Luta anti-racista: entre reconhecimento e redistribuiçao
Introdução
Nas últimas décadas, as discussões em torno de temáticas como
multiculturalismo, direitos culturais ou políticas afirmativas, que visam a
reabilitar grupos sociais discriminados, ganharam uma projeção inusitada,
tornando-se muitas vezes, em alguns países, o principal eixo do debate público.
Com isso, as lutas de grupos minoritários por reconhecimento social e pelo
estabelecimento de uma ação estatal que combata a discriminação, favoreça a
igualdade e permita a convivência entre populações de origens culturais e
étnicas diferentes fazem parte da paisagem político-cultural do mundo
contemporâneo.
As repercussões desse contexto social, político e ideológico sobre a teoria
social são visíveis na importância que o conceito de reconhecimento vem
ganhando nas últimas décadas, seja na filosofia e na ciência política, na
sociologia e nos estudos culturais, seja ainda na antropologia e no direito.
Apesar disso, não é sem razão que Paul Ricoeur (2004) constatava a ambigüidade
e a falta de unidade no uso do conceito de reconhecimento. Embora presente em
diversas tradições teóricas, não há um consenso sobre sua importância no campo
das idéias: à inflação de autores e obras reivindicando-se do reconhecimento
não corresponde uma unidade de pontos de vista sobre seu estatuto e sobre o
lugar que ele deve ocupar nas explicações sobre a vida social.
Mesmo considerando a pertinência epistemológica dessas considerações, é preciso
admitir que os debates ligados ao reconhecimento são uma das vertentes mais
dinâmicas da filosofia e das ciências humanas contemporâneas,1 além de
expressar o impacto empírico do fenômeno no mundo atual.
Apenas em parte a proeminência da temática do reconhecimento pode ser imputada
à emergência, desde os anos de 1960, de movimentos sociais que usavam os
discursos da identidade e do reconhecimento como catalisadores da mobilização
(Wieviorka, 2001). Também o enfraquecimento das teorias e dos regimes políticos
reivindicando-se do marxismo, que não viam as questões culturais senão sob o
ângulo da luta de classes, ajuda-nos a compreender a proeminência teórica dessa
temática a partir dos anos de 1980. Nesse sentido, pode-se afirmar que as
discussões sobre o reconhecimento e o multiculturalismo passaram a ocupar o
espaço teórico deixado vago pela crise do pensamento marxista.
Esta é, certamente, a razão que leva Nancy Fraser (1997), em uma série de
artigos polêmicos, a reconhecer que estamos em uma era pós-socialista e a
denunciar a passagem das ciências humanas do paradigma da distribuição ao
paradigma do reconhecimento, em que as questões de identidade ganham prioridade
em relação às questões de justiça social.
No fundo, a crítica de Fraser toca na questão de que muitos autores e
movimentos sociais passaram a privilegiar a construção ou a preservação
identitária, relegando a um segundo plano as demandas materiais, justamente em
uma época histórica em que as desigualdades sociais crescem velozmente em todas
as partes do mundo.
Neste texto pretendemos discutir essas questões a partir do caso empírico das
lutas anti-racistas desenvolvidas por militantes negros no Brasil. Para isso,
em um primeiro momento retraçaremos os termos da polêmica dos últimos anos
entre os defensores das teorias do reconhecimento e os que defendem as teorias
redistributivas na filosofia política e nas ciências sociais, tentando mostrar
o interesse teórico de rediscutir essa questão em termos de uma cidadania
multicentrada.
Em um segundo momento, analisaremos as estratégias desenvolvidas pelo movimento
negro no país. O objetivo aqui é o de mostrar que, em parte, os impasses
políticos desse movimento devem-se ao fato de que ele não conseguiu articular
de forma pertinente as demandas por reconhecimento às demandas por
redistribuição.
