Evaristo de Moraes Filho e a maioridade dos trabalhadores brasileiros
No acervo das pesquisas sociológicas, o lugar ocupado pelo livro O problema do
sindicato único no Brasil e seus fundamentos sociológicos(1 ed. 1952), de
Evaristo de Moraes Filho, merece ser revisto. O autor faz a defesa impecável da
adoção de uma abordagem sociológica no estudo das associações profissionais e
dos sindicatos operários, reunindo uma disciplina e um tema que até então não
tinham sido relacionados, mas cuja validade poderia ter sido reconhecida em
pequeno círculo de estudiosos da sociologia e intelectuais voltados para a
institucionalização da disciplina naquela época. No campo do direito, as
dificuldades para o reconhecimento de suas teses não eram menores, embora os
motivos não fossem os mesmos. O reconhecimento da importância de uma sociologia
do direito enfrentava as hostilidades dos juristas, mais afeitos às matérias
normativo-doutrinárias próprias do seu métier, legitimado pela longa tradição
de trabalho, do que às concepções e às práticas sociológicas que não só
guardavam o caráter de "novidade" como também almejavam à neutralidade
axiológica. O pioneirismo de Evaristo de Moraes Filho não se limita, porém, ao
uso de abordagem sociológica para a compreensão do surgimento e do papel das
primeiras associações sindicais no Brasil, nem tampouco à posição que adotou em
relação à explicação sociológica do fato jurídico, encontra-se, antes, a meu
ver, no significado que atribui à capacidade de associação livre por interesse
(Weber, 1991, pp. 25-30) dos trabalhadores para a construção da sociedade
moderna no país. Ao reconhecer a maioridade dos trabalhadores brasileiros para
lutar pela melhoria de suas condições de vida, Evaristo toma posição contrária
a um dos mais eficazes mitos da cultura brasileira ' ambigüidade e incapacidade
de os brasileiros se tornarem "modernos" ', para o que haveriam de recorrer a
verdadeiro Leviatã. É defendendo o ponto de vista de que a obra O problema do
sindicato único no Brasil e seus fundamentos sociológicos remou contra a maré
do seu tempo, e, ainda, se põe hoje contra as interpretações da "faltosa" e
"incompleta" sociedade brasileira que procuro aqui rever o pensamento de seu
autor no quadro das interpretações sobre a modernidade no Brasil.
Insolidarismo social é a expressão que define a "falta" ou a "ausência" de
instituições organizadas livremente para atender a interesses de grupos, e cuja
durabilidade é essencial para que sejam reconhecidas e se tornem eficazes. A
fugacidade das instituições no Brasil, como uma característica da cultura
brasileira, tornara-se questão relevante no pensamento de Oliveira Vianna, mas,
segundo Evaristo, dela tinham se ocupado também Gilberto Freyre, Capistrano de
Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Alberto Torres e Tobias Barreto (Moraes
Filho, 1978, pp. 314-319). O insolidarismo devia ser combatido
programaticamente, evitando-se a fragmentação e o afrouxamento dos laços de
instituições e associações. Diferenciando-se porém de seus interlocutores,
Evaristo escreve um livro em que as associações operárias e sindicais adquirem
centralidade na pesquisa e reflexão do autor, levando-o a argumentar que a
pressão política que exerceram, em finais do século XIX e primeiras décadas do
século XX, foi indispensável para a formulação das leis trabalhistas no país.
Com tal argumento, O problema do sindicato único no Brasil desmistificava a
crença na "outorga" das leis aos trabalhadores pelo governo autoritário de
Getúlio Vargas.
Tanto uma como outra das duas questões apontadas ' a abordagem sociológica das
associações operárias e sindicais, e a relação entre capacidade de associação
livre por interesse e a construção de uma sociedade moderna ' levam aqui à nova
interpretação da obra em pauta, cuja tarefa é conferir às idéias de Evaristo de
Moraes Filho o seu "devido lugar" no campo do pensamento social brasileiro e na
história da sociologia, particularmente no Rio de Janeiro. Acredito que aquelas
questões ficaram obscurecidas nas revisões e nas interpretações do pensamento
sociológico por dois motivos. Primeiro, pelo fato de que o livro se tornou
conhecido pela tese contrária à política do Estado Novo levada a cabo por
Getúlio Vargas. A interpretação corrente é de que seu autor defende as
associações, as reivindicações e as lutas operárias como força de pressão para
a promulgação de decretos e leis dos anos de 1930,1 reunidos na Consolidação
das Leis do Trabalho, que entrou em vigor em 1943 durante o Estado Novo.
Combatendo desta forma a ideologia e a historiografia oficiais que atribuem a
Getúlio Vargas a outorga das leis, o livro, publicado em 1952, no Rio de
Janeiro, pela editora A Noite, foi visto como manual jurídico "quase de prática
forense" (Moraes Filho, 1978), muito embora se tratasse de fato de um libelo
contra a política trabalhista do Estado Novo. Em escritos e entrevistas, o
autor confirma a versão da recepção tardia do livro no campo da sociologia. Ao
rememorar os efeitos de seu trabalho, Evaristo não esconde sua insatisfação com
o "esquecimento" do livro nas bibliografias das pesquisas sobre o sindicalismo
no Brasil (Idem, pp. 327-328).2
Há que se reconhecer que não é de pouca monta o motivo que supostamente marcou
a recepção de O problema do sindicato único no Brasil tanto no campo do direito
como no da sociologia. O fato de seu autor retirar a classe operária de sua
menoridade, atestando sua capacidade plena de lutar pelos seus direitos de
forma organizada e contínua, por meio de pesquisa minuciosa que põe em relação
movimentos, reivindicações, greves e legislação, durante a primeira república,
questiona frontalmente o mito Vargas, guardião do outorgante das leis
trabalhistas e do Estado como organizador das classes trabalhadoras. Contrapor-
se a um mito que opera com símbolos e valores na construção de uma imagem
passiva e dócil da classe trabalhadora não foi certamente tarefa fácil em um
país afeito a práticas hierárquicas e autoritárias. Publicado no momento em que
Getúlio Vargas retornava à presidência da República, o livro teve sua primeira
edição esgotada. Mas o sucesso do lançamento não correspondeu à sua efetiva
recepção nos meios intelectuais, sobretudo nos jurídico e sociológico. Ao
contrário, guardou-se um longo silêncio sobre o escrito de Evaristo de Moraes
Filho e, somente em 1978 ' 26 anos depois da primeira edição ', é publicada a
segunda edição pela editora Alfa Omega, em São Paulo, prefaciada por Paulo
Sérgio Pinheiro.
