Commanding heights: para uma sociologia política dos bancos federais
brasileiros
Depois de mais de uma década de liberalização, privatização, investimento
financeiro externo e reformas bancárias, os bancos do governo federal
brasileiro continuam sendo a primeira, a segunda e a quarta maiores
instituições de crédito do país. Considerados em separado, cada banco ocupa um
lugar essencial na economia. Fundado inicialmente em 1810, o terceiro Banco do
Brasil ainda é o maior banco comercial do país, um dos principais bancos de
investimento e agente primário em mercado de ações, agricultura, comércio
internacional e financiamento de exportações. Fundada em 1860, a Caixa
Econômica Federal ainda lidera em termos de poupança e crédito popular,
desenvolvimento urbano, saneamento e moradia enquanto serve como agente central
de transferência dos benefícios sociais do governo. Fundado em 1952, o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social tem oferecido desde então
crédito de longo prazo para setores econômicos estratégicos; coordenou as
privatizações nos anos de 1990; continua sendo uma fonte importante de
financiamento de exportações; e, no atual governo, procura implementar novas
políticas de desenvolvimento.1
Tomados como um todo, os bancos federais continuam sendo commanding heights.
Não no sentido da cláusula quatro do programa de 1918 do Partido Trabalhista
britânico, a qual simboliza as aspirações não-realizadas do socialismo europeu,
mas no sentido de serem ainda instituições financeiras determinantes do
desenvolvimento brasileiro.2 A importância desses bancos contraria a idéia de
que há uma mudança global em andamento para substituir a alocação governamental
de recursos em favor dos mercados. Em vez de refletir um consenso sobre a
necessidade de liberalizar e privatizar, a experiência brasileira envolve uma
nova divisão de trabalho financeiro, vantagens comparativas institucionais e
políticas contra-cíclicas ainda em busca do crescimento sustentado e da
inclusão social. Este artigo examina os contornos dessa nova modalidade de
capitalismo financeiro.
A liberalização, a privatização e uma onda de investimento financeiro externo
direto durante a década de 1990 produziram, com efeito, um novo sistema
financeiro no Brasil. Porém, longe de confirmar a superioridade dos bancos
estrangeiros (ou temores semelhantes de dominação imperialista), tanto o
conteúdo como as conseqüências das reformas dos anos de 1990 diferenciaram-se
em aspectos importantes da teoria e da política neoliberal. De 1994 a 2002, o
governo FHC privatizou bancos estaduais (mas não federais) e estimulou a
entrada de bancos estrangeiros. Em 2001, capitalizou os bancos federais,
desafiando, assim, essas instituições a desenvolver novos planos.
Em termos de sociologia política, a questão é se os bancos federais podem
canalizar capital, crédito e políticas sociais para aqueles que ficaram para
trás durante o desenvolvimento brasileiro, ou se atuarão principalmente como
agentes de distribuição de benefícios para as classes médias ou grandes
empresas mediante a máquina política. Nesse sentido, estudos recentes de
microcrédito e crédito popular têm implicações importantes para a sociologia
política dos bancos federais. Os bancos, comerciais e sem fins lucrativos,
descobriram que as taxas mais altas de inadimplência no crédito popular são
mais do que compensadas pelas maiores margens de lucro como também a
pulverização do risco entre um número maior de clientes. Empréstimos
"predatórios" mostram como a demanda reprimida e os abusos permeiam a gestão
bancária privada, mesmo em economias avançadas.3 Mas, para os bancos públicos
brasileiros, novos programas de crédito popular parecem mais viáveis e menos
propensos a riscos do que os grandes empréstimos ou subsídios para a casa
própria da classe média que assombraram seus balanços no passado. Tendo em
vista a restrição fiscal aos gastos públicos no Brasil, os bancos federais
podem fazer mais por menos: quase dez vezes mais, se compararmos o capital de
reserva para empréstimos com os gastos necessários para implementar diretamente
as políticas públicas.
Algumas propostas na teoria política, como a de stake-holding e renda básica
garantida também sugerem que novas políticas monetárias e financeiras podem
acelerar a inclusão social e aprofundar a cidadania. Ackerman e Alstott (1999)
sustentam que pagamentos únicos de US$80.000 aos 21 anos de idade nos Estados
Unidos aumentariam a participação dos indivíduos na economia. Parijs (2004)
argumenta que uma renda básica expandiria a liberdade dos indivíduos ao mesmo
tempo em que evitaria desequilíbrios econômicos e monetários. Barry (1996) e
Pateman (2005) afirmam que uma garantia de renda básica teria uma influência
profunda sobre a cidadania, a democracia e a economia. Tendo em vista a criação
de novas políticas sociais no Brasil, tais como a bolsa-escola, e os avanços no
campo da tecnologia da informação e de cartões bancários, uma expansão gradual
das políticas existentes no sentido de criar garantias mais amplas de renda
parece urgente em termos de justiça social, possível em termos de teoria
econômica e essencial em termos de socialização política. Aprofundar os
vínculos dos brasileiros com as instituições da democracia e dos mercados
exige, portanto, novas políticas de dinheiro e crédito.
