Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico
brasileiro
O presente artigo parte de uma constatação nada original, a saber, o fato de
que toda a história do pensamento social brasileiro foi e continua sendo
fortemente marcada pela tarefa de explicar, compreender e interpretar a
modernidade no Brasil. Nossos mais renomados sociólogos, assim como as
contribuições nacionais que alcançaram lugar de maior destaque dentro e fora do
Brasil, foram exatamente aqueles que se debruçaram sobre tal tema. Parece-me
legítimo, pois, afirmar que um dos principais dilemas da sociologia brasileira
desde seus primórdios foi e continua sendo "qual o status da modernidade no
Brasil? Existiria uma modernidade brasileira?". Evidência da atualidade e apelo
de tais questionamentos em nosso contexto intelectual é a retomada da produção
acadêmica em torno desse tema desde a primeira metade dos anos de 1990 por uma
geração mais jovem de cientistas sociais brasileiros inspirada pela produção
sociológica internacional.1
Seguindo os passos da recente produção nacional, e igualmente sob a inspiração
da teoria sociológica contemporânea, pretendo refletir em torno do tema da
"modernidade no Brasil" a partir de uma consideração crítica de duas das
principais abordagens do pensamento social brasileiro, a saber, a sociologia da
dependência(cujas figuras nodais me parecem inquestionavelmente ser Caio Prado
Jr., Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni) e nossa
sociologia da herança patriarcal-patrimonial(cujos elementos mais influentes
são Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto da
Matta). Em ambos os casos, é patente a resistência de ver a sociedade
brasileira contemporânea e as ditas "sociedades modernas centrais" em pé de
igualdade. Por um lado, afirma-se que nosso passado diverge de maneira por
demais substantiva do contexto cultural, normativo e simbólico em que emergiu e
se consolidou o padrão de sociabilidade hoje predominante naquelas "sociedades
centrais"; por outro, postula-se que nossa inalterada condição de dependência
econômica estrutural jamais deixou de ser um obstáculo à total integração do
Brasil no seleto clube dos países modernos centrais. A meu ver, essas duas
abordagens são entrecortadas por uma tonalidade essencialista: aspectos num
primeiro momento vistos como historicamente constituídos são sutilmente
deslocados dos contextos dinâmicos e multidimensionais em que se originaram e
transformados em "variáveis independentes", pretensamente capazes de explicar,
em qualquer momento da história brasileira, o tipo de sociabilidade que aqui se
consolidou.
Entendo que avanços em relação à tarefa de compreender a modernidade no Brasil
demandam, primeiramente, uma consideração crítica da episteme, no interior da
qual operam as propostas dos clássicos de nossa sociologia.2 Tal episteme,
responsável por demarcar o terreno cognitivo de um certo discurso da
modernidade que veio a se tornar hegemônico na produção sociológica
internacional, vislumbra o padrão de sociabilidade moderno como sendo
estruturado em torno de três pilares fundamentais: 1) Diferenciação/
complexificação social; 2) Secularização; 3) Separação entre público e
privado.3 A fim de apontar caminhos para a superação de certas limitações
embutidas em nossa sociologia da dependência e em nossa sociologia da herança
patriarcal-patrimonial, chamarei atenção para algumas das armadilhas dessa
episteme, que induzem empreendimentos interpretativos a, por um lado,
negligenciar variações de sociabilidade experimentadas pelas próprias
"sociedades modernas centrais" e, por outro, a atribuir a imagem de
incompletude, imperfeição ou ainda distorção à experiência brasileira moderna.
À luz do potencial crítico implícito na noção de modernidades múltiplas, farei
um exercício de derivação da supracitada episteme, ressaltando as variações no
padrão de sociabilidade que o discurso sociológico confere à modernidade. Além
disso, defenderei a idéia de que cabe a um discurso da modernidade que se
pretende sociológico por excelência em seus esforços explicativos e
interpretativos lidar com as formas de sociabilidade que se consolidaram no
Brasil contemporâneo e em outros contextos modernos como o resultado
contingente do confronto entre projetos sociais, demandas, concepções de mundo
e interesses. Por fim, aproveitarei a literatura já consolidada no debate sobre
globalização para argumentar não ser possível pensar a modernidade no Brasil
senão em um contexto tendencialmente global. A partir desses elementos, que na
verdade abrem uma ampla agenda de pesquisa, procurarei indicar uma alternativa
para esse dilema central de nosso pensamento social.
À sombra da inautenticidade
Sob o rótulo de "sociologia brasileira da inautenticidade", Souza (2000)
procurou avaliar como o conjunto da produção intelectual de Freyre, Holanda,
Faoro e Matta mostra-se incapaz de pensar o Brasil contemporâneo como uma
exemplo acabado de modernidade. Ao superenfatizar nossa pretensa herança luso-
ibérica, esses autores teriam atribuído demasiada importância a traços de
sociabilidade pré-modernos ' mais especificamente, personalismo e
patrimonialismo ', como se fossem eles ainda determinantes da suposta
peculiaridade brasileira. Daí a sombra de inautenticidade projetada sobre a
imagem que eles constroem do Brasil contemporâneo: uma vez em débito com a
cultura e o padrão portugueses de sociabilidade, não seríamos plena e
autenticamente modernos. Para Souza, tal linha interpretativa mostrou-se presa
fácil de preconceitos do senso comum.
Apesar de, conforme indicarei adiante, não entender que a noção de
"modernização seletiva" introduzida por Souza seja capaz de superar um aspecto
nuclear das limitações interpretativas por ele mesmo sugeridas, a expressão
"sociologia da inautenticidade" parece apreender a reticência e, por que não
dizer, extrema resistência dos principais nomes da produção sociológica
nacional no sentido de atribuir o status de "modernidade plena" à sociedade
brasileira contemporânea. Parece-me legítimo estender o predicado de
"inautenticidade" aos diagnósticos elaborados por uma segunda abordagem ainda
mais influente em certas instituições de pesquisa e ensino no Brasil nos
últimos quarenta anos, cujos principais nomes são exatamente Prado Jr.,
Fernandes, Cardoso e Ianni, que chamo aqui de "sociologia brasileira da
dependência". Por razões que em breve procurarei indicar, há também entre eles
uma notável resistência em equiparar a sociedade brasileira contemporânea e as
chamadas "sociedades modernas centrais". Reproduzem, ainda que a partir de um
ponto de vista bastante diferente, aquela mesma imagem de "desvio" projetada
pelos sociológos da herança patrimonial-patriarcal.
Freyre, Holanda, Faoro e Matta têm em comum o fato de atribuírem aos efeitos da
herança patrimonial-patriarcal sobre o Brasil contemporâneo a razão das
distorções de nossa sociabilidade moderna. Freyre (1990, 1996, 2000) e Holanda
(1994) claramente convergem em direção à idéia de que certos códigos de
sociabilidade típicos da família patriarcal e do pater familias teriam
permanecido ativos na dinâmica social do Brasil contemporâneo para além do
período colonial. Para Freyre, a extensão e a profundidade da disseminação do
tipo patriarcal de sociabilidade seriam uma conseqüência, em última instância,
do fato de que o latifúndio patriarcal, baseado no trabalho escravo e orientado
à produção e à exportação de matérias-primas, veio a se tornar algo mais que
uma simples unidade econômica: consolidou-se por muito tempo como
locuspolítico-administrativo, militar e jurídico, além de centro organizador da
vida sexual, cultural e até mesmo religiosa. Naquelas circunstâncias,
diferenciação social e impessoalidade teriam encontrado tremenda dificuldade
para florescer. Tais características jamais teriam deixado de se fazer
presentes, mesmo ao cabo da urbanização, da independência, da abolição da
escravidão e da queda da monarquia.