Há, contudo, outro motivo tão ou mais importante do que o primeiro, embora
ainda pouco explorado. Diz respeito ao instrumental sociológico utilizado pelo
autor, sem o qual, a meu ver, dificilmente teria chegado ao questionamento do
"mito da outorga". Ressalte-se que não se trata dos fundamentos sociológicos do
livro, que já mencionei, porém da moldura conceitual proveniente da concepção
de sociedade e história, que informam a constituição da pesquisa realizada por
Evaristo. Tal moldura não corresponde e muito menos se confunde com os quadros
teóricos e conceituais que marcaram definitivamente a sociologia dos anos de
1950. Explico melhor. Evaristo não faz uso das concepções teóricas inscritas na
sociologia emergente da época que, referidas à mudança social, se fundam na
comparação entre relações sociais tradicionais e relações sociais modernas,
entre o velho e o novo, o desenvolvimento e o atraso do país. Ao contrário de
tantos contemporâneos seus, não desqualifica o passado, mas, volta a ele para
evidenciar o conjunto de ações, movimentos, greves e paralisações, cujo
desenrolar provocou mudanças efetivas nos direitos dos trabalhadores. Além
disso, a abordagem dos sindicatos e das associações operárias como grupos
profissionais que agem e interagem e, portanto, fazem sociedade na acepção da
sociologia de Simmel (Vergesellschaftung) livrou o sociólogo da medidade
avaliação da sociedade brasileira, largamente utilizada na época, dada pelos
pares conceituais status/contractus Gemeindschaft/Gesellschaft, cultura folk/
civilização, que dividiam a sociedade em duas metades.
Não fosse a concepção de que "sociedade" se faz de um conjunto de ações e
relações sociais, conflituosas e consensuais, adotada pelo autor, Evaristo de
Moraes Filho dificilmente consideraria positivo e exitoso o movimento dos
trabalhadores. No pósfácio à segunda edição do livro, afirma que fizera uso
exagerado da idéia de grupo social como objeto da sociologia, quando deveria
ter analisado os grupos sindicais dentro da problemática da sociedade global.
Creio que, se essa "problemática" concernisse aos problemas contidos nas noções
de tradição e modernidade ou atraso e desenvolvimento, o autor não teria
reconhecido a capacidade da classe trabalhadora e questionado o mito da
outorga.
Por todas essas questões, que dizem respeito às peculiaridades do pensamento
sociológico sobre a modernidade no Brasil, interessa percorrer a argumentação
central do livro de Evaristo Moraes Filho, o qual possibilitou a revisão dos
movimentos operários como força atuante na formulação da legislação,
restituindo aos trabalhadores sua maioridade. Somente a "maioridade" (Kant,
1985) da classe trabalhadora asseguraria a associação livre por interesse que
constitui um dos fundamentos da sociedade moderna. Se concordarmos com essa
perspectiva, veremos como Evaristo de Moraes Filho discute a construção de uma
sociedade moderna no Brasil, dialogando com intelectuais do seu tempo sobre
problemas que dizem respeito ao que hoje se chama de "associativismo" ou
capacidade de associação, sem que tenha feito uso da moldura teórica e
conceitual que cunhou a sociologia dos anos de 1950, voltada para as mudanças
sociais e históricas, o desenvolvimento e a modernização do país.
A maioridade da classe trabalhadora
A literatura sociológica dos anos de 1940 e 1950 está repleta de histórias,
observações, descrições e séries estatísticas que evidenciam desigualdades,
injustiças, abuso dos poderosos, desamparo dos despossuídos, preconceito e
ausência de lei. Se o esquecimentomais do que a penúria é a maldição da pobreza
(Arendt, 1988, p. 53), pode-se argumentar que as pesquisas sociológicas daquela
época tiraram da obscuridade os pobres, trazendo, definitivamente, para a cena
social e histórica, posseiros, ribeirinhos, migrantes e imigrantes, pau de
arara, operários, despossuídos de toda sorte. Nesta importante vertente da
sociologia brasileira, que desloca o foco da atenção das elites políticas e do
"exotismo" dos grupos étnicos para destacar o "homem comum" das camadas sociais
pobres e subordinadas da população, reside um paradoxo que consiste na recusa
em reconhecer a "maioridade"3 daqueles agentes sociais que põe em cena.
Trabalhadores, operários pobres, cortadores de cana e pequenos proprietários
rurais, balconistas, pescadores, indivíduos e grupos de baixa renda estariam de
tal forma moldados à obediência dos poderosos, que não poderiam mais se
desvencilhar do jugo ao qual estavam sujeitos. Muitas pesquisas concluíram pela
incapacidade desses indivíduos e grupos de tomar decisões adequadas,
reivindicar interesses, movimentar-se, reunir-se em associações com a
finalidade de mudar sua situação de vida. Motivos dos mais variados serviram
para o entendimento da inércia dos mais humildes, aterrados na labuta diária. O
voto de cabresto (Leal, 1948), a ausência de um projeto para o futuro (Willems,
1952; Costa Pinto, 1997), a aceitação extremada de relações de dominação de
caráter violento, material ou simbólico (Costa Pinto, 1997; Leeds, 1957) foram
analisados como decorrência do patrimonialismo da sociedade brasileira.
Coronelismo, mandonismo, patriarcalismo ou patrimonialismo fosse qual fosse a
definição e as nuanças das formulações (Carvalho, 1999), o modelo de
interpretação utilizado mostrava que a sociedade brasileira mantinha acesa a
chama de uma forma de dominação, pessoalizada, arbitrária e hierárquica, em
cujo sistema se processavam relações de troca recíproca até certo ponto bem-
sucedidas, já que impediam a emancipação das camadas subordinadas e
favoreceriam os donos do poder. O princípio da "maioridade" dos trabalhadores
talvez encontre alguma afinidade com a interpretação que Maria Isaura Pereira
de Queiroz faz do voto de cabresto em O Mandonismo local na vida política
brasileira e outros ensaios (1976), mostrando que o voto de trabalhadores e
pequenos proprietários rurais fazia parte de um sistema de troca recíproca com
os políticos locais. Trata-se, entretanto, de uma exceção.