Redistribuição ou reconhecimento? Os termos de um debate
O interesse atual em torno das teorias do reconhecimento pode ser inserido no
longo processo histórico da modernidade que, desde os seus primórdios, elegeu a
liberdade e a igualdade como alicerces da vida política. A hipótese de
Tocqueville (1981), de que as sociedades modernas caminhavam de forma
inelutável para o igualitarismo e para a democracia, parece assim servir de fio
condutor das transformações sociais, políticas e culturais dos últimos séculos.
Assim, pode-se dizer que há uma linha de continuidade entre a idéia de
liberdade, que esteve na base da constituição do Estado liberal democrático nos
séculos XVII e XVIII, os princípios igualitaristas, que animaram as lutas
sociais dos séculos XIX e XX pela expansão da cidadania das classes populares,
e as demandas de reconhecimento social dos grupos que tentam mudar o imaginário
sobre o lugar que ocupam na sociedade.
Isso nos remete às chamadas políticas do reconhecimento, que desde os anos de
1960 se tornaram o dínamo de muitos movimentos sociais. A premissa básica para
os autores que desenvolvem uma teoria pautada no reconhecimento é que este é
fundamental para o processo de formação da identidade pessoal e que, por isso,
deve ser considerado um importante critério de justiça em uma sociedade.
No campo teórico, o reconhecimento tornar-se-á um tema importante na crítica
que alguns autores ' Taylor (1982), Sandel (1982), Walzer (1983), entre outros
' endereçarão às teorias de justiça distributivas que, na esteira dos trabalhos
fundamentais de John Rawls (1971), vão se desenvolver a partir das décadas de
1970 e 1980. O que estava em questão eram os critérios a ser considerados
válidos para a definição de uma sociedade justa. Sem entrarmos aqui em detalhe
sobre um debate que tem sido um dos mais interessantes da filosofia e da
ciência política das últimas décadas,2 podemos afirmar que há duas grandes
correntes teóricas: de um lado os autores ditos "liberais" que, embora defendam
pontos de vistas antagônicos, têm em comum o fato de imputar à justiça
distributiva a determinação do grau de justiça de uma sociedade; de outro, os
comunitaristas, críticos dos princípios individualistas e etnocêntricos
propostos pelos "liberais", afirmam que as análises dos critérios de justiça
precisam levar em conta o caráter social da identidade humana, o que significa
levar em conta aspectos morais e simbólicos na construção de uma teoria da
justiça.3
Em outros termos, para os autores comunitaristas, a primazia dada pelas teorias
distributivistas à distribuição dos bens na sociedade escamoteia o fato de que
muitas vezes as injustiças não são econômicas, mas morais. Ou seja, nessa
perspectiva, é possível pensar situações em que, malgrado uma certa igualdade
distributiva, alguns grupos possam se sentir oprimidos ou discriminados.
Para Taylor, um dos primeiros filósofos a retomar a discussão acerca do
reconhecimento, este deve ser visto como uma necessidade dos seres humanos na
busca da auto-realização:
[...] nossa identidade é particularmente formada pelo reconhecimento
ou por sua ausência, ou ainda pela má impressão que os outros têm de
nós: uma pessoa ou um grupo de pessoas pode sofrer um prejuízo ou uma
deformação real se as pessoas ou a sociedade que o englobam remetem-
lhe uma imagem limitada, aviltante ou desprezível dele mesmo. O não-
reconhecimento ou o reconhecimento inadequado podem causar danos e
constituir uma forma de opressão, que a alguns torna prisioneiros de
uma maneira de ser falsa, deformada e reduzida (Taylor, 1992, pp. 41-
42).
Nessa perspectiva, que Taylor faz remontar a Rousseau e a Hegel, o
reconhecimento torna-se fundamental na medida em que a modernidade, por meio do
individualismo e do igualitarismo que a caracterizam (Taylor, 1989), cria a
expectativa de que todos podem aspirar a um igual reconhecimento por parte da
sociedade e do Estado.
