O leviatã brasileiro e a esfinge argentina: os determinantes institucionais da
política tributária
Introdução
Este texto aborda duas questões inter-relacionadas: os determinantes da
capacidade de tributar e os fatores que influenciam a capacidade de reformar
sistemas tributários. Analisam-se as trajetórias contrastantes da Argentina e
Brasil, países cujos casos se prestam a uma investigação de natureza
comparativa. Apesar das semelhanças em vários aspectos, os dois países
apresentam níveis de taxação e resultados de políticas de reforma muito
diferentes ao longo do tempo. Entre as semelhanças, ambos os países encontram-
se entre as maiores economias da região, apresentam níveis relativamente altos
de industrialização e trajetórias históricas associadas à substituição de
importações e ao intervencionismo estatal. Entre as similitudes institucionais,
observa-se que ambos possuem estruturas federativas, são amplamente
descentralizados e dispõem de um presidente forte (embora haja divergências
importantes quanto a este último aspecto). Ademais, contam com níveis elevados
de clientelismo e corrupção ' o que pode influenciar a capacidade extrativa
desses países. Contudo, os dois diferem drasticamente quanto à capacidade
estatal e ao funcionamento do sistema político. O caso do Brasil é interessante
pelo fato de apresentar a maior carga tributária do mundo em desenvolvimento
(atualmente estimada em 37% do PIB) e, em termos comparativos, uma burocracia
tributária eficiente e profissionalizada. A Argentina tem uma carga tributária
muito menor e uma burocracia tributária ineficiente. Isto se torna mais
surpreendente quando se leva em conta que a renda per capita é um preditor
forte da carga tributária. Embora o setor público de ambos os países seja muito
grande, presume-se que o fato de a renda per capita argentina ser
significativamente maior (quase três vezes maior no imediato pós-guerra)
deveria conduzir a um nível de tributação igualmente superior.
Ao contrário do Brasil, os presidentes argentinos ao longo dos anos não têm
sido capazes de implementar reformas tributárias sustentáveis. Os dois países
diferem também num ponto crucial, qual seja, o grau de legitimidade política do
sistema tributário. Neste artigo, argumento que a falta de legitimidade,
combinada à instabilidade e à fraca capacidade institucional, ajuda a explicar
o altíssimo nível de evasão fiscal da Argentina. Para isso examino a evolução
dessa capacidade ao longo do tempo e a forma como ela modelou o sistema
tributário nos dois países, influenciando, ao final, a capacidade (ou
incapacidade no caso argentino) de reformar o sistema. Neste artigo argumento
que os níveis de estabilidade política e os mecanismos de path dependency, que
estão na base de formação das instituições políticas, e do "Estado tributador"
(tax state) ajudam a explicar os diferentes resultados dos dois países.
O leviatã brasileiro definitivamente "aprendeu a tributar",1 sendo
possivelmente o melhor aprendiz de Kaldor ' pelo menos no que diz respeito à
capacidade de extrair recursos da sociedade. Mas a grande transformação na
capacidade extrativa brasileira ocorreu de uma forma não prevista por esse
autor e tomou uma direção exatamente oposta a que ele vislumbrou. Os altos
níveis de taxação foram obtidos mediante uma considerável expansão da
tributação indireta e crescimento, embora mais modesto, dos impostos sobre a
renda. Dadas as opções de reforma tributária presentes há quase duas décadas na
agenda internacional de reformas ' que se baseiam num consenso sobre a
necessidade de redução da tributação da renda (de pessoas físicas e jurídicas),
expansão da base tributária, diminuição das alíquotas marginais mais
importantes e incremento do imposto sobre valor agregado ', o crescimento atual
de receitas nos países em desenvolvimento tem, em grande medida, seguido a
mesma trajetória (Tanzi e Zee, 2000; Bird, 2003; Lledo, Schneider e Moore,
2003). No entanto, os resultados são muito distintos no Brasil e na Argentina.
A carga tributária do Brasil ultrapassou a média de 36% observada nos países da
OECD no final dos anos de 1990. Prevendo-se que atinja 38% no final de 2005,
ela é similar à apresentada pela Grã-Bretanha para aquela mesma década. Isto é,
sem dúvida, surpreendente, pelo fato de o Brasil ser um país em desenvolvimento
embora com renda per capita relativamente elevada e de os países com níveis
similares de desenvolvimento terem uma "capacidade extrativa" bem inferior. Em
comparação com a carga tributária das outras democracias federativas da América
Latina ' México (13%) e Argentina (24%) ', a carga tributária total do Brasil é
consideravelmente maior. Como assinalado na Figura_1, as cargas tributárias do
Brasil e da Argentina passaram a divergir significativamente a partir do final
da década de 1960. O que é mais significativo ainda é que a carga tributária do
Brasil já no início dos anos de 1970 era o dobro daquela da Argentina. A
excepcionalidade do Brasil representa per si um caso surpreendente. Todavia, a
questão analiticamente mais instigante diz respeito às razões que expliquem
tamanha variação nos países que se encontram aproximadamente no mesmo nível de
desenvolvimento.2
Esse aparente paradoxo, contudo, sugere também outras questões igualmente
instigantes. Os formuladores de políticas no Brasil têm reconhecido não apenas
que a carga tributária do país é excessiva, mas também que o sistema tributário
é altamente ineficiente, com impostos distorsivos em cascata. Os grupos de
interesse mais diversos apresentam propostas, muitas das quais chegaram ao
Congresso. É como se o país estivesse preso num equilíbrio ineficiente e fosse
incapaz de aprovar as reformas. Na Argentina, várias tentativas de reforma
também falharam. Isso aconteceu, como será discutido adiante, por causa da
falta de instituições capazes de garantir o que a literatura
neoinstitucionalista denomina transações políticas intertemporais, que podem
desestimular o oportunismo3. No caso da Argentina, o problema parece ser o
oposto da situação brasileira: a questão é como gerar receitas e combater o
alto nível de evasão fiscal. De acordo com o índice composto de reformas
tributárias, construído por Lora (2001) para mensurar a implementação das
reformas nos anos de 1980 e 1990, o Brasil avançou rapidamente, deixando a
Argentina bem para trás.4 Este índice é composto de várias dimensões e expressa
o avanço do país em implementar reformas tributárias que estavam, virtualmente,
na agenda de reformas dos países em todo o mundo. Elas incluem, por exemplo,
redução de alíquotas marginais, ampliação da base, redução de taxação
corporativa, eliminação de isenções, medidas voltadas para a elevação da
produtividade dos impostos5 etc. (Lora, 2001). Ao longo da década de 1990, o
índice para o Brasil está à frente do índice para Argentina em cerca de 60%. Em
outras palavras, a implementação dessa agenda de reformas foi muito mais
abrangente no Brasil do que na Argentina.
A primeira questão apresentada está relacionada à carga tributária e à
capacidade extrativa do Estado. Como o Estado adquire capacidade para tributar?
Quais fatores explicam a capacidade do Estado? Que fatores explicam a
substancial diferença em capacidade extrativa entre o Brasil e a Argentina.
Para examinar essas questões, farei uma revisão da literatura a esse respeito e
descreverei a evolução histórica do "Estado tributador" nos dois países, a fim
de explorar a aplicabilidade dos conceitos e dos argumentos propostos pela
literatura. Ao reconstituir a evolução histórica do "Estado tributador"6 nos
dois países, pretendo demonstrar como as estruturas tributárias são bastante
"resilientes" e que os desenvolvimentos institucionais são altamente path
dependent (isto é, dependem da trajetória histórica). A influência das
instituições do federalismo ' levando-se em conta a maneira como elas foram
forjadas ao longo do tempo ', seu impacto sobre a instabilidade institucional,
bem como as questões relativas à legitimidade das instituições políticas ajudam
a explicar a maioria das crises fiscais da década de 1990 nesses países. Não se
trata da idéia de que a história explica tudo, mas que as instituições são
"aderentes" e têm efeitos de longa duração nos resultados econômicos e fiscais
(Acemoglu et al., 2003). Em outras palavras, os episódios históricos de escolha
institucional são cruciais para a compreensão dos resultados econômicos como,
por exemplo, os regimes de tributação.7
A segunda questão tem a ver com a capacidade do Estado em reformar os sistemas
tributários nos dois países. A reforma tributária tornou-se uma questão
proeminente na agenda latino-americana no final dos anos de 1980 e na década
seguinte (Mahon, 2004). As instituições multilaterais, como o FMI e o Banco
Mundial, desempenharam um importante papel na promoção da convergência das
agendas de reforma tributária. Na verdade, a influência das instituições
internacionais remonta às famosas "missões tributárias" dos anos de 1950 e
1960.8 Ainda que seja incluída na agenda legislativa, a implementação das
reformas exige, porém, que o executivo tenha a capacidade de aprovar as
propostas. Diversas explicações têm sido sugeridas para os determinantes das
reformas tributárias, inclusive fatores políticos e institucionais, bem como
aspectos intrínsecos aos impostos, tratados como questão temática. Todavia, já
se disse que no mundo em desenvolvimento, em geral, "política tributária é
administração tributária" (Janster, 1990, p. 179).9 A capacidade que o Estado
tem de fazer cumprir as leis tributárias e controlar a evasão fiscal é
fundamental. A avaliação subjetiva dos cidadãos sobre a legitimidade do sistema
tributário é também um importante elemento para a explicação do cumprimento das
leis tributárias (Bird, Martinez-Vasquez e Torgler, 2004).
Este trabalho está organizado em três seções. A primeira revisa as literaturas
sobre a taxação e a evolução dos regimes tributários e sobre os determinantes
das reformas tributárias. A segunda considera a evolução da tributação na
Argentina e no Brasil e investiga como as interpretações rivais examinadas
contribuem para o entendimento da divergência de trajetória. A ênfase é posta
nos fatores que produzem instabilidade e estabilidade institucional nos dois
países. A terceira seção, por sua vez, focaliza as reformas tributárias mais
recentes, explorando a hipótese de que as diferenças no funcionamento do
federalismo ' ou nas instituições políticas que dão forma às relações entre o
governo federal e os entes subnacionais ' explicam, em grande medida, os
diferentes resultados de reforma nos dois países.
Explicando a capacidade de tributar
A literatura econômica sobre sistemas tributários tem verificado uma conexão
importante entre os diferentes níveis de desenvolvimento, conforme medidos pelo
PIB per capita e pela carga tributária (impostos como percentagem do PIB). Isso
devido a uma série de razões econômicas. Os países em desenvolvimento
caracterizam-se, por apresentar uma considerável parcela da agricultura no
produto nacional e no emprego, uma pequena parcela de salários na renda
nacional total e uma grande parcela de atividades e ocupações informais.
Técnicas econômicas tradicionais têm sido usadas para a estimação do "esforço
tributário" ou da "performance tributária". Para tanto, utiliza-se,
normalmente, a estimativa da meta que se espera para o esforço tributário,
considerando-se os indicadores da carga tributária (renda per capita, parcela
da agricultura no produto nacional etc.). A discrepância entre a carga esperada
e a carga real reflete, então, o esforço tributário.10 Essa literatura procura
explicar os fatores que explicam o que países têm em comum na área da taxação.
Para os meus propósitos ' explicar a divergência importante entre Brasil e
Argentina na área tributária ', é muito mais relevante explorar aqui a questão
da diferença na capacidade de tributar, a despeito de características que esses
países têm em comum (como industrialização etc.). A rigor, no que se refere a
explicações com base em fatores econômicos a causalidade é inversa nesse caso,
pois a expectativa seria de que a Argentina tivesse uma carga maior do que a
brasileira.
A literatura que aborda a evolução da capacidade de tributar tem explorado esta
questão com referência aos processos de formação do Estado (Lieberman, 2001b).
Grande parte dessa literatura volta-se exclusivamente para a Europa Ocidental,
mas tais análises têm focalizado cada vez mais outros contextos e experiências
históricas. Seguindo as contribuições seminais de Tilly (1975), Elias (1982) e
Levi (1988), têm-se investigado as conexões entre os processos de formação do
Estado e da taxação. A análise padrão está associada ao argumento de Tilly de
que a formação do Estado seguiu uma seqüência específica: competição (guerra)
entre os Estados, criação de um aparato estatal e endividamento. Segundo essa
análise, os soberanos se engajam em guerras para eliminar rivais externos aos
limites territoriais que pretendem controlar. Engajam-se, então, na construção
do Estado, o que consiste fundamentalmente em eliminar os rivais de dentro do
território. Finalmente, os soberanos dedicam-se à proteção daqueles que aceitam
suas regras, extraindo recursos da população do território que pretendem
controlar. Tais recursos proporcionam os meios para as três primeiras
atividades. A fim de extrair os recursos, os soberanos fazem uso de
expropriação tout court ou de barganhas com os atores que detêm os recursos.