Se até mesmo o "brasileiro" como um ser genérico fora tantas vezes visto como
incapaz de ser moderno, e de internalizar os valores indispensáveis para uma
conduta impessoal e igualitária, o que dizer dos menos letrados mergulhados no
mundo da própria sobrevivência. Em grandes interpretações do Brasil, a exemplo
de Carnavais, malandros e heróis de Roberto da Matta, a singularidade do
problema brasileiro encontra-se, como afirma o autor, no "controle radical das
mudanças". Tão autoritários quanto democráticos, os brasileiros não estariam
aqui nem lá, mas simplesmente se habituaram a exercer controle sobre qualquer
possibilidade de transformação efetiva da sociedade brasileira em uma sociedade
moderna e igualitária. Antes mesmo de Roberto da Matta, Sérgio Buarque de
Holanda discutia em Raízes do Brasil, de 1936, o controverso conceito de
cordialidade brasileira, pondo em cheque a capacidade de os brasileiros se
desvencilharem da prática de relações pessoais e autoritárias, que impedia a
construção da sociedade moderna, atribuindo às origens ibéricas as causas de
tal obstáculo.
Vale dizer que ao retomar intérpretes do Brasil como Oliveira Vianna, Gilberto
Freyre ou Sérgio Buarque de Hollanda em O problema do sindicato único no
Brasil, Evaristo de Moraes Filho o faz para avaliar suas contribuições
específicas no que respeita à capacidade de associação livre por interesse sem
ocupar-se de suas interpretações sobre a sociedade tradicional e a implantação
de uma sociedade moderna (1978, pp. 308-319). Evaristo não somente se
diferencia de seus antecessores como também de contemporâneos seus quanto ao
tipo de "resposta" que poderia ser dada aos problemas do país. A resposta da
intelectualidade brasileira tanto para o problema das associações livres por
interesse no Brasil, como para tantos outros que evidenciavam para eles o
"atraso" brasileiro, foi quase sempre mais pedagógica do que política. A
educação traria consciência para a gente despossuída. Basta ver o projeto do
CBPE (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais), criado no Rio de Janeiro em
1955, sob inspiração de Anísio Teixeira, que contou com a participação ativa de
Darcy Ribeiro e Costa Pinto.4 Ou verificar os registros do Seminário sobre
Resistências à Mudança (1960), que Costa Pinto organizou no Rio de Janeiro em
1959, chamando a atenção para as adversidades econômicas e sociais com as quais
tinham de contar aqueles que estavam engajados no desenvolvimento do país, e o
papel que a educação poderia desempenhar no sentido de superar os obstáculos.
Nada disso se assemelha ao livro de Evaristo. A solução que apresenta para o
exercício da cidadania é de caráter associativo político e não de cunho
pedagógico. Mudança de mentalidade haveria de ocorrer entre juristas, políticos
e legisladores e não na classe trabalhadora. É preciso porém explicitar melhor
os fundamentos de sua tese, comparando-a com o quadro conceitual das pesquisas
da época, para compreender a posição do autor. O debate intelectual dos anos de
1950, meio ao qual O problema do sindicato único no Brasilvem a público, está
interessado na passagem de uma sociedade tradicional para uma sociedade
moderna. Grande parte dos cientistas sociais, considerando a existência de um
padrão de desenvolvimento com base nas mudanças sociais ocorridas em sociedades
como a inglesa, a francesa e a norte-americana, conclui que o processo de
transição de uma ordem tradicional para uma ordem moderna no Brasil é
problemático, elaborando concepções críticas daquele processo como se verifica
no conceito de marginalidade estrutural de Costa Pinto (1960) ou na idéia de
modernização reflexa de Darcy Ribeiro (1980). Pode-se ainda observar essa
vertente crítica da história da modernidade no Brasil em um conjunto destacado
de pesquisas que fizeram uso das idéias de desenvolvimento e atraso brasileiros
(Vianna, 1999). O livro de Evaristo de Moraes Filho permaneceu fora desta
influente vertente que emerge nos anos de 1950 para analisar o processo de
mudanças no país a partir dos pares conceituais atraso/desenvolvimento e
desenvolvimento/subdesenvolvimento. Justamente porque não fez uso da moldura
que envolveu a maior parte dos estudos sociológicos, fundamentados em uma
concepção de história processual que impunha um padrão único para a modernidade
e, conseqüentemente, levava à representação da sociedade brasileira como
ambígua e atrasada, Evaristo pode evidenciar a maioridade da classe
trabalhadora no seu empenho associativo e reivindicatório.
A pergunta que se segue é, naturalmente, como foi possível a Evaristo remar
contra a corrente de seu tempo, diferenciando-se de seus contemporâneos no que
respeita ao reconhecimento da capacidade plena dos trabalhadores de exercerem a
cidadania, lutando pelos seus direitos a melhores salários e condições de
trabalho? O que o motiva a retirar a classe trabalhadora de sua minoridade,
atribuindo-lhe a capacidade de associar-se livremente a favor de seus
interesses? Há pelo menos duas modalidades de resposta a essas perguntas. Uma
delas utiliza-se da própria memória do autor, o qual por diversas vezes, em
depoimentos e entrevistas, especialmente as concedidas em 2002 por ocasião do
cinqüentenário da publicação de O problema do sindicato único no Brasil,
reafirma o que escreveu no posfácio da edição de 1978, ressaltando que os oito
anos de trabalho nas Comissões Mistas de Conciliação do recém criado Ministério
do Trabalho foram decisivos para a elaboração do livro. A par disto, a
influência exercida pelo seu pai Evaristo de Moraes, jurista "lutador social da
República Velha", fizeram-no recusar a propalada idéia de que a legislação
social havia sido uma outorga espontânea de Getúlio Vargas, considerando-se o
movimento de 1930 como um divisor de águas relativamente às lutas operárias.
Antes mesmo de concluir o curso de direito em 1937, Evaristo ingressara na vida
pública, no Ministério do Trabalho, como secretário das Comissões Mistas de
Conciliação, no Rio de Janeiro, que haviam sido criadas em 1932 com a
finalidade de realizar acordos entre empregadores e empregados, cada parte
designando três representantes. Não tinham competência judicante mas meramente
conciliatórias, com funções de direito coletivo (greves, conflitos e convenções
coletivas). O jovem secretariou essas Comissões até sua extinção, em 1941,
quando foi criada a Justiça do Trabalho. Durante todo esse período, portanto,
teve contato com ações trabalhistas e pôde acompanhar de perto a atuação dos
sindicatos, tanto de empregados como de empregadores.
Em 1950, começa a dar aulas na Faculdade Nacional de Direito e inicia a
elaboração de O problema do sindicato único no Brasil. A idéia original era
apresentá-lo como tese de livre-docência na Faculdade Nacional de Direito. Mas
Edgardo de Castro Rebelo, seu antigo professor da Faculdade de Direito, o
dissuade da idéia. Evaristo fazia duras críticas à política trabalhista de
Getúlio Vargas, com o intuito de desmistificar o mito estadonovista, o
paternalismo, a outorga de leis trabalhistas. As pesquisas feitas sobre o
sindicalismo resultaram no livro de 1952, enquanto a livre-docência em Direito
viria em 1953, com a tese A justa causa na rescisão do contrato de trabalho.