Sérgio B. de Holanda, por sua vez, atribui à nossa herança lusitana, marcada
por "aversão congênita a qualquer ordenação impessoal da existência" (1994, p.
75), a importância remanescente do patriarcalismo no tecido social do Brasil
contemporâneo. O perfil da empresa colonizadora de portugueses, ancorada na
ética da aventura em detrimento da ética do trabalho, revelaria a
incompatibilidade de nosso passado ibérico com a racionalização característica
de "terras protestantes". Com isso, estabilidade e segurança ' atributos de uma
ordem racionalizada ' teriam sido postos em segundo plano em favor do desejo
pela recompensa imediata. Naquele contexto, ao se estabelecer como autoridade
máxima e inquestionável da ordem social, pater familiase família patriarcal
teriam se tornado os disseminadores hegemônicos dos principais códigos e
princípios de sociabilidade, emanando para a totalidade do corpo social idéias
de poder, de respeitabilidade, obediência e de coesão social, moldando, assim,
instituições as mais variadas.4 Tal condição explicaria, ainda, a proeminência
do privado sobre o público e, conseqüentemente, a invasão do Estado por códigos
sociais característicos do ambiente familiar.
Faoro (2001) toma caminho particular no interior dessa perspectiva
interpretativa: em vez do "patriarcalismo", nossa peculiaridade moderna teria
suas raízes no Estado patrimonial que se constituiu em Portugal desde os idos
de sua formação. Num cenário como aquele, onde as fronteiras entre os domínios
públicos e a casa real permaneceram marcadamente porosas, códigos impessoais
teriam encontrado pouquíssimo espaço para permear o funcionamento do aparato
estatal e para regular as relações entre o Estado e os súditos da Coroa. Ora,
durante séculos, o Estado patrimonial português e sua burocracia estamental
mantiveram o controle supremo de toda a dinâmica colonial, não só do ponto de
vista politico-administrativo e militar, mas também do ponto de vista cultural,
econômico e até mesmo religioso.5 Conforme Faoro, nem mesmo os chefes locais
conseguiram impedir que, após a Independência, se estabelecesse no Brasil uma
ordem bastante similar à do além-mar: com a Constituição de 1824, o imperador e
sua burocracia institucionalizaram-se como fonte primordial de poder, sufocando
por décadas a emergência de fontes paralelas de poder. Mesmo o controle das
oligarquias estaduais no período de 1889a 1930 não teria representado mudanças
tão substanciais, já que, com a queda da monarquia, teria prevalecido um tipo
de relação autoritária entre as elites políticas (estaduais e locais) e suas
bases, marcado por obediência pessoal e por extrema porosidade entre os
domínios públicos e os âmbitos privados dos líderes mais proeminentes. Com a
Revolução de 1930, teria voltado a se instalar no Brasil um Estado de tipo
patrimonial gerido por uma burocracia estamental controladora de toda a
dinâmica social e avessa à plena impessoalização e racionalização político-
administrativas.
Em continuidade a essa abordagem, Matta (1980, 1995, 2000) defende a existência
de um sistema dual pretensamente estruturando e orientando o Brasil
contemporâneo: um código pessoal em coexistência com um sistema legal
individualizante enraizado na ideologia burguesa liberal. Tal sistema dual
expressar-se-ia na posição que "casa" e "rua" ocupariam na gramática social
brasileira: a "casa", domínio privado por excelência, seria o território da
intimidade, do familiar, das relações pessoais, do parentesco, da afeição e do
descanso; a "rua" (mercado, Estado, tráfego, entre outros), domínio público por
excelência, seria um ambiente vivido e percebido como "a dura realidade",
esfera do trabalho, da luta, da disputa pela sobrevivência e, com bastante
frequência, da punição (Matta, 2000). Enquanto "em casa" os brasileiros seriam
"pessoas" submetidas a regras de conduta estabelecidas pelos códigos do amor e
do parentesco, na "rua" seriam meros "indivíduos", sujeitos a regras impessoais
comumente vivenciadas como injustas e imprevisíveis. O que faria o Brasil
contemporâneo uma sociedade de tipo "semitradicional" seria precisamente o fato
de que "casa" e "rua", nos termos acima considerados, conviveriam lado a lado.
Ainda que a partir de um viés um tanto diferente, os principais representantes
de nossa sociologia da dependência revelam forte suspeição quanto à eqüidade
entre Brasil e as chamadas "sociedades modernas centrais". Apesar de também
voltar seu olhar para o período que antecedeu a independência política, Prado
Jr. (1970, 1971, 1994) atém-se à natureza econômica da empresa colonizadora que
deu início à nossa formação. Para se compreender o Brasil, argumenta, é
necessário que se tenha em mente as particularidades daquela empresa em duas
diferentes áreas da América: de um lado, os empreendimentos localizados na zona
temperada do continente americano (que incluem boa parte do atual território
dos Estados Unidos) e, de outro, aqueles que se desenrolaram nas zonas tropical
e subtropical. O primeiro, a um só tempo concretizado em ambiente natural não
tão diverso da Europa e impulsionado por ondas migratórias catapultadas por
conflitos religiosos e políticos, teria sido orientado para a construção de um
novo mundo. Resultou, pois, em algo consideravelmente similar à própria
experiência societal da Europa ocidental. Algo bastante particular teria
ocorrido nas zonas tropical e subtropical. Lá, o motivo essencialmente
econômico do empreendimento ' voltado fundamentalmente à exploração dos
recursos naturais do território virgem ' teria desencadeado resultados bem
originais: a organização social e política do Brasil em moldes patriarcal e
escravista, em ambos os casos sob o controle atento e centralizado de Portugal.
Como bem demonstraram os termos de nossa independência política ' que se deu
sob a decisiva proteção da Inglaterra ', confirmou-se a condição de dependência
externa do Brasil e, por conseguinte, sua incapacidade de se dinamizar a partir
de dentro, por suas próprias forças e conforme objetivos próprios (Prado Jr.,
1994). Daí a forte presença do aparato estatal diante da insuperada debilidade
de nossa iniciativa privada.