North (1981) e Levi (1988) modelaram essa barganha em termos de custos de
transação, argumentando que os soberanos aceitam abrir mão de seu poder
discricionário por ser isto a forma mais eficiente de extrair os recursos que
garantam sua sobrevivência (cf. Fauvelle-Aymar, 1999). As instituições
democráticas proporcionam os compromissos críveis necessários à execução da
complexa tarefa de extrair recursos. Uma mera expropriação por meio de meios
coercitivos é ineficiente e instável, porque pode conduzir à defecção dos
liderados (particularmente nas áreas de fronteira desses territórios onde
haveria competição de "lealdades"), os quais buscariam a proteção de outros
soberanos ou, alternativamente, reteriam consigo parte da receita. A
dependência de receita por parte dos soberanos dá origem às instituições
representativas que ajudam a criar um jogo de soma positiva entre os soberanos
e os contribuintes. Essa lógica pode ser ampliada para incluir acionistas de
empresas públicas, grandes contribuintes e os monarcas. Esse é o quadro de como
o "Estado tributador" começou a fazer empréstimos para financiar suas
atividades, transformando-se, a partir daí, em "Estado fiscal" (Moore, 2004).11
Os atuais dirigentes das nações em desenvolvimento acham mais fácil solicitar
transferências internacionais do que barganhar o pagamento doméstico de
impostos. Segundo Bates,
[...] ao fazer comparações entre a comunidade internacional de
Estados no Ocidente histórico e a era moderna, somos levados, assim,
a concluir que os incentivos conducentes a uma forma de
accountability política de governo parlamentarista operam hoje de
maneira mais modesta. Os governos no mundo em desenvolvimento são,
portanto, menos propensos a adotar políticas que promovam a
prosperidade pública, em vez dos interesses privados dos seus
líderes, ou a serem restringidos no uso do poder" (no prelo, p. 14).
Esse modelo analítico é apto para descrever especialmente a condição dos
Estados mais pobres no contexto africano. Os modelos do Estado predatório, no
qual a atuação recíproca da violência e da resistência armada está relacionada
a uma maior extração de receita, são também úteis na análise desses países
(Idem). Mas as suas principais conclusões podem também esclarecer a evolução do
Estado tributário desenvolvimentista em países de renda mediana, como o Brasil
e a Argentina, propiciando uma perspectiva mais ampla à evolução das
capacidades tributárias da América Latina.
Conforme já discutido, o Estado desenvolvimentista na América latina,
particularmente durante o período do pós-guerra, foi capaz de usar outros
instrumentos indiretos para a extração e a redistribuição de receitas, sem
explicitamente barganhar recursos por instituições. Isto se deu com a
manipulação do câmbio, o uso de imposto inflacionário e de senhoriagem e a
captura de receitas pela transferência de direitos de propriedade para o
Estado, por via da nacionalização, dos monopólios públicos e de outros meios
semelhantes (Acemoglu et al., 2003). Embora isso não tenha sido exclusividade
dos países da América Latina, o seu uso foi certamente mais intenso nessa
região. Os instrumentos usados variaram ao longo do tempo. Da década de 1930
até a de 1950, a manipulação das taxas de câmbio (o uso de múltiplas taxas de
câmbio e/ou de moedas supervalorizadas, por exemplo) foi instrumental (Mahon,
2000), tanto quanto o foram as empresas estatais e a isenção de impostos para
indústrias e setores da economia. Ao redefinir os direitos de propriedade
sobres recursos nacionais ' estabelecimento de monopólios em setores da
economia ' os Estados puderam assegurar uma importante base de tributação.
Entre os anos de 1950 e 1980, a inflação foi essencial à garantia de receitas
públicas. A escolha de instrumentos de taxação, portanto, é um mecanismo
importante para explicar a variação nos resultados da taxação na Argentina e no
Brasil. Essa escolha não mantém uma relação causal com o processo de construção
de democracias representativas. Pelo contrário, nos casos brasileiro e
argentino, essa escolha foi feita em marcos institucionais autoritários e ' no
caos argentino ' altamente instáveis. Esse argumento será discutido em detalhes
a seguir.
Explicando a capacidade de reformar
Uma vez implementados, os sistemas tributários são difíceis de se alterar. As
estruturas tributárias são altamente path dependent. As reformas nesse campo
são tarefas complexas, sobretudo, como no caso brasileiro, se envolvem mudança
constitucional. Com freqüência, nas democracias são necessárias crises (às
vezes severas) para que os governos se engajem em reformas abrangentes.12 Os
aspectos distributivos da reforma tributária as fazem propensas ao conflito.
Nos países federativos, a reforma tributária também coloca os interesses de
algumas regiões contra os interesses ou de outras regiões ou do centro. Nas
democracias, tais conflitos são mediados pelas instituições, particularmente as
legislativas, e também pelo federalismo, pelas instituições eleitorais e pelo
Judiciário. Nesse contexto, a questão que informa a presente discussão é saber
que fatores políticos e institucionais explicam a maior capacidade do Brasil em
introduzir e implementar reformas na década de 1990 em comparação com a
Argentina. Isso ocorreu, como será discutido mais adiante, durante o regime
militar, quando o imposto sobre valor adicionado (IVA) foi introduzido no
Brasil, mas não na Argentina.
Entre os argumentos de natureza política para a explicação da capacidade
tributária destacam-se as análises que enfatizam o papel de regimes políticos.
Levi (1988), por exemplo, discute a importância dos "mecanismos quasi-
voluntários" na emergência da tributação moderna. A aquiescência com a taxação
é tão importante quanto a coerção. Essa idéia tem sido explorada nas análises
contemporâneas das reformas tributárias por vários autores (Bates, 1989). Nessa
perspectiva, os regimes autoritários, por desfrutarem de menor legitimidade e
menores graus de aquiescência "quase voluntária", teriam uma maior capacidade
de extrair recursos da sociedade. Em contraposição, as democracias tenderiam a
exibir níveis mais elevados de taxação. Cheibub (1998), no entanto, em um
abrangente estudo comparativo argumenta que não há relação causal entre o tipo
de regime e a capacidade extrativa dos governos.13 Como essa explicação dá
conta das divergências entre Brasil e Argentina? Na realidade, estes países
estiveram sob regime militar durante exatos 28 anos. Mais significativo ainda,
o timing dos regimes autoritários é similar, isto é, tiveram lugar nos anos de
1930 e início da década de 1940, e nos anos de 1960 e 1970. As divergências de
regime, portanto, parecem ter pouco poder explicativo nesses casos
particulares.
As explicações para o cumprimento das regras destacam a superioridade do self-
enforcement em relação aos mecanismos de punição. O cumprimento das regras
tributárias é visto como sendo determinado essencialmente pela capacidade dos
Estados de demonstrar compromissos críveis no sentido de punir comportamentos
não-cooperativos. O cumprimento das regras tributárias é modelado como um jogo
interativo, cujo resultado se determina fundamentalmente pela probabilidade de
punição efetiva do comportamento não-cooperativo. Quando os Estados se empenham
em anistias tributárias em larga escala, e isto é percebido pelos atores como
um incentivo para não cumprirem as regras, o cumprimento será conseqüentemente
baixo. Por outro lado, é difícil assegurar o cumprimento por conta dos riscos
políticos percebidos com a não efetivação das ameaças (Feld e Frey, 2002).
Esses autores argumentam que a capacidade tributária é gerada pela habilidade
do Estado em gerar credibilidade e pela capacidade de garantir o retorno
prometido com os impostos. A relação entre os contribuintes e as autoridades
fiscais é vista como um contrato relacional que envolve lealdade. Tal contrato
só pode ser mantido por meio de ações positivas, baseadas na confiança. Togler
(2003), a partir de dados do World Values Survey e do Mori Institute, explora
essa conexão num grande número de países latino-americanos e do Caribe.14 O
autor observa que a percepção subjetiva de ser apanhado não é estatisticamente
significativa para explicar a tax morale (atitudes e percepções públicas em
face dos impostos), enquanto a confiança no presidente o é. Ao analisar as
percepções individuais das razões para a evasão fiscal, ele observa que a carga
tributária, a falta de honestidade e a corrupção são consideradas seus
principais fatores. Argumenta, também, que um sistema tributário tem que ser
justo na visão dos contribuintes:
[...] se o contribuinte sente que está envolvido num tipo de contrato
injusto, estará provavelmente menos propenso a cumprir as regras
[...]. Os contribuintes ficam mais inclinados a cumprir a lei se a
troca entre o imposto pago e os serviços realizados pelo governo for
vista como eqüitativa (Torgler, 2003, p. 27).
Chamamos esse tipo de explicação dos impostos de argumento de legitimidade. Sua
aplicabilidade nos casos brasileiro e argentino não é conclusiva. Os dados
existentes revelam que os indicadores de tax morale na Argentina são
equivalentes aos brasileiro (2.2 e 2.1, respectivamente, em uma escala de 1 a
3). Na avaliação do "Latinobarometro" no período entre 1990 e 1993, o indicador
é melhor para Argentina do que para o Brasil, e o hiato se elevou entre 1995 e
1997. As atitudes ante o Estado e o setor público no pós-guerra nos dois países
divergem significativamente, como assinalaram muitos autores (cf. Fausto e
Devoto, 2004), sobretudo do pós-guerra até a década de 1980, quando o Estado
brasileiro desfrutou de muito mais legitimidade na sociedade. À luz dessa
literatura, a maior carga tributária nos anos de 1960 e 1970 pode ser explicada
pela maior legitimidade do Estado em promover o desenvolvimento econômico. Os
dados relativos ao período mais recente, entretanto, não confirmam o argumento.
A melhor tax morale na Argentina na década de 1990 pode ser explicada por
fatores conjunturais como o impeachment do presidente Collor no Brasil e o
regime de conversibilidade plena na Argentina. Mas o argumento é difícil de ser
sustentado tendo em vista os níveis extremamente elevados de evasão e elisão
tributárias comparado com o Brasil. Como a Figura_3 mostra muito claramente
para o imposto de renda, a produtividade deste imposto chegou a ser 14 vezes
maior do que o argentino em 1990, e pelo menos superior a duas vezes o
correspondente argentino na segunda metade da década de 1990.
Menos proeminentes na literatura das reformas são as contribuições que
enfatizam as características dos impostos como área temática. Os estudiosos
normalmente fazem referências en passant sobre uma dessas importantes
características, a aversão ao risco. Uma exceção é Ascher (1989), que enfatiza
que a discussão aberta dos possíveis riscos é condição necessária para a
negociação da reforma. Outra característica importante é a incerteza. Os
especialistas não predizem com exatidão o impacto da reforma nos níveis de
receita. Os formuladores de políticas fiscais são, todavia, tipicamente avessos
ao risco. Na ausência de consenso sobre o impacto das reformas, eles preferem o
statu quo à reforma. Como Tanzi e See afirmam:
[...] dada a situação fiscal precária dos países em desenvolvimento,
essa incerteza os exporia a sérias dificuldades fiscais em potencial.
Como conseqüência, as mudanças marginais são preferidas às grandes
mudanças estruturais, ainda que essas últimas sejam claramente mais
desejáveis, o que perpetua as estruturas tributárias ineficientes"
(2000, p. 4).
Isso ajuda a explicar o paradoxo da relativa inércia de reformas na área
tributária, em que o incrementalismo prevalece, em comparação com a freqüência
das mudanças em outras áreas, como a previdência social. Mudanças na taxação
tendem a ser o resultado de movimentos graduais, em vez de grandes inovações de
políticas. Muitas dessas mudanças podem nem ser regulamentadas em estatuto
(embora existam exceções, como, por exemplo, a introdução do IVA). Esse
paradoxo é descrito com propriedade por Bird para o contexto latino-americano,
quando ele argumenta que "a realidade da taxação na América Latina talvez tenha
mudado menos do que a nossa percepção em relação a ela" (2003, p. 10). Isto se
confirma na discussão de Mahon (2004) sobre os determinantes da reforma
tributária. Crises econômicas e fiscais mostram-se insignificantes como
mecanismos causais de reformas. Níveis de aversão ao risco, contudo, variam
significativamente entre os atores sociais e são influenciados pela história de
suas interações, pelo grau de confiança entre os atores e pelas instituições
políticas. Em ambientes altamente instáveis, os atores sociais aplicam uma alta
taxa de desconto em relação ao futuro, não estando dispostos a abrir mão de
seus interesses de curto prazo em favor de benefícios futuros maiores. O
ativismo institucional de políticas (policy entrepreneurship) pode ser afetado
por tais fatores na área tributária mais do que em qualquer outra área.
Entre os argumentos que enfatizam aspectos políticos estão aqueles que destacam
o papel da resistência das elites. A literatura tradicional sobre reformas
tributárias tem algo em comum: normalmente se detém nos obstáculos políticos à
taxação, por causa principalmente de interesses agrários e das elites
domésticas. A taxação da terra e da renda recebeu a maior parte da atenção
nessas discussões. Para Kaldor, a tarefa da reforma tributária "é
predominantemente uma questão de poder político" (1963, p. 418). Tanzi e Zee
argumentam que o obstáculo à tributação direta é "primariamente político" e
está diretamente relacionado à distribuição de renda. "O poder econômico, e com
freqüência o político, concentra-se em geral nos primeiros decis, de forma que
os contribuintes mais ricos podem evitar reformas tributárias que os afetariam
de maneira negativa" (2000, p. 4). Goode (1990), Gillis (1989) e Bird (1992)
também enfatizam que a resistência política das elites é um forte obstáculo,
mas não exploram sistematicamente essas questões. Denominemos esse tipo de
argumento "hipótese da resistência das elites". No entanto, é difícil sustentar
que as elites na Argentina tenham criado mais resistência à taxação do que no
Brasil. Ambos os países possuem elites agrárias poderosas, mas não é possível
afirmar que seu poder se ampliou a partir da década de 1960 quando o hiato
entre esses países se alargou. Provavelmente a tradição constitucionalista
liberal (em geral simpática ao regime liberal agro-exportador) mais forte na
Argentina contribuiu para colocar em cheque o intervencionismo neste país, mas
certamente não foi determinante para as diferenças observadas entre os dois
países.
