Descentrando os Estados Unidos nos estudos sobre negritude no Brasil
Entre o passado africano e o futuro norte-americano
A noção de que a experiência negra dos Estados Unidos seria mais "moderna" que
a brasileira encontra respaldo nas formulações teóricas de cientistas sociais
brasileiros e norte-americanos. Discute-se até mesmo a idéia de que os afro-
americanos dos Estados Unidos deveriam intercambiar sua negritude (blackness) '
representada por uma identidade racial politizada e moderna ' pela africanidade
(africannessouafricanity) dos negros brasileiros, ou seja, sua suposta
capacidade de retenção da cultura "original africana" (Walker, 2002). Se Walker
(Idem) defende explicitamente a troca de blackness porafricanness e Christmas
(1992) se deslumbra com o rico "cardápio" de tradições africanas "preservadas"
pelos negros no Brasil, há autores afro-americanos que, ao contrário, não só
não se entusiasmam com o que vêem como "excesso" de culturalismo na negritude
brasileira como ainda recomendam o aprendizado nos moldes da negritude
estadunidense moderna (Hanchard, 1994; Gilliam, 1992).
Essas argumentações variadas possuem em comum as dicotomias tradição versus
modernidade, cultura versus política, atraso versus avanço, além de uma
(implícita) noção evolucionista de negritude. A abundância de recursos
materiais e intelectuais da academia estadunidense explica, em grande parte, a
presença e o predomínio da suas idéias nos meios acadêmicos latino-americanos.
Contudo, é necessário levar em conta também a relação entre a posição de cada
país na configuração global de poder e a capacidade de alcance e influência da
suas idéias e teorias. Essa desigualdade de acesso às correntes mundiais de
poder explica, ao menos em parte, a tendência de se comparar o Brasil aos
Estados Unidos. Dessa maneira, embora o Brasil tenha muito mais em comum com
outros países latino-americanos ' a exemplo de Cuba e Venezuela, que também
possuem narrativas de miscigenação e de "mitificação da miscigenação" ', a
política racial brasileira ainda é predominantemente comparada com a norte-
americana.
Na construção das organizações negras brasileiras, há uma forte influência do
movimento negro dos Estados Unidos e do modelo separatista norte-americano de
contestação. Contudo, o modelo de sociedade multiculturalista colocado em
prática nos Estados Unidos tem sido criticado por estabelecer "identidades
enlatadas e comercializáveis dos étnicos como consumidores rotuláveis" (Segato,
1998), em que o valor social do cidadão e do consumidor nem sempre convergem.
Segato explica ainda que autores como Bhabha (1992) têm apontado para o regime
forçado, e de certa forma vazio, da etnicidade norte-americana, e outros têm
enfatizado como a classificação norte-americana de linhagens em termos de
etnicidade serve para manter as fronteiras no lugar, consistindo em um modelo
liberal de multiculturalismo, em que a idéia de diversidade é inerte.
Para a filósofa Wendy Brown (1995), a proliferação e a politização das
identidades não refletem escolhas políticas ou morais, mas uma complexa
produção histórica que tem produzido a maioria de nós como marginais,
desviantes ou subumanos. A construção das nossas identidades como sendo
marginais é constitutiva da centralidade e da legitimação do poder do próprio
centro. Para Brown, é o poder disciplinador, explicado por Foucault (1999), que
produz as identidades sociais no contexto do Estado liberal. O exemplo mais
emblemático dessa produção regulada das identidades poderia ser encontrado na
sociedade estadunidense dominada pelo welfare, que cria welfare subjects,
subdividindo-os nas categorias "raça", "gênero", "geração", "orientação sexual"
etc. Dessa maneira, as identidades políticas seriam produzidas não apenas
através dessas categorias, mas enquanto essas categorias, reduzindo assim as
identidades ao âmbito dos interesses.
Brown descreve o caráter traumatizado dos desejos existentes nas identidades
politizadas,1 afirmando que as demandas reguladoras do Estado encorajam a
formação das identidades fundadas na dor, estimulando as categorias
marginalizadas que teriam o status da ferida, reforçando, por conseguinte, o
ideal masculino burguês de igualdade, que tem como referência o homem branco
heteressexual. Nesse sentido, enquanto a igualdade for compreendida a partir
dos moldes limitados do liberalismo, as identidades politizadas não realizarão
a crítica do capitalismo, atuando, em vez disso, no sentido de fortalecê-lo,
uma vez que brigam pelas migalhas que caem da mesa do "poder central".
Desde a década de 1970, percebe-se nos discursos do movimento negro brasileiro
contemporâneo2 uma grande influência exercida pelo movimento negro
estadunidense. A tentativa de adoção de uma classificação racial bipolarizada,
em voga nos Estados Unidos,3 é um dos exemplos mais emblemáticos dessa
influência nada recíproca. Evidentemente, buscar essa classificação racial
binária, que opõe negros e brancos, e exclui a possibilidade de variação
cromática entre os dois extremos, tem representado uma tentativa de combater a
celebração da mestiçagem brasileira, entendida como "máscara" que procuraria
esconder os conflitos raciais.4
A reivindicação de movimentos negros brasileiros para que se adote uma
classificação racial inspirada no modelo posto em prática nos Estados Unidos
tem importantes conseqüências políticas. Há uma grande controvérsia entre os
estudiosos da questão racial no Brasil a respeito da adoção ou não da
classificação binária norte-americana. Alguns autores, como A. S. Guimarães
(1995) e Hanchard (1994), defendem que o Brasil se inspire mais nos modelos dos
Estados Unidos, visto que aqui a cor também seria uma categoria racial
central.5
Por outro lado, há intelectuais que se posicionam de forma contrária à adoção
do modelo racial norte-americano no Brasil (Fry, 1995; Segato, 1998). Sobre a
bipolaridade reivindicada pelo movimento negro, por exemplo, Fry (1995/1996)
explica que se trata de uma idéia impositiva e contrária àquilo que ele define
como "o modo múltiplo de classificação" brasileiro. Este possibilita que
indivíduos possam ser classificados de distintas maneiras, a depender da
situação, o que, para Fry, permite uma "desracialização" da identidade
individual. É uma forma de classificação que se baseia na aparência física da
pessoa e não necessariamente na sua ascendência, confirmando a teoria de Oracy
Nogueira (1985) de que no Brasil se privilegia mais a "marca" do que a
"origem", quando se trata de classificar racialmente as pessoas.