Ao buscar explicações para nossa "tão peculiar modernidade", Florestan
Fernandes (1975, 1976) sugere que a combinação inicial de grande lavoura,
escravidão e expropriação colonial teria revitalizado algo que havia muito se
esgotara no continente europeu, a saber, uma configuração social de tipo
estamental. Já que toda a riqueza aqui produzida era sistematicamente absorvida
por Portugal e outras nações que ocupavam posições centrais na ordem
capitalista mundial, produtores locais eram totalmente tolhidos a dar início a
um processo autônomo de inversão capitalista. Ao final da consolidação do
capitalismo monopolista no Brasil, já na década de 1950, a sociedade brasileira
teria internalizado os mesmos padrões sociais, políticos e econômicos
vivenciados pelas sociedades capitalistas hegemônicas apenas em suas linhas
mais gerais. Isso porque jamais teríamos conseguido nos livrar daquela condição
de dependência estrutural e, conseqüentemente, de deixar para trás a zona
periférica do sistema capitalista mundial: setores econômicos modernos e
supermodernos, de um lado, e setores arcaicos, de outro, teriam se articulado
de maneira consistente, razão pela qual uma porção significativa da população
brasileira permanenceu alheia à universalização legal do trabalho-livre. Em
tais condições, conforme Florestan, certas instituições políticas vivenciadas
pelas sociedades capitalistas centrais não conseguiram vingar. Nossa
modernização teria, então, permanecido "dissociada do modelo de civilização
operante nas nações hegemônicas":
Ela negligencia ou põe em segundo plano os requisitos igualitários,
democráticos e cívico-humanitários da ordem social competitiva, que
operariam, na prática, como obstáculos à transição para o capitalismo
monopolista. Na periferia, essa transição torna-se muito mais
selvagem que nas nações hegemônicas e centrais, impedindo qualquer
conciliação concreta, aparentemente a curto e longo prazo, entre
democracia, capitalismo e autodeterminação (Fernandes, 1976, p. 256).
Octávio Ianni (1971, 1978), por sua vez, argumenta que os dilemas do Brasil
contemporâneo resultam dos conflitos sociais, políticos, econômicos e culturais
que teriam emergido ao longo do planejamento, da sucessão e da coexistência de
quatro modelos de desenvolvimento no Brasil: 1) o modelo exportador; 2) o de
substituição de importações; 3) o de desenvolvimento associado; e, ainda que de
maneira limitada, 4) o socialista. As lutas e os conflitos em torno de cada um
desses modelos jamais teriam deixado de depender, de maneira bastante
acentuada, do resultado de contradições e crises que se desenrolaram no cenário
internacional. Mesmo quando fatores internos tiveram algum peso em tais
conflitos, isso só teria se dado depois que transformações exteriores fizessem
valer seu impacto. Central para a compreensão do Brasil moderno seria, pois, a
noção de dependência estrutural, que para Ianni ocorreria "sempre que relações
e estruturas econômicas e políticas de um país estão determinadas pelas
relações e estruturas de tipo imperialista" (1971, p. 33). Em meados dos anos
de 1950, com o esgotamento do modelo de substituição, frustraram-se as ambições
autonomizantes que ainda nos restavam. O golpe de 1964 teria sido a gota d'água
para o engajamento definitivo do Brasil no modelo capitalista associado, agora
sob hegemonia norte-americana. O aparato estatal teria, então, sido levado a
assumir atribuições e um tipo de postura em relação à economia e às
organizações civis em função das quais instituições democráticas não
conseguiriam fincar pé. Daí não terem prevalecido no Brasil, de acordo com o
autor, as mesmas condições que permitiram aos países capitalistas centrais
consolidarem instituições e valores burgueses e extendê-los para a maior parte
da população.
Fernando Henrique Cardoso (1972, 1980; Cardoso e Faletto, 1979) também refuta a
tese segundo a qual tendências culturais profundas teriam aprisionado a
sociedade brasileira em formas de sociabilidade de tipo patrimonial. Para ele,
as principais estruturas da sociedade brasileira contemporânea deveriam ser
compreendidas como decorrentes do reaparecimento do sistema externo de
dominação capitalista em práticas nacionais de grupos e classes sociais. Em
nenhum momento teria sido possível dar um salto em direção à almejada
autonomização, pois as etapas finais de realização da produção capitalista
permaneceram visceralmente dependentes da dinâmica do mercado internacional
(marcada pela depreciação constante dos termos de troca comercial). Nessas
condições, a industrialização só foi possível sob a tutela de um aparato
estatal nacional-populista, o único verdadeiramente capaz de catapultar as
diversas dimensões de nossa modernização. Ao final da Segunda Guerra Mundial, a
necessidade de investimentos para a continuidade da industrialização teria
feito com que se consolidasse um novo tipo de relação de dependência, a saber,
a de tipo "associado", configurado no tripémultinacionais estrangeiras/setores
modernos da economia nacional/aparato-estatal. Ora, em decorrência do
desequilíbrio estrutural entre necessidade de investimento e disponibilidade de
recursos para tal, a sociedade brasileira viu-se continuamente impossibilitada
de satisfazer as demandas de parte significativa de sua população, mesmo após
ter atingido consideráveis níveis de urbanização e atividade industrial. Diante
de tantos constrangimentos e do alto potencial de instabilidade política
decorrente de insatisfações generalizadas, o tipo associado de desenvolvimento
exigiu um aparato estatal autoritário e centralizador, o único capaz de
proporcionar condições ótimas para as decisões de investimentos tomadas nas
matrizes das corporações estrangeiras (Cardoso, 1980). Assim é que democracia
representativa, grupos civis e demais formas de sociabilidade vivenciadas
plenamente pelas sociedades capitalistas centrais encontraram condições
difíceis para se consolidar no Brasil.6
Semi-, Periférica, ou Singular? Para além do dilema sociológico brasileiro
Conforme pudemos verificar, para Freyre, Holanda, Faoro e Matta, elementos do
tipo de sociabilidade que caracterizou a sociedade brasileira em seu período
colonial ainda fazem-se presentes, impedindo a consolidação plena de
instituições e valores da modernidade. Nessa vertente do pensamento social
brasileiro, uma pretensa herança patrimonial-patriarcal acaba sutilmente
assumindo o caráter de "variável independente", supostamente capaz de explicar,
ao longo de toda a história brasileira, as formas e as configurações políticas
e sociais que aqui se consolidaram. Conforme essa abordagem, ao aprisionar-nos
entre o tradicional e o moderno, aquela herança seria responsável por nossa
permanência numa espécie de limbo semimoderno. Mais ou menos explícita nas
interpretações propostas por cada um daqueles autores encontra-se a idéia de
que no Brasil contemporâneo, Estado, economia e sociedade civil jamais teriam
sido capazes de se diferenciar plenamente e, dessa forma, de se dinamizar a
partir de lógicas e códigos próprios. Em uma das variantes (Freyre, Holanda,
Matta), os domínios públicos são vistos como tendo sido raptados e subjugados à
lógica e aos propósitos das esferas de convívio familiar. Em outra (Faoro), é a
burocracia estamental e sua dinâmica semi-racionalizada que são vistas como as
grandes vilãs de nossa suposta peculiaridade social, política e cultural. Em
ambas as variantes, afirma-se primeiramente que o aparato estatal no Brasil
veio a se constituir de tal maneira a centralizar (em alguns momentos a
monopolizar completamente) tarefas ' dentre as quais a produção social da vida
material, a reprodução cultural e a resolução de conflitos cotidianos ' que em
sociedades plenamente modernas teriam lugar em outras instituições e esferas
sociais. Em segundo lugar, afirma-se que as esferas públicas permaneceram
subsumidas aos, e delineadas por, códigos pessoais e privados, razão pela qual
regras impessoais e racionalizadas seriam freqüentemente relegadas a segundo
plano. Assim, de acordo com a imagem da sociedade brasileira contemporânea
projetada por essa primeira abordagem, a despeito de ter passado por processos
de complexificação e modernização, nossa sociedade jamais atingiu o grau e a
extensão da diferenciação social, da secularização e da separação entre o
público e o privado observados nas "sociedades modernas centrais". Tais
características explicariam o status semimoderno da sociedade brasileira
contemporânea.
