Os partidos no eleitorado: percepções públicas e laços partidários no Brasil
Introdução
Os partidos políticos são instituições que surgiram como produto da ação de
atores políticos nas arenas decisórias e eleitoral, portanto se deve avaliar o
sistema partidário brasileiro tanto em sua eficácia em manter a governabilidade
democrática, como em sua capacidade de estruturar a competição eleitoral.
Quanto ao segundo aspecto, vale destacar o papel dos partidos como agente que
organiza o processo eleitoral (mesmo porque isso é do interesse dos atores
políticos que deles se utilizam). Este artigo aborda os partidos sob esta
ótica. Mas a preocupação que nos move tem a ver menos com seu papel de
instrumento das elites políticas para conquistar seus objetivos no mercado
eleitoral,1 do que com seu impacto no eleitorado. Mais especificamente,
voltamo-nos para o exame do impacto das estratégias eleitorais utilizadas pelas
elites partidárias sobre o eleitor. Desse modo, a principal indagação que nos
norteia é em que medida os partidos fazem alguma diferença do ponto de vista do
eleitor. Em outras palavras, mesmo admitindo que os partidos e o sistema
partidário no Brasil tenham tido um desempenho satisfatório no que tange tanto
à sua função governamental como à sua função de servir os objetivos eleitorais
da elite política, permanece uma questão a ser examinada: quão efetivo eles são
em seu papel de orientar os cidadãos na decisão do voto. Assumindo que em
regimes democráticos os partidos são importantes também como estruturadores e
facilitadores da escolha eleitoral, a condição básica para torná-los um
instrumento orientador da decisão é que eles tenham visibilidade suficiente na
competição eleitoral. É mediante sua visibilidade, combinada com a contínua
participação em eleições, que é possível o surgimento da lealdade partidária,
que pode crescer ao longo da experiência política democrática.
Portanto, focalizando os partidos na arena eleitoral, trataremos de examinar em
que medida os partidos brasileiros são entidades capazes de oferecer aos
eleitores opções políticas distintas o suficiente para construir suas
identidades, criar lealdade e servir como atalho no ato de votar.
Para isso, procuramos primeiramente examinar os índices de volatilidade
eleitoral. Embora exaustivamente analisados por Nicolau (1998), Peres (2002) e
Braga (2003), o argumento aqui defendido difere um pouco sobretudo da conclusão
a que se chegou nos dois últimos trabalhos, que sugerem uma tendência à
estabilização das preferências partidárias. Tendo em conta as alterações
significativas na correlação de forças dos partidos registradas nas últimas
eleições, consideramos ser prematura a definição de uma tendência à
estabilização do sistema partidário. Em segundo lugar, tratamos de analisar '
com base em dados de pesquisa por amostragem2 ' algumas evidências empíricas
que sugerem que os partidos brasileiros, em seu conjunto, têm tido dificuldade
de fixar sua marca junto ao eleitorado.
Competição partidária e partidarismo
Um indicador importante de consolidação de um sistema partidário é a
estabilização da competição partidária no sentido de haver alguma
previsibilidade sobre os principais competidores e sobre os resultados
associados a seus apoios anteriores. Se é certo que democracia implica
incerteza política, é certo também que sua consolidação implica a emergência de
um padrão de disputa mais ou menos estável. Em novas democracias, quanto mais
duradouro for o padrão de competição partidária, maiores as chances de que os
eleitores construam imagens partidárias e criem lealdade. No Brasil, o
restabelecimento do governo civil em 1985 foi acompanhado da emergência de um
sistema multipartidário, cujos componentes principais continuam os mesmos,
exceto pela criação do PSDB, em 1988. Depois de mais de uma década e meia,
período em que ocorreram nada menos do que onze embates eleitorais, poder-se-ia
esperar que os principais partidos tivessem construído sua imagem de modo a
criar uma base de apoio nas eleições. Se isso tivesse ocorrido, os altos níveis
de volatilidade eleitoral, presentes nos primeiros anos de vigência do novo
regime, tenderiam a declinar significativamente, uma vez que a competição se
estabilizaria em torno dos principais competidores. Poder-se-ia também esperar
um crescimento nos níveis de identificação partidária, pois, como sugerido por
Downs (1957), os eleitores tendem a fazer uso dos partidos como um atalho para
reduzir o custo da decisão eleitoral, o que se torna mais premente em contextos
multipartidários como o brasileiro. É evidente que este raciocínio depende de
como as elites políticas definem suas estratégias para dar visibilidade e
tornar os partidos entes distinguíveis. Parece-nos, no entanto, que, no Brasil,
o tipo de estratégia utilizada pelas elites para lidar com o complexo conjunto
de regras que regulam as eleições tem conduzido a um padrão diferente.