Como as instituições políticas influenciam a capacidade extrativa e a
capacidade de promover reformas políticas? Para os propósitos deste artigo, a
literatura sobre os determinantes institucionais dos sistemas tributários é a
que merece mais atenção.15 Diversas contribuições importantes mostram como os
sistemas presidencialistas diferem das democracias parlamentaristas no que
concerne às reformas tributárias. Steimo (1993) fornece uma explicação
institucional pioneira para o paradoxo da prevalência de baixa carga tributária
nos Estados Unidos e de alta carga na Suécia e no Reino Unido, ao enfatizar o
papel das instituições políticas. Num sistema de autoridade política
fragmentada, como nos Estados Unidos, o sistema tributário resultante é
ineficiente e apresenta baixa arrecadação de receitas. Em sistemas políticos
deste tipo a capacidade de os atores políticos introduzirem dispositivos
particularistas é grande ' o que explica a ineficiência e baixa capacidade
extrativa do sistema tributário. Em contrapartida, a concentração de autoridade
política no Reino Unido facilitou a implementação de reformas abrangentes e
dotadas de maior coerência, enquanto na Suécia estas são explicadas pelos
padrões corporativistas de formulação de políticas, que também viabilizam a
implementação de reformas. A capacidade de promover reformas tributárias
reflete assim a capacidade geral de reformar e de inovar dos países com desenho
majoritário (como as reformas pioneiras do Reino Unido, da Nova Zelândia e, em
menor grau, do Chile).
Estudos recentes nessa linha têm dado ênfase ao impacto dos sistemas eleitorais
e dos veto players16 (atores com poder de veto) sobre o padrão das receitas
fiscais. Steimo e Tolbert (1998) argumentam que a representação proporcional
tende a estar associada a uma maior arrecadação de receitas. Hallerberg e
Basinger (1998) observaram que, nos anos de 1990, os países da OECD que tiveram
muitos pontos de veto partidários ou institucionais foram menos propensos a
mudar as alíquotas nominais. No contexto latino-americano, Mahon (2004) observa
que, juntamente com outras variáveis não institucionais, os países cujo partido
do presidente domina o Legislativo, que possui governos eleitos de forma
autoritária, que adotam a representação proporcional em lista fechada e que têm
sistemas eleitorais bem estabelecidos estão mais propensos às reformas. Dessa
perspectiva, o Brasil deveria apresentar menos capacidade de reforma em virtude
da legislação eleitoral, que incentiva o voto pessoal, e da fragmentação
eleitoral. A Argentina com voto proporcional de lista fechada e sistema
partidário mais coeso deveria apresentar uma maior capacidade de reforma. Os
governos de coalizão no Brasil no período democrático recente contrastam com o
maior peso individual do partido peronista (Partido Justicialista) e sua maior
disciplina. Partidos disciplinados e coesos, segundo essa literatura, teriam
maior capacidade de promover mudanças, o que Haggard e McCubbins (2001) chamam
de deciseveness (maior capacidade decisória).
Uma explicação alternativa que julgo mais promissora para dar conta das
diferenças nos resultados de políticas tributárias no Brasil e na Argentina foi
apresentada por Cukierman, Edwards e Tabellini (1989) e Edwards e Tabellini
(1991). Esses autores destacam que os governos se defrontam com um leque de
opções para a extração de receita pública, que deve ser levada a cabo mediante
empréstimos, receitas tributárias ou imposto inflacionário. Eles argumentam que
um sistema tributário ineficiente (ou seja, que facilite a evasão fiscal e
apresente altos custos de arrecadação tributária) atua como uma restrição à
capacidade governamental de arrecadar receitas. Tal restrição é normalmente bem
vinda para aqueles que discordam dos objetivos do governo. Mais importante
ainda: o governo (ou uma maioria legislativa) pode abster-se deliberadamente de
reformar o sistema tributário por temer que um aparato fiscal mais eficiente
seja usado no futuro para executar programas de redistribuição ou de gastos
desaprovados por ele. Isso é o que tende a acontecer em países que possuem
sistemas políticos mais instáveis e polarizados, que, de acordo com esse
modelo, recorrem a impostos ineficientes, como o imposto inflacionário/
senhoriagem e os impostos sobre o comércio, muito mais do que países estáveis e
menos polarizados. Esse argumento parte da premissa de que as reformas
tributárias são bens públicos. Dessa forma, governos fracos não têm incentivos
a promover tais reformas, um vez que envolvem custos administrativos e
políticos; além do que os governos subseqüentes podem se apropriar dos
benefícios produzidos. Quando existe a possibilidade de perder eleições (ou, no
caso de ditaduras, de serem derrubadas), os governos fracos preferem, portanto,
recorrer à inflação e a outros impostos causadores de distorção, pois geram
receitas no curto prazo e deixam os problemas fiscais resultantes a serem
resolvidos pelos próximos governantes. Assim, têm pouco a perder, já que é
provável que deixem o poder de uma forma ou de outra. O papel da polarização
política na inibição das reformas tributárias tem como pressuposto o fato de
que, nessas sociedades, os cidadãos não estão dispostos a mudar de partido e
punir o governo que produz "políticas oportunistas", como o gasto
inflacionário. Desse ponto de vista, as reformas tributárias são escolhas
estratégicas dos governos. No caso de instabilidade e polarização política,
tais considerações estratégicas provavelmente induzem o governo a deixar para
seus sucessores um sistema tributário ineficiente (Cukierman, Edwards e
Tabellini, 1989). No decorrer deste estudo tentarei explorar a maneira pela
qual a instabilidade política pode atuar como um elemento depressor da
capacidade extrativa dos governos, o que constitui a chave explicativa da
questão que informa este artigo. A análise articulará essa explicação com as
causas institucionais da instabilidade política ' aspecto negligenciado pela
literatura. No caso da Argentina, a meu ver, o federalismo é uma das causas
institucionais da instabilidade. A esse fator deve-se também agregar as
preferências políticas polarizadas dos atores naquele país.17
O federalismo tem sido discutido em muitos trabalhos como fonte de
instabilidade política e econômica, assim como são bastante utilizados nas
análises as abordagens sobre a política dos custos de transação e os modelos do
principal agente (Iaryczower, Saiegh e Tommasi, 1999; Filipov, Ordershook e
Shvetsova, 2004). Esses autores chamam a atenção para a qualidade da estrutura
geral de governança, particularmente a sua capacidade de superar problemas de
ação coletiva e de common pool. Certas estruturas federativas criam incentivos
para o comportamento oportunista de províncias ou estados. Elas podem produzir
instabilidade política se o governo central depender de atores subnacionais
para a sua sobrevivência política, e se estes últimos dependerem
financeiramente do governo central. Neste caso, há forte tendência à criação de
desequilíbrio fiscal. Os problemas de ação coletiva e de common pool são
determinantes do comportamento fiscal nos países federativos por duas razões.
Primeiro, por causa da importância dos sistemas de partilha de impostos entre
os níveis de governo nas federações. Segundo, por causa da distribuição de
competências tributárias, que têm o potencial de gerar problemas de
compatibilidade de incentivos (incentive compatibility). No limite, esses
fatores criam problemas perenes de bail outs (socorro financeiro) a entidades
subnacionais. A literatura prevê que a reforma dos sistemas tributários e
fiscais depende da capacidade dos atores em assumir compromissos críveis, no
sentido de absterem-se de comportamentos oportunistas. As reformas que promovem
melhoria no bem-estar só podem ser implementadas na presença de uma enforcement
technology ("tecnologia de fazer valer regras"). Essa tecnologia pode assumir a
forma de compromissos críveis, baseados em dispositivos de autocoordenação
compatíveis com os incentivos criados, ou por meio de um ator externo com
credibilidade para punir comportamentos oportunistas (como veremos adiante o
Brasil se aproxima desse último caso).
Assim, o argumento da instabilidade política, que se baseia na abordagem da
política dos custos de transação, e o da legitimidade podem ser combinados de
forma consistente, dada a ênfase comum na credibilidade, na confiança e no
oportunismo. Essas concepções fornecem, portanto, uma compreensão útil da
dinâmica da reforma tributária no Brasil e na Argentina sob o regime
democrático.
Tributação sem representação: o desenvolvimento da capacidade de tributar
Nesta seção reconstituo o processo de construção dos Estados nacionais do
Brasil e da Argentina, procurando demonstrar que na Argentina a instabilidade
política foi muito mais intensa do que no Brasil. O processo de state building
foi marcado por uma centralização incompleta e produziu um Estado mais débil em
termos de "poderes infra-estruturais" (Mann, 2002). O Estado brasileiro, em
contraste, foi criado a partir de uma centralização precoce no século XIX,
marcada por forte expansão de capacidades institucionais no pós-guerra em um
contexto de instabilidade moderada. Na Argentina, a instabilidade cumpriu um
papel determinante na evolução das estruturas tributárias e nas burocracias
públicas em geral.
Como assinalado, muitas das precondições que determinam a extração com
representação nos jogos de barganha descritos na literatura não estiveram
presentes na maior parte da América Latina. As pressões fiscais e militares
foram bem menores, e a grande preocupação nacional recaiu sobre a integração ao
mercado mundial. O nível de tributação era baixo, de modo que se recorreu a
empréstimos para financiar a construção de portos e ferrovias (Centeno, 1997;
Mazzuca, 2001, apud Mann 2002). Com isso, a história da região não se coaduna
bem com o modelo de barganha de "representação por taxação". De acordo com
Centeno (1997), os casos latino-americanos apontam para a existência de três
pré-requisitos críticos para a construção do Estado nacional pela via da
guerra. Primeiro, os Estados devem obrigatoriamente buscar meios internos, no
intuito de enfrentar os desafios financeiros da guerra ' em vez de pedir
empréstimos às instituições financeiras internacionais. Segundo, devem ser
adotados mecanismos administrativos adequados para administrar a explosão de
receitas e gastos. Terceiro, o Estado central já deve ter soberania
estabelecida sobre seu territótio e o apoio de um número suficiente de atores
locais para tornar lucrativa a extração doméstica de receita. A segunda dessas
precondições refere-se aos poderes de infra-estrutura do Estado ' a capacidade
do Estado de implementar efetivamente as decisões no seu território (Mann,
2002). Requer, também, que os Estados possuam uma infra-estrutura que penetre
universalmente em toda a sociedade civil, de onde as elites políticas possam
extrair os recursos, e que forneçam serviços a todos os cidadãos. Numa
comparação entre os Estados latino-americanos e europeus clássicos, Mann
argumenta que:
[...] os Estados modernos mais efetivos são aqueles cuja sociedade é
suficientemente homogênea e igualitária para permitir o
desenvolvimento de um senso comum de cidadania nacional. Isso permite
que eles desenvolvam poderes de infra-estrutura efetivos para
mobilizar recursos e promover o desenvolvimento. No longo prazo,
esses Estados também se tornarão democráticos. Todavia, o inverso é
mais claramente verdadeiro: apenas os Estados que dispõem de infra-
estrutura eficiente podem se tornar democracias na íntegra. Os
Estados-nação latino-americanos têm falhado consideravelmente nesse
aspecto (Idem, p. 2).18
Essas conclusões são aplicáveis à Argentina e ao Brasil. Ambos os países têm
sociedades desiguais, embora a desigualdade seja muito mais intensa no Brasil;
ambos possuem instituições "fracas", embora sejam particularmente débeis na
Argentina. Contudo, há diferenças importantes de infra-estrutura entre os dois
países, os quais podem explicar por que o Brasil desenvolveu capacidades
tributárias muito mais fortes.
Argentina
A discussão a respeito da evolução do federalismo argentino e de sua
instabilidade política permite aprofundar a tese de que esses fatores são
determinantes da baixa capacidade tributária do país. Na Argentina, a
construção do Estado seguiu uma trajetória caracterizada por contestações. No
século XIX foi marcada por conflitos armados interprovinciais, numa disputa
entre "federalistas" e "unitaristas", pelo controle do país e da cidade de
Buenos Aires. Após a revolução da independência em 1810, quatro tentativas de
elaborar uma constituição nacional falharam. A Confederação foi criada em 1831,
estabelecendo um pacto que se mostrou altamente instável. Com Rosas, o caudilho
de Buenos Aires, os "unitaristas" conseguiram derrotar uma coalizão de
províncias do interior do país. A derrota de Rosas, em 1852, conduziu à
elaboração da Constituição de 1853, a qual a província de Buenos Aires se
recusou a assinar (e elaborou sua própria constituição em 1854). Só em 1860 a
resistência da província foi superada e Buenos Aires assinou a Constituição,
com a condição de exercer o controle de sua alfândega, que gerava 80% das
receitas do país. Em 1861, após a vitória do caudilho de Buenos Aires, Mitre,
sobre as outras províncias, o país experimentou um forte processo de
centralização e modernização (Oszlack, 1997, pp. 95-131). Mas esse interregno
político durou pouco tempo. As mudanças institucionais introduzidas na
Constituição de 1853 finalmente produziram efeitos, entre o quais, a criação de
um Senado e da figura do presidente, ambos eleitos por colégios eleitorais
dominados pelas províncias. Além disso, o sistema de representação escolhido
foi caracterizado por uma distribuição legislativa extremamente desproporcional
(conhecido na literatura como malapportionment) entre as províncias. Logo,
vários políticos provinciais, organizados em instituições informais poderosas,
como, por exemplo, a Liga de Los Governadores, surgiram como figuras centrais
na arena política e conseguiram dominar a presidência. Isso foi acompanhado de
uma extraordinária acumulação de riqueza no último quarto do século XIX,
levando à rápida modernização do país.