Já para a abordagem em que Prado Jr., Fernandes, Ianni e Cardoso ocupam
posições nodais, não se trata mais de acentuar resquícios ibéricos ' sejam eles
patriarcais ou patrimoniais ' na dinâmica da sociedade brasileira contemporânea
em seus mais variados âmbitos e dimensões. Para a sociologia da dependência, os
processos de modernização experienciados nos últimos dois séculos tiveram
intensidade e profundidade suficientes para varrerem de nossa gramática social
elementos de ordem tradicional. Isso não significa, porém, que o Brasil tenha
incorporado exatamente o mesmo padrão de sociabilidade das ditas "sociedades
modernas centrais". É a insuperada condição de "dependência estrutural",
marcando a economia brasileira desde os momentos primeiros de sua formação, que
acaba por assumir o papel de "variável independente", supostamente capaz de
explicar a pretensa particularidade do padrão de sociabilidade que se
consolidou entre nós. É, pois, a relação subordinada e periférica ocupada pelo
Brasil no sistema capitalista internacional que explicaria o porquê das
principais instituições, dos valores e das formas de sociabilidade
exclusivamente típicas dos "países centrais" jamais terem se enraizado entre
nós na mesma extensão e solidez. Daí que, conforme este segundo viés
interpretativo, o caminho tomado em direção à modernidade no Brasil não foi o
mesmo da França, dos Estados Unidos e da Inglaterra: o aparato estatal
brasileiro teria sido levado a adotar uma postura consideravelmente mais ativa
em esferas sociais as mais variadas, a fim de superar insuficiências e
catapultar o desenvolvimento nacional. Mais do que nos países centrais, pois, o
Estado seria necessariamente chamado a intervir tanto na economia como na
política a fim de fazer frente a deficiências estruturais e à incapacidade de
setores da sociedade brasileira de executarem tarefas que deles se esperariam
em condições de plena autonomia. Ao se tornar fonte autocrática de poder, o
aparato estatal teria sufocado o florescimento de organizações civis
independentes. Em tais circunstâncias, a normatividade corrente nos países
centrais jamais teria vingado no Brasil na mesma extensão e intensidade: por um
lado, parte considerável da população permaneceria alienada do mercado de
trabalho-livre; por outro, garantias civis e políticas de cunho liberal não
teriam encontrado ambiente propício para se enraizarem. Daí os altíssimos
índices de desigualdade política, econômica e social, em razão dos quais alguns
poucos seriam capazes de fazer valer interesses e demandas particulares em
detrimento de outros. Nesse caso, em vez de semimoderno, o Brasil contemporâneo
seria a cristalização de uma modernidade periférica.
Ora, quando consideradas do ponto de vista da epistemedo discurso sociológico
hegemônico da modernidade, as duas abordagens comumente tidas como
diametralmente opostas chegam a um diagnóstico bastante similar, ainda que
partam de perspectivas bastante diferentes: diferenciação social,
racionalização da normatividade e separação entre o público e privado ' os três
pilares da sociabilidade moderna, de acordo com esse discurso ' não teriam se
consolidado no Brasil tal e qual o fizeram nos chamados "países modernos
centrais". No interior desse terreno cognitivo, pois, nossa condição moderna
não seria outra senão uma espécie de desvio em relação às ditas "sociedades
centrais da modernidade". Mantendo-se intocada a epistemedaquele discurso
sociológico hegemônico, não parece restar oultra alternativa interpretativa
para além de "semi-" e "periférica".
Parece-me, porém, já ser tempo para questionarmos a acuidade dessas referências
cognitivas. É exatamente aqui, no meu entendimento, que é possível ao menos
indicar uma possível solução para esse antigo dilema sociológico. Conforme
havia apontado anteriormente, uma nova geração de sociólogos brasileiros vem
lidando com esses problemas à luz de novos dados empíricos e propostas teóricas
recentes. Sugeri, ainda, que Jessé de Souza não teria conseguido superar muitas
das limitações daquilo que denomina "sociologia da inautenticidade". A meu ver,
o fato de a noção de "modernização seletiva" trabalhada por Souza (2000) ter
implícita a idéia de que a modernidade no Brasil é um arranjo moderno
"singular", limitado a uma determinada configuração, acaba nos conduzindo à
repetição, ainda que sob outra roupagem, da imagem de "desvio inequívoco"
embutida nos diagnósticos das duas abordagens do pensamento social brasileiro
acima discutidas. Uma saída para esse problema, acredito, é apontada nos
trabalhos de José M. Domingues (1999) e Renato Ortiz (1999). Domingues defende
a necessidade de se avançar em direção a uma concepção multifacetada de
modernidade. Trata-se, para ele, de vislumbrar as instituições modernas em sua
dimensão processual, ou seja, como o resultado contingente e historicamente
variável dos confrontos entre projetos particulares levados adiante por
subjetividades individuais e coletivas. É a partir dessa perspectiva que
Domingues considera as formas de sociabilidade que se consolidaram no Brasil
contemporâneo: como o resultado de disputas em que certas coletividades foram
capazes de fazerem prevalecer seus projetos em detrimento de outros. Ortiz, por
sua vez, agumenta que o Brasil contemporâneo deve ser interpretado tendo-se
como pano de fundo a noção de "modernidade-mundo". Para ele, atravessamos um
momento em que a modernidade deixou de estar confinada a fronteiras nacionais;
ao deslocar-se do Ocidente, tal processo pôs em xeque a existência de uma
"única matriz moderna". Parece-me, pois, que a modernidade vista como um tipo
de sociabilidade histórico e contingente (já que fruto de disputas constantes
entre projetos díspares), multifacetado e tendencialmente global abre-nos o
caminho para uma alternativa àquele dilema sociológico.
A idéia de uma modernidade multifacetada tem encontrado espaço cada vez maior
em discussões recentes em torno da noção de modernidades múltiplas.7 Conforme
sugere Nilüfer Göle, ao destacar inúmeros aspectos da modernidade ocidental que
por muito tempo permaneceram reprimidos, marginalizados ou mesmo esquecidos, a
noção de modernidades múltiplas acaba por converter-se em "um desafio a um só
tempo histórico e intelectual a normas analíticas estabelecidas" (2000, p. 91).
Isso porque, como salienta Eisenstadt, tal noção propõe-se a questionar o
pressuposto ' compartilhado, de um lado, pelas teorias sociológicas clássicas
de Marx, Durkheim e Weber e, de outro, pelas teorias de modernização dos anos
de 1950 ' pelo o qual "o programa cultural da modernidade desenvolvido na
Europa moderna e as constelações institucionais básicas que lá emergiram iriam
inexoravelmente dominar todas as sociedades modernas ou em processo de
modernização" (2000, p. 1). Eisenstadt salienta que, após os momentos mais
incipientes da modernidade, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, foi
possível observar uma considerável multiplicidade de variações institucionais e
de padrões ideológicos em sociedades (ocidentais ou não) em processo de
modernização. Ainda que os resultados fossem distintamente modernos, teriam
contribuído sobremaneira para tais variações as tradições, as premissas
culturais e as experiências históricas (muitas vezes até mesmo antiocidentais e
antimodernas) das diferentes sociedades, para as quais, segundo Eisenstadt, o
projeto ocidental original permaneceu sendo o ponto de referência crucial.