Ironicamente, a definição pela "marca", isto é, pela aparência ' acima de tudo
pela cor ' para afirmar quem é negro no Brasil é um ponto de consenso mesmo
dentro da maioria das organizações negras brasileiras. Embora o movimento negro
reivindique o mulato para as suas fileiras, o próprio movimento exige que ele
tenha pele escura, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde mestiços
afrodescendentes de pele clara são considerados negros e onde a expressão light
skinned blacks (negros de pele clara) não soa como uma contradição em termos. É
compreensível que o movimento negro no Brasil não visualize os mestiços e
mulatos de pele clara como sendo negros, afinal esses indivíduos sofrem
infinitamente menos discriminação do que aqueles de pele mais escura. No
entanto, essas formas de classificação confirmam o argumento de que, acima de
tudo, é o racismo que determina a "raça" do indivíduo, além de apontar para a
dificuldade de estabelecer classificações que privilegiem a "origem racial" em
um contexto predominado pela "marca".
Vários intelectuais brasileiros lamentam que, entre nós, os papéis raciais não
sejam tão definidos quanto nos Estados Unidos, onde a colonização britânica
implantou uma separação drástica entre negros e brancos. Até mesmo as formas de
expressão do racismo variam muito dos Estados Unidos para o Brasil, também como
decorrência dos tipos diferentes de colonização. Nos Estados Unidos, existe uma
definição socialmente sistematizada dos grupos étnicos, e quem tiver a mais
leve ascendência negra é considerado negro, pois lá "a genética cedeu lugar a
uma fantasia racial rigorosamente dicotômica" (Risério, 1995, p. 103). Em
outras palavras, ainda segundo Risério, os afro-americanos constituem,
biologicamente, o grupo mais heterogêneo dos Estados Unidos, mas talvez sejam,
socialmente, um dos mais homogêneos; ao menos aparentemente, já que há também
grandes desigualdades internas ao grupo, sobretudo em função das diferenças de
classe.6
Até mesmo a segregação norte-americana tem servido como modelo para estudiosos
da negritude no Brasil. O antropólogo Kabengele Munanga, por exemplo, afirma
que a promoção de uma consciência étnica e política mobilizadora na população
negra brasileira só é possível mediante uma autodefinição que se baseie na
herança africana (história, cultura, religião etc.) e numa distinção clara
entre negros e brancos. Para Munanga, "essa identidade passa por sua cor, ou
seja, pela recuperação de sua negritude, física e culturalmente" (1998, p. 14).
A seu ver, portanto, o negro precisa reafirmar a sua identidade a partir do
passado africano e com vistas a um futuro que, no meu entender, se assemelha
com o presente norte-americano. Podemos afirmar que o projeto de grande parte
do movimento negro brasileiro se situa entre um "passado africano" e um "futuro
norte-americano".7
A antropóloga Rita Segato (1998) critica a obediência brasileira aos padrões
norte-americanos, questionando se as identidades transnacionais que estão
surgindo sob as pressões da globalização seriam mesmo representativas das
formas de alteridade que existem fora dos grandes centros difusores. Para a
autora, os Estados Unidos têm ditado para o resto do mundo suas políticas de
multiculturalismo, mas nós não precisamos segui-las. Podemos acreditar que
existem outras formas de produção de subjetividades relacionadas à África e que
há muitas estratégias para defender a reprodução da África no Novo Mundo.
No mesmo sentido está a crítica de Fernando Rosa Ribeiro (1997), ao afirmar que
há um fio que perpassa a maior parte da imensa literatura sobre a questão
racial no Brasil, qual seja, a comparação, explícita ou implícita, com a
sociedade norte-americana, quase sempre acompanhada de um teor valorativosobre
as formas norte-americana e brasileira de tratar a questão racial. Essa
perspectiva comparativa e valorativa está presente nas discussões sobre as mais
variadas temáticas das relações raciais no Brasil, onde existiriam dois
discursos distintos sobre a questão racial. A seu ver, discursos antagônicos e
excludentes ' o essencialista do movimento negro, pautado sobretudo na apologia
ao negro norte-americano, e o acadêmico, predominantemente antiessencialista e
antinorte-americano.
Se é importante evitar cair na armadilha do essencialismo, não se deve, por
outro lado, chegar ao extremo oposto e concluir que qualquer dinâmica de
unificação das culturas negras contemporâneas seria incorreta. A
particularidade negra deve ser reconhecida e valorizada nas análises, pois são
definidas por práticas culturais e agendas políticas que conectam os negros na
diáspora. Dessa forma, é importante valorizar as tentativas de localizar as
práticas culturais que vinculam os negros dispersos no Novo Mundo, na Europa e
na África. Para Paul Gilroy (1993), a noção de diáspora ainda é imprescindível
para se conhecer as dinâmicas éticas e políticas da história inacabada dos
negros no mundo moderno. Para o autor, continua sendo fundamental pesar as
similaridades e as diferenças entre as culturas negras diaspóricas.
Valorizar essas conexões, contudo, não significa que as políticas de identidade
devam ser iguais para grupos negros de diferentes países, ou mesmo dentro de um
único país. Se já é problemático pensar em um passado comum para todos os
negros da diáspora, mais complicado ainda é acreditar que o futuro será
resolvido da mesma maneira em todos os lugares. É certo que os movimentos
negros norte-americanos obtiveram grandes conquistas durante as lutas pelos
direitos civis, com o estabelecimento de leis como as das ações afirmativas,
mas lidam também com grandes dificuldades e, acima de tudo, situam-se em um
contexto bastante distinto da realidade socioracial brasileira.