Não desejo aqui, contudo, explicar a elaboração de O problema do sindicato
único no Brasil como uma decorrência da biografia de seu autor, mas, antes,
compreender como Evaristo de Moraes Filho reelaborou no plano das idéias
acontecimentos que cunharam sua vida e experiências no contexto dos anos de
1930 e 1940. Se isto for possível, a segunda modalidade de resposta à pergunta
de como pode Evaristo distinguir-se de uma geração de sociólogos e estudiosos,
ao apostar na maioridade dos trabalhadores, encontra-se no plano das idéias que
conformam a construção do argumento central de O problema do sindicato único no
Brasil. O livro estrutura-se no princípio sociológico de que as práticas
sociais antecedem a formalização das leis, modalidade compreensiva da vida
social que vamos tratar a seguir.
Sociologia versus direito
O livro em questão é mais do que uma simples peleja contra os juristas que
crêem no mito da outorga das leis trabalhistas por Getúlio Vargas, porém, uma
tomada de posição contra a tese defendida no campo do direito, segundo a qual o
corpo doutrinário e o caráter normativo das leis têm existência autônoma e
própria. Herdeiros de uma tradição bem mais antiga do que a sociologia, os
juristas nem sempre viram com bons olhos a ingerência da "nova" disciplina como
meio explicativo e compreensivo do fato jurídico. Habituados à formulação de
doutrinas e à construção dogmático-normativa, e munidos de vasto material
experimental e teórico, os juristas desenvolveram sua prática na ciência do
direito a partir de modelos lógicos e predeterminados aos quais ajustam
soluções ou providências (Miranda Rosa, 1996). A manutenção da unidade interna
do sistema jurídico torna-se conseqüentemente um de seus maiores objetivos:
O teórico do Direito procura obter o grau mais alto de coerência
interna com um mínimo de mudança no seu sistema conceitual, de modo a
contribuir para a manutenção da máxima segurança jurídica ou seja da
possibilidade de prever a aplicação de normas e princípios jurídicos
nos casos particulares. Dessa maneira é criada uma impressão de que o
núcleo do Direito é constituído em grande parte de princípios
permanentes, incidindo as transformações principalmente sobre
aspectos periféricos ou secundários da ordem jurídica ou, então,
operando as mudanças mais importantes segundo modos preestabelecidos
e gradualmente, sem afetar a unidade interna do sistema (Idem, p.
46).
Ora, esse procedimento típico da prática legislativa torna compreensível a
hostilidade e a recusa em aceitar os fundamentos sociológicos dos fatos e das
leis. Porém, o princípio da coerência e da ausência de contradição entre as
leis, que define procedimentos técnicos da prática legislativa, voltada
exclusivamente para a manutenção da unidade do sistema de normas jurídicas, não
explica por si a recusa da sociologia pelos juristas. Em 1950, dois anos antes,
portanto, da publicação de O problema do sindicato único no Brasil, Evaristo
lançou um dos raros livros sobre as relações entre a sociologia e o direito, na
época, intitulado O problema de uma sociologia do direito. Escrevera para
contestar seu professor e amigo Castro Rebelo, o qual não concebia qualquer
relação entre essas duas disciplinas. Para Evaristo, a sociologia do direito
era essencial para o esclarecimento de problemas ligados à eficácia do direito.
Os legisladores precisam saber até que ponto uma norma jurídica efetivamente
orienta a conduta dos homens ou se eles a neglicenciam e regem sua ação de
acordo com outras normas e valores.5 De fato, a norma e o valor constituem
matéria do direito, assim como a vigência e a validade da norma jurídica. Mas
cabe à sociologia contribuir para a atividade doutrinária e normativa do
direito com o conhecimento do fato social tal como ele ocorre com suas
variações e interpretações diversas, não devendo limitar-se o entendimento dos
fatos à sua definição pela norma jurídica. Como se vê, o positivismo da prática
legislativa, tanto no que se refere à manutenção da coerência do sistema
jurídico como no que respeita à coerência entre fato, valor e norma, encontra
seus limites no conjunto das normas jurídicas, não admitindo nenhum
conhecimento cuja origem se encontre forado ordenamento jurídico. Esta
concepção que não distingue a vida social do conjunto de normas dificilmente
poderia acatar os pressupostos da sociologia.
O embate de Evaristo a favor do conhecimento sociológico ocorre
significativamente no campo da ciência do direito.6 Quando formula o problema
de uma sociologia do direito, no livro de 1950, toma nada mais nada menos como
adversário o jurista vienense Hans Kelsen, autor da teoria pura do direito.
Compreende que a distinção entre validade e eficácia do direito, concebida por
Kelsen, leva o autor a considerar que a validade das normas independe da
obediência que se lhes presta, servindo elas apenas para provocar fatos. As
normas simplesmente estabelecem um dever ser, caso contrário seriam uma lei
natural, infalível e determinista. Suspendendo a obediência como prova da
eficácia das normas, a concepção de Kelsen é vista por Evaristo como abstrata e
estéril:
O objeto do estudo do jurista, como tal, se resume a deduzir uma
norma da outra, desde a norma fundamental, num trabalho analítico de
construção, de sistematização, de ordenação lógica dessas mesmas
normas, como alguém que joga paciência com cartas. Concordamos que a
norma, constituída de um juízo hipotético ' se tal for feito ou
deixar de sê-lo, tal pena será aplicada ', constitui um dever ser,
que se interessa pela conduta futura dos homens; mas como se negar a
importância da sua eficácia no momento e no meio para os quais foi
promulgada, afinal de contas? (1997, p. 208).
Entende-se melhor agora o grande esforço de pesquisa de Evaristo de Moraes
Filho ' o levantamento e a consulta a diversas fontes teóricas e históricas, a
leitura de autores nacionais e estrangeiros ' que resultaram em O problema do
sindicato único no Brasil, como se não quisesse deixar nenhuma lacuna por meio
da qual seus adversários pudessem abrir um flanco e argumentar contra sua tese
contrária ao mito da outorga das leis trabalhistas. Defendendo um ponto de
vista distinto da maioria de seus colegas juristas, no que respeita às relações
entre direito e sociologia, Evaristo pode insistir, em seu livro, no fato de
que a existência de grupos sociais e sua capacidade de se associar livremente
para lutar pelos seus interesses independem de seu reconhecimento no corpo da
lei. Partindo de um princípio sociológico pragmático, afirma que as ações
sociais que os indivíduos empreendem e as relações sociais que vão travando ao
longo de suas vidas são o fundamento do mundo social. O homem não é um ser
isolado, nem a humanidade uma entidade abstrata, mas a sociedade se constitui
de indivíduos que se relacionam uns com os outros. As ciências sociais, cujo
objetivo é o estudo dessa tessitura social, podem almejar a neutralidade
valorativa ou definir-se por um sentido normativo como é o caso da ciência do
direito. A fim de assegurar vigência e validade aos aspectos normativos a serem
legislados sobre um determinado fenômeno, o direito deveria atuar juntamente
com a sociologia, a economia e a história a fim de conhecer os fatos sociais
sem interferência dos valores que subjazem às normas que regularizam
juridicamente aqueles fatos.