Se levarmos as críticas de Eisenstadt (2000) e Göle (2000) às últimas
consequências, deveremos admitir que mesmo entre as chamadas "sociedades
modernas centrais" ' comumente vistas como "o berço da modernidade" ' houve
variações consideráveis nos padrões de sociabilidade que lá se
institucionalizaram. A incapacidade daquela epistemede apreender tais variações
foi tal que o discurso sociológico hegemônico silenciou-se diante delas. Ora,
ao se referir à porção norte do continente americano e à Europa Ocidental,
Wittrock nos lembra que
[...] não é verdade que todos esses países tiveram tipos similares de
instituições políticas e econômicas [...]. Ao longo dos últimos dois
séculos, ocorreram diferenças profundas entre os países ocidentais na
maneira pela qual a sociedade, a economia de mercado e as formas
políticas modernas melhor se organizaram (2000, p. 33).
É exatamente este ponto que gostaria de enfatizar, isto é, em vez de
desconsideradas, essas diferenças devem ser salientadas por aqueles que têm
como desafio compreender a modernidade no momento em que ela se torna elemento
central da globalização.
A discussão em torno da noção de modernidades múltiplas revela-se, pois,
promissora caso queiramos evitar estereótipos e retratos congelados das
diversas experiências modernas e, ao mesmo tempo, tirar proveito do potencial
analítico da epistemeem que opera o discurso sociológico hegemônico da
modernidade. O grande desafio, então, parece-me ser o de equipar aquela
episteme, a fim de que ela tenha maior amplitude interpretativa e vigor
comparativo. Vale lembrar uma vez mais que no discurso sociológico hegemônico
da modernidade ' no interior do qual Marx, Weber, Durkheim, Simmel e, mais
recentemente, Parsons, Luhmann e Habermas ocupam posições nodais '' as chamadas
"sociedades modernas centrais" são tidas como aquelas em que: a) Estado,
mercado e sociedade civil ocupam necessariamente esferas plenamente
diferenciadas entre si, reguladas exclusivamente por códigos próprios e
dinamizadas por lógicas particulares; b) a normatividade que regula as relações
entre indivíduos e deles com o Estado e o mercado são plenamente desencantadas
além de protegidas de influências de concepções de mundo e sistemas normativos
não-racionalizados; e c) os âmbitos público e privado, por sua vez, são também
plenamente separados, cada um dos quais ordenado por códigos e lógicas
particulares, comunicando-se apenas e tão-somente através de canais apropriados
que mantêm inalterados os termos e as regras de cada um dos domínios.
Não creio que seja necessário descartar por completo essa estrutura conceitual.
Contudo, à luz de evidências empíricas que se acumularam nos últimos anos e do
debate em torno da idéia de modernidades múltiplas, penso ser necessária uma
apropriação crítica: ao pressupor que esses três pilares da sociabilidade
moderna são invariavelmente experienciados pelas chamadas "sociedades modernas
centrais", tal epistemerevela-se incapaz de codificar variações em cada um dos
pilares. Trata-se de um problema central na medida em que essas variações são
vivenciadas não só pelas chamadas "sociedades modernas tardias", como também
pelas próprias "sociedades centrais". Ao operar no interior desse território
epistemológico, as versões nacionais do discurso sociológico hegemônico da
modernidade são conduzidas a interpretar e classificar a sociedade brasileira
como invariavelmente "peculiar" em relação às supostas "sociedades centrais" '
seja sob o rótulo de "semimoderna", "periférica", ou mesmo "singular" ', uma
vez que: a) Estado, mercado e sociedade civil são tidos como estruturalmente
entrelaçados; b) a normatividade que as permeia é vista como passível de
influências de concepções de mundo e sistemas de normas apenas parcialmente
racionalizados; e finalmente, c) seus âmbitos de ação público e privado são,
por sua vez, percebidos como interconectados. Todos esses traços seriam a prova
cabal de nosso "desvio". A sociologia clássica e a nossa sociologia da
inautenticidade operam, então, como professias que se auto-realizam: ao tentar
explicar o "centro", confirma-se a "margem" como um desvio do primeiro e vice-
versa, sem qualquer espaço para questionamentos.
Como disse, penso que soluções para tais dificuldades cognitivas demandam um
esforço de derivação daquelas referências conceituais. A versão ampliada que
defendo acentua a existência de: a) padrões variadosde diferenciação/
complexificação social; b) padrões variadosde secularização; e c) padrões
variadosde separação entre domínios públicos e privados. É aqui que se soma à
presente consideração crítica a dimensão contingenteda sociabilidade moderna:
esses padrões variados devem ser considerados configurações passíveis de serem
assumidas por diversas sociedades, em momentos históricos diferentes, não como
resultado de tendências (sejam elas culturais, sejam econômicas) invariáveis,
mas sim do confronto entre projetos sociais, demandas, interesses e visões de
mundo díspares que disputam entre si a liderança na organização da sociedade.
Dessa maneira, configurações sociais históricas e contingentes, por excelência,
deixarão de correr o risco de serem ossificadas e projetadas tanto no passado
como no futuro e no presente da sociedade brasileira e de outros contextos
modernos.
No tocante aos padrões variados de diferenciação/complexificação social,
inspiro-me no estudo de Michael Mann (1996) a respeito das cinco diferentes
estratégias de construção da cidadania: a liberal, a reformista, a monárquica,
a autoritária socialista e a fascista. Em decorrência do foco particular de meu
interesse, proponho a transmutação dessas rotas para cinco cenários-ideais de
complexificação social: 1) padrão de diferenciação liberal-capitalista; 2)
padrão de diferenciação social-democrático; 3) padrão de diferenciação
capitalista-corporativo; 4) padrão de diferenciação autoritário
(socialistaoucapitalista); e 5) padrão de diferenciação totalitário
(socialistaou fascista). Apesar de esses cinco cenários não esgotarem todas as
possibilidades teóricas e empíricas de diferenciação social, eles nos permitem
vislumbrar o amplo escopo de configurações Estado/mercado/sociedade civilque,
ao menos em princípio, todas as sociedades modernas são passíveis de
experimentar. É notória a existência de uma espécie de gradiente de
diferenciação entre eles: configurações liberal-capitalistas são aquelas em que
Estado, mercado e sociedade civil se encontram mais marcadamente desvinculados
entre si, ao passo que configurações totalitárias são aquelas em que se observa
maior entrelaçamento entre cada uma dessas esferas sociais. Duas observações
importantes devem ser feitas aqui: primeiramente, não se pode qualificar nenhum
desses cenários como mais ou menos representativo da modernidade; em segundo
lugar, nenhuma sociedade moderna está fadada a se estruturar, ao longo de sua
história, conforme apenas um desses padrões de diferenciação social.