Dados agregados: índice de volatilidade eleitoral
Uma primeira indicação da dificuldade de estabilização do sistema partidário é
revelada pelo índice de volatilidade eleitoral, que mede os diferenciais na
distribuição do apoio eleitoral entre os partidos entre uma eleição e a
seguinte (Pedersen, 1990; Bartolini e Mair, 1990). Quanto mais baixa for a
volatilidade eleitoral, maior a probabilidade de que os partidos estabelecidos
tenham algum papel em determinar as preferências, independentemente do apelo de
um candidato particular do partido, de questões políticas específicas ou de
qualquer outro acontecimento inesperado. Em contrapartida, a persistência de
altos níveis de volatilidade é um sinal de que os partidos não conseguiram se
enraizar junto ao eleitorado, a fim de assegurar um nível razoável de apoio
popular. Isto seria uma indicação de falta de estabilidade do sistema
partidário.
Como bem salientou Nicolau (1998), a volatilidade eleitoral no Brasil, de uma
perspectiva comparada, está entre as mais elevadas do mundo. Entre as
democracias consolidadas, o nível de volatilidade, segundo o índice de
Pedersen, varia de um país para outro, mas raramente atinge as altas taxas
brasileiras.3 Dados calculados por Nicolau (1998) indicam que no período de
1982 a 1998, em média, cerca de 30% do eleitorado mudou seu voto de um partido
para outro em eleições consecutivas. Uma análise mais detalhada da volatilidade
eleitoral foi feita por Braga (2003), que calculou os índices para a Câmara
Federal e assembléias estaduais, usando os resultados eleitorais, por
município, para o período de 1990 a 2002. Esses números são ainda mais
surpreendentes: a média para o país, tomando-se os três pares de eleições, é
38,3% para a Câmara Federal e 36,7% para as assembléias estaduais. Mais
recentemente, a volatilidade eleitoral parou de crescer (Braga, 2003), embora
tenha se estabilizado em um nível bastante elevado ' acima de 30%. Isso sugere
que ainda não se estabeleceu no Brasil um padrão definitivo de apoio
partidário. Se no início dos anos de 1990, os altos índices de volatilidade
podiam ser explicados pela emergência de um novo partido relevante ' o PSDB ',
isso não pode mais justificar a permanência hoje desses índices.
Não há dúvida de que uma das causas tem a ver com as transformações no ambiente
eleitoral, as quais ocorreram em todas as partes do mundo. Referimo-nos ao
impacto da era televisiva sobre a campanha eleitoral, o que resultou numa
competição centrada muito mais em personalidades do que em partidos
(Wattemberg, 1998 e 2000; Dalton, 2000). No caso brasileiro, além do fato de o
jogo partidário e a própria democracia serem instituições jovens, a estrutura
de incentivos sob as quais os atores políticos competem por votos contribui, a
nosso ver, para dissipar as distinções entre os partidos, tornando difícil a
lealdade partidária. Mais especificamente, as estratégias utilizadas por
candidatos e partidos para maximizar seus ganhos ' em eleições para cargos
executivos e legislativos, sob os sistemas majoritário e proporcional ' criam
uma situação que não apenas estimula a personalização da competição, mas também
torna nebulosa a disputa propriamente partidária. Como os partidos tem menos
visibilidade do que os candidatos, não conseguem fixar suas imagens junto ao
eleitorado, o que dificulta a criação de identidades e conexões com os
eleitores. Desenvolveremos esse argumento mediante o exame da questão da
identificação partidária no plano individual.
Vínculos partidários no Brasil
A primeira condição para que os partidos políticos possam se constituir em
balisadores da decisão de voto tem a ver com a capacidade de se conectar com os
eleitores, criando apoios mais ou menos estáveis. Se essa capacidade é
adquirida com a experiência contínua de eleições, nas quais os mesmos partidos
são os principais competidores, dever-se-ia esperar um crescimento, mesmo que
pequeno, da lealdade partidária. No entanto, não parece ser o que tem ocorrido
no Brasil atualmente. O Gráfico_1, com dados de pesquisas nacionais, apresenta
a variação longitudinal da preferência partidária para o período de 1989 a
2002.4 A preferência partidária não cresceu nesse período, e além disso
apresenta uma tendência declinante. Para o período como um todo ' que abrange
os anos entre a primeira e a última eleição nacional ' o percentual médio da
preferência partidária atingiu apenas 46%.5 Esse valor é baixo em comparação
não apenas com o padrão internacional (Dalton, 2000), mas também com as taxas
observadas no Brasil nos últimos anos de regime democrático antes do golpe
militar. Como apontou Lavareda, dados de pesquisas realizadas em 1964
evidenciaram uma taxa de 64% de identificação partidária (Lavareda, 1989,
1991).