No caso específico do estudo do sindicato, o direito antes de fazer uso de suas
prerrogativas de caráter normativo deveria indagar pelo sindicato como um fato
social que resulta da ação consciente e voluntária do homem. Afirma Evaristo
que nem os políticos nem os legisladores devem se debruçar sobre o problema
sindical sem antes consultar a sociologia e a economia, para delas obter um
conceito imparcial, sob pena de tentar resolvê-lo de acordo com seus
interesses, preconceitos, compromissos, crenças e ideais (1978, p. 8).
Em O problema do sindicato único no Brasil, o esclarecimento do que seja o
conceito de grupo do ponto de vista sociológico não é somente o primeiro passo
na seqüência dos capítulos do livro, mas o passo fundamental de uma estratégia
que visa a convencer os leitores da importância da sociologia para a prática
legislativa. A compreensão do que significa política e socialmente uma
associação de indivíduos é pressuposto do entendimento do papel dos movimentos
operários na formulação da legislação trabalhista. No seu empenho em defesa da
sociologia, Evaristo de Moraes Filho afirmava que a disciplina havia mudado e,
como resultado da mudança de critérios metodológicos, a sociologia se
desvencilhara do conceito genérico de sociedade, que englobava toda a
humanidade, e adotara o conceito de grupo social mais adequado para a pesquisa
(Idem, p. 19).
Ao discutir o conceito de grupo social, Evaristo retoma diferentes formulações
de autoria de sociólogos franceses, alemães e norte-americanos, evidenciando
sua familiaridade com uma longa e exaustiva bibliografia. Se compararmos os
sociólogos, representantes de diferentes vertentes da disciplina, que integram
a discussão conceitual em O problema do sindicato único no Brasil, com os
autores constantes da bibliografia, indispensável para a formação do sociólogo,
indicada por Florestan Fernandes, em 1959, em seu Sociologia geral e aplicada
(1976), nota-se o quanto as escolhas dos dois se aproximam. No entanto, embora
se possa imaginar um mesmo quadro de referências para os dois sociólogos, o
propósito de Evaristo de Moraes Filho em introduzir uma nova abordagem das
organizações sindicais do ponto de vista sociológico o faz se posicionar a
favor da associação dos agentes humanos que, ao longo de sua prática cotidiana
e histórica, criam valores, instituições e mentalidade, recriando ele no seu
trabalho uma teoria da ação social, cujos componentes se encontram nos
fundamentos de uma vertente pragmática da sociologia alemã e norte-americana.
Sua escolha o distingue, pois, dos sociólogos dos anos de 1950, que aderiram a
um princípio totalizador e explicativo da vida em sociedade. Evaristo pretende,
antes, pôr em evidência o fragmento de uma relação conflituosa entre
trabalhadores e o Estado, retirando daí todas as conseqüências sociológicas.
Em O problema do sindicato único no Brasil, a escolha do conceito de grupo
social exclui a noção de classe social, seja na sua versão marxista voltada
para a inserção de grupos sociais no processo produtivo, que define uma
totalidade histórica e social, seja na versão weberiana de aquisição e partilha
de bens materiais e espirituais na sociedade ocidental capitalista. A produção
sociológica brasileira dos anos de 1950 foi muitas vezes nomeada de classista,
subtendendo-se com este termo sobretudo a utilização do conceito de classe
social na sua acepção marxista. Não se pode aqui fazer uma revisão crítica
dessa perspectiva interpretativa do pensamento sociológico, porém, evidenciar
que, ao estudar a classe trabalhadora brasileira, Evaristo de Moraes Filho
aborda suas ações concretas e não se ocupa em esquadrinhar a lógica das
desigualdades sociais de grupos, classes ou indivíduos. Se o livro trata de uma
partilha, esta partilha é a partilha de direitos. Os trabalhadores lutam pela
aquisição de direitos.
A escolha teórico-conceitual de Evaristo de Moraes Filho contraria a crença na
performance dos grandes homens, como seres isolados, capazes por sua
inteligência e genialidade de grandes feitos históricos e políticos. Essa
crença, tão comum ainda nos dias de hoje, é contestada pelo autor quando abre o
debate sobre grupo e profissão, muito embora a teoria da genialidade dos
"grandes homens" não constitua alvo específico de crítica do seu trabalho.7 Não
se pense que enveredou então pela busca de um "espírito de um povo" para
justificar suas teses. Ao fundamentar sua argumentação no conceito de grupo, o
autor assume o caráter fragmentário do conhecimento histórico e sociológico sem
buscar apoio em qualquer princípio último totalizador. Não há uma ordem natural
explicativa da vida social, como também não há uma crença no desenvolvimento
histórico numa única direção. Aliás, O problema do sindicato único no Brasil,
como diz o próprio autor, não é um ensaio de natureza histórica mas de ordem
sistemática (1978, p. 182). Evaristo não adota tampouco uma concepção de
história de caráter processual e, por isso, não vai às origens da sociedade
brasileira para verificar os encadeamentos de um processo no decorrer do tempo,
muito embora seu estudo se baseie em evidências históricas da participação
organizada de trabalhadores e operários, desde finais do século XIX até os anos
de 1930, em lutas pela melhoria de sua condição de vida. Desconfiando da
imutabilidade da vida social e buscando comprovar a importância da ação dos
grupos para as mudanças sociais e políticas, Evaristo guarda, entretanto, uma
posição diferente de muitos de seus contemporâneos que se dedicavam às análises
histórico-processuais, a exemplo do Formação do Brasil contemporâneo de Caio
Prado Jr. (1942), ao mesmo tempo em que se distancia de interpretações do
Brasil como a de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil(1936), que
valorizava as origens da sociedade como entidade explicativa de uma sucessão de
fatos posteriores.
A adoção de uma concepção de sociedade baseada na ação de grupos sociais,
associada a uma concepção de história que não desqualifica o passado nem se
atrela a um ideal futuro, permite a Evaristo argumentar que os grupos
profissionais existem e precedem qualquer "tentativa de regulamentação de suas
atividades pelo Direito" (Moraes Filho, 1978, p. 60), tanto no Brasil como em
outros países. Eis uma das principais tarefas de Evaristo, cuja realização faz
o autor mobilizar boa parte da sociologia.