Adotando um quadro interpretativo próximo, Axel Honneth (1997 e 2002) afirma
que o reconhecimento da dignidade individual de todos os membros da sociedade
deve ser considerado o principal critério válido de justiça. Da mesma forma que
Taylor, Honneth cruza as teses hegelianas sobre o reconhecimento com os
princípios interacionistas oriundos da psicologia social de Georges Mead para
demonstrar que, estando a socialização dos sujeitos ligada às interações
sociais nas quais eles se envolvem, a personalidade individual depende do
reconhecimento recíproco dos indivíduos na sociedade. Com isso, uma das formas
de avaliar o nível de progresso moral de uma sociedade é verificar o grau de
reconhecimento que ela concede aos seus membros. Para ele, o reconhecimento é
não apenas um fundamento ético do ser humano, como também a base de compreensão
de muitas lutas sociais, atuais e do passado, que foram fatores primordiais na
ampliação da eqüidade no mundo contemporâneo.
Nesse sentido, as lutas por reconhecimento teriam sido esquecidas pelas
ciências sociais (Honneth, 1997). Estas não levaram em conta a importância
dessas lutas no processo de transformação das sociedades modernas, agindo no
sentido de diminuir mais e mais as dessimetrias sociais e as formas de
exclusão, mediante três princípios fundamentais de reconhecimento mútuo: o amor
(no espaço privado das relações pessoais), a igualdade (no espaço dos direitos
instituídos) e a solidariedade (no espaço das relações sociais
interdependentes).
Conquanto essas três dimensões do reconhecimento se interpenetrem, é a esfera
dos direitos que tem a capacidade de influenciar as outras esferas, quer seja
no nível das relações pessoais e amorosas, quer no nível da cooperação que os
indivíduos estabelecem em suas relações sociais. Com isso, Honneth tenta
afastar-se de uma visão do reconhecimento centrada apenas na estrutura
psicológica individual, incorporando uma postura que privilegia o caráter
normativo do direito moderno.
Para ele, ainda, o reconhecimento deve ser visto, em nome da autonomia
individual, como o "centro normativo de uma concepção da justiça social". Ou
seja, sendo o reconhecimento a base para que os indivíduos possam construir
"identidades intactas" ' por meio de uma vida afetiva escolhida, do acesso
igual aos direitos e da estima social ', ele pode ser visto como a base de uma
justiça social expandida.
Ao adotar tal posição, Honneth (2002) assume também duas premissas: a da
superioridade moral da modernidade (em que a autonomia individual atingiu seu
ponto mais elevado) e a da legitimidade das modernas sociedades democráticas
liberais de se apresentarem como o ponto de partida para uma ética política.
Essa postura mostra o quanto a questão do reconhecimento é tributária das
transformações socioeconômicas e políticas das últimas décadas. O crescimento
dos movimentos identitários (Wieviorka, 2001), a crise do Estado de bem-estar
social (Rosanvallon, 1995), a queda dos regimes comunistas, a fragilização do
poder estatal pela globalização econômica (Beck, 2003) etc. são o pano de fundo
da emergência de uma nova concepção de justiça, em que, mais que a distribuição
igualitária dos bens, é a questão da dignidade e do respeito que importa.
A erradicação da desigualdade não representa mais o objetivo
normativo, mas é antes a obtenção da dignidade ou a prevenção do
desprezo, a "dignidade" ou o "respeito", e não mais a "repartição
igualitária dos bens" ou a "igualdade material" que constituem suas
categorias centrais (Honneth, 2002).
O que leva Nancy Fraser (1997) a falar da passagem de um paradigma da
redistribuição para um paradigma do reconhecimento. Para a autora, esse
fenômeno é típico de uma época pós-socialista, fruto da crise do socialismo e
da inexistência de projetos alternativos à democracia liberal e ao capitalismo.