Vale lembrar que nos anos em que ocorreram eleições nacionais ' 1994, 1998 e
2002 ', quando se supõe que os partidos sejam referências importantes para o
eleitor, as taxas de preferência decresceram ao invés de aumentar. Isto é uma
clara indicação de que as campanhas eleitorais ' tanto para os cargos
executivos, como para os legislativos ' não se centram nos partidos como atores
distintos. Durante a campanha, os eleitores estão expostos a uma disputa muito
mais entre candidaturas individuais (quando não entre as alianças partidárias),
o que torna improvável o desenvolvimento de laços fortes entre partidos e
eleitores.
A Tabela_1, em que os dados foram desagregados por partido e se calculou a
média para cada ano, permite observar a variação longitudinal da preferência
partidária para esse período e salientar, portanto, alguns aspectos.6 Primeiro,
o fato de um partido estar no governo (sobretudo na esfera nacional) ' o que
supostamente lhe garantiria maior exposição pública ' não parece influir na
construção de laços partidários: as taxas de preferência partidária são baixas
para todos os partidos que estiveram no governo central. O PMDB, que havia
construído sua reputação como um movimento de oposição ao regime militar e foi,
juntamente com o PFL, responsável pelo primeiro governo civil (1985-1990),
ocupou, até recentemente, a liderança nas preferências do eleitorado. Mesmo
assim, sua melhor taxa (em 1993) não atingiu 20%, além de ter perdido a
primeira posição para o PT, declinando seu percentual para 9%. Também o PFL e o
PSDB, que estiveram no governo federal por um longo período (o primeiro de 1985
a 2002 e o segundo de 1994 a 2002), tem apresentado taxas insignificantes de
preferência partidária. Segundo, estar na oposição não é necessariamente um
fator que ajude na criação de lealdade partidária. Partidos como o PPB e o PDT
' de posições opostas no espectro ideológico ' não conseguiram atrair uma
porção significativa de simpatizantes. A única exceção tem sido o PT, cuja taxa
de preferência cresceu significativamente: de 10%, em 1989, para 18%, em 2002.
Em suma, esses dados servem para confirmar que, dada uma estrutura de
incentivos que não ajuda no desenvolvimento de laços partidários, é
compreensível que as taxas de identificação partidária no Brasil não tenham
crescido marcadamente ao longo da presente experiência democrática.
No entanto, se é este o caso, como podemos explicar o fato de uma parcela
significativa do eleitorado (cerca de 42%, em 2002) ter manifestado alguma
preferência partidária? Como explicar o caso do PT, cujas taxas cresceram
durante o período? Essas questões suscitam um exame mais detido.
De um lado, há o fator organizacional, que ajuda a entender a singularidade do
PT no sistema partidário brasileiro, ou seja, a emergência no início da década
de 1980 de um típico partido de massa que conseguiu criar um organização forte
e uma imagem partidária de esquerda bastante nítida. Essa capacidade do PT de
se distinguir dos outros partidos foi resultado de uma estratégia política que
tratou de salientar uma clara postura de oposição ao governo e que ressaltava
os princípios políticos do partido. Isso podia ser observado na recusa do PT,
em seus primeiros anos de existência, de formar alianças com outros partidos,
postura que depois foi substituída por uma estratégia de participar de alianças
apenas com partidos do mesmo espectro ideológico.7
O segundo fator que pode ajudar a explicar a presença de laços partidários em
uma parcela do eleitorado tem a ver com diferenciais de informação sobre os
partidos, o que certamente depende do nível de educação da população, questão
amplamente discutida na literatura.8 Pessoas com maior escolaridade são mais
propensas a assimilar a informação disponível sobre o jogo partidário,
especialmente no contexto complexo e confuso em que a arena eleitoral opera no
Brasil. Mas também depende da veiculação de informações sobre os partidos, ou
seja, o quanto os partidos e suas lideranças estão expostos aos eleitores. As
organizações que desenvolveram uma estratégia mais partidária para chegar ao
eleitor, diferenciando-se como entidades políticas, como foi o caso do PT,
foram capazes de se sobressair no processo político, atraindo mais
simpatizantes. A visibilidade de um partido e sua capacidade de construir uma
imagem política são, de fato, a base para o desenvolvimento do elemento
cognitivo da identificação partidária.9
Para sustentar esse argumento, analisamos os dados de uma pesquisa realizada em
2002 na área metropolitana de São Paulo.10 Embora se trate de um estudo de
caso, esta área representa a maior região metropolitana do Brasil que, até
recentemente, se constituía em destinatária de migrantes vindos de todas as
regiões do país, o que a torna quase uma amostra nacional no que tange à
composição demográfica. Além disso, é onde os principais partidos têm
conseguido eleger um significativo número de cargos para os diferentes níveis e
ramos do governo. É também o local de nascimento do PT, cuja inserção na
disputa política como uma organização de massa poderia ter feito emergir neste
contexto particular, em função de seu impacto sobre as estratégias dos outros
partidos, um padrão da disputa eleitoral de natureza mais propriamente
partidária.