Esses problemas estão no cerne do institucionalismo histórico e da teoria
democrática empírica. Enquanto o primeiro explora problemas gerais de política
e inclusão social por meio da análise das instituições ao longo do tempo
(Mahoney e Reuschemeyer, 2003), a segunda visa a compreender como as classes
sociais são, ou não, incorporadas às instituições políticas durante a
modernização econômica. Embora muitas vezes considerada conservadora ou
elitista, essa tradição chama a atenção para a questão não resolvida da
incorporação das classes populares no Brasil. A dramática distribuição da renda
brasileira sugere a importância de os bancos federais serem agentes da inclusão
social e da socialização política, pois, segundo o IBGE, as classes C, D e E
ainda compõem a grande maioria dos eleitores.
Perspectivas comparadas e teorias sobre bancos governamentais
Uma análise de bancos públicos necessariamente trata de teorias e conceitos
essencialmente contestados sobre mercados, intervenção governamental e
política. No centro de debates recentes está a teoria da vantagem comparativa
institucional (Hall e Soskice, 2001). Esta abordagem de "variedade de
capitalismo" levanta questões profundas sobre a criação e a sustentação da
vantagem comparativa, a capacidade dos governos de controlar ciclos de negócios
e a importância de diferenças na gestão econômica. Consideramos os bancos
federais brasileiros alicerces institucionais da vantagem comparativa numa nova
variedade de capitalismo financeiro que surgiu no Brasil a partir de 1994 com a
estabilização de preços e a democratização. Isso contradiz as expectativas de
que a globalização e as políticas de liberalização levariam os sistemas
financeiros a convergir e os mercados de ações a conduzir o crescimento, mas a
experiência brasileira está longe de ser anômala.
Allen e Gale apresentam quatro observações comparativas sobre sistemas
financeiros que ajudam orientar este estudo:
1. Na maioria dos países, as bolsas de valores não são importantes.
2. Os mercados financeiros são principalmente mercados para as
dívidas do governo.
4. As empresas obtêm fundos via mercados de capital ou empréstimos
bancários.
5. O ideal de mercados sem fricção é raramente alcançado na prática.
a) Em vez disso, são necessários "intermediários" para
superar as barreiras de informação.
b) A visão tradicional dos mercados financeiros como meios
ideais de alocação de recursos não é mal colocada (2000, p.
3).
Cada uma dessas observações sobre a economia financeira comparada levanta
questões complexas que fogem ao objetivo deste trabalho. Porém, algumas parecem
essenciais para se compreender os fundamentos institucionais da vantagem
comparativa e a sociologia política dos bancos federais brasileiros. Nosso
argumento de que estes bancos foram agentes críticos durante o período difícil
de 1994 a 2004 parte de uma distinção central na economia política e na
economia financeira comparadas entre sistemas financeiros centrados em mercados
e sistemas financeiros centrados em bancos (Zysman, 1983; Levine e Zervos,
1998; Allen e Gale, 2000; Rajan e Zingales, 2003).
A liberalização financeira e a modernização bancária transformaram muitas
economias. Contudo, longe de ser uma tendência no sentido de aproximar sistemas
centrados em mercados semelhantes aos dos Estados Unidos e do Reino Unido,
pesquisas sobre as maiores economias da Europa continental ' Alemanha, França,
Itália ' indicam que os sistemas centrados em bancos foram redesenhados de
várias formas. Algumas nações do Leste Europeu implementaram medidas radicais
de liberalização e privatização nos anos de 1990. Porém, a maioria das
experiências na América Latina, na Ásia e na África (sobretudo em países
grandes como a China, a Rússia, e a Índia) apresentam histórias mais variadas,
que ainda envolvem controle estatal, proteção de indústrias nacionais, crédito
bancário e títulos, em vez da predominância de bolsas de valores e mercados
financeiros.
Tal como no passado, as reformas recentes visam a criar ou a manter grandes
bancos capazes de competir interna e externamente.4 Essa preocupação com esse
tipo de banco obscurece um outro fenômeno nos países avançados, a saber, a
importância de mercados e instituições nas esferas regional e local durante o
reposicionamento de instituições de crédito tradicionais, tais como caixas de
poupança, sociedades de crédito cooperativo, uniões de crédito e associações
hipotecárias, muitas de propriedade pública e controle governamental
(geralmente locais). Essas instituições de crédito regionais e locais são
amiúde muito pequenas. Porém, no conjunto, elas correspondem a uma parte
considerável do volume total de crédito e financiamento nas economias
avançadas. E, ao contrário da expectativa de que a liberalização financeira e a
união monetária na Europa reduziriam o número de bancos e aumentariam a
vantagem comparativa graças ao escopo e à escala, a fatia de mercado das
instituições de crédito regionais e locais parece ter permanecido estável ou
mesmo aumentado (Butzbach, 2003; Vitols, 2004). A teoria da vantagem
comparativa institucional parece explicar essa persistência das instituições
tradicionais de crédito na Europa. Essas trajetórias divergentes dos grandes
sistemas bancários domésticos europeus sugerem que path dependence,
instituições regionais e locais complexas, práticas bancárias tradicionais e
diferenças predominaram em vez de um modelo único baseado em mercados
financeiros. Os sistemas financeiros europeus refletem longas trajetórias que
acumularam um capital imenso em instituições e mercados locais profundamente
enraizados. A variedade, a complexidade e o arraigamento de bancos, créditos e
financiamentos locais continuaram no centro das novas estratégias durante a
liberalização financeira e a integração monetária da Europa.
A comparação da quantidade de capital em bancos, em mercados de ações e em
títulos lançados nas economias avançadas e em desenvolvimento confirma as
observações de Allen e Gale citadas acima e sugere generalizações relevantes
para este estudo.