A seu ver, é preciso romper com a dicotomia das teorias da justiça
contemporâneas, as quais ou privilegiam as injustiças socioeconômicas ' como o
fazem os autores que pregam uma justiça pautada na redistribuição dos bens,
como Rawls (1971) ou Sen (2001), por exemplo ', ou se restringem às injustiças
culturais, como Taylor (1992), Honneth (1997) ou Young (1990). Para Fraser, que
toma as questões de raça e de gênero como paradigmáticas, "os eixos da
injustiça são simultaneamente culturais e socioeconômicos", razão pela qual é
necessário unir os critérios de redistribuição e de reconhecimento na
construção de uma sociedade justa.
Para superar esse dilema, a autora propõe a conjunção de uma política econômica
socialista (capaz de reduzir as diferenças sociais e econômicas entre os
membros de uma sociedade) e uma política cultural desconstrutivista, o que
levaria não ao reforço das identidades, como buscam os movimentos culturais
atuais, mas à desconstrução das mesmas, ajudando assim a superar as lógicas
geradoras das diferenças e da subordinação das minorias.
Na sua perspectiva, a adoção de tal postura teria o mérito não só de
possibilitar o combate simultâneo das injustiças sociais e culturais, como
também possibilitaria a construção de coalizões entre os grupos subalternos e
discriminados na sociedade, o que, segundo ela, as políticas das identidades,
ao reforçar as diferenças, tornam difícil.4
Em trabalhos posteriores (Fraser, 2000 e 2001), a autora vai propor um modelo
interpretativo baseado no status (status model) para compreender as demandas
por reconhecimento, pois a seu ver
[...] o que necessita reconhecimento na sociedade do conhecimento não
é a identidade específica do grupo, mas o status dos membros
individuais do grupo como verdadeiros parceiros nas interações
sociais. O não-reconhecimento, nesse sentido, não significa a
depreciação ou a deformação da identidade do grupo. Ou melhor,
significa subordinação social no sentido de que barra a alguns o
acesso à vida social como iguais (2001, p. 8).
Desse modo, um modelo interpretativo pautado no status teria a vantagem de
evitar a reificação das identidades5 e de facilitar a compreensão da justiça
tanto em termos distributivos como de reconhecimento.
As críticas mais importantes a essas teses versam sobre a dicotomia entre
justiça redistributiva e justiça pautada no reconhecimento. Young, por exemplo,
critica a separação entre economia e cultura, que embasa essa dicotomia. Para
ela, numa linha próxima aos trabalhos de Pierre Bourdieu sobre a reprodução
social, não se pode separar a cultura da economia, pois são inúmeras as
interconexões entre ambas. Razão pela qual, sob sua ótica, Fraser não teria
percebido "o reconhecimento cultural como um meio para a justiça econômica e
política" (Young, 1997, p. 148).
Além disso, ela critica as propostas de Fraser de coalizões baseadas na
desconstrução das identidades. Segundo ela, uma visão desconstrutivista das
identidades não é possível na prática, pois as mobilizações coletivas se dão em
torno de demandas de grupos com identidades próprias. Nesse sentido, as
coalizões só são possíveis com o reconhecimento mútuo dos grupos, mas isso não
significa que cada grupo deva abdicar de sua identidade. Ao contrário, é pela
afirmação de sua identidade que um grupo pode se apresentar como igual diante
de outros grupos, abrindo espaço para ações conjuntas.
Nesse mesmo sentido, Honneth responde a Fraser que não somente as lutas por
reconhecimento englobam as lutas por justiça redistributiva, como também é uma
ética pautada no reconhecimento que, por abordar outros aspectos que não o
econômico, permite uma concepção de justiça mais ampla e associada aos
princípios democráticos (Fraser e Honneth, 2003).