Esse fato apontava o insucesso do processo de centralização conduzido por
Buenos Aires, o que gerou intensas revoltas por parte da liderança dessa
província, que se recusava a permitir a federalização de sua alfândega e das
receitas do comércio. Em conseqüência, Buenos Aires foi sitiada e, finalmente,
derrotada em 1880. Só então sua alfândega foi "federalizada", sua milícia,
dissolvida, e sua receita, distribuída às outras províncias (Botana, 1993, pp.
237-239; Gibson e Falleti, 2004). O número de representantes políticos de
Buenos Aires no Colégio Eleitoral, que escolhia o presidente, foi então
reduzido para um terço. Seguiu-se um processo de dominação política provincial
vis-à-vis Buenos Aires. Um avanço qualitativo importante desse período foi o
fato de o conflito entre as províncias abrir caminho para a formação de uma
autoridade política nacional distinta do poder hegemônico regional de Buenos
Aires (Gibson e Falleti, 2004). Quanto ao federalismo fiscal, a Constituição de
1860 propiciou uma distribuição tributária relativamente clara. Em meados de
1880, muitos líderes provinciais descobriram que podiam evitar tal restrição
orçamentária por meio do endividamento público. Os bancos provinciais logo
tornaram-se a principal fonte das novas questões relacionadas ao papel-moeda
(que normalmente excedia os depósitos em ouro dos bancos) e passaram a ser
grandes "tomadores" de empréstimos no exterior. Essa situação insustentável
gerou a crise de 1890 (Della Paolera e Taylor, 2003), inaugurando um padrão de
bailouts (socorros financeiros) e relações federal-provinciais conflituosas que
prevaleceram na Argentina durante toda a sua história.19
Um novo estágio no processo formador das instituições políticas argentinas foi
alcançado quando o sufrágio universal masculino foi instituído em 1912, o que
possibilitou que a classe média e o partido urbano Radical chegassem à
presidência, apesar da oposição conservadora da maioria das províncias. Essas
tensões federalistas complexas e não resolvidas na formação do Estado argentino
marcou o funcionamento das relações políticas e fiscais do país em todos os
momentos. Entre 1853 e 1995, o governo federal "interveio" 131 vezes nas
províncias, com uma média anual de 1,36 intervenções. Para se ter uma idéia,
durante os anos em que o poder esteve em mãos do Partido Radical, de 1916 a
1930, ocorreram 33 intervenções federais. Essa prática continuou mesmo em
períodos mais recentes (cf. Falleti, 2001, p. 43).20 As intervenções federais21
e o recurso recorrente à fraude eleitoral nos anos de 1930 (conhecidos como a
"década infame"), além de deslegitimar a democracia e a regra da lei, abriram
caminho para o regime populista e o autoritarismo (Gallo e Alston, 2004). De
acordo com estes autores, os cidadãos escolheram essas vias porque a outra
alternativa se deslegitimara devido ao uso irrestrito da fraude eleitoral Os
conflitos distributivos não encontravam uma arena institucional onde pudessem
ser enfrentados. Isso veio à tona quando o bem-sucedido modelo anterior de
exportação, baseado no trigo e no gado, deu lugar a uma economia urbano-
industrial. Para financiar a industrialização, o regime peronista promoveu a
transferência intersetorial de recursos ' do setor agrário para o novo e bem
protegido setor industrial. Peron iniciou um ataque aos interesses
estabelecidos nas províncias do Pampa, ao mesmo tempo em que atendia os
interesses das províncias menores não-exportadoras por meio de um esquema de
partilha de receitas. Assim, era possível premiar o apoio das províncias
periféricas e confrontar as elites exportadoras tradicionais.
O sistema de co-participação foi estabelecido em 1935 (leye de co-
participación), fundamentado na centralização de receitas no âmbito federal e
na distribuição da receita para as províncias através de regras semi-
instituionalidas. Os estados delegaram ao governo federal a arrecadação de sua
base tributária em troca do maior volume de recursos a serem gerados. A Lei
autorizava o governo federal a utilizar as bases tributárias das províncias em
troca da partilha de receitas arrecadadas.22 Vale lembrar que, antes da co-
participação, as províncias e o governo federal tinham suas próprias fontes de
receita (aquelas obtinham receita sobre o comércio exterior, enquanto o governo
arrecadava impostos internos). "Assim, o governo federal e os entes
subnacionais não tinham fortes incentivos, ou oportunidades, para enganarem uns
aos outros" (Iaryczower, Saiegh, Tommasi, 1999, p. 16).
A criação desse mecanismo nos anos de 1930 e 1940 gerou importantes
conseqüências de path dependency, mostrando-se extremamente instável. Isso
porque as razões que levaram à delegação mudaram com o tempo. O governo começou
a controlar os preços do trigo e da carne, com o estabelecimento de direitos de
monopólio nas aquisições. Após cada aquisição, o governo vendia a maior parte
do trigo no mercado internacional e usava o lucro para o financiamento dos
gastos públicos, para a transferência de recursos às províncias menores, em
troca de apoio político, e para subsidiar as indústrias (Gallo e Alston, 2004,
p. 14).23 Além disso, a política governamental no período pós-guerra baseava-se
numa moeda supervalorizada, o que penalizava os exportadores em detrimento dos
interesses agrários exportadores. O grande poder que os proprietários de terra
exerciam na sociedade veio a ser confrontado por uma coalizão de interesses
urbano-industriais e sindicatos num contexto em que as instituições políticas
eram incapazes de produzir quaisquer "ganhos de troca". Os esquemas de co-
participação mostraram-se mecanismos extremamente instáveis.24 Nos anos de
1950, as leis da co-participação foram revistas quase anualmente. Durante os
governos de Frondizi (1959-1962) e Illia (1962-1966), ocorreram batalhas
legislativas entre as províncias e o governo federal (Eaton, 2001, p. 12).
Conforme sugerido por Gilson e Faletti (2004), as Intervenciones nas
províncias, os esquemas de partilha de receitas (co-participação) ' desde 1935
' e, em tempos de democracia, o colégio eleitoral foram o sustentáculo do
sistema político argentino durante a maior parte do século XX. O Colégio
Eleitoral era o mecanismo que assegurava que o controle do governo central não
fosse inteiramente hegemônico. Como os governadores controlavam as assembléias
legislativas no âmbito provincial, eles desempenhavam um papel fundamental na
sobrevivência política do presidente. Ademais, até antes da emenda
constitucional de 1994, que introduziu eleições diretas para o Senado, os
governadores controlavam os senadores, que também eram eleitos pelas
assembléias provinciais. O sistema, portanto, encontrava-se num equilíbrio
instável entre as três instituições. O outro elemento crucial foi a
representação desproporcional no Congresso. Segundo Samuels e Snyder (2001), a
Argentina tem no Senado a representação mais desproporcional do mundo e o grau
de desproporcionalidade no Congresso é cerca de 2,5 vezes maior que a média
mundial.25
Depois de 1930, o país tem se caracterizado pela extrema volatilidade das
instituições e da ordem constitucional. A Constituição Nacional foi sancionada
em 1853 e emendada em 1860, 1866, 1898, 1949, 1956, 1957, 1972 e 1994. As
ditaduras militares, por sua vez, governaram o país nos períodos de 1930-1932,
1943-1946, 1955-1958, 1962-1963, 1966-1973 e 1976-1983 (Tommasi, 2002, p. 3).
Entre 1955 e 1983, foi governada por dezesseis presidentes, o que dá uma média
de permanência no poder inferior a dois anos. É surpreendente que a
instabilidade também marcou os governos militares com a sucessão de golpes
entre facções rivais. No âmbito subnacional, a instabilidade política também
foi muito expressiva: entre 1900 e 1984, por exemplo, a província de Buenos
Aires teve 74 governantes, o que dá uma média de pouco mais de um ano no cargo
(Muni, 2003, p. 5). Num ranking de países segundo a volatilidade do índice de
liberdade econômica publicado pelo Fraser Institute para o período de 1970 a
1999, a Argentina aparece como o sétimo caso mais volátil, e o Brasil, como o
trigésimo primeiro, numa amostra de 106 países. Em 1970 e 2001, o Brasil teve a
mesma pontuação (5,3) ' o que sinaliza grande estabilidade!26 Segundo Tommasi
(2002), muitas das interações políticas da Argentina fizeram parte de um jogo
no qual a distância entre as preferências dos principais atores era grande e
cada vez mais polarizada; na linguagem da teoria dos jogos, os atores
descontavam o futuro a uma taxa elevada e as instituições políticas não
propiciavam transações intertemporais. Esse jogo refletiu processos de path
dependency profundamente enraizados, associados à formação das instituições
políticas e ao sistema de crenças dos atores.
Figura_4
Note-se que a instabilidade passa a ser uma característica crônica a partir do
período do pós-guerra. As taxas relativamente elevadas de crescimento do
produto nesse período ocorreram em um quadro de crescente desequilíbrio fiscal.
Essa profunda instabilidade política criou desincentivos para a construção de
um aparato burocrático administrativo robusto e encorajou os governantes a
financiar o déficit fiscal com recursos oriundos da senhoriagem. Eis a chave
para o enigma da debilidade da burocracia pública na Argentina. A correlação
negativa entre déficits fiscais e apropriação de imposto inflacionário pode ser
aferida na Figura_5, que mostra como, em forte contraste com o período da
primeira metade do século, do pós-guerra até a decretação do regime de
conversibilidade na década de 1990, a Argentina sustentou déficits fiscais
financiados parcialmente com o imposto inflacionário. Adiante, farei uma
análise comparativa entre o comportamento dos dois países em relação a esse
ponto específico.
Nesse contexto, a instabilidade também afetou o federalismo fiscal. Um padrão
oscilante pode ser percebido nos arranjos de co-participação pelos quais o
governo federal, durante os regimes militares, conseguiu concentrar recursos em
detrimento das províncias. Inversamente, durante os regimes democráticos, as
províncias levaram uma parcela maior da receita nacional. Esse padrão de
conduta gerou movimentos oportunistas em todas as esferas no sentido de
reverter os arranjos tributários anteriores. Como resultado final dessa
interação criou-se uma grande rigidez no sistema, que gerou práticas fiscais
perversas e impostos distorsivos. O retorno à democracia, em 1983, deu início a
outro período extremamente instável de federalismo fiscal, que podemos
denominar "federalismo predatório". Como será discutido a seguir, disso
resultou o problema do common pool resource (CPR), que criou incentivos para as
províncias não arrecadarem impostos, reduzindo, em conseqüência, a carga
tributária geral.
Brasil
Dos três pré-requisitos citados por Centeno para a construção do Estado com
ajuda da guerra (busca de recursos internos, capacidade administrativa e
controle sobre o território), os dois últimos estavam de fato presentes no
Brasil. Ao contrário do restante da América Latina, particularmente a
Argentina, o Brasil obteve controle sobre seu vasto território após um período
relativamente curto de insurreições provinciais nas décadas de 1830 e 1840. A
"pacificação" do país foi alcançada no início da década de 1840. De acordo com
Merquior (1986), o processo de construção do Estado no Brasil terminou após a
Guerra do Paraguai, quando surge um exército nacional permanente bastante
profissionalizado e se conclui o processo de centralização. O aparato
administrativo, o sistema judicial e a força policial foram, então,
radicalmente centralizados. A guerra foi, sem dúvida, fundamental para o
surgimento de um ator estatal estratégico na política brasileira: os militares,
que se tornaram atores centrais no movimento republicano.
Sendo a única monarquia das Américas, o Brasil viveu um longo e incomum período
de estabilidade política, tornando-se um reino unitário e centralizado ' apesar
do vasto território ' durante a maior parte do século XIX. Uma elite
administrativa nacional foi formada como resultado da prática estabelecida, a
qual requeria que os presidentes das províncias (equivalentes aos atuais
governadores dos estados) e outros burocratas importantes circulassem pelo
Brasil, evitando que criassem uma identificação forte com suas respectivas
localidades.27 Segundo Carvalho (1975), essa elite foi única na América Latina
por sua unidade e homogeneidade. A estabilidade política e a unidade
territorial foram possibilitadas, também, pela mudança da coroa portuguesa para
o Brasil durante a invasão e a ocupação de Portugal por Napoleão. A
Constituição de 1824 foi aprovada sem grandes confrontos. Um sistema político
altamente oligárquico emergiu, ancorado num sistema bi-partidário, constituído
pelo Partido Liberal e Partido Conservador. O Brasil tornou-se uma república
federal em 1891, abrindo caminho para um longo período de descentralização
política, no qual os governadores usufruíam de grande poder, até a Revolução de
1930. A despeito de fraudes eleitorais recorrentes, houve eleições
ininterruptas de 1822 a 1930, com exceção apenas dos anos da criação da
República.28
O processo de construção do Estado sofreu um revés após a descentralização
ditada pela Constituição Republicana de 1891. As elites provinciais
readquiriram grande parte do poder que tinham antes de 1850, mas não havia no
Brasil nada semelhante à Liga dos Governadores, nem conflitos sobre receitas de
comércio envolvendo a esfera federal e a provincial, ou entre as próprias
províncias. O processo de expansão da capacidade do Estado central foi
acelerado durante o chamado período Vargas (1930-1945). Durante a República
Velha, também conhecida como a República dos Governadores, o país passou por
conflitos semelhantes aos ocorridos na Argentina, como, por exemplo, as
intervenções federais nas províncias. Após o famoso pacto elaborado pelo
presidente Campos Sales (1898-1992), um compromisso mediante o qual o governo
federal redistribuiria recursos e apoiaria os estados menores em troca de apoio
legislativo, os estados produtores de café ' Minas Gerais e São Paulo ', por
meio de alianças que se alternavam com os estados do Rio Grande do Sul,
Pernambuco e Bahia, conseguiram se revezar na presidência. Na verdade, muitos
dos conflitos nesse período giraram em torno do papel do governo federal no
apoio ao setor cafeeiro e na socialização dos custos durante os períodos de
superprodução ou de queda na demanda. Esse equilíbrio instável terminou com as
mudanças econômicas e sociais dos anos de 1920 e, em especial, com o advento da
crise internacional do final daquela década.