A Tabela_2 apresenta a distribuição da preferência partidária controlada pela
escolaridade na região metropolitana de São Paulo (RMSP) de acordo com os
resultados de nossa pesquisa. Os números são reveladores. Primeiro, cabe
observar a posição do PT: nada menos do que 31% dos entrevistados manifestaram
ter preferência por este partido. É uma taxa significativa se comparada com os
18 pontos percentuais registrados no país como um todo (tomando como comparação
a taxa média de quatro pesquisas nacionais realizadas em 2002). Isso certamente
é uma clara indicação da capacidade do PT de se enraizar na área que lhe
forneceu a base inicial de apoio eleitoral.
Entretanto, a inserção do PT como um ator de peso no jogo eleitoral não
resultou na emergência de um padrão diferente de política partidária nesta
região específica, isto é, um tipo de disputa em que partidos alternativos ' em
oposição ao PT ' se fixassem na preferência do eleitorado. Na verdade, os
percentuais de preferência pelos outros partidos são bastante baixos, mesmo no
caso do PMDB, que já teve nesta região uma de suas mais importantes bases de
apoio (Lamounier e Muzinsky, 1983; Sadek, 1984). Tal discrepância em relação ao
PT leva a que o total de 46% de preferência partidária seja bastante similar à
taxa média observada nas pesquisas nacionais para o mesmo ano (42%).11
Segundo, os valores apresentados na Tabela_2 mostram também o impacto sobre a
preferência partidária da variável escolaridade, confirmando um padrão já
observado em outros trabalhos (Balbaschevsky, 1992; Moisés, 1992; Carreirão e
Kinzo, 2002). Como se pode notar, a preferência partidária tende a ser maior
entre os eleitores de nível mais alto de escolaridade, associação que é
especialmente nítida no caso do PT: entre os de alta escolaridade, a
preferência pelo PT chega a 40%. Essa tendência não se verifica, no entanto, no
caso do PMDB, cujos percentuais de preferência são mais altos entre os menos
escolarizados. Daí que se tenha registrado uma correlação positiva, mas de
baixo valor: o r de Spearman é de 171.12
A existência de uma correlação positiva entre escolaridade e preferência
partidária ' mesmo que não muito alta ' sugere a hipótese de que a complexidade
e a baixa inteligibilidade do jogo eleitoral no Brasil requerem, por parte do
eleitorado, uma forte predisposição para obter informação política, o que é
mais provável ser encontrado entre os eleitores de maior escolaridade. Se isso
é verdade, é preciso saber, antes de tudo, quão informados são os eleitores
sobre os partidos que compõem o sistema partidário brasileiro.
Para conhecer de forma mais aprofundada o nível de informação que os eleitores
têm sobre os partidos, algumas questões foram incluídas no questionário da
pesquisa que realizamos na RMSP. Os dados apresentados nas Tabelas_3 e 4 são
bastante reveladores.
Perguntados sobre quais os partidos que conhecem ou ouviram falar, a resposta
dos entrevistados mostra que o nível de fixidez dos partidos é extremamente
baixo. Com a exceção do PT e do PMDB, que foram citados, respectivamente, por
80% e 59% dos entrevistados, mais da metade dos eleitores da RMSP não mencionou
os outros partidos importantes (como PSDB, PFL, PPB, PTB e PDT) que formam o
sistema partidário brasileiro.