A existência dos grupos de profissão na sociedade capitalista estimula o
agrupamento de pessoas para lutar pela melhoria das condições de trabalho e da
vida profissional. A organização dos sindicatos, porém, sempre foi considerada
uma ameaça à soberania do Estado desde seu surgimento nos países europeus. Na
França, as teses de Rousseau e o individualismo igualitarista da revolução
francesa levou Le Chapelier a legislar a favor dos interesses individuais porém
não comuns. Demorou muito para que as associações e os sindicatos fossem
reconhecidos na organização pública dos Estados modernos porque, no momento em
que o sindicato passa a existir como ente coletivo e duradouro, põe em xeque a
soberania do Estado. Neste ponto, o autor diz chegar ao cerne do problema em
foco, que consiste nas relações entre as associações sindicais e o Estado
(Idem, p. 114).
Não é preciso ir muito longe para perceber que o argumento do autor incide no
deslocamento do Estado do lugar privilegiado que ele assume como móvel de
construção da sociedade. As regras do direito não fundam as instituições, ao
contrário, são as instituições que fazem as regras do direito (1978, p. 95).
Contudo, a perspectiva sociológica de Evaristo de Moraes Filho não repercute
apenas na revisão da eficácia das normas jurídicas e seus efeitos sociais. Ao
posicionar-se contra o mito da outorga das leis trabalhistas no Brasil e
contrariar as teses da ciência do direito que reconhecem no Estado a única
fonte do direito, apostando na ascendência do ordenamento jurídico no "fazer
sociedade", questiona uma das mais bem consolidadas interpretações sobre o
país, que diz respeito ao poder (quase único e absoluto) do Estado na
construção da nação e da sociedade. Hoje, no início do século XXI, tal posição
pode ser compreendida ou tolerada, mas imagine-se o que significou no Brasil,
no início dos anos de 1950, quando o Estado era visto como verdadeiro portador
da modernidade brasileira ou, ainda, em outra acepção, como responsável pela
expansão autoritária do capitalismo na periferia. Imagine-se esta posição da
década de 1950 quando a visão hegemônica dos estudiosos e intelectuais
atribuíam ao Estado tal missão "civilizatória". Compreende-se mais uma vez por
que o livro de Evaristo de Moraes Filho teve sua recepção tardia.
Contudo, seria um equívoco pensar que, ao se posicionar contra o mito da
outorga, atribuindo maioridade aos trabalhadores e restringindo, com sua
argumentação, o poder e a força do Estado, Evaristo desconsidere o papel do
Estado. O que advoga é a mudança na concepção do papel do Estado. A lei é o
fundamento da autoridade legítima do Estado, e para que possa legislar de
acordo com as especificidades da sociedade moderna é preciso que se acabe com a
crença na infalibilidade e soberania única do Estado. Tal prepotência perde sua
razão de ser nos tempos modernos. O autor reconhece no Estado uma associação
cuja função é regularizar e harmonizar os interesses de outras associações. O
Estado é ele próprio uma associação, "uma organização de serviço público", cujo
objetivo precípuo é prover os cidadãos de serviços que não podem sustentar nem
produzir por si mesmos (1978, p. 127). Mais uma vez a sociologia,
especificamente o conceito de grupo social atua a seu favor. A vida social,
argumenta Evaristo, não é um conjunto de indivíduos isolados, separados e
amorfos, mas uma rede complexa de "corpos sociais" ' famílias, sindicatos,
igrejas, partidos políticos, colégios, profissões, clubes. A soberania interna
do Estado é mais complexa do que a externa, pois concerne a um "choque de
representações". É evidente que o Estado é uma associação única em sua espécie
no que respeita à sua autoridade, controle, territorialidade e coação, porém, é
preciso identificá-lo a outras associações para que se acabe com a mística de
sua soberania e se faça reconhecer o seu novo lugar. Evaristo de Moraes Filho
parte do princípio de que a estrutura íntima do Estado contemporâneo se
modificou no contato com as novas formas de organização coletiva. Por isso
reivindica a modernidade para o Estado legislador que nada tem a ver com a
criação de postos e cargos e especialização de seus funcionários ou com o
alargamento de seus setores burocráticos e exigência de competências
específicas para seus integrantes, tampouco com a condução da política
econômica. A modernização do Estado, caso possamos assim chamá-la, pois que não
se trata de expressão utilizada pelo autor, diz respeito à capacidade
legislativa do Estado na regularização e no controle racional de uma
diversidade de interesses advindos de agrupamentos e associações.
Insistindo no caráter coletivo/plural/associativo em oposição ao caráter
individual e único da vida social, Evaristo afirma que o problema do legislador
é encarar o grupo como sujeito jurídico e não o indivíduo isolado. Para tanto é
preciso que mude sua mentalidade. Eis o problema. O verdadeiro liberalismo da
época do pós-guerra é aquele que, sem privar os indivíduos de sua liberdade,
possa contemplá-la sem perda de vantagens para a coletividade. Evaristo
reconcilia-se, enfim, com sua contemporaneidade. Relembrando a tese sobre
planificação e liberdade de Karl Mannheim,8 ele se põe contra o Estado
autoritário e de soberania ilimitado, e, ao mesmo tempo, contra o Estado do
liberalismo individualista da revolução francesa. Coerente, retoma a idéia de
grupo, agora para argumentar que o grupo sindical representa a vontade
coletiva. E não apenas isto. Os conflitos não se restringem aos grupos em
contenda, mas interessam a muitos outros indivíduos e grupos que formam a
sociedade e cujas vidas serão afetadas com o desfecho daquelas lutas:
É tão evidente o imenso interesse público que se prende aos dissídios
coletivos de trabalho, quase sempre restritos à fixação de salários
profissionais ou a aumentos de salários, para que percamos tempo com
esta matéria. Não estão em jogo exclusivamente as forças patronais e
operárias em contenda, toda a sociedade assiste ao desenrolar da luta
e espera o resultado final. Todas as classes sociais têm interesses
envolvidos em tais questões e espiam de longe como a conduzem. Do
preço da mão-de-obra, num verdadeiro sistema fechado de concausas,
irão depender os outros preços das utilidades, todo o mercado será
afetado, com correspondente modificação do custo de vida. [...] a
solução arbitral ou jurisdicional do conflito de trabalho pode
alterar sensivelmente as regras ordinárias na formação de preços. E
nem sempre são levadas em conta exclusivamente razões de ordem
econômica, podendo predominar neste ou naquele caso, segundo as
forças dos grupos em luta, razões outras de ordem política ou social
(Moraes Filho, 1978, p. 161).