A evolução do federalismo fiscal brasileiro difere radicalmente do da
Argentina. Não se estabeleceu sistema algum de partilha de receitas pelo qual
os estados delegassem arrecadação tributária ao governo central. Mesmo no
período pós-guerra, quando a taxação do consumo se tornou relevante, os estados
não delegaram ao centro o poder de arrecadar impostos sobre o consumo ou as
vendas. Em vez disso, retiveram para si os poderes tributários. Como em
qualquer outro lugar na América Latina, a tributação antes da década de 1930
estava restrita ao comércio exterior, em particular às tarifas de importação,
que respondiam pela maior parte da receita tributária federal. As tarifas sobre
a importação têm sido até hoje prerrogativa federal, embora tenham também
decrescido no transcorrer do século XX. A trajetória do imposto sobre o
comércio exterior reflete o declínio contínuo de sua relevância como receita
(Varsano, 1996), a despeito de ter sido o imposto mais importante até 1934,
representando quase metade da renda federal nas décadas antecedentes.29
Como na Argentina, as instituições federais brasileiras criaram incentivos para
o jogo redistributivo entre as elites provinciais e o centro, o que ajuda a
explicar muito da instabilidade institucional no país. Porém, como será
discutido adiante, há diferenças significativas na estrutura de incentivos nos
dois países. Em ambos, o Estado interveio nas províncias, mas no Brasil isso se
restringiu às primeiras décadas do século XX. Apesar da representação
desproporcional no Congresso brasileiro, que é comparável à da Argentina, o
poder central no Brasil tem sido muito menos dependente, vis-à-vis os governos
subnacionais (resultado da existência dos colégios eleitorais). Os presidentes
e os senadores eram eleitos pelo voto direto ' e tem sido assim em períodos
democráticos. Os governadores (ou chefes de partido), por sua vez, não
controlam a seleção dos candidatos para o Legislativo, como fazem na Argentina.
O Brasil adota a representação proporcional em lista aberta, ao invés da lista
fechada utilizada na Argentina, o que garante muito mais independência aos
legisladores em relação aos governadores e aos líderes dos partidos, e que,
combinado com o presidencialismo, produz fragmentação partidária. Como será
discutido na próxima seção, em razão do significativo poder presidencial no
Brasil (pelo menos após 1988), os presidentes detêm controle sobre o
legislativo (Alston et al., 2004).
Por volta de 1960, a carga tributária brasileira caiu para 14% do PIB, o que
representou um estrangulamento significativo para a industrialização. A reforma
tributária do início dos anos de 1960 foi celebrada por seus aspectos
inovadores e pelo impacto fiscal. O Brasil foi um dos primeiros países do mundo
' senão o primeiro ' a introduzir o imposto sobre valor adicionado (IVA).30 O
resultante aumento da receita tributária foi substancial. A carga tributária
como percentual do PIB dobrou em sete anos, subindo para 26% em 1971 (ver
Figura_1). Como será visto adiante, isso gerou conseqüências de path dependency
importantes. Note-se que a grande diferença das cargas tributárias do Brasil e
da Argentina começou a aumentar a partir dessa década.
Apesar de, no Brasil, os governantes não terem se engajado no jogo de
tributação com representação e as instituições políticas serem débeis, o
processo de construção e formação das principais burocracias (forças armadas,
relações internacionais, administração da economia etc.) no século XIX
propiciou a base para a subseqüente expansão das capacidades gerais do Estado e
para a legitimidade da intervenção estatal em geral. A estabilidade política
contribuiu de forma fundamental para isso. A fixação das tarifas para a
proteção da indústria doméstica no início do século XIX e o celebrado
keynesianismo avant la lettre, que o Estado brasileiro buscou na administração
da economia cafeeira nas primeiras décadas do século XX, constituem exemplos do
aumento da capacidade estatal. A grande transformação a esse respeito ocorreu
durante a primeira Era Vargas (1930-1945), quando a industrialização, liderada
pelo Estado com base no mercado interno, produziu uma rápida modernização
econômica. Conforme discutido anteriormente, iniciou-se a expansão da base
fiscal do Estado e a criação de burocracias meritocráticas insuladas na esfera
nacional, particularmente na administração econômica e fiscal (Geddes, 1994).
Ao contrário da Argentina, as instituições do federalismo eram mais estáveis,
os interesses das elites do café e dos setores urbanos ligados à industria
fundiram-se, e as elites estabelecidas não foram confrontadas de forma direta.
As altas taxas de crescimento do Brasil com a industrialização baseada na
substituição de importações ajudou a legitimar a intervenção do Estado e
aprofundar a capacidade extrativa do país.
O Brasil foi considerado, então, o paradigma de Estado desenvolvimentista ' a
economia que mais rapidamente cresceu no mundo no período de 1900 a 1973, com
taxas de crescimento que atingiram uma média anual de 6,9 entre 1946 e 1973
(Maddison, 2001) (ver Figura_1). As taxas de crescimento da Argentina também
foram relativamente altas, mas o país experimentou na prática um processo sem
paralelo de perda de renda, considerando-se que, na década de 1930, era o
décimo país mais rico do mundo (ver Figura_2). As interações políticas
converteram-se num jogo de culpabilização recíproca que gerou uma forte
polarização. E sabemos que a combinação de preferências polarizadas e
instituições fracas produz um ambiente institucional propício ao oportunismo e
no qual é impossível a ocorrência de transações políticas intertemporais
(Spiller e Tomasi, no prelo). Como já assinalei, a instabilidade política foi
sem dúvida muito maior naquele país. Entre 1956 e 1983, a Argentina
experimentou dezoito anos de regime militar e dez anos de governo civil. Os
presidentes passaram menos de dois anos no cargo. Além disso, o país
testemunhou oito golpes militares no período.31 O Brasil, ao contrário,
experimentou menos instabilidade num longo período de regime militar (1964-
1985), parte do que se atribui a um regime mais liberalizado, no qual ocorriam
eleições para o Congresso, embora os governadores fossem eleitos indiretamente
pelos colégios eleitorais, dominados pelo regime.
Figura_6
Figura_7
Essa narrativa analítica sobre processo histórico da construção das capacidades
do Estado no Brasil e na Argentina ajuda a esclarecer por que o Estado
brasileiro tem maior poder infra-estrutural (no sentido que Mann dá ao
conceito), quais as causas dos níveis razoáveis de legitimidade gozados pelo
Estado após a Segunda Guerra Mundial e por que o papel do Estado na Argentina
foi muito mais contestado em termos comparativos (Sikkink, 1991). Além do mais,
a análise mostra como a evolução do federalismo diferiu nos dois países,
provocando na Argentina uma maior instabilidade com repercussões sobre o
sistema tributário.
Os efeitos da maior estabilidade política sobre a tributação se fizeram sentir
na década de 1960, quando os governos militares promoveram uma modernização
importante do Estado brasileiro, com forte repercussão na administração
tributária. A burocracia que se forjou nesse contexto apresenta características
weberianas, em forte contraste com a da Argentina. Na tipologia de Evans e
Rauch (1999), sobre níveis de weberianess o Brasil obteve um score de 7.6,
muito superior ao da Argentina, de 3.8.32 A opção do Brasil foi claramente no
sentido de optar pela expansão da carga tributária no final da década de 1960,
o que impeliu o país a introduzir de forma pioneira um imposto de valor
adicionado e de expandir significativamente o imposto de renda na década
seguinte. Como pode visto na Figura_8 e na Tabela_1, o imposto inflacionário
foi muito mais elevado na Argentina em comparação com o Brasil.
Figura_9
Democracia e reforma tributária na Argentina e no Brasil
Como explicar a relativa incapacidade da Argentina em reformar seu sistema
tributário no período pós-democratização? Como explicar também o relativo
sucesso do Brasil em implementar tais reformas? Antes de explorar
analiticamente estas questões, duas considerações devem ser feitas. Embora o
Brasil tenha tido sucesso em implementar algumas das reformas de sua agenda na
década de 1990, o país não tem tido êxito em mudar a taxação do consumo, com
repercussões extremamente danosas para a racionalidade e a eficiência do
sistema tributário. Permanecemos presos a um equilíbrio sub-ótimo. Em segundo
lugar, embora o resultado líquido das reformas na Argentina ter sido negativo,
o país, no primeiro governo Menem, logrou modernizar o sistema tributário. A
resposta, portanto, deve contemplar também estes aspectos. Desde já, pode-se
dizer que a instabilidade política e o federalismo foram fatores
preponderantes. As instituições políticas, os legados institucionais e as
características intrínsecas à taxação como questão temática ajudam a explicar
muita das características das reformas tributárias sob o regime democrático nos
dois países. No Brasil o fator preponderante foi a mudança constitucional
radical ocorrida em 1988, que enrijeceu (locked in) o gasto público em uma
trajetória do gastos crescentes. A Argentina, por sua vez, não experimentou uma
mudança institucional desse tipo. Em vez de aprovar uma nova constituição, em
um processo complexo, a Argentina optou pela restauração da constituição de
1853, que foi alterada em dispositivos pontuais (embora de grande importância,
como a eleição direta para presidente). Grande parte do aumento da carga
tributária no Brasil pós-1988 foi resultado de path dependency, criada pela
nova Constituição.
A Argentina e o Brasil adotaram governos civis em 1983 e 1985, respectivamente,
mas a transição para a democracia seguiu padrões bastante diferentes. A
transição sob acordo no Brasil ' com início durante a administração de Geisel
(1975-1979) ' foi um processo prolongado, marcado pela barganha entre as
elites. Em contrapartida, a "transição por colapso" de regime na Argentina
caracterizou-se por uma ruptura com o passado, iniciando com a guerra das
Malvinas, em 1982. As reformas de mercado precederam a democratização do país,
enquanto no Brasil a estabilização da economia, a privatização e a
liberalização do mercado ocorreram após a mudança para o governo civil, com o
Estado já totalmente democratizado.
Argentina
Na Argentina, a principal questão fiscal após a transição para o governo civil
foi o fim do sistema relativamente estável introduzido pelos militares, que
estabelecia o conjunto de regras disciplinadoras da repartição da receita entre
as províncias e o governo federal. Como já assinalado, a Argentina é um caso
extremo de desequilíbrio fiscal vertical33 (ver Tabela_2). O governo federal
responde por cerca de 60% do gasto provincial; as receitas das províncias e dos
municípios constituem 4,5% do PIB e as transferências de co-participação
recebidas equivalem a 8% do PIB. Em contraste, no Brasil, aqueles entes
arrecadam o equivalente a 9% do PIB, enquanto as transferências constituem 3%
do PIB (Villela, 2003).
De acordo com a última Ley de Coparticipacion dos governos militares,34 50% da
receita foram destinados ao governo federal e 50%, distribuídos entre as
províncias (com regras adicionais para as transferências aos municípios). A lei
que estabelecia tal sistema de partilha de receitas expirou com a queda do
governo militar, em 1983. Durante a administração de Alfonsin, o governo
federal passou a distribuir recursos na base de acordos bilaterais com os
governadores (Tommasi, Saiegh e Sanguineti, 2001; Tommasi, 2002; Eaton, 2002).
Isto se degenerou num sistema pelo qual os governadores passaram a ter um
comportamento predatório em relação ao governo central. Mais uma vez o imposto
inflacionário estava no centro da questão. Os ganhos do tesouro com senhoriagem
passaram a ser distribuídos às províncias na forma de Adiantamentos do Tesouro
Nacional (ATNs). Foi só depois da aprovação da nova lei de co-participação, em
1988, quando o país estava à beira de uma hiperinflação, que as transferências
automáticas e baseadas em regras foram restabelecidas (Nicolini et al., 2000).
Contudo, a crise fiscal do final da década de 1980 foi dramática na esfera
provincial, levando o governo a nacionalizar os sistemas de pensão das
províncias. Para tanto, o governo federal conseguiu reter 15% das receitas de
co-participação, tendo, porém, que fazer concessões bem definidas, na forma de
transferências fixas (ao contrário do Brasil, onde, como será discutido
posteriormente, tais retenções ' FEF e DRU ' foram simplesmente impostas aos
governos subnacionais).
As instituições descritas acima foram os fundamentos sob os quais se estruturou
o jogo federativo. O colégio eleitoral tornou os presidentes dependentes dos
governadores para sua sobrevivência política. A eleição indireta para senadores
prevaleceu até 1994, com o conseqüente efeito sobre o controle local daqueles.