Parece-me que o presente brasileiro não possui nem o conforto ilusório do
passado mítico africano nem a segurança, igualmente ilusória, do modelo de
sociedade "multirracial" dos Estados Unidos. A formação das idéias de
diversidade, etnicidade e "raça", bem como das operações cognitivas pelas quais
o racismo é exercido, se dá dentro do contexto específico de cada nação. Se há
um forte componente transnacional nas identidades negras da diáspora, há também
especificidades regionais e nacionais que criam formas distintas de racismo e,
por conseguinte, de identidades que se constituem em grande parte a partir do
racismo existente. Sabemos que o próprio processo de formação da nação é, em
si, um processo de definição das "raças",8 portanto as estratégias e as
políticas públicas de combate ao racismo precisam ser formuladas de acordo com
tais especificidades.
Salvador da Bahia como cidade mundial' negra
A fim de fazer uma reflexão teórica que vise a superar a centralidade dos
Estados Unidos nos estudos sobre negritude, acredito ser importante recuperar a
noção de diáspora africana como configuração multicentralizada. Para tanto,
examino a posição de Salvador da Bahia enquanto um centro de produção cultural
negra importante para o desenvolvimento de relações negras transnacionais no
continente americano. Analiso as funções específicas exercidas por Salvador
como uma cidade mundial negra, não apenas no estágio atual da globalização ' em
que a Bahia tem adquirido o status de "Meca da Negritude", atraindo um número
cada vez maior de turistas afro-americanos ', mas também o papel dessa cidade
na formação do mundo moderno.
Acredito que a Bahia pode ser considerada uma "cidade mundial" por haver
ocupado na época colonial um espaço urbano de central importância no mundo. As
cidades mundiais definem-se como centros de poder cultural e político na
constituição do sistema de mundo moderno. Possuem diversos significados e uma
grande variedade de papéis, mas são, acima de tudo, zonas de contato, onde
variados grupos se encontram e entram em conflito. Diferentemente das "cidades
globais" (Sassen, 2001), conceito que enfatiza os papéis econômicos das
megalópoles, as cidades mundiais caracterizam-se por sua capacidade de
interferir na hierarquia global da concentração de poder e produção do
conhecimento, o que Anibal Quijano (2000) denomina "colonialidade do poder".
Além disso, enquanto o termo "cidade global" geralmente é usado para definir os
centros econômicos do estágio atual da globalização, marcado pelo aumento do
capital financeiro desde a década de 1970, as "cidades mundiais" têm sido
centrais para o mundo moderno desde o começo da história do capitalismo.
Dentre os muitos lugares da diáspora negra marcados por forte presença cultural
africana, a Bahia tem se destacado por possuir um grande legado de
africanismos. O antropólogo Melville Herskovits, nas décadas de 1940 e 1950,
encantando-se com o manancial de "reminiscências" e "retenções culturais"
africanas na Bahia, classificou-a em alta posição na sua "escala de
africanismos". O candomblé, os ritmos musicais, a capoeira e a culinária do
dendê são os principais exemplos de expressões culturais de origem africana
reelaborados em solo baiano e que têm servido para caracterizar a Bahia como
"negra" e "africana".
Contemporaneamente, além do "estoque de africanismos" que comprovariam a
continuidade histórica com a "Terra-Mãe", a aura de negritude da Bahia tem
resultado também da busca pela reafirmação dos laços com a África, através de
um movimento iniciado nos anos de 1970, quando eram veiculadas as notícias das
lutas pró-independência das então colônias africanas, e quando ainda ecoavam as
mensagens da soul music norte-americana. Foi neste contexto que os movimentos
negros no Brasil começaram a buscar o fortalecimento de seus vínculos com a
África, ainda que isso tenha se dado mais no plano do imaginário e da produção
cultural do que na esfera da política internacional ou da diplomacia. Os
elementos culturais afro-brasileiros foram então ressignificados com o intuito
de reafirmar a ligação com a África-Mãe.
No interior do sistema internacional de trocas de símbolos, idéias e imagens,
há vários centros emanadores de "negritude", além da própria África e dos
hegemônicos Estados Unidos. Ainda restrita a um pequeno raio de alcance, mas
destituída de qualquer grau de timidez, a Bahia tem despontado como um pólo
produtor de símbolos negros, que aos poucos começa a ganhar espaço e afirmar
sua posição nas rotas do Atlântico Negro.
A posição da Bahia como um dos centros do Atlântico Negro teve início ainda
durante o período colonial, quando o tráfico de escravos inseriu
definitivamente o Brasil nas redes do comércio transatlântico. Análises
recentes têm mostrado que a formação do Brasil se deu muito mais em função da
sua relação com a África do que com Portugal. Luís Felipe de Alencastro (2000),
por exemplo, demonstra que a Bahia e o Rio de Janeiro estavam mais conectados a
Luanda e Benguela do que a outras cidades brasileiras do período. Os portos
baianos negociavam com navios estrangeiros muito antes da abertura oficial dos
portos brasileiros. No final do século XVIII, negociantes brasileiros já
dominavam o tráfico de escravos, que passou então a ser organizado a partir da
Bahia, e não mais a partir de Lisboa.
O nome "Bahia" tem sido utilizado tanto por brasileiros como por estrangeiros
para se referir à cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, a capital do
estado da Bahia. Devendo seu nome à baía em torno da qual se localiza o
Recôncavo, bem como à data de todos os santos, quando foi descoberta e batizada
pelos portugueses em primeiro de novembro de 1501, a cidade que aí cresceu
tornou-se conhecida como Bahia. Tanto para os que vivem no interior do estado,
quanto para aqueles que vivem no exterior do país, Salvador tornou-se
internacionalmente conhecida como "Bahia", segundo Pierre Verger (1999a) "como
se outras baías não existissem". Baseando-me nesta designação previamente
estabelecida, tomo a liberdade de utilizar aqui o nome "Bahia" para me referir
a Salvador e às cidades também negras do Recôncavo.
