenos existentes nas metrópoles.
Em tese, as restrições orçamentárias poderiam ser parcialmente contornadas por
meio de políticas habitacionais não convencionais, tais como a urbanização de
favelas, a regularização fundiária e a readequação de cortiços. Essas políticas
podem ter impactos importantes porque são muito mais baratas e podem envolver
aspectos de desenvolvimento comunitário. No entanto, elas contribuem pouco para
a redução da segregação residencial porque, em geral, não produzem uma maior
"mistura populacional".
Em síntese, a necessidade de uma política habitacional capaz de combater a
segregação residencial e suas conseqüências parece ser uma prioridade evidente
para uma região metropolitana como a de São Paulo, onde o crescente sentimento
de mal-estar coletivo, violência e degradação urbana é a manifestação mais
aparente do fenômeno. Porém, a prioridade política, bem como as condições
institucionais e financeiras de tal política não parecem ter sido viabilizadas
na última década.
Notas
1 Exceções são os trabalhos de Edward Telles (1994, 1995 e 2003).
2 Por macrosegregação consideramos o fenômeno numa escala espacial mais
abrangente, como distritos censitários. Por microsegregação, tomamos os setores
censitários como unidade de análise. Em termos empíricos, pode-se observar
distinções importantes entre esses fenômenos, com a redução da macrosegregação
em uma determinada área urbana e o aumento da microsegregação, como ocorrido em
Santiago recentemente (Sabatini, 2001).
3 A renda familiar per capita seria a variável mais adequada para medirmos as
dimensões socioeconômicas da segregação residencial. Infelizmente, o IBGE não
publica essa variável na escala de setores censitários, inviabilizando sua
utilização como medida de microsegregação.
4 Na América Latina muitas vezes esse conceito tem sido utilizado de modo
frouxo, assumindo que a segregação espacial é um mero reflexo das diferenças
sociais. O termo segregação é também tomado como sinônimo de desigualdade,
exclusão e mesmo de pobreza (Sabatini, 2001).
5 "Segregação é o processo pelo qual a população é forçada ' isto é, de modo
involuntário ' a se concentrar em uma área específica, num ghetto. Trata-se do
processo de formação e manutenção desse ghetto" (Marcuse, 2001).
6 Por mais interessante e rigorosa que seja essa definição, a identificação do
quanto a segregação de uma determinada área é forçada ou voluntária é
praticamente impossível do ponto de vista das medidas convencionais do
fenômeno. É inevitável utilizar dados etnográficos para se identificar, por
exemplo, se as famílias que residem numa dada área o fazem, ou não, por falta
de opção. Em outras palavras, as medidas de segregação, que normalmente se
baseiam em dados agregados por áreas, permitem observar os níveis de segregação
e sua variação ao longo do tempo, mas não permitem qualificar sua natureza
(forçada, auto-segregação etc.).
7 Essa discussão é baseada em parte em Yinger (2001).
8 Por exemplo, uma parcela significativa das favelas de São Paulo está
localizada em locais de risco ambiental (Taschner, 1992).
9 Esse efeito seria ainda maior se a moradia em terreno ocupado (como em
favelas) não existisse.
10 Tal possibilidade é menos freqüente no Brasil em função da legislação que
veda o despejo de famílias possuidoras de um único imóvel próprio.
11 Massey e Denton (1993) mencionam outras dimensões, tais como concentração
(que mede a densidade da pobreza) e centralização (que mede sua localização em
relação ao centro da cidade). Consideramos esses elementos menos relevantes
para a discussão brasileira.
12 Em termos formais, o índice de dissimilaridade pode ser descrito por: ID =
0,5 Â ~ Xi ' Yi~, onde Xi é a proporção de membros do grupo X residentes no
distrito i (em relação ao total de pessoas do grupo X no município) e Yi é a
proporção de membros do grupo Y residentes no distrito i (em relação ao total
de pessoas do grupo Y no município).
13 Esta última característica tende a tornar mais complexas as comparações
interáreas pois, para que a comparação seja realizada adequadamente, o tipo de
unidade de análise tem de ser relativamente homogêneo nas duas localidades
observadas.
14 Infelizmente o IBGE não publica, na escala de setores censitários, os dados
de raça ou cor.