Esses dois mecanismos constituíram as forças centrífugas do sistema político,
tendo sido capazes de anular forças associadas à coesão partidária na
Argentina. A dependência se dava pelo fato de que as pequenas províncias eram
super-representadas no Senado, além de serem controladas pelos grupos
peronistas do Partido Justicialista. O controle das assembléias locais,
exercido pelos governadores, era propiciado pela legislação eleitoral baseada
na representação proporcional de lista fechada. O poder do presidente não era
forte o bastante para assegurar a preponderância das preferências do Executivo
(como ocorre no Brasil). Assim, a agenda legislativa do governo nacional
dependia das elites políticas das províncias, ao passo que estas dependiam do
centro para sua viabilidade financeira.
A crise fiscal tornou-se muito mais severa em virtude da base tributária
ineficiente e consideravelmente estreita que o país herdou do período da
industrialização por substituição de importações e por causa das altas taxas de
evasão fiscal. Para obter receita, o governo Menem (1989-1998) propôs uma
reforma tributária cuja peça central foi um novo IVA, e que incluía também a
redução das faixas tributárias, a diminuição das alíquotas marginais superiores
e a simplificação do sistema. Até 1988, o IVA não era considerado um imposto
muito importante. O imposto só foi adotado pelos militares depois de
prolongadas discussões. Ao contrário do caso brasileiro, essa falta de policy
entrepreneuralism foi gerada pela aversão ao risco. Segundo Schenone, "essa
relutância em realizar mudanças drásticas e a preocupação com a redução das
receitas durante a transição podem explicar por que se levou tanto tempo para
adotar o IVA" (1991, p. 115). A instabilidade foi crucial nessa postergação,
pois o horizonte temporal do cálculo político dos dirigentes se limitava ao
curto prazo. O IVA foi introduzido em 1975 para substituir um imposto sobre o
movimento total de vendas. Todavia, em meados dos anos de 1980, ele
representava (excluindo-se a previdência social) somente 18% da carga
tributária de 14% do PIB. No início da década seguinte, foi proposta a revisão
do IVA, com a expansão do número de setores abrangidos e o aumento da alíquota.
Menem conseguiu aprovar a maior parte de seu pacote de reformas, recorrendo aos
Decretos Necessários e Urgentes, mas também se engajando em diversos acordos '
uma série de Pactos Fiscales ' com os legisladores provinciais, mediante os
quais recebia apoio em troca de concessões. Menem desenvolveu uma estratégia
seqüencial bem-sucedida de reforma tributária e de renegociação da partilha de
impostos, de forma que fosse obtido, primeiro, a aprovação do alargamento da
base tributária, depois o incremento gradual das alíquotas e só então a
renegociação da partilha de tributos (Eaton, 2002). Nesse contexto, foram
criadas isenções que acabaram por erodir mais ainda a consistência do sistema
tributário (Idem). Um exemplo disso ocorreu durante as negociações em torno da
eliminação do imposto provincial, altamente ineficiente, sobre o faturamento
bruto. O governo federal terminou por introduzir alíquotas diferentes para a
folha de pagamento de cada província, com o propósito declarado de reduzir o
desemprego (Tommasi, 2002). Nas palavras de Schwartz e Liukila:
A segunda reforma fiscal claramente demonstra a negociação que
envolve a implementação de reformas estruturais do sistema do
federalismo fiscal [...] embora tenha ocorrido às expensas de
transformar os impostos sobre a folha de pagamento em instrumentos
explícitos de políticas regionais e setoriais e contribuir para o
crescimento do déficit da previdência social (apud Tommasi, 2002, p.
35).
Nos sucessivos pactos para as reformas provinciais dos anos de 1990, sob o
governo de De La Rua, a inabilidade do governo federal em firmar compromissos
críveis o levou a oferecer valores fixos de transferências, o que se mostrou
impossível de ser honrado por causa do déficit fiscal crescente.
O histórico de bailouts recorrentes das províncias pelo governo federal nesse
período desgastou ainda mais a já residual credibilidade das instituições
fiscais, além de os atores envolvidos não mais poderem firmar compromissos
críveis no sentido de resolver os sérios problemas de coordenação. A base da
receita nacional enfrentou o problema da "tragédia dos comuns", resultante da
ausência de mecanismos de enforcement das regras (Tommasi, 2002; Nicolini et
al., 2000). As iniciativas fiscais foram marcadas por grande volatilidade. A
solução que veio finalmente a ser adotada para a crise fiscal foi extrema: o
Plano de Convertibilidade (2001), que eliminou a capacidade de o Banco Central
financiar o Tesouro. Ao estabelecer a formação de um conselho de moeda, a Lei
de Convertibilidade de março de 1991 extinguiu o financiamento inflacionário
dos déficits do setor público pelo Banco Central. Antes desse período, o
governo federal conseguia acomodar a expansão dos gastos provinciais com o
financiamento inflacionário, mas em 1991 isso não era mais possível. Esse
mecanismo radical de enforcement das regras fiscais, usado para resolver o
problema, mostrou-se insustentável. A história do período Menem foi
caracterizada por medidas que enrijeceram ainda mais o sistema institucional,
dada a ausência de compromissos críveis para as transações políticas. Isto
produziu rigidez e reduziu a capacidade do sistema de se adaptar e/ou instituir
arranjos políticos capazes de self-enforcement.
Vale lembrar que, antes de Menem, os governos recorriam primeiramente ao
imposto inflacionário como fonte de financiamento. Como já discutido (cf.
Figura_8 e Tabela_1), nos anos de 1970 e 1980, na Argentina, o imposto
inflacionário, medido como percentual do PIB, era consistentemente mais alto do
que no Brasil. Durante todo aquele período, esse percentual foi equivalente a,
no mínimo, o dobro do observado no Brasil. Foi apenas durante o governo Menem
que uma série de iniciativas importantes (muitas das quais, todavia, falharam)
foi implementada para restaurar o sistema tributário. Essas medidas foram
tomadas quando Menem conseguiu aprovar a emenda de reeleição, reduzindo com
isso o nível de instabilidade do país (o que é consistente com o argumento
desenvolvido por Cukierman, Edwards e Tabellini). O trade off entre imposto
inflacionário e construção de capacidade tributária foi resolvido no primeiro
governo Menem em favor desta última opção. Isto ocorreu devido ao alargamento
do horizonte temporal do cálculo político do presidente em virtude da
possibilidade de reeleição e também do ambiente macroeconômico estável no curto
prazo que por sua vez foi criado pela convertibilidade. Ao optar por este
último recurso, Menem eliminou a possibilidade do financiamento inflacionário.
Só restava a Menen a modernização tributária e o ajuste fiscal. O primeiro
malogrou em virtude das dificuldades em impor disciplina fiscal no plano
subnacional. Bird assinalou com razão que "quando Menem foi eleito a situação
tinha chegado a tal ponto que mesmo a arraigada preferência dos argentinos por
pagar imposto inflacionário em vez de impostos normais havia se arrefecido o
bastante para pôr a questão da reforma na agenda" (1992, p. 20).
A administração tributária era uma área que combinava alta volatilidade com
medidas dramáticas, embora se tratasse de remédios de curto prazo para
problemas crônicos. Historicamente, a administração caracterizava-se por baixos
níveis de profissionalização, e o sistema tributário, por alíquotas múltiplas
sobre várias atividades, além de mudanças contínuas na base tributária e da
concessão de créditos raramente fiscalizados. O IVA, que havia sido introduzido
para promover o desenvolvimento econômico, tornou-se um instrumento de
enfraquecimento do Estado, pois o sistema de incentivos passou a ser uma
espécie de "queijo suíço" (Bergman, 2003, p. 603). Os problemas que afetavam
essa área foram exacerbados por conta da alta rotatividade do escalão superior
e da grande politização ocorrida nos anos de 1980. Menem engajou-se num
programa abrangente de modernização com foco nas reformas tributárias, o que
incluiu a reestruturação da agência tributária (Dirección General Impositiva '
DGI) e a nomeação de um ex-diretor do FMI para dirigi-la.35 Deu início, também,
a uma série de medidas populistas, muito divulgadas, para controlar a corrupção
e a evasão fiscal.36 Contudo, tal esforço durou pouco tempo (Idem, pp. 603-
604). De acordo com Bergman, diversos fatores se combinaram para o malogro da
reforma:
[...] a dependência estrutural da DGI, em relação à elite política e
ao Ministério das Finanças, e as resistências institucionais dentro
da organização, somadas aos graves erros políticos e administrativos,
interromperam o esforço para modernizar e transformar a DGI numa
administração efetiva, o que gerou um fraco poder de intimidação
quanto as fraudes (Idem, p. 609).
Esse autor descarta o desaquecimento econômico e o ciclo político como fatores
que explicam por que a reforma tributária foi interrompida,37 mostrando que
isso se relaciona tanto à falta de autonomia da administração tributária, como
a um sistema de crenças baseado na desconfiança.
Na Figura_7, pode-se observar que a produtividade do IVA na Argentina foi quase
oito vezes menor que a no Brasil entre 1988 e 1991. A taxa efetiva de
arrecadação do IVA (como proporção da demanda doméstica, ou seja, o PIB menos
exportações e mais importações) são bem menores do que as alíquotas nominais,
devido à exclusão de muitos bens e serviços finais da base tributária e aos
graves problemas de administração e supervisão. A partir de 1992 a
produtividade do IVA elevou-se significativamente, tendo duplicado entre 1991 e
1993! Essa melhoria no desempenho, no entanto, manteve-se estável em um nível
ainda muito baixo comparado com o Brasil (cerca de metade da produtividade do
IVA neste país). Isto mostra que a estabilidade lograda durante a
conversibilidade deixou suas marcas.
Em suma, o caso da Argentina fornece um exemplo clássico de como a
instabilidade política afeta as escolhas estratégicas dos governos em relação
ao sistema tributário, ilustrando, pois, a aplicabilidade do argumento proposto
por Cukierman, Edwards e Tabellini (1989). Os governos sistematicamente
"transferem a conta" para governos futuros (Della Paolera, Irigoin e Bozzoli,
2003). Salienta, também, como isso se somou às dificuldades de estabelecer um
contexto estável para as transações políticas intertemporais nas relações entre
as províncias e o governo federal.
Brasil
Os legados dos governos militares no Brasil e na Argentina diferem em vários
aspectos. O Estado brasileiro enfrentou uma séria crise fiscal nos anos de
1980, mas dispôs de uma capacidade institucional e extrativa bem superior à da
Argentina. O Brasil tinha expandido significativamente sua base tributária com
as reformas implementadas pelos governos militares (ver Figura_1). A volta à
democracia produziu mudanças importantes no cenário fiscal em relação à
estrutura do federalismo fiscal dos dois países. No Brasil, elas foram
encapsuladas na Constituição de 1988, que levou à descentralização fiscal do
país, aumentando a parcela dos municípios e dos estados na receita total. Além
de conceder mais recursos, permitiu, também, que os estados fixassem alíquotas
diferentes para o ICMS. Numa situação de soft budget constraint (fraco
constrangimento orçamentário), isso levou os estados a se engajar em guerras
fiscais, comprimindo a receita tributária total.
A Constituição foi escrita sob circunstâncias únicas e excepcionais. Na
prática, o Executivo não desempenhou papel algum durante o processo de
elaboração, ao contrário de atores subnacionais, especialmente os governadores,
que tiveram uma participação efetiva. O fato de as primeiras eleições diretas
do período de transição, em 1982, terem ocorrido para eleger governadores,
garantiu-lhes uma grande legitimidade, a ponto de se tornarem os guardiões do
novo regime, negociando ativamente a transição com os militares. O processo de
elaboração da Constituição foi, portanto, marcado pela forte influência dos
interesses subnacionais.
Conforme Alston et al., (2004), o jogo fiscal dos anos de 1990 refletiu, em
grande medida, as reações do governo federal a esse estado de coisas. O
executivo federal reagiu também ao novo federalismo fiscal, recorrendo a uma
dupla estratégia. A primeira ' que envolveu a linha de menor resistência ' foi
arrecadar tributos não compartilhados (as chamadas contribuições sociais:
Cofins, CPMF, entre outras); uma parcela significativa do aumento de 10% na
razão impostos/PIB entre 1992 e 2002 foi devida a aumentos nas alíquotas das
contribuições sociais (cf. Alston et al., 2005; Melo, 2004). De forma
semelhante ao que aconteceu na Argentina, as formas de tributação causadoras de
grande distorção vieram a representar metade da receita tributária federal. Por
serem tributos em cascata, as contribuições sociais, em muitos casos, exploram
bases tributárias similares. Em suma, a rigidez imposta pela Constituição levou
o governo federal a recorrer a um sistema tributário cada vez mais ineficiente.
Deve ser enfatizado, todavia, que as instituições do federalismo fiscal no
Brasil não têm gerado os mesmos problemas extremos de common pool observados na
Argentina.
A segunda estratégia requeria mudanças na Constituição, com a retenção dos
fundos exigidos para a distribuição entre os governos subnacionais. Várias
foram as tentativas bem-sucedidas do Executivo em responder à situação criada
pela Constituição (por exemplo, Fundo Social de Emergência ' FSE; Fundo de
Estabilização Fiscal ' FEF; e Desvinculação dos Recursos daUnião ' DRU) e à
rigidez associada a fatores causais independentes. Isso também aconteceu na
Argentina, embora no Brasil não tenha envolvido concessões importantes da parte
do Executivo federal. A Constituição deve ser vista como o ponto de partida de
um novo jogo fiscal por ter criado rigidez no gasto, conseqüência da aprovação
de novos direitos sociais, sobretudo previdenciários, e da nova partilha de
competências e receitas. Após a sua promulgação, houve uma reação do Executivo.