Mais uma vez fica esclarecida a posição do autor de que não é preciso explicar
a sociedade por um princípio totalizante para se dar conta da interdependência
que conforma as ações dos grupos e dos indivíduos na sociedade. As lutas das
associações sindicais afetam o conjunto da sociedade e impõem uma nova
concepção para a prática legislativa. Por isso, Evaristo propõe um longo debate
sobre o caráter individualista da legislação e o caráter coletivo das leis,
revisitando o individualismo igualitário oriundo do universalismo da revolução
francesa e, por conseguinte, o ideário do liberalismo político, com vistas a
assegurar a manutenção da soberania e da autoridade do Estado juntamente com
existência dos sindicatos e associações. A tarefa da democracia no pós-guerra,
afirma o sociólogo e jurista, é reunir liberdade individual com autoridade e,
dessa forma, distanciar-se do individualismo tradicional da revolução francesa,
retendo o que tem de positivo, porém abandonando sem pena o que nele não esteja
mais adequado aos novos tempos (Idem, p. 173).
Recapitulemos os passos da argumentação do autor, no que concerne ao seu embate
no campo da ciência do direito pela intromissão da sociologia, pois isso é
importante para responder à pergunta inicial sobre como foi possível a Evaristo
de Moraes Filho defender a maioridade dos trabalhadores brasileiros. O problema
do sindicato único no Brasil fundamenta-se em arcabouço sociológico, no qual as
noções de associação, interesse e ação coletiva são indispensáveis para que o
autor se contraponha aos princípios mais convencionais e formais da prática
legislativa. Uma vez que a sociedade se configura com uma multiplicidade de
ações e relações conflituosas ou não, advindas de interesses de grupos
diversos, tal configuração impõe ao Estado uma renovação de seu papel, sua
autoridade e soberania, voltados agora para o equilíbrio de interesses de
grupos diversos.
O caráter nacional brasileiro em O problema do sindicato único no Brasil
À época de elaboração e publicação do livro em pauta, a peleja que Evaristo
liderava no campo da ciência do direito não se limitava à defesa da introdução
de uma visão sociológica dos fatos na prática legislativa. Ele combatia também
as teses sobre o caráter nacional que atestavam a incapacidade de o povo lutar
pelos seus direitos. Nesse sentido, Oliveira Vianna foi certamente seu grande
interlocutor, podendo-se considerar O problema do sindicato único no Brasil um
libelo não só contra a outorga das leis trabalhistas pelo regime autoritário de
Vargas, mas também contra as teses do insolidarismo social brasileiro,
propugnadas pelo sociólogo fluminense, consultor jurídico do Ministério do
Trabalho de 1932 a 1940. O embate de Evaristo dava-se, pois, em várias frentes.
Usava a sociologia tanto para se opor às concepções exclusivamente doutrinárias
e normativas dos juristas sobre os fatos sociais, como para desmistificar as
concepções sobre o caráter faltoso do "povo" brasileiro. Nessa "frente de
luta", entretanto, o embate se dava de forma mais velada, menos clara e
explícita.
As idéias de Evaristo atingiam juristas e intelectuais que, partindo como ele
próprio de um princípio sociológico, concluíam, no entanto, pela incapacidade
de a classe trabalhadora lutar pelos seus interesses, entre outros motivos,
devido ao seu passado escravista, predominância da produção agrícola e do
latifúndio na história do país. Com base nessa premissa, seus adversários
julgavam que o Estado deveria tomar as rédeas da organização dos trabalhadores.
O mito da minoridade tinha raízes profundas já naquela época. No direito,
Antonio Ferreira Cesarino Jr. escrevera vários livros em que defendia a tese de
que cabia ao Estado a tarefa da organização das associações de trabalhadores.9
Em Direito social, publicado em 1940, Cesarino Jr. admitia que, no Brasil, a
predominância do trabalho agrícola e servil fora responsável pelo que chamava
de "inversão sindical brasileira", definindo com aquela expressão a diferença
entre a história sindical brasileira e a européia. Enquanto na Europa, os
trabalhadores lu taram para formar livremente suas associações profissionais e
de classe, no Brasil, a organização sindical foi concebida pelo Estado
(Cesarino Jr., 1980, p. 511).
O leitor habituado com a conhecida idéia do atraso e da incapacidade do
brasileiro surpreende-se com o rol das lutas operárias e dos movimentos dos
trabalhadores, estampados em O problema do sindicato único no Brasil. Ao
descortinar o conjunto de greves e movimentos da classe trabalhadora no início
do século passado, Evaristo relaciona aquelas ações ao trabalho de juristas, a
exemplo de Evaristo de Moraes, Maurício de Lacerda e Joaquim Pimenta, que
lutaram pela regulamentação das leis trabalhistas. O cuidado em evidenciar a
relação entre os grupos em luta e os legisladores tinha o objetivo de mostrar
que as lutas dos trabalhadores haviam precedido às leis, um dos pontos
importantes da argumentação do autor, e, por conseguinte, que os trabalhadores
tinham capacidade associativa. As noções de atraso, modernidade,
desenvolvimento estavam absolutamente fora do esquema conceitual do autor, mas
não se pode deixar de aproximar a posição assumida por Evaristo, e relativa à
capacidade associativa dos trabalhadores, à constituição de uma sociedade
moderna. Ao expor os conceitos fundamentais de sua sociologia compreensiva, Max
Weber define a relação associativa quando homens e mulheres agem no sentido de
[...] um ajuste ou uma união de interesses racionalmente motivados
com relação a valores e fins. Um acordo racional [...] a união
livremente pactuada e puramente orientada por determinados fins: um
acordo sobre uma ação contínua, destinado em seus meios e propósitos
exclusivamente à persecução de interesses econômico ou outros dos
participantes (Weber, 1991 p. 25).
Essa relação associativa, como um acordo racional, está relacionada à
construção ideal típica das sociedades de cultura ocidental capitalista. Ao
demonstrar a capacidade associativa dos operários brasileiros, atribuindo-lhes
a maioridade para lutar por seus direitos, Evaristo não trata de outra
problemática senão a da construção de uma sociedade moderna.