Primeiro, existem poucos sistemas financeiros centrados em mercados. São os
bancos, e não os mercados de ações, que alocam recursos na maioria dos países.
Assim, a experiência norte-americana, centrada em mercados de ações, continua a
ser uma exceção, longe de se tornar um modelo a ser facilmente adotado no
exterior. Os dados apresentados pela Federação Mundial de Bolsas de Valores
indicam que os mercados de ações não aumentaram sua fatia de financiamento
doméstico desde 2000. Os revezes nos mercados de ações na Europa e o impacto
das crises e dos choques financeiros internos e externos, tanto nas economias
avançadas como nas emergentes, colocaram em cheque a onda neoliberal de
liberalização e privatização.
Em segundo lugar, a propriedade pública e o controle governamental de bancos
ainda são comuns em sistemas financeiros centrados em bancos, embora raros em
sistemas financeiros centrados em mercados.
Em terceiro, em uma perspectiva comparada, a característica mais notável do
sistema financeiro brasileiro talvez seja a ausência de um mercado para títulos
do governo de longo prazo (Arida et al., 2005).
Em comparação com os setores financeiros paradigmáticos dos Estados Unidos e do
Reino Unido, os mercados brasileiros continuam ralos. Em 2003, a capitalização
de ações na Bovespa somava 31,2% do PIB, menos que as ações norte-americanas
(86,0% do PIB) e do Reino Unido (111,0% do PIB), mas semelhante à de sistemas
centrados em bancos, como Alemanha e Itália (32,2% e 36,4% do PIB,
respectivamente). Não obstante, o sistema bancário brasileiro também empalidece
na comparação com as economias avançadas centradas em bancos. Em 2003, o valor
total de ativos de bancos no Brasil somava 55,17% do PIB, enquanto na economia
paradigmática da Alemanha, os ativos dos bancos chegavam a 313,29% do PIB. Na
Itália, esse número totalizava 150,46% do PIB, enquanto os ativos de bancos
franceses somavam acima de 150% do PIB.
Uma comparação entre capital em bancos e capitalização de mercados de ações
(ver colunas 1 e 5, Tabela_1) indica a predominância de bancos sobre mercados
financeiros. Com exceção dos Estados Unidos, o valor total dos ativos dos
bancos nas economias avançadas varia entre três vezes e dez vezes o capital nos
mercados de ações, e entre a metade e três vezes a capitalização dos mercados
de títulos domésticos. Com efeito, os Estados Unidos e a Finlândia são as
únicas economias nas quais os ativos bancários somam menos do que o PIB (65,85%
e 72,25%, respectivamente). Os ativos bancários das outras dezoito economias
avançadas somam bem acima de 100% do PIB, enquanto quinze apresentam ativos
bancários acima de 150% do PIB. Seis delas registraram ativos bancários acima
de 300% do PIB.5
Além disso, o controle governamental de ativos bancários permanece em níveis
consideráveis em duas das seis maiores economias avançadas, e ainda está
presente em sete das catorze economias mais desenvolvidas (ver coluna 2, Tabela
1). Os governos alemães (locais e regionais) conservam 42,0% dos ativos
bancários domésticos, enquanto os governos da Itália detêm 17,0% e, da França,
8,7%. Embora em sete das menores economias avançadas os ativos bancários
estejam totalmente sob o controle privado, em Israel, 45,6% desses ativos são
governamental, assim como 21,9%, na Finlândia, 20,8%, em Portugal, 15,0%, na
Suíça, 13,0%, na Grécia e aproximadamente 5,0%, em Luxemburgo e na Holanda. Em
suma, os bancos públicos continuam sendo uma parte importante dos sistemas
financeiros (Caprio et al., 2005).
A concentração bancária (dos ativos nos três maiores bancos) não parece
coincidir nem com as economias políticas centradas em bancos, nem com sistemas
bancários que conservam níveis mais altos de controle governamental (ver coluna
4, Tabela_1). Em geral, o controle público de bancos parece refletir
instituições regionais e locais. Isso difere da situação brasileira. Em
economias avançadas, bancos públicos em geral são de autoridades locais e
regionais, compreendendo instituições de poupança, sem fins lucrativos,
cooperativas e de poupança mútua, em vez de grandes bancos comerciais.
A internacionalização dos sistemas bancários domésticos ainda parece rara nas
economias avançadas e varia consideravelmente nos países em desenvolvimento
(ver coluna 3, Tabela_1). O valor dos ativos bancários possuídos por entidades
estrangeiras permanece bem abaixo de 20% em todas as economias avançadas,
exceto no Reino Unido (52,6%), na Nova Zelândia (99%) e na Bélgica (24,1%).
Apesar da integração econômica que culminou com a adoção do Euro em 2000, os
sistemas bancários domésticos parecem ter permanecido, em sua vasta maioria, em
mãos nacionais. Em comparação, os países emergentes e em desenvolvimento
apresentam níveis bem maiores de controle bancário estrangeiro.