Essa prioridade aos direitos individuais e à noção de indivíduo, que permeia o
debate tanto pelo lado de autores como Honeth e Taylor, como da perspectiva de
Fraser, será questionada por Alain Caillé e Emmanuel Renault em um número
especial da Revista do MAUSS sobre as relações entre don e reconhecimento. Para
Caillé, o debate reconhecimento-redistribuição tem como pano de fundo "a
questão de saber se o liberalismo é o regime mais adaptado à exigência de
reconhecimento" (2004, p. 17). Para ele, os principais protagonistas deste
debate respondem implicitamente de forma positiva a esta questão, o que
significa que aceitam os fundamentos individualistas do liberalismo, reduzindo
o espectro de uma teoria da justiça aos direitos individuais, sem levar em
conta as lógicas sociais simbólicas e morais que perpassam as interações
sociais, a exemplo da questão do don.
Já conforme Renault, a teoria do reconhecimento, tal como expressa por Honneth,
tem como ponto de partida uma lógica individualista intersubjetiva,
negligenciando assim a influência das instituições sobre o reconhecimento ou o
não-reconhecimento dos indivíduos. Próximo da reflexão de Foucault sobre a
micropolítica, o autor vai insistir sobre o fato de que
[...] as instituições não exprimem apenas as relações de
reconhecimento, elas as produzem. O erro do conceito expressivo do
reconhecimento social é de não considerar senão o problema das
expectativas normativas dirigidas às instituições, sem levar em conta
o fato de que é sempre no quadro de uma predeterminação institucional
que as intersubjetividades enviam demandas de reconhecimento às
instituições (2004, pp. 184-185).
Com isso, o autor pretende incluir a discussão sobre as relações de poder no
debate sobre o reconhecimento, tornando-o um debate propriamente político.
A questão que permeia de forma implícita toda essa discussão é se o
reconhecimento e a distribuição são duas dimensões diferentes que necessitam
ser fundidas em um novo paradigma de justiça ou se o reconhecimento, por ser
universal e por encarnar a tendência moderna do igualitarismo, pode absorver as
demandas redistributivas.
Desse ponto de vista, parecem-nos pertinentes as críticas de diversos autores à
separação conceitual entre economia e cultura proposta por Nancy Fraser. Como
demonstrou Young (1997), a relação entre economia e cultura é visível em muitas
esferas da vida social contemporânea, sobretudo nos casos em que o
pertencimento a grupos culturalmente marcados implica a exclusão do mercado de
trabalho ou do usufruto de certos bens. Embora concordemos com esta idéia de
que não podemos efetivamente dissociar a justiça redistributiva da justiça de
reconhecimento, é preciso constatar que diversos movimentos sociais tentam
realizar essa dissociação no plano da práxis. Faz-se necessário, então, um
deslocamento do debate: é menos importante a discussão sobre a viabilidade
analítica ou não de uma separação conceitual entre economia e cultura, ou se
preferirmos, entre redistribuição e reconhecimento, que uma análise empírica de
situações sociais em que os discursos pautados no reconhecimento atuam. Ou
seja, a questão é saber se os movimentos sociais de cunho identitários integram
ou não demandas redistributivas.
Young (1997) tem razão, ainda, ao insistir que sem identidade não há ação
coletiva, pois sem ela o ator coletivo não se constitui. Contudo, a
reivindicação de uma identidade não significa uma ação política coerente com os
princípios democráticos e igualitários. Além disso, uma questão que se coloca é
se o conceito de identidade pode se sobrepor ao de classe, como preferem os
marxistas, ou de status, como afirma Fraser (2001). Esse é, talvez, o
verdadeiro dilema apresentado nesse debate. Por um lado, não há dúvidas de que
a luta por identidade e reconhecimento expressa uma ânsia por justiça, o que
mesmo um autor crítico das políticas da identidade como Richard Rorty
reconhece, apesar de não ver utilidade em sua instrumentalização. A esse
respeito, diz ele sobre os movimentos sociais de cunho culturalista:
[...] quero deixar claro que não tenho nada contra esses movimentos.