Ainda mais surpreendente é o fato de uma parcela considerável dos entrevistados
não saber a que partido eram filiados os principais líderes políticos do país,
como mostra a Tabela_4. Novamente, como exceção do PT, cujo líder principal '
Luís Inácio Lula da Silva ' e sua principal figura política no Senado ' Eduardo
Suplicy ' são identificados como pertencentes ao PT pela maioria dos
entrevistados, os outros partidos não conseguiram se fazer conhecidos por meio
de suas principais lideranças. A falta de informação sobre a filiação
partidária de políticos conhecidos é impressionante, especialmente em relação
àqueles que à época ocupavam a presidência de seus partidos (como é o caso de
Jorge Bornhausen, Michel Temer, José Anibal, Leonel Brizola e mesmo José
Dirceu) ou que eram líderes destacados no Congresso (como Antônio Carlos
Magalhães): a proporção de entrevistados que erraram ao citar o partido a que
esses políticos estão filiados variou de 76% a 97%. Poder-se-ia argumentar que,
como membros do Congresso, esses políticos estavam menos expostos à porção do
eleitorado (na verdade a maioria) que não segue a política no seu dia-a-dia.
Mas é também surpreendente a pequena proporção de entrevistados que sabia a que
partido pertencia o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso:
apenas 29% dos eleitores responderam corretamente à pergunta.
Tais evidências sustentam a hipótese, já mencionada anteriormente, de que o
baixo índice de identificação partidária encontrado no sistema partidário
brasileiro é uma conseqüência de uma situação de informação limitada sobre os
partidos, algo esperado em um contexto que combina baixo nível educacional e
alta complexidade da competição eleitoral. Em outras palavras, se um dos
principais fatores que dificulta a criação de identidade partidária é a baixa
visibilidade dos partidos, levando-os a ser pouco conhecidos pelo eleitorado,
espera-se que os eleitores que têm mais acesso à informação política e,
portanto, conseguem obter mais informações sobre os partidos, estejam mais
propensos a criar alguma identificação com algum dos principais partidos.
Assim, espera-se encontrar uma associação positiva entre nível de informação
sobre os partidos e preferência partidária.
Para verificar esta hipótese é importante, no entanto, considerar outros
fatores que podem influir na constituição de laços partidários, especialmente
em relação ao PT. Ou seja, é preciso medir o impacto da variável informacional
em conjunto com algumas variáveis estruturais, tais como escolaridade e
situação de trabalho, pois se supõe que o grau de conhecimento político depende
' num ambiente de disputa partidário-eleitoral complexo ' da capacidade e da
disponibilidade para a aquisição de informação (que é maior entre os mais
escolarizados) e da exposição à informação política (que é maior entre aqueles
que trabalham fora de casa). Incluímos também uma outra variável política
'índice pró-democracia ', supondo que há uma maior predisposição a ter um
vínculo partidário os eleitores que, além de disporem de maior informação sobre
os partidos, são mais propensos a sustentar valores democráticos ' defesa da
democracia como a melhor forma de regime político, do pluralismo partidário e
de outras instituições fundamentais da democracia representativa.
Desse modo, a hipótese principal foi complementada por outras três, cujos
enunciados são: a) quanto maior o nível de escolaridade, maior a probabilidade
de um eleitor manifestar preferência por algum dos partidos que compõem o
sistema partidário brasileiro; b) eleitores que desenvolvem atividades fora de
seu local de residência são mais propensos a ter preferência partidária; e c)
eleitores com um grau maior de comprometimento com valores democráticos são
mais predispostos a ter um vínculo partidário.
A fim de testar as hipóteses formuladas, utilizamo-nos de uma análise de
regressão logística binomial,13 que tomou como variável dependente a
preferência partidáriax14 e incluiu as seguintes variáveis independentes:
1. Índice de conhecimento partidário: resultante da criação de uma
escala de informação sobre os partidos, cujos itens estão
discriminados no anexo. Esse índice mensura o grau de informação
sobre os partidos, podendo assumir os valores baixo, médio e alto.
2. Escolaridade: classificada em três níveis ' baixa (até primário
completo, 36% dos casos); média (ginasial, 36% dos casos); e alta
(colegial ou mais, 28% dos casos).
3. Situação de trabalho: variável dummy, com valor 1 para os que
trabalham fora de casa e 0 para os que não trabalham fora.
4. Índice de posicionamento pró-democracia: pode assumir os valores
baixo, médio ou alto, de acordo com a classificação numa escala de
posicionamento pró valores democráticos, cujos itens estão
discriminados no anexo.