Embora as diferenças regionais continuem marcantes, dados a partir de 2000
sugerem que a grande maioria das economias em desenvolvimento continua centrada
em bancos. E mais, dados da Federação Mundial de Bolsas de Valores indicam que
várias economias ' avançadas e em desenvolvimento ' recuperaram-se depois de
2000, alavancadas sobretudo pelo lançamento de títulos.6 O lançamento de
títulos privados, públicos e estrangeiros rapidamente atingiu níveis
significativos em alguns países como a Itália, o Reino Unido, o Japão, a
Coréia, a Argentina e o Chile. Nesse aspecto, a ausência de um mercado
doméstico de títulos públicos brasileiros de longo prazo é marcante. Enquanto o
valor dos títulos privados aumentou de 0,4% para 1,9% do PIB de 2000 a 2003, a
Federação Mundial de Bolsas de Valores não registrou capital em mercados
domésticos para emissões de títulos (de longo prazo) públicos ou estrangeiros
no Brasil. Em comparação, a bolsa de Buenos Aires aumentou o valor de títulos
públicos de 19,2% para 42,4% do PIB nesse mesmo período. A bolsa de Santiago
também registrou uma capitalização de títulos públicos de 15,7% para 24% do PIB
chileno enquanto o valor dos lançamentos privados permaneceu em cerca de 20% do
PIB.
Os países em desenvolvimento da Ásia também registraram uma capitalização
significativa dos mercados de títulos domésticos. As bolsas coreanas mostraram
uma capitalização de 22,1% para 200,6% do PIB entre 2000 e 2003 (queda dos
238,0% de 2002), com lançamentos públicos aumentando seu valor de 22,1% para
142,9% do PIB coreano nesse período. Ao mesmo tempo, o valor dos títulos
estrangeiros no mercado doméstico coreano caiu de 51,3% para 0,1% do PIB. Os
títulos emitidos na bolsa de valores das Filipinas caíram para zero. Porém, os
títulos públicos na bolsa de Taiwan aumentaram de 0,4% para 30,8% do PIB entre
2000 e 2003. Tal como na Coréia, o valor dos títulos estrangeiros na bolsa de
Taiwan caiu de 18,0% para 0,5% do PIB. Dois mercados de títulos do leste
europeu apresentaram relatórios à Federação Mundial de Bolsas de Valores, mas a
capitalização foi insignificante. Sem levar em consideração os títulos globais,
a capitalização dos mercados domésticos de títulos desde 2000 aparece como uma
alavanca fundamental em economias avançadas, emergentes e em desenvolvimento.
Tendo em vista a capitalização baixa do mercado de ações brasileiro e a
ausência de um mercado doméstico de títulos governamentais de longo prazo, os
bancos públicos apresentam-se ainda mais como agentes centrais do
desenvolvimento.
Variedades de capitalismo financeiro nos países em desenvolvimento
A liberalização financeira e a mudança bancária nas nações em desenvolvimento
desde os anos de 1990 parecem ter tomado três caminhos distintos. Um deles é o
das reformas radicais, que produziram uma internacionalização extrema dos
sistemas financeiros. Essas experiências são encontradas, em larga medida, na
Europa Oriental durante as transições a partir dos regimes stalinistas e das
economias centralizadas. O segundo caminho, seguido pelas economias latino-
americanas, envolve uma liberalização e uma internacionalização financeira
substancial. A terceira trilha aparece entre os países em desenvolvimento que
liberalizaram seus setores financeiros de modo seletivo, estratégico ou
reduzido e, conseqüentemente, conservaram um maior controle político direto
sobre o sistema bancário.
O que permanece na maioria dos países em desenvolvimento, e especialmente entre
os maiores em termos de produto doméstico, são bancos, controle estatal e
forças domésticas, em vez de privatização, liberalização e internacionalização
para capitalizar os mercados de ações. Dados do BIS (Bank for International
Settlements ' Banco de Compensações Internacionais) oferecem vários indícios
desse quadro entre 1980 e 2000. A maioria dos sistemas financeiros em países em
desenvolvimento continua centrada em bancos e varia amplamente, com uma
inclinação no sentido do controle estatal e nacional nas economias maiores,
especialmente na China, na Rússia e na Índia. Além disso, os dados do BIS
também sugerem que lucratividade, custo operacional e alocação de crédito
contra-cíclico são distribuídos entre instituições de crédito privadas,
públicas e estrangeiras. Portanto, a divisão do trabalho financeiro nas
economias em desenvolvimento combina as vantagens comparativas (e as
deficiências) de bancos nacionais, estrangeiros e estatais numa ampla gama de
cenários.
Em termos de propriedade estatal, os dados da Tabela_2 indicam que a
privatização ainda está por ser adotada em muitos países em desenvolvimento,
sobretudo nas maiores economias. Em 2000, 99,0% dos ativos dos bancos
continuavam sob controle governamental na China, enquanto 80,0% e 68,0% dos
ativos bancários domésticos da Índia e da Rússia permaneciam nas mãos do
governo. Essa tendência representa uma mudança considerável, uma vez que o
governo indiano possuía 91% dos ativos bancários nacionais em 1980, época em
que o controle estatal dos bancos na Rússia comunista era completo. Embora não
haja informações sobre o retorno médio ou a reserva de capital para a Rússia e
a China, o Índice de Basiléia de 11.2 e o retorno de 0,4% sobre os ativos
(1998) registrados para os bancos estatais indianos sugerem que estas
instituições não são um buraco negro financeiro conforme retratado pelos
críticos (La Porta et al., 2002).