Mas não vejo por que precisamos pensar neles como praticantes de um
novo tipo de política, nem como requerentes de uma sofisticação
filosófica para sua descrição e avaliação. No meu ponto de vista, o
surgimento do feminismo, da liberação gay, de vários tipos de
movimentos separatistas étnicos, dos direitos aborígenes e de
movimentos semelhantes simplesmente dá mais força ao velho esboço da
utopia igualitária (2001, p. 488).
No entanto, reconhecer isso não resolve a questão. Podem os movimentos
identitários lutar contra as várias desigualdades (sociais, econômicas e
culturais6) sem perder suas especificidades? Ou ainda, podem lutar contra as
discriminações e, ao mesmo tempo, lutar contra a lógica que as gera e legitima?
Por outro lado, inserir o reconhecimento apenas no plano da satisfação
individual, como fazem Honneth e Taylor,7 implica a redução da significação
política do reconhecimento à política liberal dos direitos individuais. Ao
fazer isso, relega-se a segundo plano uma discussão mais aprofundada sobre a
cidadania, a qual, como demonstrou Marshall (1967), comporta também aspectos no
plano social. Aqui, as posições de Caillé (2004) e Renault (2004), sobre a
necessidade das teorias do reconhecimento se aproximarem das questões
simbólicas e do poder, podem ajudar-nos a perceber o reconhecimento como uma
premissa para a realização da cidadania em um contexto marcado por relações de
poder e de dominação simbólica. Isso, desde que a cidadania não seja concebida
apenas em termos de uma lógica de institucionalização legal de direitos
individuais e coletivos (o que Honneth, por exemplo, faz ao conceber a esfera
do direito tendencialmente preponderante em relação às esferas do amor e da
solidariedade), mas também com referência às representações simbólicas
hegemônicas sobre os grupos minoritários.
Justamente por ser o reconhecimento uma das dimensões da cidadania é que ele
não pode ser desvinculado nem de outras lutas sociais pela ampliação do espaço
de exercício da cidadania, nem das relações de poder em vigor na sociedade. O
que significa dizer que o reconhecimento não é uma dimensão à parte da vida
social: toda luta social tem uma carga de luta por reconhecimento, mas isso não
quer dizer que o reconhecimento por si só possa explicá-la. Ou seja, as lutas
por reconhecimento são, sobretudo, lutas pela inclusão simbólica de grupos
discriminados (por uma cidadania simbólica8); e embora elas possam ser vetores
para demandas pela inclusão social desses grupos, não bastam para fazê-lo.
O movimento negro no Brasil e seus dilemas
No Brasil, o debate entre redistribuição e reconhecimento perpassa as
discussões sobre a questão racial. Por um lado, a posição tradicional da
esquerda tem sido a de tentar explicar o racismo no Brasil a partir das
desigualdades sociais que, por conta de um passado histórico marcado pela
escravidão, impõem aos negros as posições sociais mais baixas. Os movimentos
negros, por outro lado, vão procurar defender a idéia de que o racismo é a
principal clivagem da sociedade brasileira, a tal ponto que ele dificulta a
ascensão social da população de origem negra no país.9
Seja como for, o ressurgimento do movimento negro nos anos de 1970 representou
uma mudança importante na forma como a questão racial aparecia no espaço
público até então.10 Embora com dificuldades, e apenas a partir do final dos
anos de 1980, as diferenças socioeconômicas entre a população de origem negra e
a população branca tornaram-se gradativamente uma questão importante na agenda
política do país.
Assim, por exemplo, na primeira metade da década de 1990, o então presidente da
CUT, central sindical que aglutinava os sindicalistas da esquerda, manifestou-
se em favor de uma maior abertura do sindicalismo brasileiro às demandas de
maior igualdade racial no mercado de trabalho.11 Da mesma forma, os principais
partidos de esquerda e de centro-esquerda do país passaram a incorporar em seus
programas de campanha medidas para diminuir as disparidades raciais, a exemplo
do que ocorreu nas últimas eleições presidenciais, quando diversos candidatos,
inclusive o atual presidente, se comprometeram com programas de ação afirmativa
para os negros.