A Tabela_5 apresenta os resultados das regressões. Assinale-se, em primeiro
lugar, que, quando as quatro variáveis são incluídas na análise (modelo 1), os
coeficientes são positivos e com alto nível de significância, confirmando assim
nossas hipóteses, com exceção da hipótese relativa ao fator escolaridade, cujos
coeficientes, embora positivos, são bem mais baixos e somente se tornam
relevantes quando contrastados aos índices de alta e baixa escolaridade. Em
segundo lugar, observa-se que a variável conhecimento partidário tem um poder
explicativo sobre a preferência partidária bastante superior ao das outras
variáveis, seja quando tomada isoladamente (modelo 4), seja quando a ela se
agrega o índice pró-democracia (modelo 3), seja, ainda, quando são incluídas as
duas variáveis estruturais correlatas ' grau de escolaridade e trabalha fora
(modelos 1 e 2). Isso significa que (tomando os valores entre parênteses,
referentes à razão de chance), entre aqueles que possuem um índice mais alto de
conhecimento partidário, a chance de manifestarem preferência por algum partido
é 3 vezes maior (se de nível médio) e 4 vezes maior (se de nível alto). Outra
variável que se mostrou relevante é o índice pró-democracia, o que significa
que a chance de manifestar alguma preferência partidária é 1,5 vezes maior
entre os que foram classificados no nível médio do índice pró-democracia e 2
vezes maior entre os classificados no nível alto.
Já que os identificados com o PT e com o PMDB constituem o maior número de
casos, testamos nossas hipóteses para esses dois grupos separadamente,
utilizando o mesmo procedimento de análise estatística. As Tabelas_6 e 7
apresentam os dados para o grupo de entrevistados que manifestou preferência
pelo PT15 e PMDB,16 respectivamente.
Uma vez que os simpatizantes do PT formam o maior grupo entre os que declararam
preferência por algum partido, era de se esperar que o fator mais relevante
para explicar a preferência partidária em geral ' conhecimento partidário '
fosse também a variável que apresentasse o efeito mais robusto sobre a
preferência pelo PT. Mesmo assim, os resultados para o grupo de petistas
revelam algumas diferenças bastante interessantes. Primeiro, os coeficientes do
índice de conhecimento partidário são mais baixos do que os registrados na
análise do conjunto dos partidários; segundo, os valores da razão de chance de
preferência pelo PT com o aumento no nível de conhecimento partidário elevam-se
da categoria média para alta apenas quando esta variável é tomada isoladamente
(modelo 4); nos outros modelos, que incluem as outras variáveis, os valores da
associação, e conseqüentemente a razão de chance, caem ou permanecem
inalterados. Isso significa que o peso das outras variáveis no grupo de
petistas é relativamente maior do que o encontrado no total do grupo que possui
laços partidários, o que é especialmente evidente no que se refere à variável
escolaridade. Assim, ao contrário do que se verificou na análise do conjunto
dos partidários, o nível de escolaridade apresenta nível de significância tanto
ao contrastar a categoria alta com a baixa (nível de significância < 0,01),
como a categoria média com a baixa (< 0,1). Ou seja, a probabilidade de um
eleitor de nível médio de escolaridade manifestar preferência pelo PT é 1,3
vezes maior do que um eleitor de nível baixo, probabilidade essa que passa a
1,6 vezes no caso daqueles de nível alto de escolaridade.
Bem diferente do grupo de petistas é o perfil dos simpatizantes do PMDB, como
revelam os resultados da análise de regressão que tomou como variável
dependente a preferência pelo PMDB (Tabela_7).
É certo que também nesse caso a variável mais importante continua sendo o
índice de conhecimento partidário e a chance de ser um peemedebista chega a ser
quase quatro vezes maior entre aqueles que têm índice alto de informação sobre
os partidos, quando incluímos na análise as quatro variáveis selecionadas. Mas
o que nos interessa ressaltar é o fato de as outras hipóteses não se
confirmarem, seja porque os resultados não tiveram significância estatística em
todas as categorias das variáveis em questão, seja porque apresentaram sinal
negativo. É o caso da variável educação, que apresenta uma associação negativa
com preferência pelo PMDB, embora apenas o coeficiente resultante da comparação
do nível alto com o nível baixo de escolaridade tenha obtido significação
estatística. Mesmo assim, isso nos permite afirmar que a chance de um eleitor
com nível alto de escolaridade manifestar preferência pelo PMDB é de apenas 48%
em relação a um eleitor de nível baixo de escolaridade. Embora refutando a
hipótese originalmente formulada, esse resultado faz sentido no caso do PMDB,
tendo em conta o fato de ser esse o partido mais antigo, cuja trajetória '
especialmente ao longo de sua experiência sob o regime militar ' levou à
criação de laços de identidade partidária com os segmentos mais pobres da
população, traço bastante marcante nos grandes centros urbanos como São Paulo
(Lamounier, 1975 e 1980; Reis, 1978). O sinal invertido registrado na variável
índice pró-democracia é, contudo, mais difícil de ser explicado, pois se
esperava uma associação positiva com os peemedebistas, dada a história desse
partido na luta pela democratização do país. Talvez a crise de identidade
vivenciada pelo PMDB por mais de uma década e meia tenha dissipado a imagem do
partido a ponto de seus apoiadores não mais o associar à defesa de valores
democráticos.