Quanto às variações nos padrões de secularização da normatividade, beneficio-me
dos estudos de José Casanova (1994, 2001) a respeito dos papéis públicos e
privados de organizações e concepções de mundo religiosas em diversas formações
sociais contemporâneas. Ao refutar a noção comumente aceita de que a
modernidade fez-se necessariamente acompanhar do desaparecimento total e
completo de visões de mundo religiosas, ou ao menos de seu recolhimento em
domínios privados, Casanova chama a atenção para três caminhos históricos
observáveis no mundo moderno: 1) configurações em que associações religiosas
têm papel ativo na vida pública; 2) arranjos em que concepções religiosas se
mantêm vivas e atuantes fundamentalmente em âmbitos sociais privados; e,
finalmente, 3) casos nos quais associações e concepções religiosas não têm peso
marcante tanto em esferas sociais públicas como em âmbitos privados. Também
aqui não há por que afirmar categoricamente que qualquer um dos cenários
indicados seja mais ou menos moderno que seus pares.
Por fim, no tocante aos variados padrões de separação entre o público e o
privado, baseio-me no estudo de Bryan Turner (1990) em relação às diferentes
definições e papéis dos dois domínios na dinâmica social moderna: a) o privado
como âmbito de ação de indivíduos movidos pela busca de interesses
subjetivamente definidos; b) o privado como domínio de códigos familiais de
sociabilidade; c) o público entendido como resultante da vontade geral; e d) o
público como esfera de sociabilidade controlada e definida pelo Estado. De
maneira semelhante, nenhum dos tipos assinalados por Turner é tido como
representativo da modernidade em maior ou menor grau.
Ao menos em princípio, essas variações em cada um dos pilares da sociabilidade
moderna são passíveis de se combinarem e de adquirirem as configurações
mostradas na Figura_1.
A idéia central implícita no quadro acima delineado é a seguinte: não há por
que descartar a possibilidade de todas as combinações às quais me referi serem,
ao menos em princípio, experienciáveis por toda e qualquer formação social
moderna. Ao descartarmos a existência de uma lógica imanente ao social
pretensamente capaz de "determiná-lo em última instância" e de conduzi-lo a
esta ou àquela configuração em favor da idéia da constituição do social como um
processo contingente (e não aleatório) (Laclau e Mouffe, 1985; Laclau, 1996),
não há por que não abrir o discurso sociológico da modernidade para a
possibilidade de várias combinações dos elementos acima sugeridos. Vale a pena
indicar, ainda que superficialmente, algumas dessas combinações vivenciadas em
diferentes contextos por algumas formações modernas8 (Figuras_2, 3 e 4).
Mas há ainda algo que gostaria de enfatizar uma vez mais, a saber, a
necessidade de se evitar quaisquer traços "essencializantes" em esforços
intepretativos e explicativos de contextos modernos. Não me parece haver nada
de mais anti-sociológico do que apostar na existência de uma lógica que
condiciona o social "em última instância". Ao entender a constituição do social
como um processo contingente decorrente de disputas entre forças sociais, penso
ser necessário conceber contextos modernos como o resultado de conflitos entre
projetos, demandas, interesses e concepções de mundo que lutam entre si pelo
controle de seu ordenamento. Dessa forma, descarta-se a idéia de que a
sociedade brasileira moderna seja, em suas várias dimensões, a manifestação de
uma pretensa herança cultural peculiar ou de sua imutável condição de
dependência econômica (em ambos os casos, espécies de "determinantes em última
instância"). Suspende-se, por conseguinte, a imagem pela qual um único tipo de
configuração teria marcado a sociedade brasileira desde sua entrada na
modernidade. De fato, um breve olhar sobre alguns dos diferentes períodos de
nossa recente história (1889-1930, 1930-1945, 1946-1964, 1964-1985, 1985-2005)
é facilmente capaz de nos revelar diferentes arranjos políticos,
institucionais, normativos e econômicos. Torna-se concebível, pois, a um só
tempo falar de modernidade no Brasil e deixar para trás a noção da suposta
presença invariável de traços ou elementos que teriam orientado coerente e
continuadamente o devir histórico da sociedade brasileira a despeito da
existência ocasional e marginal de contra-tendências. Em vez de coerência e
inexorável continuidade ' vale lembrar, sutilmente embutidas em expressões como
"asingularmodernidade brasileira" ', é preciso que reconheçamos que a definição
daquelas várias configurações foi e permanence sendo fruto de disputas e
confrontos entre projetos, interesses, demandas e visões de mundo díspares às
vezes passíveis de serem combinadas, outras vezes completamente incompatíveis.9
Ora, como sugere Eisenstadt, a multiplicidade institucional e os diferentes
padrões ideológicos que caracterizam o mundo moderno
[...] são levados adiante por atores sociais específicos fortemente
conectados com ativistas sociais, políticos, intelectuais e
movimentos sociais em busca de diferentes programas de modernidade,
portadores de visões diferentes a respeito daquilo que faz modernas
as suas sociedades (2000, p. 2).
É, pois, a idéia de contingência que deve orientar esforços interpretativos,
não da suposta "semi-", "periférica" ou "singular modernidade brasileira", mas
sim da "modernidade no Brasil". Assim sendo, a alternativa que proponho para o
dilema sociológico brasileiro demanda, antes de tudo, um esforço analítico por
meio do qual as diversas combinações e transformações por que passou (ou por
ventura poderá vir a passar) a sociedade brasileira (tanto quanto as chamadas
"sociedades modernas centrais") sejam devidamente apreendidas e consideradas.
Demanda, em segundo lugar, a consideração de tais transformações não como
derivações de uma suposta herança cultural ou posição econômica no cenário
econômico internacional, mas, sim, como decorrentes de disputas entre projetos
e demandas que competem entre si pela direção da organização social, política,
econômica e normativa e que trazem em seu seio concepções variadas do padrão de
sociabilidade a ser institucionalizado.