Nas últimas páginas de O problema do sindicato único no Brasil, o autor retoma
as interpretações do Brasil que reclamam da falta de "espírito associativo" dos
brasileiros. Não as retoma para contrariá-las, como se poderia supor, mas para
reafirmar sua validade e evidenciar, por meio das teses sobre o insolidarismo
brasileiro, o quanto se deveria lutar a favor do agrupamento dos indivíduos por
interesse. A argumentação servia acima de tudo para fundamentar a idéia de um
sindicato único por profissão, que Evaristo defendia. Quanto menos fragmentação
houvesse nas associações, maior força teriam os sindicatos em um país onde os
laços por interesse eram tão enfraquecidos. Na realidade, a evocação das teses
sobre o insolidarismo social, como verdadeiro contraponto, deixa ainda mais
claro o quanto o livro se ergue como um monumento contra a idéia de um caráter
brasileiro inconsistente e inapto para as tarefas associativas e para o
exercício da cidadania, no que concernia às lutas operárias. Se existia tal
insolidarismo, não era, contudo, uma marca indelével dos brasileiros. Além do
que, tomá-lo como ponto de partida significava correr o risco de concluir pela
imperiosa necessidade de um regime político autoritário.
Anos mais tarde, em um elucidativo ensaio sobre Oliveira Vianna, sob o título
"Oliveira Vianna e o direito do trabalho no Brasil" (Moraes Filho, s/d),
explicita-se a oposição de Evaristo em relação às conseqüências práticas
daquelas teses ' a concentração da capacidade decisória no poder executivo,
como propugnava Oliveira Vianna. Desfiando ponto por ponto do pensamento
conservador e autoritário do sociólogo de Saquarema, Evaristo distingue na ação
e na obra do jurista a defesa do direito individual e particular, com base no
princípio da eqüidade, ainda que Oliveira Vianna pregasse contra a livre
manifestação de associações e sindicatos, fundada no direito coletivo:
"liberal, bem liberal, assumindo um papel inovador no direito individual do
trabalho, o mesmo não poderia ser dito quanto ao direito coletivo" (Idem, p.
88). Mas, apesar das distinções indispensáveis e esclarecedoras do pensamento
de Oliveira Vianna, Evaristo não se deixa seduzir pela sua interpretação do
caráter brasileiro e conseqüente visão instrumental de um Estado forte. Em "Uma
possível nota do caráter nacional", de 1971, volta ao tema e ao que havia
afirmado sobre ele no livro de 1952. A noção de caráter nacional ou brasileiro
é vaga e inconsistente. Pode-se até mesmo reconhecer uma psicologia dos povos,
que se define por traços culturais comuns e constantes em certos grupos. O que
não se pode admitir é o exagero, a plasticidade e a volubilidade daquelas
definições de caráter nacional, e, sobretudo, o que não se pode admitir é que o
caráter de um povo não se transforme ao longo do tempo.
Em O problema do sindicato único no Brasil, Evaristo de Moraes Filho reelaborou
a experiência marcante das lutas sociais, as quais conhecera por intermédio da
trajetória de seu pai, Evaristo de Moraes, e presenciara quando jovem
secretário das Comissões Mistas de Conciliação no Ministério do Trabalho.
Posicionou-se contra as teses formalistas sobre a prática legislativa da teoria
do direito; e contra as teses sobre o insolidarismo do caráter nacional ou
ethos brasileiro. A elas opôs uma teoria sociológica pragmática, em que
associação, interesse e ação são elementos fundamentais. Esse arranjo de idéias
cunha seus argumentos voltados para a desmistificação do mito da outorga das
leis trabalhistas. Retirando o Estado de seu lugar de portador de toda ordem,
modernidade e progresso, e delegando aos sujeitos sociais a capacidade de lutar
pelos seus interesses, Evaristo de Moraes Filho devolve aos trabalhadores
brasileiros a sua maioridade.
NOTAS
1 O Decreto n. 1.9770/1931 regula a sindicalização e o Decreto 21396/1932
proíbe a greve. Em 1939, uma nova legislação sindical regula a intervenção
ministerial no sindicato (Moraes Filho, 1979).
2 O desenvolvimento dos estudos sociológicos sobre o sindicalismo, nas três
primeiras décadas após da publicação do livro de Evaristo de Moraes Filho, pode
ser visto em Azis Simão (1971), Martins Rodrigues (1971) e Werneck Vianna
(1978, 1984).
3 Tomo de empréstimo os termos minoridade e maioridade de Kant sem nenhuma
intenção de retomá-los no sentido estrito das teses do filósofo em Resposta à
pergunta: que é "esclarecimento"? (Kant, 1985).
4 Florestan Fernandes e Gilberto Freyre, entre outros, também participaram do
projeto (Dias da Silva, 2002). Sobre a criação do CBPE, ver Centro Brasileiro
de Pesquisas Educacionais (Documentos iniciais), Educação e Ciências Sociais, 1
(1), ano 1, 1956.
5 Entrevista de Evaristo de Moraes Filho a sua filha Regina Lucia de Moraes
Morel, em 2002. Agradeço à Regina Morel a gentileza de me ter cedido este e
outros materiais para a confecção deste artigo.
6 Nesse sentido vale distinguir uma outra modalidade de institucionalização da
sociologia, a que ocorre no campo do direito e se difere da modalidade mais
conhecida, que se dá nos campos da história política, da antropologia e do
folclore.
7 Ao discutir as relações entre o movimento de trabalhadores e a legislação
trabalhista afirma o autor: "[...] já vinha amadurecendo a legislação social,
como provamos através de algumas páginas anteriores, nos movimentos operários,
nos congressos dos trabalhadores, nas mensagens do Executivo, nos trabalhos
legislativos, na doutrina jurídica, nas plataformas políticas, enfim na própria
consciência da nação. A revolução nunca é obra de um homem só, por mais genial
que seja. Não houve saltos na continuidade histórica. A moderna concepção de
estudos históricos abandonou o critério antiquado da história oficial e
heróica, em que somente aparecem em cenário, dignos de pousar para posteridade,
os figurões de primeira fila. O que mantém o espetáculo é justamente o coro
meio anônimo, são figuras de segundo plano, mais numerosas mais constantes
[...]" (1978, p. 218).
8 Sobre a recepção de K. Mannheim pelos sociólogos brasileiros, ver Villas Bôas
(2002).
9 Antonio Ferreira Cesarino Jr. era professor catedrático das faculdades de
Direito e Economia da Universidade Estadual de São Paulo. Escreveu diversos
livros entre os quais Direito corporativo e direito do trabalho (1940), Direito
social brasileiro(1940) e Direito processual do trabalho(1942). Em O problema
do sindicato único no Brasil, Evaristo refere-se uma vez ao autor quando
discute problemas da representação sindical na Constituição de 1937 (1978, pp.
248-249), contudo, na entrevista concedida em 2002, relembra-se de Cesarino Jr.
como um dos adversários das teses de seu livro.