Em suma, os resultados das análises de regressão sugerem que o elemento
cognitivo é o fator mais importante para explicar, no contexto político
brasileiro, a preferência partidária e, especialmente, a preferência pelo PT.
Em outras palavras, esses resultados explicam por que a maioria dos eleitores
não desenvolveu vínculos com os partidos. A falta de um volume mínimo de
informação necessário para diferenciar os partidos que compõem o sistema
partidário brasileiro resulta na ausência de lealdade ou laços partidários.
A pequena taxa de partidarismo no Brasil tem muito mais a ver com a baixa
capacidade cognitiva associada à disputa político-eleitoral do que com qualquer
sentimento de rejeição à política partidária. A despeito da preferência
partidária ser diretamente vinculada a uma atitude mais pro-democrática, os
dados da mesma pesquisa revelam que 73% dos entrevistados acreditam no poder de
influência de seu voto no contexto brasileiro. Além disso, mesmo que 60% dos
respondentes acreditam que os partidos não estejam preocupados com as
necessidades da população, verifica-se que 57% deles consideram os partidos
necessários para o funcionamento da política e 67% são favoráveis a um sistema
partidário que tenha pelo menos dois partidos.17 É evidente, portanto, que a
percepção dos cidadãos sobre as instituições democráticas ' como partidos e
eleições ' não são negativas, pelo menos quando se tem como referência o
universo com base no qual realizamos nossa pesquisa.
Considerações finais
Após quase vinte anos de competição partidária democrática, a lealdade tem-se
mostrado bastante instável e se desenvolvido de forma bastante lenta no Brasil.
Como vimos, essa tendência tem a ver, pelo menos, com dois fatores: de um lado,
a estrutura de incentivo que constrange os políticos e os partidos na arena
eleitoral; de outro, os recursos organizacionais dos partidos. A adoção de um
conjunto de regras eleitorais complexo ' sistema majoritário, sistema de
representação proporcional com lista aberta e permissão de alianças entre os
partidos ' que dê conta de uma estrutura de poder presidencialista e federativa
e um sistema partidário altamente fragmentado têm contribuído para obscurecer a
inteligibilidade da competição partidária, desestimulando, portanto, o
desenvolvimento de identidades partidárias. Embora as estratégias utilizadas
pelos políticos e seus respectivos partidos no sentido de aumentar seus ganhos
nesse contexto de disputa tenham sido bem-sucedidas, as conseqüências para o
eleitorado estão longe de ser positivas. Os eleitores apresentam dificuldade de
identificar os partidos como atores políticos distintos, isto é, como entidades
que estruturam a escolha eleitoral e criam identidades. Em outras palavras, em
uma situação de intensa fragmentação e falta de nitidez do sistema partidário
em decorrência da prática de alianças eleitorais ' para não mencionar a prática
de governo de coalizão ', é difícil para o eleitor mediano fixar a imagem dos
partidos, distinguir seus líderes e propostas e, assim, estabelecer uma
lealdade partidária.
Sob tais circunstâncias, a visibilidade dos partidos, essencial para o
desenvolvimento da identificação partidária, pode ocorrer apenas se eles forem
muito bem organizados e tiverem uma clara estratégia para construir um perfil
diferenciado. Como a única organização de massa no sistema partidário
brasileiro, o PT pôde se beneficiar de sua exposição singular, construindo,
pois, raízes no eleitorado. A fim de compensar a fluidez da estrutura de
competição eleitoral e se afirmar como um ator importante na arena eleitoral, o
PT fortaleceu sua organização e se apresentou às urnas como um efetivo partido
de oposição e de esquerda. Ao manter essa estratégia, evitando se misturar a
parceiros eleitorais do outro extremo do espectro ideológico, este partido
conseguiu fixar sua imagem e criar laços com uma porção significativa do
eleitorado, especialmente nesta importante região do país, onde nossa pesquisa
foi realizada ' a RMSP. Isso certamente explica o crescimento dos simpatizantes
do PT. Sua presente experiência no poder federal, que lhe configura uma nova
posição no processo político ' vale lembrar a necessidade imperativa de formar
uma ampla e heterogênea coalizão de governo ', será um importante teste para a
capacidade do PT de reter seus partidários.
Notas
1 Aspecto muito bem analisado para o caso norte-americano por Aldrich (1995).
2 Resultantes de uma pesquisa por amostragem realizada na região metropolitana
de São Paulo e de dados secundários sobre preferência partidária das pesquisas
nacionais do Data Folha, entre 1989 e 2002.