Para finalizar, gostaria de salientar um último ponto que indiquei na
introdução e que me parece fundamental para a discussão em torno do status da
modernidade no Brasil. Trata-se do argumento segundo o qual a modernidade veio
a se tornar um tipo de sociabilidade tendencialmente global. Um número
crescente de pesquisas10 tem salientado que mesmo em seus momentos incipientes
o tipo moderno de sociabilidade jamais se consituiu única e exclusivamente no
interior de fronteiras nacionais fixas e por meio de uma rota coerente e
linear. Historicamente, experiências modernas as mais variadas (inclusive as
das chamadas "sociedades centrais") surgiram e se firmaram ao longo de trocas
(por vezes pacíficas, outras consideravelmente conturbadas) com outras formas
de sociabilidade (não tão diferenciadas, não tão secularizadas, e nas quais
público e privado não se encontravam separados de forma tão acentuada) e
mediante conflitos envolvendo projetos políticos, econômicos, normativos e
culturais divergentes, cujas origens múltiplas freqüentemente trascendiam
fronteiras nacionais e mesmo continentais. Nesse exato sentido, a hipótese da
existência de "rotas nacionais em direção à modernidade"11 tem se mostrado cada
vez mais problemática mesmo quando referida única e exclusivamente aos momentos
iniciais da experência moderna. Torna-se ainda mais questionável quando se leva
em consideração o fato de que as instituições, os valores, as noções normativas
e os produtos culturais portadores de componentes-chave da sociabilidade
moderna se expandiram em escala global. Não se trata de afirmar que modernidade
e globalização se tornaram um único e mesmo fenômeno. Globalização, entendida
como a condição na qual "o mundo se tornou parte de uma mesma humanidade e em
que todas as sociedades se tornaram parte de um mesmo sistema mundial",12 é,
por certo, conceitualmente mais ampla do que a noção de modernidade: a
globalização refere-se a um cenário em que coexistem, ainda que de maneira
assimétrica, formas diversas de sociabilidade além da moderna.13 Mas também é
verdade que as formas societárias modernas têm se expandido e feito valer o seu
ímpeto globalizante,14 tornando-se cada vez mais capazes de penetrar os mais
diversos territórios e experiências sociais para além de fronteiras locais e
nacionais.15
Esse conjunto de idéias tem implicações importantes para os diagnósticos de
nossa "sociologia da inautenticidade". Uma vez entendida como um tipo de
sociabilidade cuja dinâmica é marcadamente contingente ao mesmo tempo em que
tendencialmente global, tal noção de modernidade ajuda a pôr em xeque a
hierarquia centro/periferia, implícita no discurso hegemônico da sociologia da
modernidade. Isso porque, em condições globais, mesmo que as chamadas
"sociedades modernas centrais" possam ainda ser rotuladas como "iniciadoras
históricas" da modernidade, não podem mais serem tidas como propagadoras e
disseminadoras exclusivas da sociabilidade moderna. Conseqüentemente, torna-se
inapropriado atribuir às "sociedades modernas tardias" o título de receptoras
passivas e imperfeitas de formas de vida e concepções de mundo modernas. Não se
trata de negligenciar os contextos específicos em que a experiência moderna deu
seus primeiros passos. Mas me parece bastante "essencializar" tais contextos,
congelando-os no tempo e espaço e vinculando-os única e exclusivamente a certos
aspectos culturais e/ou econômicos pretensamente determinantes em última
instância e irreprodutíveis. Torna-se fundamental, então, a noção pela qual o
processo de difusão desse tipo peculiar de sociabilidade se fez acompanhar de
imediato de um processo de decentralização de sua produção e disseminação.
Tornam-se, assim, substancialmente contestáveis correspondências do tipo
iniciadores da modernidade (centro) = disseminadores "autênticos" e "sociedades
modernas tardias" (periferia) = receptores "inautênticos", implícitas no
discurso hegemônico e em nosso pensamento sociológico clássico. Essas
correspondências entram em colapso quando se aceita, primeiramente, a idéia
elementar segundo a qual nenhuma recepção de valores, de referências normativas
ou de padrões político-institucionais, entre outros, foi ou ainda é um processo
passivo; em segundo lugar, caem por terra quando se reconhece que, a despeito
da existência de relações de poder assimétricas no cenário internacional,
aqueles aos quais freqüentemente se atribui o rótulo de receptores
inautênticosforam e continuam sendo centros dinâmicos geradores e
transformadores da modernidade, capazes de impactar o padrão de sociabilidade
experienciado pelos supostos iniciadores da modernidade. Uma vez mais: não se
trata de negar o caráter assimétrico da globalização, mas daí para se atribuir
um status moderno privilegiado a um número restrito de sociedades parece-me,
antes de tudo, negligenciar variações consideráveis de configurações, mesmo
entre as (no meu entender problematicamente) chamadas "sociedades centrais da
modernidade". Parece-me, ainda, reforçar noções lineares e "essencializantes"
da constituição do social.
É precisamente nessa direção que as disputas em torno do padrão de
sociabilidade no Brasil contemporâneo devem ser pensadas. Não há por que lidar
com os projetos e as demandas em confronto como momentos de nossa
"semimodernidade" ou ainda de nossa "modernidade periférica". Caso aceitemos o
argumento de que a vinda da família Real portuguesa ao Brasil-colônia é o marco
simbólico de nossa modernidade ' momento de emergência de uma economia de
mercado entre nós além da implementação de regras político-administrativas
impessoais e da adoção do individualismo moral como código de valores dominante
(Souza, 2000) ', pode-se então afirmar que os principais projetos de sociedade,
as várias demandas, as concepções de mundo e os interesses que, desde aquele
momento, brigaram pela liderança no processo de organização da sociedade
brasileira, operaram, desde então, dentro de um universo cognitivo e prático-
moral moderno por excelência.16 Por conseguinte, seria também equivocado pensar
tais projetos, demandas, interesses e concepções de mundo em confronto como
componentes em potencial de um "tipo de sociabilidade moderna singularmente
brasileira". Ora, sendo a modernidade uma forma de sociabilidade com ímpeto
globalizante, disputas "locais/nacionais" são, elas mesmas, perpassadas por
processos e ideários globais.17 Daí que, em condições modernas, apenas em
sentido muito restrito é legítimo atribuir às disputas "locais" em torno de
padrões de sociabilidade origens e dinâmicas peculiarmente nacionais. Não se
trata de afirmar que, na modernidade, essas disputas se tornam meros reflexos
de processos tendencialmente globais. Não se trata, ainda, de negar que cada
nível de experiência, seja ele "local", "regional", seja ainda "nacional",
apresenta certo grau de autonomia. Contudo, uma vez estruturados e organizados
por meio de configurações político-institucionais e normativas modernas, todos
aqueles níveis permanecem determinantemente interconectados a processos e
imaginários que transcendem suas restritas fronteiras. Afinal de contas, as
próprias maneiras como tais problemas e questões são definidos, conceituados e
tratados se dão por meio de sistemas explicativos e normativos cujas origens e
dinâmicas transcendem as escalas em que se manifestam e se desenrolam. Não
podem, pois, eles mesmos serem vislumbrados como meras manifestações locais e,
conseqüentemente, elementos singulares de um tipo de sociabilidade nacional.
Comentários finais
A idéia de modernidadeentendida como um tipo de sociabilidade multifacetada,
constituída ao longo de disputas contingentes entre projetos, interesses e
visões de mundo num contexto crescentemente globalizado, ajuda-nos a encontrar
uma possível alternativa para o dilema que há muito intriga duas das principais
abordagens no interior do pensamento social brasileiro. Em vez de reduzir as
diversas configurações políticas, econômicas, institucionais e sociais
experienciadas ao longo da recente história brasileira a um supostamente único
tipo de configuração moderna (pré-determinado por tendências culturais e/ou
econômicas), abre-se caminho alternativo para que se considere como as disputas
que se desenrolaram entre nós vieram a se traduzir em padrões variados de
diferenciação/complexificação social, de secularização e de separação público/
privado no decorrer de nossa história. Acima de tudo, procurei mostrar que
lidar com o Brasil contemporâneo como um exemplo de "semimodernidade", de
"modernidade periférica", ou ainda como um "caso singular de modernidade"
(termos que trazem em si a imagem de "desvio") implica reforçar imagens
congeladas e "essencializantes" não só da própria experiência brasileira, como
também da dinâmica de sociedades tidas como inequivocamente localizadas no
"centro da modernidade".