Os países do Leste Europeu registrados no estudo do BIS apresentam experiências
de privatização bastante drásticas, como as da República Tcheca e da Polônia,
onde a queda da propriedade estatal dos bancos foi de 78% e 80% em 1990 para
28% e 23% em 2000, respectivamente. Não obstante, na Hungria, o controle
estatal sobre bancos aumentou de 81% em 1990 para 92% em 2000. Ademais,
enquanto os bancos estatais da República Tcheca e da Hungria registraram perdas
significativas em 1998 (retornos sobre ativos de -0,4% e -27,1%), os bancos
públicos poloneses registraram um retorno positivo de 1,0%. Tais resultados
ocorreram durante o ano da moratória russa dos pagamentos da dívida externa, o
que causou choques significativos nas instituições financeiras. Além disso, o
Índice de Basiléia registrado para o setor bancário estatal desses três países
indica que essas instituições financeiras estão capitalizadas contra riscos de
capital e de crédito conforme padrões internacionais.
As economias emergentes asiáticas presentes no estudo do BIS também conservam
níveis consideráveis de controle público de bancos, embora em grau inferior ao
das três maiores economias emergentes. Enquanto nas Filipinas a propriedade
estatal de ativos bancários caiu de 37% em 1980 para 12% em 2000, na Coréia, o
Estado aumentou sua participação de 25% para 30%; no mesmo período, a fatia do
governo indonésio permaneceu acima dos 55%. Ao mesmo tempo em que os governos
asiáticos declararam perdas significativas em 1998 (um ano após a crise
regional), o único caso de deterioração grave do capital nesse ano, de acordo
com o índice de Basiléia, ocorreu na Indonésia. Nossa conclusão é de que os
bancos públicos continuam centrais nas nações em desenvolvimento da Ásia.
As experiências na América Latina são mais variadas. O controle governamental
de ativos de bancos declinou de 23% para 12% do total no Chile e de 27% para
13% na Colômbia, enquanto o México primeiro nacionalizou e depois privatizou os
bancos domésticos. Porém, as experiências da Argentina, do Brasil e da
Venezuela sugerem que a mudança bancária na América Latina é diferente das
liberalizações e privatizações mais abrangentes que ocorreram em diversos
países da Europa Oriental. Em 2000, os governos desses três países ainda
mantinham o controle de 30%, 43% e 52% dos ativos bancários domésticos,
respectivamente. Embora os bancos públicos brasileiros e colombianos tenham
registrado retornos sobre ativos de -0,1% e -10,0% em 1998, os outros setores
bancários públicos da América Latina incluídos no estudo do BIS registraram
retornos positivos, apesar dos choques externos que suas economias sofreram
nesse ano. Além disso, os Índices de Basiléia registrados para os setores
bancários públicos da região indicam que todos, com exceção da Colômbia (6.9),
permaneceram bem acima dos 8.0 sugeridos pelo BIS. Ou seja, os bancos públicos
mantêm suas reservas no nível recomendado pelo BIS contra risco de crédito e
choques econômicos.
Outros dados do BIS apresentados na Tabela_3 indicam que o controle estrangeiro
de bancos nas nações em desenvolvimento aumentou desde 1980. Porém, os ritmos
de mudança e o fato de que os bancos domésticos ainda predominam parece
confirmar os novos contornos de capitalismo financeiro conforme descrito acima.
Novamente, as três maiores economias políticas parecem ter mudado menos. Em
2000, os bancos estrangeiros ainda possuíam menos de 1% dos ativos bancários na
China. Os bancos estrangeiros também aumentaram pouco ou moderadamente sua
propriedade de ativos bancários domésticos na Índia (de 4% em 1980 para 8% em
2000) e na Rússia (de 6% para 9%). Em comparação, a propriedade estrangeira de
bancos nos países em desenvolvimento da Ásia incluídos no estudo do BIS variou
de 7%, na Indonésia, a 32%, na Coréia. Na América Latina, os índices refletem
níveis consideravelmente mais altos de liberalização financeira e
internacionalização, variando de 23% no Brasil a 54% no Chile. Por fim, a
liberalização e internacionalização mais intensa dos bancos na Europa Oriental
é confirmada pelos níveis comparativamente mais altos de propriedade
estrangeira, chegando a 66% na República Tcheca e 70% na Polônia.
Sistemas financeiros e a distribuição de renda
Sistemas financeiros centrados em bancos e aqueles centrados em mercados
parecem estar relacionados a níveis e trajetórias muito diferentes de
distribuição da renda. Em teoria, Hall e Soskice (2001) notam possíveis trade-
offs entre sistemas financeiros em termos de níveis de emprego, horas de
trabalho e desigualdade de renda. Porém, uma comparação das economias avançadas
durante as décadas de 1980 e 1990 indica que sistemas financeiros centrados em
bancos mantiveram distribuições de renda muito melhores do que aqueles
centrados em mercados financeiros. A desigualdade crescente em economias de
mercado é objeto de preocupação geral nas ciências sociais (Jacobs et al.,
2004; Dimsky, 1999). Fatores não financeiros certamente contribuem para essas
diferenças, e há muita dificuldade em comparar dados agregados de renda
(Atkinson e Brandolini, 2001). Entretanto, há fortes razões para se enfocar a
área financeira, uma vez que os economistas vêm observando, desde muito tempo,
que as famílias ricas preferem ações e títulos, ao passo que a classe média
tende a depositar economias em bancos, enquanto famílias de baixa renda poupam
pouco e, conseqüentemente, mantêm seus ativos em dinheiro ou depósitos de curto
prazo em bancos (Guiso et al., 2001; Vitols, 2004). Essas diferenças aumentam
as desigualdades.