As mudanças descritas refletem a capacidade do Executivo de impor sua agenda,
embora não necessariamente para resolver os problemas fiscais e orçamentários.
É necessário distinguir duas fases na evolução das relações entre o Executivo
federal e os governadores. A primeira foi transitória e marcada por regras do
jogo político não completamente institucionalizadas. Nesse período, entre 1985
e 1993, os governadores derivaram poder em virtude do papel que desempenharam
na transição democrática. A segunda fase correspondeu ao governo FHC, quando as
novas regras constitucionais do jogo estavam em vigor.
O poder dos governadores está ancorado em duas fontes. Em primeiro lugar, a
grande influência que exerceram nos anos de 1980 decorreu do papel que
desempenharam na transição democrática. Esses atores tendem a exercer alguma
influência ' embora em declínio ' no comportamento dos deputados federais e dos
senadores no Congresso (Cheibub, Figueiredo e Limongi, 2002). Podem, inclusive,
influenciar a carreira eleitoral dos legisladores no âmbito estadual, mas, ao
contrário da Argentina, não desempenham papel direto na eleição de senadores e
presidentes. Em segundo, a Constituição brasileira garante aos estados
substanciais poderes de tributar. A versão brasileira do imposto sobre o valor
agregado ' ICMS ' é arrecadada pelos estados e representa o mais importante
tributo do Brasil, sendo responsável por 1/3 de toda a receita tributária do
país (exclusive receita previdenciária). Além disso, a fonte institucional de
poder estadual também tem a ver com a prerrogativa dos estados de possuírem
bancos e empresas públicas. Embora o padrão de negociação entre o governo
federal e os governadores na Argentina apresente algumas similaridades com o do
Brasil (Treisman, 2004) ' especialmente em relação ao uso de incentivos nas
reformas ' aqui não ocorreu nada parecido com a sucessão de pactos fiscales em
1992, 1993, 1999 e 2000, e as concessões ali envolvidas.38 O governo federal
conseguiu impor a privatização dos bancos e das empresas públicas, reduzindo,
com isso, drasticamente o poder dos governadores, devido aos problemas fiscais
enfrentados pelos estados após a estabilização monetária. Com a inflação sob
controle, os bancos estaduais perderam sua principal fonte de receita (ou seja,
o floating dos ativos financeiros). Por outro lado, o aumento da taxa de juros
causou uma rápida deterioração da situação fiscal dos estados. O Plano Real
representou, portanto, um choque exógeno que reduziu a capacidade dos estados
em resistir às preferências do Executivo federal. O governo implementou um
programa com o objetivo de renegociar as dívidas dos estados, que incluiu o
swap de dívidas sob condições favoráveis e associadas a uma série de
condicionalidades. Antes de 1994, havia incentivos perversos no federalismo
fiscal brasileiro que encorajavam os estados a se comportar de forma
financeiramente irresponsável. Isso pode ser observado na história dos diversos
bail outs de governos subnacionais no período. Em suma, embora seja clara a
importância do "federalismo" e do papel desempenhado pelos governadores, o
Executivo conseguiu implementar seu programa ao recentralizar o jogo político
durante a maior parte da última década. Isto se deu, também, por causa da
aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, que afetou adversamente
os governadores)39 e da adoção de medidas conducentes à recentralização do
país. Segundo Alston et al., (2004), Fernando Henrique Cardoso foi capaz de
impor suas preferências porque podia trocar recursos federais (adiantamentos de
leilões futuros; federalização de dívida etc.) em troca de reformas fiscais,
inclusive com a privatização de bancos e ativos estaduais; porque teve poderes
para a implementação de sua agenda e outras prerrogativas legislativas; e, com
a aprovação da emenda de reeleição, que fortaleceu também os governadores, teve
a possibilidade de estender seus mandatos, introduziu um elemento de self-
enforcement no jogo fiscal. Sem a emenda de reeleição, os governadores teriam
incentivos para exacerbar o common pool problem, transferindo o problema fiscal
para os governadores posteriores. Além disso, devido ao impacto devastador da
hiperinflação em meados dos anos de 1990, as políticas do presidente eram
vistas como favoráveis por grande parte da opinião pública, que havia se
tornado bastante intolerante à inflação.
Em que pesem os sucessos na implementação de sua agenda, o governo FHC,
todavia, não implementou uma reforma tributária abrangente. Em 1995, apresentou
uma emenda constitucional relativa no campo tributário, uma vez que parte dela
requeria mudança constitucional. A proposta exigia o estabelecimento de uma
alíquota nacional única para o IVA, com a finalidade de eliminar a guerra
fiscal entre os estados, a exclusão do IVA sobre as exportações, devido a seu
impacto na competitividade do país, e a mudança na arrecadação do IVA (passaria
do estado onde o bem ou o serviço é produzido para o estado onde é consumido).
Essa última proposta tinha como objetivo converter o ICMS num legítimo IVA,
conforme a prática internacional. A reforma foi discutida no Congresso, mas
levando a interpretação errônea de que ao prever a oposição dos governadores, o
Executivo federal resolvera desistir.40 Em estudos anteriores (2001, 2002)
analisei os quatro fatores que, a meu ver, explicam o resultado final da
reforma tributária: o conflito intraburocrático em torno do melhor curso de
ação alternativo; a incerteza sobre os impactos de curto prazo, em termos de
perdas e ganhos; o sucesso na introdução de mudanças infraconstitucionais;41 e,
mais importante ainda, a aversão ao risco por parte dos gestores
macroeconômicos. A decisão de não continuar com a reforma foi tomada durante as
crises da Ásia e da Rússia e a subseqüente corrida contra o Real. O governo
preferiu, então, manter o statu quo de um sistema tributário que propiciava uma
grande arrecadação, mas altamente ineficiente, a um sistema aperfeiçoado com
resultados incertos de receita (Idem). O sistema tributário vem se tornando
cada vez mais ineficiente, porque os gastos crescentes com a previdência social
e outras despesas sociais "incompressíveis" exigem o aumento de arrecadação na
forma de alíquotas cada vez mais elevadas de contribuições sociais em cascata
(Cofins, CPMF, PIS etc.), privilegiadas por não serem objeto de partilha
federativa.
Os elevados custos políticos de transação do federalismo brasileiro no contexto
pós-constituinte são ilustrados pela negociação em torno da eliminação do IVA
sobre as exportações. O governo federal ofereceu a compensação das perdas
incorridas pelos estados com o sistema transitório de seguro receita
(instituído pela Lei Kandir). Depois de uma prolongada negociação, a
compensação foi fixada como sendo a diferença entre o nível prevalecente de
arrecadação tributária anterior à mudança e a atual receita, para cada ano.
Isso criou, nos estados, uma situação de moral hazard, pois se criou incentivos
para o não recolhimento de tributos (o governo federal pagaria a diferença).
Ambos os lados tornaram-se oportunistas, visto que o governo federal também
aproveitava brechas para não pagar as perdas reclamadas pelos estados. Todos os
anos, desde 1997, têm ocorrido negociações bilaterais para fixar o valor da
compensação para cada ano respectivo. Este episódio sugere que o federalismo
fiscal brasileiro não propicia condições para transações intertemporais, mas a
capacidade de o executivo de enforce regras tem credibilidade.
Os avanços das iniciativas que não exigiram mudança constitucional foram bem-
sucedidos. Em 1995, o governo reformulou a tributação das pequenas empresas (ao
introduzir o sistema SIMPLES) e de pessoa jurídica, além de implementar medidas
para a eliminação de brechas no transfer pricing (preços de transferência). Em
alinhamento com as tendências internacionais, o governo reduziu com certas
oscilações as alíquotas marginais superiores do imposto de renda de pessoa
física, de 60% em 1985, para 50% em 1987, 25% em 1989, 35% em 1995 e 27,5% em
1999. Para as empresas, as alíquotas correspondentes foram reduzidas de 40% em
1985, para 30% em 1990 e 25% em 1995. Além disso, algumas mudanças foram
introduzidas para expandir a base tributária. As alíquotas do IVA, por sua vez,
subiram marginalmente no período. Porém, por conta de uma boa gestão
tributária, a produtividade do IVA no país tornou-se a mais elevada na América
Latina e cerca de três vezes maior do que a da Argentina. O mesmo ocorreu com a
produtividade do imposto sobre a renda pessoal, que foi duas vezes maior do que
o da Argentina.
Para entendermos a produtividade tributária, temos que considerar que, ao
contrário da Argentina, a maior capacidade organizacional do regime militar no
Brasil e a existência de um apoio substancial por parte dos interesses da
burocracia pública, dos militares e da sociedade, aumentaram a capacidade do
governo em sustentar a criação de uma agência tributária forte. Isso, sem
dúvida, foi o que aconteceu em 1969, quando a Secretaria da Receita Federal '
SRF foi criada. Recrutamento meritocrático e low turnout marcaram a
administração tributária.42 No governo Collor (1990-1992), a SRF foi politizada
e teve sua autonomia administrativa e funcional reduzida. Collor nomeou um ex-
superintendente da polícia federal para dirigir a agência, alegando a
necessidade de se combater a corrupção ' medida que lembra várias das medidas
adotadas por Menem na Argentina. Mas o seu impeachment reverteu essa
tendência.43 Nos dos mandatos de Cardoso, o mesmo indivíduo ' Everardo Maciel '
liderou a SRF.44
A alta carga tributária dos anos de 1970, 1980 e 1990 não foi alvo de críticas
e resistência, nem tem adquirido relevância no discurso político, salvo no
período recente quando a questão passou a ter grande visibilidade política.
Isso pode se explicar por uma tradição intervencionista no Brasil mais forte e
pelo sucesso relativo prévio da industrialização liderada pelo Estado, que foi
muito maior do que na Argentina. Com exceção do governo Collor, as reformas de
mercado no país têm sido defendidas pelos governantes muito mais por
pragmatismo fiscal do que por razões programáticas.
Conclusões
Este artigo discutiu os determinantes institucionais das trajetórias distintas
da Argentina e do Brasil em termos não só de capacidade de tributar, mas também
de capacidade de reformar as estruturas tributárias existentes após o retorno à
democracia. No artigo analiso alternativas explicativas rivais e defendo que os
fatores fundamentais que explicam grande parte das diferenças observadas são,
de um lado, a instabilidade institucional e, de outro, o arranjo federativo
presente em cada um dos países. A instabilidade institucional é fortemente
condicionada pelas instituições federativas (e também pela polarização de
preferência entre os atores), e é crucial no trade offs com que se defrontam os
governos em torno de quais instrumentos de extração de recursos vão
privilegiar: recursos tributários, o que requer uma construção institucional
robusta na área tributária, ou a senhoriagem e a inflação. Aquilo que se
denominou de tax morale também parece ter cumprido um papel significativo na
trajetória dos dois países em análise, mas a legitimidade e a credibilidade das
estruturas tributárias e da intervenção do Estado devem também ser
consideradas. Em ambos os países, a tributação evoluiu mediante um processo de
tributação sem representação, isto é, taxação imposta por um poder executivo
autoritário. Essas questões foram exploradas com base no argumento de que as
instituições políticas ' e os incentivos que geram cooperação e confiança '
modelam os regimes de taxação de uma forma relevante. Observamos que as
instituições políticas na Argentina refletiram processos de path dependency que
estiveram "encarcerados" durante o processo de formação do Estado e dos
arranjos de partilha de receitas estabelecidos em 1935. Tais instituições
mostraram-se altamente instáveis e foram eliminadas na reforma constitucional
de 1994. Embora o sistema partidário seja mais institucionalizado e os
partidos, mais disciplinados do que no Brasil, os presidentes argentinos
dependem de interesses provinciais para sua sobrevivência, em função do Colégio
Eleitoral e do Senado, que era até 1994 eleito indiretamente. O Estado
argentino é também muito mais fraco do ponto de vista organizacional devido à
instabilidade institucional do país. Com efeito, nela está a chave para
decifrar o enigma da esfinge Argentina. Isso, combinado a um cinismo cívico
geral em relação aos impostos, ajuda a explicar por que as capacidades
tributárias na Argentina são inferiores às do Brasil. Com a aprovação da emenda
da reeleição, Menem teve fortes incentivos a promover mudanças na estrutura
tributária. Esta mudança alargou o horizonte temporal do seu cálculo político.
Mas na realidade essa via tornou-se a única saída quando a lei de
conversibilidade eliminou a possibilidade de financiamento inflacionário do
Tesouro. Seu malogro foi resultado das dificuldades de se impor disciplina
fiscal às províncias.
O leviatã brasileiro foi muito mais forte em termos institucionais, e o
ambiente político, menos instável. As capacidades burocráticas nas áreas da
taxação se expandiram e a tax morale parece ter sido superior pelo menos até a
década de 1980. Além disso, o federalismo fiscal foi menos "predatório" do que
na Argentina. Embora os estados brasileiros disponham de fontes autônomas de
receita, eles são mais dependentes politicamente do governo federal do que na
Argentina. Um considerável poder de agenda no Congresso e a habilidade de
dispensar patronagem aos líderes partidários permitiram aos presidentes no
Brasil se adaptarem ao choque produzido pela Constituição de 1988, apesar de
gozarem de maioria parlamentar apenas quando contam com grandes coalizões,
garantindo assim a efetivação de seu programa de estabilidade fiscal. Grande
parte do aumento da carga tributária no Brasil pós-1988 foi resultado de path
dependency criada pela nova constituição. Esse aumento tornou-se possível pela
maior capacidade organizacional do Estado brasileiro. A Argentina, por sua vez,
não experimentou nenhum processo semelhante de mudança institucional com
repercussões fiscais.