A majoritária população negra da Bahia contribuiu para que viajantes e
exploradores que visitaram a cidade durante os séculos XVIII e XIX a
descrevessem como uma cidade negra, apelidando-a de "Nova Guiné" e
"Negrolândia" (Verger, 1999a). Mais tarde, a Bahia recebeu ainda os títulos de
"Roma Negra" e "Meca da Negritude", designações que apontam para sua condição
central na rede de circulação de povos e símbolos negros. "Roma Negra" e "Meca
da Negritude" são termos que enfatizam claramente o caráter da Bahia como uma
cidade-mundial, primeiro porque destaca sua centralidade no Atlântico Negro '
que, como vimos, é um sistema que permite a existência de muitos centros em sua
configuração diaspórica ' e, conseqüentemente, porque caracteriza a Bahia como
um ponto de convergência, contato e peregrinação.
Ao longo do século XIX, alguns negros baianos emancipados passaram a participar
do comércio com a África. Entre as muitas mercadorias trazidas do golfo do
Benin para a Bahia, destacavam-se produtos usados no candomblé. Penas
vermelhas, tinturas e tecidos eram algumas das mercadorias cobiçadas por
praticantes do candomblé na Bahia, junto com a troca de recados pessoais e
segredos religiosos que conectava pessoas dos dois lados do Atlântico. O
intercâmbio transatlântico feito inicialmente por comerciantes ganhou novos
mediadores com a entrada, no século XX, de pesquisadores, dentre os quais
Pierre Verger tornou-se o mais conhecido. Transportando presentes, mensagens,
objetos e segredos e servindo como um intermediário entre a Bahia e a África
Ocidental, Verger agradou os praticantes mais puristas do candomblé, ansiosos
em se reconectar com a fonte original africana, ao mesmo tempo em que
desagradou os pesquisadores igualmente puristas, que acreditavam que o legado
de "sobrevivências africanas" no Novo Mundo deveria ser cuidadosamente
preservado de modo a ser, por intermédio de suas pesquisas, descoberto e
mapeado. Melville Herskovits, por exemplo, havia ficado bastante incomodado com
as perambulações de Verger e por este ficar carregando tradições de um lado ao
outro do Atlântico, bagunçando assim os pedaços de seu gigantesco quebra-
cabeça: seu laboratório de retenções e sobrevivências culturais. Atualmente,
mães e pais de santo fazem, eles mesmos, suas próprias viagens "de volta" à
África em busca das tradições perdidas. Por outro lado, religiosos do
continente africano, especialmente de cultos bantu, também viajam para a Bahia
para encontrar tradições que se perderam na África mas que foram preservadas
nos candomblés baianos.9
Segundo Vivaldo da Costa Lima, o termo "Roma Negra" teria resultado da
expressão "Roma Africana", cunhada por Mãe Aninha, fundadora do terreiro Ilê
Axé Apô Afonjá. A famosa ialorixá havia declarado à antropóloga Ruth Landes nos
anos de 1940 que a Bahia era a Roma Africana, não apenas por seu grande número
de terreiros de candomblé, mas principalmente pela sua centralidade no culto
transatlântico dos orixás. A metáfora, inspirada pela fé católica da ialorixá,
expressava que, se Roma seria o centro do catolicismo, Salvador seria o centro
do candomblé, portanto uma Roma africana. O termo teria sido traduzido para a
língua inglesa por Ruth Landes em Cidade das mulheres, como Negro Rome e depois
re-traduzida para o português como "Roma Negra".
10
O título de "Meca da Negritude" também deve muito à religião dos orixás e não,
como poderia parecer, à grande presença de escravos muçulmanos trazidos à
Bahia. Trata-se de um termo mais recente e que tem sido promovido
principalmente por militantes negros e produtores culturais de outros estados
do Brasil que consideram a Bahia a principal fonte de cultura africana do país.
Pais e mães de santo de São Paulo e do Rio de Janeiro freqüentemente vinculam a
ancestralidade de seus terreiros, bem como a sua "feitura" religiosa, a
terreiros e ialorixás baianos. O mesmo acontece com grande número de academias
de capoeira, cujos mestres associam o seu aprendizado aos velhos capoeiristas
baianos como forma de conferir legitimidade ao seu jogo. Da mesma maneira, os
fundadores dos primeiros blocos afro têm emprestado seus conhecimentos de
cultura afro-baiana mediante serviços de consultoria a grupos culturais negros
situados em outros estados do Brasil. A aura de negritude da Bahia, apesar de
originada em tempos coloniais, tem sido constante e intensamente reelaborada. A
década de 1970 inaugurou o processo de reafricanização nas esferas do carnaval,
da música, da dança e da estética, estabelecendo a Bahia como a "Meca da
Negritude", reatualizando assim seu significado como centro cultural no
Atlântico Negro.11
Gilroy defende que o processo que criou o negro produziu suas próprias e
específicas contradições. Assim, a música negra, as artes negras e o pensamento
negro radical, seja ele político seja religioso, seriam expressões da vertente
contracultural crítica do Atlântico Negro, a partir do qual se teria gerado uma
contra-interpretação da modernidade. Esta vertente tem suas genealogias e pode
ser mapeada historicamente, reconstruindo laços e pontos de articulação. Um dos
principais aspectos dessa contracultura é a fusão de ética com estética,
estimulando um contra-discurso que se posiciona para além do pressuposto
ocidental da dualidade entre arte e política.12
Para visualizar a Bahia no Atlântico Negro, é necessário considerá-la tanto
como receptora quanto como emissora de objetos, símbolos e idéias que circulam
por estas rotas. Os blocos afro oferecem um bom exemplo dessa "via de duas
mãos", já que surgiram no bojo do processo de formação de uma cultura negra
internacional contemporânea, buscando as nações africanas como referência
histórico-simbólica. Os blocos afro, assim como vários grupos produtores de
cultura negra, utilizam símbolos importados da arena internacional de maneiras
diferentes, atualizando seus significados e modificando suas mensagens. Como em
outros contextos, processos de produção contra-discursiva realizam discursos
estruturados de elaboração de experiência da alteridade, a partir da
ressignificação de elementos da cultura popular transnacional.