A Tabela_4 apresenta os coeficientes de Gini para uma amostra de economias
avançadas e países em desenvolvimento dos anos de 1970 até o final da década de
1990, retirados da compilação feita pelo Luxemburg Income Study. No conjunto de
economias avançadas, há diferenças marcantes entre países com sistemas
financeiros centrados em mercados e aqueles centrados em bancos. No conjunto de
países em desenvolvimento, os dados confirmam os diferentes caminhos que foram
tomados entre as regiões do mundo conforme descrito acima, assim como a
variedade de experiências nacionais. A América Latina, em particular o Brasil,
destaca-se como a região de pior distribuição de renda, se comparada às
economias avançadas, às grandes economias emergentes, às economias de transição
na Europa Oriental e na ex-União Soviética e na Ásia.
Nas economias avançadas, o coeficiente de Gini varia entre 0.2 e 0.4, enquanto
no Brasil e em outras nações em desenvolvimento permanece acima de 0.5. Em
contrapartida, o coeficiente de Gini das novas repúblicas da antiga União
Soviética e países satélites indica um ponto de partida mais igualitário para
as suas transições políticas e econômicas. Em geral, os coeficientes de Gini
nos meados da década de 1970 nos países comunistas permaneciam entre 0.2 e
0.25, indicando distribuições de renda bastante igualitárias. Por outro lado, a
maioria dos países em desenvolvimento da Ásia e da África revela um coeficiente
muito mais alto, embora com características nacionais e regionais diversas. A
maioria dos países em desenvolvimento da Ásia situa-se entre 0.3 e 0.5, com
períodos de melhoria e deterioração. Nos países africanos, o coeficiente é
ainda mais alto, o que reflete uma distribuição perversa de uma renda menor.
Os níveis e as trajetórias da distribuição de renda dos países da América
Latina sugerem que o impacto da liberalização financeira foi considerável. O
Brasil permanece muito desigual. Porém, é notável que no México e no Chile a
desigualdade de renda tenha piorado muito, subindo de 0.46 e 0.45 em meados da
década de 1970 para 0.56 e 0.52, respectivamente, no final dos anos de 1990.
Embora pior, a distribuição de renda no Brasil permaneceu relativamente
estável, ao passo que nos países vizinhos, que implementaram medidas
substanciais de liberalização e privatização, houve uma deterioração
significativa.
Os Estados Unidos e o Reino Unido, países com sistemas financeiros centrados em
mercados paradigmáticos, experimentaram as piores trajetórias durante as
últimas décadas. O coeficiente de Gini no Reino Unido e nos Estados Unidos
aumentou de 33.9 e 34.1 em meados da década de 1970 para 40.5 e 37.5 no final
dos anos de 1990. Em contrapartida, as economias políticas tradicionalmente
centradas em bancos, como Alemanha, França e Itália, aparentemente melhoraram a
distribuição de renda durante as últimas décadas. Nesse período, o coeficiente
de Gini para a França caiu de 0.44 para 0.29, enquanto os da Alemanha e da
Itália também indicam uma crescente igualdade de renda, de 39.2 para 32.6 e de
38.0 para 36.2, respectivamente. Em suma, há uma correlação entre sistemas
financeiros centrados em mercados e pior distribuição de renda com indícios de
deterioração; ao contrário do que ocorre em sistemas financeiros centrados em
bancos, em que se pode observar níveis mais igualitários de distribuição de
renda e indícios de ligeira melhoria.
Os bancos públicos brasileiros, 1994-2004
Esse olhar comparativo sobre a mudança financeira e bancária sugere uma
combinação complexa de fatores e diversidade marcante. Qual foi o caminho
brasileiro? Em 1995, o governo FHC reduziu a proteção da indústria financeira
estabelecida na Constituição de 1988, permitiu a participação estrangeira nos
leilões de privatização e ofereceu novos incentivos ao investimento externo
financeiro. De 1994 a 2002, o investimento estrangeiro direto no setor
financeiro chegou a US$19,8 bilhões, ou seja 15% do total de investimento
estrangeiro direto no Brasil neste período. Porém, as características da
mudança bancária no Brasil contrariaram as expectativas, seja do ponto de vista
do neoliberalismo, seja em relação aos temores da dominação neo-imperialista
por bancos estrangeiros, seja ainda de referências passadas de políticas
financeiras lideradas pelo Estado e centradas na substituição de importações.
Os bancos federais brasileiros vêm se transformando desde 1994 também porque a
própria atividade bancária mudou drasticamente, sobretudo em termos da
capacidade de reduzir custos, das novas tecnologias de cartão, dos caixas
eletrônicos e da difusão do uso de transferências eletrônicas. Paradoxalmente,
os bancos brasileiros se modernizaram de modo rápido no final dos anos de 1980
e na primeira metade da década de 1990 devido aos ganhos elevados com a
inflação alta do período. O investimento dos depósitos de clientes em
instrumentos indexados, em larga medida em papéis do governo, "induziu os
bancos a se expandir, abrir novas agências, oferecer serviços 'gratuitos' e
desenvolver um alto grau de progresso tecnológico, especialmente voltado para
aumentar a velocidade das transações" (Goldfajn et al., 2003, p. 5). Essa
trajetória anterior ao ano de 1994 ajuda a explicar o impacto inesperado da
liberalização financeira posterior. A modernização dos bancos brasileiros '
privados e públicos ' não ocorreu pelo impacto da liberalização financeira
depois de 1995, mas antes, durante uma década de inflação alta. Como um bom
exemplo de path dependence, a ordem desses eventos é importante porque
diferenças competitivas aparentemente pequenas podem criar vantagens
comparativas duradouras (Zysman, 1994).