Por fim, o presente artigo sugere uma ampla agenda de pesquisa. Primeiramente,
aponta para a necessidade de se comparar os vários momentos de nossa história
recente à luz da versão ampliada da epistemedo discurso sociológico hegemônico
da modernidade que procurei aqui desenvolver. Caberia, pois, reconstruir quais
projetos, interesses e visões de mundo na República Velha, na Era Vargas, na
República Populista, na Ditadura Miliar e no pós-1985 se confrontaram na
definição da configuração de cada um dos pilares da sociabilidade moderna e
como tais disputas se desenrolaram. Em segundo lugar, caberia levar adiante um
esforço comparativo envolvendo as várias configurações brasileiras e as de
outras sociedades, pensando-as num contexto cada vez mais global.
Notas
1 A esse respeito, ver Avritzer (1993); Avritzer e Domingues (2000); Costa
(1994); Domingues (1999, 2002a e b); Neves (1996); Silva et al. (2002); Souza
(2000, 2004). Sintomático, ainda, da efervescência dessa problemática em nossa
recente produção sociológica é a existência de dois seminários temáticos em que
tais questões foram tratadas de maneira mais explícita no XXVIII Encontro Anual
da Anpocs, quais sejam, o supracitado "Da Modernidade Global às Modernidades
Múltiplas" e o "Dilemas da Modernidade Periférica". Por fim, vale lembrar que
elementos dessa mesma problemática se encontram difusos em outras áreas de
pesquisa nas ciências sociais brasileiras, ainda que com diferentes
designações, tais como, "formação do Estado", "religiosidade", "sociedade civil
e movimentos sociais", "sexualidade e intimidade", entre outros.
2 Por episteme entendo uma grade geral de conceitos e noções que delimita o
terreno cognitivo no interior do qual operam determinadas teorias explicativas
e interpretativas da "realidade".
3 Guardadas as particularidades tão bem conhecidas, pode-se dizer que esse
território cognitivo compõe o denominador comum de Karl Marx, Max Weber, Émile
Durkheim, Georg Simmel e alguns dos mais influentes sociólogos contemporâneos,
tais como Talcott Parsons, Niklas Luhmann e Jürgen Habermas. É a predominância
dessa referência epistêmica nas produções sociológicas em escala global que me
conduz a denominá-las elementos centrais de um "discurso sociológico hegemônico
da modernidade". Procurei sugerir como elementos centrais das teorias de cada
um deles internalizam as noções de diferenciação social, secularização e
separação público/privado (Tavolaro, "Introdução", 2004).
4 Isso explicaria a manutenção de traços pré-modernos nas instituições
políticas brasileiras, em que "as facções são contituídas à semelhança das
famílias, precisamente das famílias de estilo patriarcal, onde os vínculos
biológicos e afetivos que unem ao chefe os descendentes, colaterais e afins
[...] hão de ponderar sobre as demais considerações. Formam assim, como todo
indivisível cujos membros se acham associados, uns aos outros, por sentimentos
e deveres, nunca por interesses e idéias" (Holanda, 1994, p. 47).
5 Para Faoro, é exatamente isso que nos diferenciaria dos países que emergiram
da experiência colonial anglo-saxônica: "Os ingleses transmigrados formaram sua
própria organização política e administrativa [...]. Não os contaminou a
presença vigilante, desconfiada e escrutadora, do funcionário reinol: por sua
conta, guardadas as tradições de self-government e de respeito às liberdades
públicas, construíram as próprias instituições. [...] O inglês fundou na
América uma pátria, o português um prolongamento do Estado" (Faoro, 2001, pp.
145-146).
6 Prova disso seria a ausência de partidos políticos representativos das
classes sociais, da divisão harmoniosa entre os poderes republicanos e de
garantia efetiva de direitos individuais (Cardoso, 1972).
7 Ver, por exemplo, Alexander (1995); Al-Azmeh (1996); Appadurai (1995); Berger
e Huntington (2002); Eisenstadt (2000); Featherstone, Lash e Robertson (1995);
Göle (2000); Knobl (2003); Wittrock (2000).
8 Para traçar esse quadro esquemático, baseei-me na seguinte literatura: Agh
(1994); Brubaker (1992); Finn (1991); Fraser e Gordon (1994); Gohn (1997);
Gorjanicyn (2000); Holston e Caldeira (1998); Hughey (1984); Johnston (1992);
Kalberg (1993); Krieken (2000); Marshall e Bottomore (1992); Soysal (1994);
Somers (1993); Turner (1993); Verral (2000).
9 Como bem nos lembra Eisenstadt (2000), antinomias internas e contradições
estiveram presentes na modernidade desde seu início no Ocidente, daí
continuamente emergindo discursos críticos e contestações políticas que se
enfrentraram para definir as instituições a serem cristalizadas.
10 Ver nota_8.
11 Vale lembrar, dois dos estudos clássicos que se apoiaram em tal hipótese
foram Bendix (1996) e Moore (1966).
12 Ver, a esse respeito, entrevista de José Casanova em Kumar e Makarova (2002,
pp. 91-108). Para uma definição formal de globalização na direção apontada por
Casanova, ver Held et al., segundo os quais a globalização é "um processo (ou
conjunto de processos) que corporifica uma transformação na organização de
relações sociais e de transações - passível de ser avaliada em termos de sua
extenção, intensidade, velocidade e impacto -, geradora de fluxos
transcontinentais e interregionais e de redes de atividade, interação e
exercício de poder" (1999, p. 16).
13 Ver Pieterse, segundo o qual a globalização, entendida como a intensificação
de relações sociais por todo o mundo, deve ser vista "para além do raio da
modernidade/ocidentalização" (1995, p. 48).
14 A esse respeito, concordo mais uma vez com José Casanova, para quem "a
globalização é contígua à modernidade, ao sistema capitalista mundial e ao
sistema mundial de estados-nações" (Kumar e Makarova, 2002, p. 92).
15 Wittrock (2000) caracteriza o cenário atual da modernidade como sendo o de
"uma condição global", em que, por mais variadas que sejam, formas
institucionais e construções conceituais típicas da modernidade não só se
tornaram globalmente relevantes, como também se tornaram princípios
estruturantes por detrás de projetos institucionais em escala global.
16 Por universo cognitivo entendo um conjunto de conceitos e instrumentos
interpretativos que ajudam a compreender e codificar a "realidade". De maneira
geral, o tipo de universo cognitivo moderno é aquele em que a ciência e outras
concepções de mundo e sistemas explicativos desencantados ocupam os lugares
mais privilegiados em esforços interpretativos e demais tentativas de se
definir o que é a "realidade". Quanto à noção de universo prático-moral,
refiro-me ao conjunto de preceitos e códigos normativos que ajudam a conceber
como a "realidade social" deve ser. Genericamente, na modernidade, tais
preceitos são vistos não como emanações de Deus ou qualquer ordem supernatural,
mas, sim, como construções humanas racionalmente justificáveis e passíveis de
serem modificadas pela sociedade aos quais se referem.
17 Vale lembrar aqui que a literatura em torno do fenômeno da globalização
freqüentemente acentua os impactos "locais" de processos globais. A esse
respeito, ver, por exemplo, Beck (2000). Ao mesmo tempo em que chama a atenção
para o caráter multidimensional e multifacetado da globalização e de seus
impactos (econômicos, políticos, institucionais, normativos, culturais,
ambientais, entre outros), Beck argumenta que "a globalização sempre envolve um
processo de localização" (Idem, p. 47). Uma perspectiva ainda mais radical no
tocante aos impactos locais de processos globais pode ser encontrada em Hannerz
(1996).