É o que parece ter sido preservado da África na Bahia, que tem atraído um
número cada vez maior de turistas negros dos Estados Unidos. Desde a década de
1970, os afro-americanos têm viajado à Bahia para encontrar "africanidade". O
que começou como uma viagem informal de um grupo de amigos se transformou ao
longo das últimas décadas em um mercado estruturado e organizado que inclui
agências de turismo do Brasil e dos Estados Unidos. Chamo este fenômeno de
"turismo de raízes", porque é desenvolvido por pessoas que viajam para
encontrar suas "raízes africanas", estejam elas localizadas no continente
africano ou em países da diáspora com significativas populações negras. Os
"turistas de raízes" afro-americanos buscam conhecer culturas negras
diaspóricas e estabelecer uma conexão com povos afrodescendentes de outras
partes da diáspora. Eles visitam a Bahia a fim de conhecer de perto o que
afirmam ser suas "tradições perdidas". É comum encontrá-los, com suas roupas
africanizadas, tranças e turbantes, nos ensaios dos blocos afro, nos terreiros
de candomblé e nos locais onde as expressões culturais afro-baianas acontecem.
Esses turistas negros vêm à Bahia com a intenção de reencontrar suas "raízes
africanas", que não estariam apenas na África, mas em todos os lugares da
diáspora onde a África tem sido recriada. A autora afro-americana Rachel J.
Christmas, ao descrever uma dessas visitas, descreve o "pulso africano" que a
Bahia oferece para os afro-americanos:
Nós sentimos o pulso africano na batida do samba, conhecido como
semba em Angola; engolimo-lo com a comida condimentada, feita com
castanhas, leite de coco, gengibre e quiabo, também usados na cozinha
africana; testemunhamo-lo nas cerimônias de Candomblé, enraizado na
religião dos iorubás da Nigéria; ouvimo-lo no musical sotaque
iorubano do português falado no estado da Bahia. [...] Hoje, os
baianos estão muito mais conscientes de suas origens do que estão os
afro-americanos (Christmas, 1992, pp. 253-254).13
Por meio de sua produção cultural, os blocos afro exercem um papel fundamental
nas novas formas tomadas pelo movimento negro contemporâneo, contribuindo para
moldar a imagem da cidade da qual fazem parte e servindo como referência
importante para outras organizações negras do Brasil e de outras partes do
mundo. A estética, os ritmos musicais e diversos outros elementos que compõem
as narrativas dos blocos afro certamente foram influenciados por discursos e
símbolos que atravessaram o Atlântico Negro, mas é fundamental perceber que,
assim como recebem influências, os blocos afro também recriam, ressignificam e
produzem elementos novos que participam do cenário negro contemporâneo e
internacional. Os blocos estão criando novos objetos de negritude que têm o
gosto do passado, da tradição, da africanidade, correspondendo imediatamente ao
que é buscado pelos turistas afro-americanos.
Exatamente por se tratar de uma troca simbólica transnacional, não podemos
ignorar que a Bahia não apenas importa elementos da cultura negra universal
para incorporá-los e atribuir a eles novos significados, mas está inserida no
contexto da cultura negra mundial também como criadora e exportadora de
símbolos étnicos negros. Nesse contexto, a cidade de Salvador tem se tornado um
referencial de africanidade para negros de outros países da diáspora africana.
Se, por um lado, a Bahia busca objetos negros modernos no mercado
internacional, por outro, especializa-se em vender tradição.
Pode-se considerar a presença cada vez mais constante dos "turistas de raízes"
como uma importante rede de circulação dos objetos da cultura negra, já que
eles conferem status de modernidade e de etnicidade a expressões da cultura
afro-baiana. Algumas expressões tornam-se mais étnicas do que nunca em função
do carimbo batido por esses turistas sequiosos por encontrar suas raízes. Eles
trazem formas de vestir, de falar e de pensar que seduzem boa parte dos negros
brasileiros, e muitos fazem essas viagens com o intuito de trocar sua
"modernidade" ' representada principalmente pelas conquistas obtidas pelos
movimentos dos direitos civis ' pela "tradição" africana da Bahia ' encontrada
nas expressões culturais afro-baianas ', como foi explicitado por vários
deles.14 Exemplo disso pode ser conferido na seguinte afirmação feita por uma
turista afro-americana em uma de suas roots-trip a Cachoeira:
Nós (negros americanos e negros brasileiros) temos uma grande gama de
coisas para trocar uns com os outros. Quando nós vimos para a Bahia,
estamos aqui para aprender sobre a nossa própria história e nossa
origem comum, porque as tradições africanas foram capazes de
sobreviver aqui. Mas vocês também têm muito que aprender conosco,
sobre a nossa história de direitos civis, porque, nesse ponto,
estamos muito à frente de vocês.15
É importante ressaltar que embora os afro-americanos venham ao Brasil em busca
do seu "passado", das suas "tradições perdidas", o processo mesmo de "invenção
das tradições" representa um exemplo que caracteriza a construção das
identidades como inseridas na modernidade.16 Quando uma tradição é invocada,
como no caso das "tradições africanas", torna-se evidente que já se está, pelo
menos parcialmente, fora dela. Ela se torna um objeto a ser retrabalhado e
reinvocado. Os estudos sobre "invenções de tradições", primeiramente
sistematizados por Hobsbawm e Ranger (1984) e Benedict Anderson (1989),17 têm
mostrado que as tradições são criadas no presente, refletindo muito mais os
interesses de um dado grupo do que uma suposta "essência cultural".18
Os movimentos negros nas Américas situam-se em um contexto de emergência de
novas identidades coletivas que não se limitam necessariamente ao modelo dos
Estados-nação. Muitas dessas identidades, até então acanhadas, moveram-se para
o centro das sociedades às quais pertencem e, freqüentemente, para a arena
internacional. As novas identidades contestaram a hegemonia das identidades
dominantes e passaram a exigir um espaço nas arenas institucionais, redefinindo
o conceito de cidadania e dos direitos (Eisenstadt, 2000). Embora muitas vezes
baseiem seu discurso na tradição, essas identidades são modernas, já que pregam
a reconstrução da personalidade e das identidades individuais e coletivas por
meio da ação humana consciente, da agency, vista como capaz de transformar o
indivíduo e a sociedade e de estabelecer uma nova ordem social.