NOTAS
1 O mais correto, como vamos assinalar, no caso brasileiro, seria usar a
expressão "aprendeu a arrecadar" (Kaldor, 1963).
2 Os economistas têm discutido amplamente a relação causal entre impostos e
gastos. Esta não é minha preocupação aqui. Baffes e Shah (1994) analisaram os
casos do Brasil e da Argentina no período de 1908 a 1985. A conclusão foi de
que não havia discrepâncias entre os dois ' na Argentina antes e no Brasil
depois da guerra.
3 Para uma discussão a respeito, ver Dixit (1996).
4 É interessante notar que a performance da Argentina em outras áreas de
reforma de mercado (privatização) não foi ruim.
5 A produtividade do IVA é calculada pela razão entre a arrecadação (como
proporção do PIB mais importações e menos exportações) e a alíquota em vigor. A
produtividade do imposto de renda é calculada pela razão entre a arrecadação
(como proporção do PIB) e a média das alíquotas máximas em vigor dos impostos
sobre as empresas e os indivíduos.
6 Para uma discussão relevante sobre o conceito de Estado tributário em
contraposição ao de Estado fiscal, ver Moore (2004).
7 Para maiores detalhes, ver Lieberman (2001b).
8 Para uma visão abrangente dessas questões, ver Lledo, Schneider e Moore
(2003). Para uma crítica do papel desempenhado pelas instituições
multilaterais, ver Goode (1993), Stewart (2002) e Stewart (2004). Sobre o
assunto na América Latina, ver Bird (1992).
9 Segundo Peters, "grande parte das políticas tributárias é produzida na fase
de implementação" (1991, p. 4).
10 Para estudos abrangentes sobre essa questão e um ranking do esforço
tributário, ver Teera (2002) e Piancastelli (2001).
11 Bates (1989) e Moore (2004) discutem a aplicabilidade desse modelo padrão em
outros contextos históricos e na realidade do Estado em países em
desenvolvimento. Moore argumenta que, sobretudo no contexto de rentier states
(Estados rentistas), a falta de incentivos para os soberanos forjarem esse jogo
de barganha com as elites nacionais no mundo em desenvolvimento pode bloquear o
surgimento da governança democrática. A preocupação de Moore aqui é com a
situação dos Estados cuja receita vem, em primeiro plano, dos recursos naturais
' como, por exemplo, o petróleo ' ou dos que sobrevivem com o auxílio externo.
Essa era a intenção por trás da assertiva de Kaldor de que "o auxílio externo
só dá frutos quando é um complemento do esforço (tributário) doméstico, e não o
inverso" (1963, p. 410). Nos termos de Bates (no prelo), "não tendo que
barganhar com os detentores de ativos domésticos, não havia necessidade de
parlamentos. Pela mesma linha de raciocínio, o Parlamento representa pouca
restrição ao Executivo oportunista".
12 Bird argumenta que os países tendem a alcançar uma "posição de equilíbrio,
com respeito ao tamanho e à natureza de seus sistemas fiscais, a qual reflete
em grande medida o equilíbrio das forças políticas, lá ficando até serem
'impelidos' a um novo equilíbrio" (2003, p. 9).
13 Boix (2001), por sua vez, usando o modelo do eleitor mediano, chegou a
diferentes conclusões. Esse modelo prediz que, em razão de o eleitor mediano
estar localizado na extremidade inferior da distribuição de renda, as eleições
tendem a favorecer governos que gastem mais. Além disso, nesse tipo de modelo,
as instituições que afetam o comparecimento às urnas são bastante relevantes. O
autor demonstra que, em muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento, o
comparecimento às urnas esteve diretamente associado ao tamanho do setor
público.
14 A esse respeito, ver também Bird, Martinez-Vasquez e Torgler (2004).
15 Para uma revisão a respeito, ver Gould e Baker (2002).
16 Veto players são indivíduos ou instituições coletivas cuja anuência se
requer para a adoção de novas políticas. Atualmente, a literatura a esse
respeito é extensa e tem sido aplicada a áreas temáticas bem diversificadas
(Tsebelis, 2002).
17 Lieberman (2001a) desenvolve a hipótese instigante de que a criação de um
conceito racista de comunidade política nacional na África do Sul explica o
desenvolvimento de um sistema de tributação da renda muito mais progressivo e
eficiente do que no Brasil. A excepcionalidade da África do Sul nesse sentido
pode ser explicada pela solidariedade da elite dominante branca em relação aos
setores pobres também brancos, uma vez que esse grupo temia a comunidade negra,
produzindo assim uma menor resistência à taxação progressista. No Brasil, esse
tipo de solidariedade foi forjado em termos regionais e não raciais. Esse
argumento tem, no entanto, pouca valia para explicar as diferenças no padrão
geral de taxação da Argentina e do Brasil. Para uma discussão mais aprofundada,
ver Melo (no prelo).
18 Para comparações sistemáticas da construção do Estado nos dois países, ver
Merquior (1986) e Trindade (1986).
19 Conforme discutido por Iarvczower, Saiegh e Tommasi, isso deu origem à
primeira mudança importante na distribuição efetiva de poderes tributários: "o
governo nacional assumiu grande parte dos débitos que as províncias haviam
contraído na década anterior. Em troca, as províncias foram obrigadas a
renunciar ao controle de certas receitas e tributos locais" (1999, p. 17). A
crise de 1890 gerou uma insurreição armada que derrubou o presidente Celman, em
1890, e levou à criação da União Cívica Radical.
20 Durante o governo Menem (1989-1995), houve quatro "intervenções", as quais
implicaram mudança de liderança e/ou renúncia de autonomia fiscal e
administrativa. Dois terços das intervenções foram implementadas por decreto, o
restante, aprovado por lei.
21 Em 1893, a Corte Suprema decidiu que as intervenções federais tinham
"natureza política" e não poderiam ser contestadas nos tribunais (Iariczower,
Saiegh e Tommasi, 1999, p. 17). É interessante notar que, desde 1946, o tempo
médio no cargo de juiz da Corte Suprema é de quatro anos. Em contrapartida, até
aquela data, a média era de doze anos. Também a partir de 1946, devido aos
golpes militares e aos subseqüentes processos de redemocratização, os
presidentes indicaram todos os membros da Corte Suprema que ocuparam o cargo de
juiz no período (Idem, p. 19).
22 A distribuição primária, ou seja, entre o governo federal, as províncias e a
municipalidade de Buenos Aires, foi fixada da seguinte forma: 82,5% para o
governo federal e 17,5% para os demais entes.
23 Conforme Gallo e Alston sugerem "Peron não apenas destinou suas políticas
nos Pampas a punir os inimigos e ajudar os amigos, mas também precisava
financiar as mudanças institucionais gerais na economia, ou seja, a
nacionalização de muitos ativos e indústrias" (2004, p. 14).
24 Em 1943, o governo federal descumpriu a regra pela primeira vez e começou a
se apoderar dos aumentos na arrecadação do imposto de renda (impuesto a los
rétidos) (Porto, 2003, p. 15). Em 1946, quando o Congresso foi reaberto, uma
lei nova mais abrangente foi aprovada, introduzindo critérios populacionais
para a "distribuição secundária", ou seja, entre as províncias. A parcela das
províncias na distribuição primária também cresceu de 17,5% para 21% (Idem, p.
16).
25 A esse respeito, ver também Gibson, Calvo e Faletti (2004).
26 Ver o site http://www.freetheworld.com/2003/_1EFW2003ch1.pdf.
27 Há casos de indivíduos que ocuparam o posto de presidente de província
(governador) em até quatro diferentes províncias, localizadas em diversas
regiões do país (Tapajos, 1969).
28 Na década de 1880, a tributação já era bastante centralizada no âmbito
nacional, que contava com quase 80% da receita pública e 70% de todos os
empregados públicos, mas era, todavia, bastante dependente do comércio
exterior, particularmente do porto da província do Rio de Janeiro (e não de
fontes internas, como na Europa). Ao contrário de Buenos Aires, a província do
Rio de Janeiro foi o bastião do processo de centralização (Carvalho 1993, p.
65).
29 O imposto de renda, adotado em 1926, expandiu-se durante a Segunda Guerra
Mundial, quando se tornou o imposto federal mais importante, seguido
imediatamente pelo imposto sobre o consumo. Contudo quase 2/3 dele são cobrados
sobre a renda de pessoa jurídica, o que representa aproximadamente 4% do PIB. A
taxação da propriedade rural esteve nas mãos dos estados até 1964, quando os
militares finalmente a transferiram para o governo federal. Só no último quarto
do século XX, os impostos sobre a propriedade urbana e rural atingiram níveis
significativos, porém modestos (exceto nas grandes cidades). A mesma
inabilidade, ou falta de vontade, em tributar a propriedade pode ser observada
na taxação da renda. Cf. Ferreira (1986).
30 De acordo com Shoup, "o primeiro país a introduzir o IVA de forma abrangente
foi o Brasil" (1990, p. 4). O imposto foi discutido na França e em alguns
países da OECD, mas só depois foi adotado por esses países ' na Dinamarca, foi
introduzido em 1967, na França e na Alemanha, em 1968, na Suécia, em 1969, e na
Noruega, em 1970. Ver também a esse respeito, Guerard (1972).
31 Só durante os anos de Frondizi, houve 35 tentativas de derrubar o governo.
32 Os dados referem-se ao período de 1993 a 1996, quando a Argentina já estava
no regime de conversibilidade e o Brasil encontrava-se em plena crise
econômica. Provavelmente o hiato entre os dois países seria maior se os dados
tivessem sido coletados em anos anteriores. Weberianess é definido pelos
autores como um indicador sintético do uso de critérios meritocráticos no
recrutamento de burocracias, para saber em que medida o setor público oferece
carreiras de longo prazo bem estruturadas.
33 O desequilíbrio vertical é medido pela razão entre as transferências
intergovernamentais oriundas do governo central, inclusive a partilha de
tributos, e as receitas totais (as próprias e as transferidas) no âmbito
subnacional. Os problemas associados a esse desequilíbrio resultam das
competências tributárias dos entes federativos, dos incentivos resultantes de
tais competências e do jogo fiscal no âmbito federal, além dos esforços de
obtenção de receita exercidos pelas autoridades provinciais e nacionais tendo
em vista estes incentivos (Tommasi, 2002, p. 8).
34 Lei n. 20.221, de 1973.
35 Em 1989, o Banco Mundial descreveu o DGI como "uma das mais respeitadas
agências do governo vinte anos atrás. Era conhecida pelo alto nível técnico e
auto-estima. A erosão da DGI como instituição só tem paralelo na própria
degradação do sistema tributário. Ela é simultaneamente produto da precária
legislação e administração que levou o sistema ao colapso" (World Bank, 1990,
p. 53).
36 Quaisquer transações financeiras que excediam 10 mil pesos tinham que ser
feitas em cheque. Além disso, Menen criou um imposto sobre bens como iates etc.
37 A esse respeito, ver também Berensztein (1995) e Bergman (2004).
38 Essas concessões geraram, posteriormente, custos consideráveis.
39 Note-se que a Lei de Responsabilidade Fiscal argentina não é compulsória no
âmbito nacional. Cabe a cada província aderir ou não à Lei.
40 Cheibub, Figueiredo e Limongi (2002) mostram que os governadores não
controlam o comportamento legislativo dos deputados federais.
41 Como, por exemplo, a extensão do imposto temporário sobre as transações
financeiras (CPMF), a instituição de um mecanismo simplificado para a taxação
de pequenas empresas (SIMPLES) e o aumento das alíquotas da contribuição para
fins sociais (COFINS).
42 Na realidade são duas estruturas: a administração tributária propriamente
dita (Secretaria da Receita Federal) e o INSS (auditores fiscais de
contribuições previdenciárias). A administração do IVA estadual é competência
dos estados, sendo, conseqüentemente, bastante heterogênea. Em estados mais
desenvolvidos, é mais profissionalizada; em estados menos desenvolvidos, a
atividade predatória das elites pode causar seu colapso, como ocorreu em
Alagoas após o governo Collor, no início dos anos de 1990. Há 13 mil auditores
fiscais no âmbito federal e 38 mil no estadual (contando-se apenas os auditores
fiscais e excluindo-se as outras funções). No caso dos estados, os números
referem-se aos auditores afiliados à Federação Nacional do Fisco Estadual
(Fenafisco), podendo incluir membros aposentados. No transcorrer das décadas de
1980 e 1990, os auditores fiscais federais eram os servidores civis de carreira
mais bem pagos do Brasil, com a única exceção dos servidores de carreira da
Procuradoria da Fazenda Nacional.
43 Sobre a modernização tributária nas décadas de 1960, 1970 e 1980, cf
Ferreira (1986) e Kahn, Silva e Zykiack (2001).
44 O atual governo do PT, maior partido de oposição ao governo FHC, continuou a
tendência de low turnout, ao indicar o adjunto de Maciel para chefiar a
agência.