Em parte essa maior abertura da esquerda às questões raciais explica-se pelo
fato de que muitos dos militantes dos movimentos sociais negros são também
membros desses partidos. Mas, há que se levar também em conta que o tema da
discriminação racial se tornou mais recorrente no interior da sociedade
brasileira, seja pela ação denunciatória dos militantes de associações negras,
seja pela penetração da temática nos meios de comunicação de massa,12 seja
ainda pela multiplicação das ações culturais de cunho anti-racista e de
valorização da cultura negra,13 o que ajuda a compreender por que os partidos
políticos passaram a prestar mais atenção nessa questão.
O movimento negro recoloca uma discussão que tem marcado a sociedade brasileira
desde o século XIX, a saber: qual o papel do negro na sociedade brasileira?
Recusando a resposta centrada na mestiçagem como a principal característica do
país dada pelos intelectuais regionalistas, Gilberto Freyre primeiramente, a
partir dos anos de 1930 e erigida como ideologia nacional pelos políticos
ligados ao nacional-populismo,14 o movimento negro passa a reivindicar uma
identidade negra pautada na origem comum dos descendentes dos escravos.
Nesse sentido, os anos de 1980 vão marcar uma fase antinacionalista do
movimento negro. Se, como mostrou R. Benedict (1983), o nacionalismo busca
criar uniformidade onde antes havia a multiplicidade cultural, a estratégia do
movimento negro nesse período era outra: a de combater a ideologia
nacionalista, reivindicando a diversidade cultural e étnica do país, mostrando
que os afro-brasileiros sempre foram tratados como outros, malgrado os
discursos que valorizavam a integração entre as raças, e denunciando os efeitos
perversos da ideologia do branqueamento.15 Assim, buscava-se mostrar que as
clivagens sociais existentes na sociedade podiam também ser traduzidas em
termos raciais.16
Para tanto, o movimento negro buscou criar uma comunidade de interesses em
torno da origem africana (ver Mendonça, 1996), retrabalhando os símbolos da
cultura afro-brasileira, de forma a criar um protótipo do negro brasileiro com
o qual toda a população de origem negra pudesse se identificar.
Essa busca identitária não se dá em um vazio social. Como lembra Emcke (2000),
as identidades culturais não são escolhidas. Elas são construídas, mas não são
opções voluntárias das pessoas; ao contrário, dependem das relações de poder na
sociedade, as quais estabelecem as diferenças e os limites das identidades. Ser
negro, mulher, homossexual etc. diz respeito a identidades construídas
historicamente pela sociedade, o que influencia a maneira como os indivíduos se
vêem a si próprios e aos outros membros da sociedade. Isso significa que as
políticas de identidade não são apenas estratégias de reificação de diferenças,
elas são também formas de re-significação das mesmas, pois reivindicam de forma
positiva identidades socialmente degradadas. Em um processo dinâmico, essas
políticas, por sua vez, terão efeitos sobre o processo de construção das
identidades, que retroagirão sobre as próprias políticas de identidades.
O problema das criações identitárias desse tipo é que, como afirma Bauman
(2003), elas são, em certo sentido, impostas pelos grupos mais fortes da
sociedade, ou seja, a definição do que é "ser negro", mesmo quando articulada
por militantes negros anti-racistas, obedece à lógica da sociedade que valoriza
o "ser branco". Isso significa dizer que, embora denunciando a exclusão social
dos negros, a estratégia política adotada pelo movimento negro sedimenta
simbolicamente as fronteiras classificatórias operadas na prática pela
sociedade. A inversão do estigma em fonte de orgulho tem, malgrado todo
benefício em termos de auto-estima, o efeito perverso de perenizar a lógica
classificatória dos dominantes, aqueles que impõem o estigma. Em outras
palavras, os militantes desses movimentos não valorizam as identidades dos
grupos de forma completamente autônoma.