Eisenstadt comenta sobre o lugar comum de entendermos as influências ocidentais
em países como Índia ou China como sendo a própria "chegada da modernidade".
Confundimos assim Ocidente com modernidade. É possível fazer uma analogia e
afirmar que, da mesma maneira, tomamos "negritude estadunidense" como sinônimo
de "negritude moderna", em contraposição a outras formas de negritude, tidas
como tradicionais, a exemplo das negritudes existentes na África e na América
Latina. Contudo, apesar das ideologias de pureza, as formas culturais
diaspóricas não podem ser antimodernas, porque sua existência pressupõe redes
transnacionais construídas a partir de múltiplos anexos formados na
modernidade.
Como indica Eisenstadt (Idem), a incorporação das chamadas "idéias importadas"
não precisa ser vista como imitação, já que tem possibilitado importantes
inovações. Dessa maneira, os programas culturais da modernidade são
reinterpretados por grupos que elaboram os seus próprios discursos,
construindo-se assim múltiplas modernidades. Esses movimentos têm dissociado
modernidade de ocidentalização, rejeitando o monopólio ocidental sobre a
modernidade e retirando o programa cultural ocidental do posto de epítome da
modernidade. Da mesma maneira, é possível dissociar a modernidade ou, no nosso
caso, a negritude moderna, do monopólio estadunidense sobre a negritude.
É importante ressaltar que na troca de objetos e símbolos no sistema Atlântico
Negro, há uma hierarquia que não pode ser ignorada. O Brasil importa objetos
negros que têm aura de modernidade e exporta objetos negros que têm aura de
tradição. A globalização centra-se mais sobre trocas verticais do que
horizontais.
Não obstante, por enquanto, em termos de fluxos globais de símbolos e
mercadorias na base da cultura negra internacional, Salvador mantém
uma posição periférica. Em relação aos centros de produção e
transmissão da maioria desses símbolos e dessas mercadorias, Salvador
pertence ao extremo da recepção, aos enormes interiores do Atlântico
Negro. Os centros estão situados no mundo anglófono [...] (Sansone,
2000, p. 14).
Os principais motivos disso são a fraca posição do Brasil na economia mundial e
na geografia do poder e o domínio norte-americano e europeu sobre a circulação
mundial dos paradigmas científicos sobre "raça", numa globalização em que o
Brasil ainda representa muito mais uma periferia consumidora (Idem).
Ainda assim, é preciso levar em conta que uma das principais contribuições da
teoria do sistema Atlântico Negro tem sido a de revelar que a diáspora negra
não tem um único centro emanador de símbolos, imagens e idéias. Além da nobreza
do Egito e da Etiópia, e do "conhecimento fundamental" dos povos "tribais" do
Oeste africano, existem outros pólos de africanidade ou, ao menos, de
negritude, e eles estão localizados fora da África Mãe, ou para além da
hegemonia do mundo anglófono. É importante considerar que os caminhos estão
sendo abertos e que os canais de comunicação e circulação estão constantemente
se criando para novas direções. Nas novas rotas que têm sido trilhadas por
aqueles que buscam signos de negritude para compor suas identidades, a Bahia
confirma sua condição de centro emanador de cultura negra na diáspora africana,
reatualizando uma posição que, como vimos, teve início ainda no período
colonial.
A radiação externa da Bahia como uma cidade mundial negra deve ser examinada
então sob uma perspectiva histórico-mundial que leve em consideração os
elementos de continuidade e ruptura em relação às hierarquias modernas de
poder, riqueza, valorização e reconhecimento, examinando como esses elementos
afetam os contextos específicos dos locais distintos em que vivem as
comunidades negras. O estudo das relações negras transnacionais deve considerar
o quanto a configuração global do poder interfere nas relações entre negros que
vivem nos países superpoderosos e aqueles que vivem nas periferias e
semiperiferias. Por isso mesmo, ao analisar as relações entre negros
brasileiros e afro-americanos dos Estados Unidos, levo em consideração a
dominação deste país como principal centro emanador de negritude na diáspora,
além de ponderar sobre os acessos desiguais ao poder por aqueles localizados no
centro e nas margens. Por outro lado, considero o turismo de raízes um canal de
comunicação e troca que desafia, ao menos em parte, a supremacia dos Estados
Unidos na diáspora africana, já que promove a existência de outros centros de
negritude e africanidade. Como conseqüência, Salvador da Bahia, situada num
país lusófono do hemisfério Sul, re-emerge como uma "cidade mundial",
expandindo o mapa do Atlântico Negro ao mesmo tempo em que desafia a hierarquia
de sua configuração. É exatamente esta habilidade de perturbar a colonialidade
do poder que confirma seu status de cidade mundial.
Conclusão
A intenção deste artigo é contribuir para o estudo da negritude no Brasil a
partir de uma perspectiva que teoriza a negritude em suas muitas e variadas
versões, rejeitando a noção de que haveria uma fórmula exclusiva ' ou mais
avançada ' de negritude. A diáspora africana moderna é marcada pela existência
de vários centros emanadores de símbolos, objetos, idéias e teorias. Se
conseguirmos teorizar para além da unicentralidade, nossos estudos
possibilitarão substituir relações hierarquizadas por diálogos mais
equilibrados.
Para Carole Boyce Davies (1999), a unicentralidade dos movimentos negros
afrocentristas, isto é, a crença de que haveria um único centro do qual tudo
emana, centraliza algumas experiências e marginaliza outras, sendo, portanto,
passível de se transformar em projetos colonialistas e mesmo fascistas, já que
a crença num único centro permite o domínio e o controle.19 Eisenstadt (2000)
também aponta para o fato de que, em vários movimentos tidos como "pós-
modernos" ou "multiculturais", têm se desenvolvido orientações fortemente
totalitárias, a exemplo do patrulhamento do "politicamente correto".
A solução para evitar o totalitarismo seria então a defesa das variadas
escolhas de pensamento e a abertura para a criação de novos paradigmas que
levem em conta as desigualdades históricas, por meio de análises radicais das
relações de poder. Para tanto, é preciso livrar-se da superficialidade e do
maniqueísmo que geralmente imperam nos usos de expressões importantes como
multiculturalismo, diversidade e multicentralidade.