Outro detalhe, aparentemente inócuo, também é fundamental para explicar as
conseqüências inesperadas da liberalização financeira e da mudança bancária no
Brasil. Boa parte das privatizações, das fusões e das aquisições ocorreram sob
um regime de taxa de câmbio fixo. A desvalorização do real depois de 1999 fez
com que os bancos estrangeiros incorressem em grandes perdas de capital, perdas
essas que coincidiram com revezes em seus mercados domésticos. A partir de
2000, essas perdas reforçaram uma onda de aversão ao risco generalizado e
levaram as matrizes de bancos internacionais a abandonar estratégias que
envolvessem países emergentes e à venda de aquisições no Brasil. Essa
"renacionalização" dos bancos privados difere também das expectativas em
relação à superioridade dos bancos estrangeiros.
Goldfajn et al. sustentam que a liberalização transformou o sistema financeiro
brasileiro de um "sistema fechado e centrado nos bancos públicos", em que a
maior parte do crédito era dirigida e a maior parte dos lucros vinha de
seinorage num regime de inflação alta, em um sistema que compreende "um número
menor de bancos públicos, uma forte presença de bancos estrangeiros, a alocação
de crédito em grande parte livre e bancos bem capitalizados, cujos lucros não
dependem da inflação" (2003, p. 6). Esses autores observaram tendências
importantes ocorridas no setor bancário privado, mas, em larga medida, não
analisaram o papel dos bancos federais no novo sistema bancário brasileiro.
A comparação entre bancos públicos, privados e estrangeiros desde o início da
estabilização dos preços sugere os contornos de uma nova divisão do trabalho
financeiro. Em termos de capital bancário, o declínio da participação dos
bancos estatais, de mais de 34% do total, em 1994, para 16%, em 2002, reflete
tanto a privatização de bancos estaduais como a reorganização das carteiras dos
bancos federais (ver Tabela_5). O capital dos bancos privados caiu pouco, de
56% do total de bancos, em 1994, para 50%, em 2002, enquanto os bancos
estrangeiros aumentaram sua fatia de 9,6%, em 1994, para mais de 33%, em 2002.
Isso indica um grau de liberalização financeira muito maior do que o ocorrido
na Europa durante a integração monetária e na maioria das economias emergentes
(com exceção de algumas experiências selecionadas do Leste Europeu).
A oferta de crédito também reflete essa mudança do setor público para o
privado: a participação dos bancos estatais na concessão de crédito caiu de
59%, em 1994, para 28%, em 2002, enquanto o crédito privado crescia de 40% para
70%, com os bancos estrangeiros aumentando sua fatia de 5,2% para 30,6%. Isso
confirma a ênfase de Goldfajn et al. na mudança da atividade bancária de
pública para privada. Porém, a comparação da alavancagem de crédito7 em bancos
públicos, privados e estrangeiros sugere que essas instituições não convergiram
em termos de gestão de carteiras e estratégias de negócios. A alavancagem de
crédito dos bancos públicos caiu de 10.32, em 1994, para 6.65, em 1999, mas
aumentou depois para 8.68, em 2000. Em contrapartida, a dos bancos estrangeiros
nesse período se manteve abaixo do pico de 3.11, em 1998. Os estrangeiros
aplicaram seus ativos em crédito em menos de um terço dos níveis registrados
pelos bancos públicos e menos da metade dos níveis dos bancos privados
nacionais.
A reorientação dos bancos públicos federais brasileiros, 2001-2004
A capitalização das instituições financeiras federais brasileiras em 2001
reforçou a necessidade de desenvolver novas estratégias e políticas no setor. A
trajetória recente do Banco do Brasil reflete uma série de reformas
implementadas durante as décadas de 1980 e 1990 que separaram cada vez mais as
suas operações bancárias comerciais de outras atividades associadas à política
monetária e fiscal do governo. Desde 2001, a Caixa Econômica Federal tem
adotado uma estratégia dupla que envolve programas de crédito popular e
poupança, bem como operações de um banco de investimento. O BNDES afastou-se
das políticas seguidas nos anos de 1990 (privatização e tendência a se tornar
um banco de investimento) e procura novas estratégias de desenvolvimento
ligadas ao novo governo de coalizão do PT. Dados dos demonstrativos financeiros
dos bancos federais e do Relatório de Estabilidade Financeira do Banco Central
indicam que as reservas de capital, as carteiras de crédito e as provisões de
risco nessas instituições continuam dentro da legislação e das diretrizes
recomendadas. Em 2001, o custo da capitalização dos bancos federais foi alto.
Mas, a partir de então, os lucros consideráveis, os empréstimos contra-cíclicos
e as novas políticas destinadas a acelerar a inclusão social nesses bancos
públicos foram fundamentais durante o período conturbado que vai do fim do
governo de coalizão do PSDB aos primeiros dois anos do governo do PT.
A percepção que as elites políticas têm dos bancos federais reflete a
importância deles na economia política do país. Uma pesquisa realizada com
deputados federais em 2002 (antes da eleição) constatou um realismo moderado
sobre o potencial de uso dessas instituições para fins eleitorais, assim como
uma forte oposição à sua possível privatização. Dos 75 deputados entrevistados
(numa amostra cruzada de partidos, regiões e ideologias), 46,7% responderam que
não achavam que os bancos federais fossem usados para influenciar eleições,
enquanto 34,7% pensavam que esse uso era possível e 16,0%, provável. Isso
sugere um certo realismo em relação aos bancos federais. Porém, a oposição à
privatização beirou o consenso: 89,3% dos deputado federais entrevistados eram
contra a privatização do Banco do Brasil ou da Caixa Econômica Federal e 90,7%
opunham-se à privatização do BNDES.