3 A média do índice Pederson para os países da Europa, entre 1985 e 1996, foi
11,0 (cf. Nicolau, 1998). Sobre volatilidade eleitoral, ver em especial
Bartolini e Mair (1990) e Mair (1997).
4 Os dados utilizados no Gráfico_1, assim como na Tabela_1, são resultados de
pesquisas nacionais realizadas pelo Instituto DataFolha. Os valores
apresentados são a média anual das pesquisas realizadas anualmente. Para uma
análise mais detalhada a esse respeito, ver Carreirão e Kinzo (2004).
5 Usamos o termo preferência partidária em vez de identificação partidária
(termo mais recorrente na literatura), pois a formulação da pergunta utilizada
nas pesquisas no Brasil ("Que partido você prefere?") difere da utilizada nas
pesquisas realizadas em países de democracia consolidada ("Do you usually think
yourself as a Democrat, a Republican etc. ou "As a Conservative, a Labour etc.)
(cf. Miller e Traugott, 1989).
6 A média anual resultou das taxas observadas em cerca de quatro pesquisas
realizadas em cada ano pelo DataFolha.
7 Ultimamente essa estratégia foi bastante alterada. Nas eleições de 2002,
quando foi eleito Luis Ignácio Lula da Silva, a estratégia adotada foi a de se
aliar mesmo com partidos de centro-direita, como PL e PTB.
8 Ver, especialmente, o trabalho seminal de Converse (1964).
9 Sobre os componentes afetivo e cognitivo da identificação partidária, ver,
especialmente, Richardson (1991).
10 Essa pesquisa baseou-se em uma amostra probabilística de 1.500 casos. A
seleção dos municípios obedeceu os seguintes procedimentos: a) a cidade de São
Paulo foi incluída como município auto-representativo (61,1% do eleitorado); b)
os restantes municípios da RMSP foram agrupados em 2 clusters de acordo com o
tamanho do eleitorado; c) do cluster1, que reúne 28,5% do eleitorado, foram
selecionados aleatoriamente três municípios (Moji das Cruzes, Guarulhos e
Carapicuíba), do cluster2 (10,4% do eleitorado) foi selecionado apenas um
município (Cotia); d) o número de entrevistas realizadas em cada um dos
municípios foi distribuído proporcionalmente ao tamanho de seu eleitorado e as
quotas distribuídas por escolaridade, sexo e idade proporcionalmente à
distribuição dessas variáveis sociodemográficas em cada um dos municípios.
Agradeço a Leandro Piquet Carneiro pela assessoria na definição do plano
amostral.
11 Poder-se-ia objetar que a taxa de preferência partidária estaria
subestimada, dada a forma espontânea da pergunta, isto é, talvez o eleitor
pudesse lembrar facilmente da sigla e definir sua preferência quando diante de
um estímulo (por exemplo, uma lista dos partidos). De fato, incluímos uma
pergunta sobre inclinação partidária, de forma a saber se o entrevistado
indicaria alguma preferência diante da apresentação da lista dos principais
partidos. Neste caso, a taxa de preferência e/ou inclinação subiria para 60,4%,
sendo 36,3% para o PT, 9,9% para o PMDB, 5,3% para o PSDB, 2,9% para o PFL,
1,9% para o PPB, 1,8% pata o PTB, 0,7% para o PDT e 1,7% para os outros
partidos. No entanto, internacionalmente, a identificação partidária é medida
por um indicador ainda mais rigoroso, uma vez que se pergunta "Qual é seu
partido?" e não "Qual o partido de sua preferência?". Se a preferência já se
constitui por si só uma forma menos rigorosa de medir a identificação
partidária, ainda menos precisa seria medi-la apresentando aos entrevistados um
estímulo.
12 Nível de significação de 01.
13 Esta estatística permite medir o impacto de uma variável independente,
controlando o efeito que outras variáveis poderiam causar. Ou seja, para medir
o efeito isolado de uma determinada variável, a estatística simula manter
constante o efeito das outras variáveis.
14 Trata-se de uma variável dummy, com valor 1 para os que manifestaram
preferência por algum partido e 0, para os sem preferência.
15 Variável dummy, com valor 1 para petistas e 0 para os demais entrevistados.
16 Variável dummy, com valor 1 para os que declararam preferência pelo PMDB e 0
os demais entrevistados.
17 É interessante notar que 55% dos entrevistados são favoráveis a que o
sistema partidário brasileiro tenha menos partidos do que há atualmente.