A inversão de valores não significa necessariamente a transformação das
relações de poder, já que o afrocentrismo, como "oposição imediata" ao
eurocentrismo, não desloca os Estados Unidos da posição de centro hegemônico
mundial. Ou seja, se o maior herdeiro do eurocentrismo é o "US-centrismo"
(Davies, 1999), este é também o principal beneficiado do próprio afrocentrismo,
já que ambos utilizam os mesmos instrumentos (mídia e mercado) para garantir
aos Estados Unidos ser o centro emanador das narrativas. Um dos principais
desdobramentos disso pode ser percebido nas análises feitas sobre o racismo e
as relações raciais no Brasil, nas quais a sociedade estadunidense aparece
freqüentemente como o modelo a ser seguido, como o lugar onde os negros seriam
mais "evoluídos", seja em termos de direitos civis, seja mesmo pelo fato de
constituírem a maior classe média negra no mundo.
Ao criticar as teorias unicentristas, Paul Gilroy (1993) defende que a diáspora
negra, em vez de centrada na África como terra-mãe, ou nos Estados Unidos como
pólo exportador dos modelos de etnicidade, possui vários centros espalhados
pelo Atlântico Negro. Em seu livro, The Black Atlantic: modernity and double
consciousness, o autor desenha uma diáspora negra multicentrada e constituída
por infinitas variações de cultura negra, impossíveis de serem reduzidas a
tradições étnicas ou nacionais, combatendo, dessa forma, os paradigmas do
"absolutismo étnico", bem como a centralidade dos discursos afro-americanos. A
noção de Atlântico Negro representa, portanto, uma nova maneira de se pensar a
diáspora africana em sua relação com o pensamento, a economia e a cultura
ocidental.
Uma das principais contribuições desta teoria é a maneira alternativa de se
entender a "diáspora", concebida como algo dinâmico que proporciona o
surgimento de contra-poderes, os quais têm desafiado soberanias territoriais e
crenças em identidades absolutas. Entendido dessa maneira, o conceito de
diáspora permite que se possa ir além da geografia e da genealogia, da natureza
e da cultura, porque rejeita a crença em nacionalidades e racialidades que
seriam geradas espontaneamente, oferecendo-se como uma alternativa à noção
metafísica de uma "raça" que determinaria uma suposta cultura inscrita no corpo
e na cor (Gilroy, 2000, p. 123). Assim, os sentidos dinâmicos de rede de
multiplicidade, comunicação e interação tornam as identidades negras
explicitamente contrárias aos pensamentos nacionalistas ou aos que invocam um
único centro emanador de negritude, autenticidade e verdade.
A própria idéia de modernidade carrega em si a noção de que há muito mais
espaço para a agency humana e que, portanto, há muitos futuros possíveis. A
atividade humana consciente é, então, vista como sendo capaz de formar e
interferir na sociedade, fortalecendo a crença da realização das utopias e da
construção do bem comum por meio da atividade dos indivíduos e dos grupos. Na
modernidade, a definição de "bem comum" está sujeita a múltiplas interpretações
e é passível de ser influenciada por grupos distintos. Além do fortalecimento
da arena política, a modernidade caracteriza-se também por um modo distinto de
definição das coletividades e das identidades coletivas (Eisenstadt, 2000).
Inicialmente imaginadas como delimitadas às fronteiras nacionais, as
identidades coletivas multiplicaram-se e expandiram-se (ou reconheceram sua
expansão) para além dos limites da nação. As conexões negras transnacionais
são, no meu entender, um exemplo disso.
Embora não pretenda transpor na íntegra o conceito de "modernidades múltiplas"
de Eisenstadt, para quem foram desenvolvidos "tipos alternativos" de
modernidade para além do Ocidente, parece-me apropriado aproveitar, para o
assunto aqui tratado, a noção de que as diferentes experiências vividas (neste
caso, por afrodescendentes em pontos distintos da diáspora) têm possibilitado
variadas modernidades no interior do próprio mundo ocidental. A eleição da
negritude estadunidense como referência máxima para se pensar a negritude no
Brasil deve ser analisada como parte da nossa tendência de nos vermos a partir
da margem; a princípio à margem da Europa e, contemporaneamente, à margem dos
Estados Unidos. Evidentemente, a inclinação dos Estados Unidos em verem-se a si
mesmos, e cada vez mais, como o centro da modernidade no mundo contemporâneo
também deve ser levada em conta na análise da hegemonia norte-americana nas
teorias sobre negritude no Brasil.
Se modernidade, contudo, envolve dessacralização, por que haveríamos de tornar
sagrados alguns modelos e experiências em detrimentos de outros? É preciso
insistir no reconhecimento da diversidade de experiências no interior da
diáspora africana. Se seus pontos comuns asseguram uma certa unidade, por outro
lado, as diferentes histórias vivenciadas por afro-descendentes em lugares
distintos indicam a necessidade de um maior e mais equilibrado diálogo, em
lugar de uma padronização linear.
Notas
1 "Wounded character of politicized identity's desire" (Brown, 1995, p. 15).
2 Utilizo a expressão movimento negro contemporâneo para me referir às
organizações negras que surgiram no Brasil a partir da década de 1970 e que têm
na "raça negra" o seu caráter mobilizador e organizador. Não me refiro,
portanto, a uma entidade negra em particular, mas às organizações negras
brasileiras contemporâneas de uma maneira geral.
3 É importante lembrar, contudo, que a bipolaridade (negros versus brancos) não
foi sempre o padrão na política racial estadunidense. Dois censos realizados no
final do século XIX incluíam as classificações: "mulatto", "quarteroon" e
"octoroon". Além disso, a designação "latino", existente desde a década de
1960, trouxe mudanças significativas para o sistema de classificação racial dos
Estados Unidos. Agradeço ao historiador Darien Davis por estas informações.
4 Para uma crítica à noção da democracia racial como "máscara", ver Peter Fry
(1982, 1991, 1995, 1997, 2000).