Conclusão
Os debates recentes na área de economia política sobre as variedades de
capitalismo, e na área específica da economia financeira sobre a persistência
de diferenças entre sistemas financeiros, ajudam a compreender o conjunto
particular de bancos públicos brasileiros. Estas instituições ainda
correspondem ao contexto brasileiro de desenvolvimento tardio e confirmam a
lucidez da visão de Shonfield (1965) e Zysman (1983) sobre a importância das
diferenças e das configurações particulares na gestão da política econômica.
Nesse sentido, os bancos federais brasileiros podem ser considerados commanding
heights; diferentemente da visão que Lênin tinha ' ou seja, de um grande banco
capaz de apressar a transição para o socialismo ', trata-se de uma nova
perspectiva, isto é, um conjunto de instituições complexas capaz de alavancar o
crescimento econômico e a inclusão social.
Essas conclusões coincidem com uma virada metodológica nas ciências sociais,
assim como na economia política e na economia financeira comparadas, no sentido
de evitar generalizações fáceis a partir de tendências aparentes nos dados
agregados. Em diversas linhas de pesquisa recentes, é patente que os dados
agregados freqüentemente escondem as relações causais, apesar da
disponibilidade maior de dados secundários e dos avanços em análise
estatística. Assim, pesquisadores no campo da ciência política e da economia
financeira comparadas demonstram ser necessário adotar comparações mais
focadas, desenvolver análises histórico-institucionais mais profundas,
utilizando estudos de casos (Brady e Collier, 2004; Mettenheim, 2004; Carlin e
Mayer, 1999). Desse ponto de vista, nem a liberalização financeira, nem os
bancos públicos são em princípio melhores. Países avançados, emergentes e em
desenvolvimento adotaram estratégias que variam do protecionismo assumido à
liberalização draconiana. Porém, a maioria das políticas procura maximizar o
crédito e o financiamento por meio de estratégias que tentam combinar, em
contextos concretos, as virtudes da liberalização com o valor das instituições
que sustentam os mercados. Nesta convergência complexa residem processos
causais ainda mal compreendidos.
O processo brasileiro é ainda mais complexo em virtude da mistura de
tecnologias bancárias e financeiras de ponta com legados cruéis do
subdesenvolvimento e os desafios da volatilidade maior enfrentada por um país
emergente. Assim, apesar da modernização bancária, uma série de choques
econômicos desde 1994 reforçou a aversão tradicional ao crédito no Brasil. Há
tempos que os brasileiros desconfiam de empréstimos como parte de uma via em
espiral que leva inexoravelmente à bancarrota e à pobreza. Longe de irracional,
essa desconfiança reflete a cautela imposta por décadas de instabilidade
econômica, em que a mobilidade social é vista mais como uma probabilidade
assustadora de queda do que um cálculo de risco para melhorar a vida. Talvez
seja esta a maior mudança na economia social brasileira, embora ainda
incipiente. A demanda para crédito popular no país perpassa o micro
simplesmente por virtude, ou vício, da distribuição de renda. A abertura de
mais de 2 milhões de contas para os sem conta na Caixa Econômica Federal desde
o início de 2003 indica a importância dos bancos federais como também o tamanho
de seu desafio social.
NOTAS
1 Os bancos de desenvolvimento regional, como o Banco do Nordeste e o Banco da
Amazônia, assim como o Banco Central, estão fora do escopo deste estudo.
2 "Sem bancos grandes, o socialismo seria impossível. Os bancos grandes são o
aparelho do Estado que precisamos para alcançar o socialismo e que podemos
tomar diretamente do capitalismo [ ]" (Lênin, [1895] 1968, p. 365). A expressão
commanding heights é usada em discussões sobre a nacionalização de bancos e o
planejamento econômico, referindo-se à posição dominante dos bancos (Lewis,
1950; Myrdal, 1968).
3 O Community Reinvestment Act de 1977, a convocação de uma comissão do
congresso americano sobre abusos de bancos privados em 2001 e uma proposta de
lei contra empréstimos predatórios encaminhados, em 2003, pelo senador Sarbanes
exemplificam esses problemas nos Estados Unidos.
4 A corrida para fortalecer um número seleto de bancos nacionais durante os
anos de 1990 na Europa faz lembrar preocupações antigas com a projeção do poder
nacional no exterior. Sobre a política bancária na Ásia, ver Pauly (1988).
5 O valor dos ativos bancários na Suíça (538,9% do PIB) e em Luxemburgo
(3.423,18% do PIB) indica antes situações peculiares desses países, do que
níveis de desenvolvimento financeiro.
6 O valor de títulos na Itália aumentou de 93,3% para 147,6% do PIB entre 2000
e 2003 (títulos estrangeiros subiram de 1,2% para 40,8% do PIB). O valor de
títulos no Reino Unido aumentou de 100,4% para 140,1% do PIB no mesmo período
(estrangeiros subiram de 37,2% para 63,0% do PIB). Enquanto o valor dos títulos
públicos nos Estados Unidos declinou de 18,3% para 9,6% do PIB entre 2000 e
2003, aumentaram no Japão de 51,3% para 105,8% do PIB.
7 Alavancagem de crédito é a proporção de créditos/ativos bancários.