15 Devido à disponibilidade de dados por setor censitário, consideramos nesta
análise os 21 municípios que formam a mancha urbana de São Paulo e contribuem
com mais de 92% da população total da região metropolitana. Grosso modo,
excluímos municípios de pequeno porte e predominantemente rurais como Santa
Isabel, Juquitiba e Salesópolis. Todos os municípios de grande porte, como São
Paulo, Osasco, Guarulhos e os da região do ABCD foram considerados.
16 Os ganhos salariais do Plano Real passaram a ser comprometidos a partir de
1998. Todavia, em 2000 os níveis observados eram significativamente superiores
aos de 1991, sobretudo em função da redução da inflação.
17 Considerando os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED-Seade/Dieese)
' para a qual não há variação na forma de captação da informação sobre os "sem
rendimento" ', a proporção de chefes de domicílio com renda entre zero e três
salários mínimos passou de 44,4% em setembro de 1991 (data do censo) para 31,0%
em julho de 2000.
18 O fato de o número de setores censitários não ser idêntico entre os dois
censos pode distorcer em alguma medida a comparação aqui realizada.
Apresentamos no Anexo_1 os mesmos dados para agrupamentos de setores
censitários comparáveis nos dois censos. Os resultados aí observados são
bastante similares, e as conclusões apontam para a mesma direção.
19 Nesse estudo, os autores consideram também a escala de setores censitários
para produzir os indicadores de segregação. No entanto, os setores censitários
norte-americanos têm tamanho superior aos brasileiros, com aproximadamente
quatro mil habitantes por área. Em contrapartida, segregação racial e
socioeconômica não são necessariamente comparáveis diretamente.
20 Esses dados são consistentes com estudos recentes. Há evidência de que a
principal barreira à ascensão educacional existente na escola brasileira hoje,
particularmente em São Paulo, encontra-se agora na passagem do segundo grau
para a universidade (Menezes-Filho, 2002).
21 Ver na seção "Segregação e políticas públicas" a discussão sobre o problema
do grid.
22 Essa hipótese parece sugerir o aumento da microsegregação (na escala de
setores censitários), mas não necessariamente o da macrosegregação.
23 Embora os números envolvidos nesta área sejam polêmicos, sobretudo em função
de estimativas sobre-registradas de população favelada realizadas pela Fipe
(Diário Oficial do Município de São Paulo, 1995), tudo indica que tem havido um
aumento consistente da proporção população que reside em favelas desde os anos
de 1970 (Torres e Marques, 2002). Entre 1991 e 2000, a população residente nos
chamados setores censitários subnormais ' o conceito de favelas do IBGE '
cresceu a uma taxa de 3,7% ao ano, contra um crescimento de 0,9% para o
conjunto do município.
24 Distritos como Grajaú, Jaraguá e Cidade Tiradentes cresceram a mais de 4%
ano entre 1991 e 2000.
25 Por predominantemente de zero a três salários mínimos, por exemplo,
entendemos que este setor tem um maior número de chefes de zero a três salários
mínimos do que de chefes de três a dez salários mínimos ou de dez salários
mínimos e mais.
26 Este resultado é afetado pelo recorte especial adotado. Num exercício
análogo, onde adotamos um outro recorte especial que considerava
simultaneamente renda familiar e taxa de crescimento demográfico, a proporção
dos mais ricos residindo em áreas com predomínio de famílias de renda mais
elevada ficou estável.
27 A proporção de famílias nas áreas com predomínio de pobres passou de 22,1
para 22,8% do total da mancha urbana.
28 Em termos matemáticos, trata-se da forma 0,5 Â ~ Xi ' Yi~, para uma dada
sub-região da cidade. Ver seção "Segregação e políticas públicas".
29 Ver, por exemplo, Faria (1992) e Silva (1992).
30 As políticas de zoneamento urbano e de taxação da renda da terra também
podem, em tese, ser mobilizadas com este objetivo.
31 Uma possível exceção é o governo de Luiza Erundina na prefeitura de São
Paulo.
32 O déficit habitacional brasileiro foi estimado em seis milhões de moradias
em 2000 (FJP, 2000).
33 Ver, Valor Econômico, 3 abr. 2002, p. A12.