5 "A importância variada da cor nas diversas regiões do Brasil assim como a sua
percepção e categorização, seja no mercado de trabalho, seja nos locais de
residência e de trabalho, mostram justamente que a cor nada mais é que a marca
corpórea da raça, ou, para dizer de outro modo, a sua codificação. A
importância da cor parece variar justamente em função do peso demográfico dos
negros nas diversas regiões e nas diversas situações em que competem com os
brancos" (Guimarães, 1995, p. 57).
6 A esse respeito, ver Hooks (2000), Gilroy (2000) e Appiah (1997), entre
outros.
7 Sobre o passado africano, vale lembrar que os intelectuais do pan-africanismo
foram os primeiros a veicular em larga escala a idéia de que os negros do mundo
compartilhariam de uma mesma origem e, portanto, de um passado africano comum.
Contudo, embora se posicionassem como contrários ao pensamento ocidental, os
pan-africanistas adotaram as mesmas armas do Ocidente para criar uma "cultura
negra/africana" que seria compartilhada por todos os negros na diáspora. As
tradições inventadas, importadas da Europa, ofereceram não apenas modelos de
comando aos brancos, mas forneceram a muitos africanos modelos de comportamento
moderno.
8 No caso do Brasil, de uma "raça mestiça" fundada na "fábula das três raças"
(Da Matta, 1984). Esse mito brasileiro pode ser considerado um paradigma de
inclusão, que emana tanto por parte dos que controlam o Estado, como por
aqueles que são oprimidos por ele.
9 Membros da ACBANTU (Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu),
ONG baiana que tem por objetivo principal contribuir para o resgate das
tradições de origem bantu e manter intercâmbio com entidades congêneres no
âmbito nacional e internacional, comentaram sobre a vinda de angolanos para a
Bahia, em busca de tradições bantu que foram "perdidas" na África, porém
"preservadas" na Bahia.
10 Correio da Bahia, 10 mar. 2004 (Andréia Santana).
11 A construção de uma imagem negra e africana da Bahia também contou com a
participação de pesquisadores e escritores. Sobre a importância de Gilberto
Freyre e Jorge Amado na formação da baianidade, ver Pinho (no prelo). Mais
recentemente, a imagem negra da Bahia tem sido produzida também, de modo
estratégico, pelo próprio Governo do Estado (ver Pinho, 2004).
12 A música e as práticas culturais e sociais de origem africana na diáspora
são portadoras, ao mesmo tempo, da utopia de um mundo melhor e de uma crítica
profunda ao capitalismo e ao Ocidente. O que se verifica de diversas formas, em
diversos pontos do Atlântico Negro seria, então, uma interpretação baseada na
separação entre política e cultura, forjada no pensamento europeu, porém
distante da realidade da diáspora. O Caribe, a África, a América Latina e a
América do Norte contribuíram para que se pudesse formar uma identidade racial
negra transnacional. O contexto urbano, no qual suas expressões culturais foram
criadas, propiciou o apelo estilístico em que se baseiam as identificações
étnicas locais. A criação e as trocas transnacionais dos símbolos étnicos
negros representam peças fundamentais para a constituição das narrativas e dos
discursos de negritude com os quais os grupos negros expressam suas lutas e
experiências (Gilroy, 1993).
13 A idéia de que os negros na Bahia ou no Brasil teriam mais consciência
(awareness) sobre a sua origem africana está bastante presente no imaginário do
militante negro norte-americano, como pode ser percebido no depoimento do
rapper M1, da banda norte-americana Dead Prez: "Quando eu penso no Brasil,
penso em gente preta falando português, entendeu? Eu penso em africanos, penso
na África [...]. Eu sinto que eles estão mais próximos ou mais conectados à
África. Eu vejo um passo ganho na força do povo preto. Na espiritualidade do
povo de lá eu vejo um passo ganho na resistência contra a dominação colonial,
no entendimento da importância da África, vejo uma estratégia a menos de
lavagem cerebral que tem sido aplicada aqui [...]", Revista Rap Internacional,
1 (3), 2001.
14 Conforme mencionado anteriormente, a noção de que a experiência negra dos
Estados Unidos seria mais "moderna" do que a brasileira encontra respaldo
também em algumas formulações teóricas norte-americanas, a exemplo de Walker
(2002).
15 Informações colhidas em entrevistas com turistas afro-americanos em
Cachoeira - BA, ago. 2000.
16 Há que se reconhecer, portanto, os significados políticos contidos na forma
como se concebem as tradições e se recria o passado. "O passado continua a nos
falar. Mas já não é como um simples passado factual que se dirige a nós, pois
nossa relação com ele, como a relação de uma criança com a mãe, é sempre já
'depois da separação'. É construído sempre por intermédio de memória, fantasia,
narrativa e mito. As identidades culturais são os pontos de identificação, os
pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos
da cultura e da história. Não uma essência, mas um posicionamento. Donde haver
sempre uma política de identidade, uma política de posição, que não conta com
nenhuma garantia absoluta numa 'lei de origem' sem problemas, transcendental"
(Hall, 1996, p. 70).
17 Respectivamente, A invenção das tradições e Comunidades imaginadas.
18 Embora amplamente adotada pela academia, a teoria da "invenção das
tradições" tem recebido críticas também por parte de alguns estudiosos, que
questionam, sobretudo, a autoridade do pesquisador para afirmar a "veracidade"
ou não de uma tradição. Para o antropólogo Charles Briggs (1996), por exemplo,
o pesquisador não tem o direito de tirar o poder do nativo de se autodefinir e
de decidir sobre como se deve agir política e culturalmente.
19 Sobre o unicentrismo em movimentos negros, Gilroy afirma: "Temos visto que
as formações autoritárias e proto-fascistas da cultura política negra do século
XX têm sido constantemente estimuladas por um desejo intenso de recuperar as
glórias perdidas do passado africano. O desejo de restaurar essa grandeza
longínqua nem sempre tem coincidido com um entusiasmo equivalente em remediar a
situação difícil da África no presente" (2000, p. 323).