Contudo, essa é a estratégia possível para transformar o estigma em orgulho,
auxiliando na auto-estima do grupo estigmatizado e, assim, abrindo perspectivas
para a percepção da exclusão. Porém, isso não acarreta necessariamente a
superação da exclusão em si, o que pressupõe certa mobilização dos excluídos no
sentido de reivindicar políticas públicas que visem à superação da exclusão.
Quer dizer, esses movimentos podem ser importantes para a melhoria da auto-
imagem dos indivíduos dos grupos marginalizados, mas não bastam por si sós para
combater a exclusão social.17
Deve-se dizer ainda que o movimento negro, que surgiu a partir dos anos de 1970
no Brasil, opera com critérios globais. Embora ancorado na realidade nacional,
esse movimento se posiciona a partir da experiência de outras realidades
nacionais (África do Sul, Estados Unidos etc.), promovendo o amálgama entre
particularismo e universalismo: os negros são vistos como um grupo diferente no
seio da sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, como membros de uma comunidade
transnacional, quer seja a diáspora negra ou a África (discursos oriundos do
pan-africanismo e dos discursos sobre a negritude18). Isso o torna, senão um
movimento extraterritorial, ao menos um movimento globalizado, em que as
lógicas de outros contextos sociais são usadas como lentes de análise da
realidade local e nacional.19
Uma outra característica da ação do movimento negro nas últimas décadas tem
sido o uso da cultura com fins de mobilização da população em torno da questão
racial. A busca de uma identidade cultural negra capaz de levar a população de
origem afro-brasileira à mobilização política fez com que uma parte do
movimento negro começasse a desenvolver atividades culturais vistas como
puramente negras: os blocos afros,20 as escolas de samba, os grupos de reggae
etc.
Esse fato instigou o brasilianista norte-americano Hanchard (1996) a criticar o
movimento negro pela primazia dada às estratégias culturais em detrimento das
estratégias políticas. Para ele, isso faz com que os militantes negros
brasileiros não tenham uma estratégia de luta pelo poder capaz de articular
alianças com outras forças políticas e de estabelecer uma hegemonia. Já para
Bairros (1996), socióloga e militante do movimento negro, essa é uma crítica
centrada na experiência norte-americana que não leva em conta as
características da realidade brasileira. Ela defende uma posição próxima à de
Young (1997), ao argumentar que a via cultural faz parte de uma das estratégias
do movimento negro na luta para combater o racismo no país e, ao mesmo tempo,
para intervir nas esferas do poder.
Esse debate tem como cenário o pequeno número de militantes do movimento negro,
o que revela as dificuldades enfrentadas para mobilizar a população a partir de
uma estratégia pautada em uma concepção de relações raciais bi-polares, quando
estudos empíricos mostram que no Brasil as relações raciais têm algumas
especificidades. O racismo aqui surge no espaço público de forma camuflada,
pois, no dizer de Florestan Fernandes (1978), tem-se preconceito de se ter
preconceito; além disso, como mostraram os estudos clássicos de Nogueira (1983
e 1998), no Brasil o preconceito é mais "de marca" que "de origem", a cor da
pele servindo de parâmetro para a construção da hierarquia social; por outro
lado, alguns trabalhos recentes (Maggie, 1989) afirmaram o caráter gradualista
e relacional de nosso racismo (com uma escala descendente de valores que vai do
mais claro ao mais escuro e com tendência a clarear as pessoas mais próximas e
a escurecer as mais distantes); por fim, Sansone (1996) demonstrou a existência
de espaços sociais com relações raciais "duras" e "moles": nas áreas "moles"
não haveria maiores conflitos entre brancos e negros, enquanto nas "duras" sim.
São essas características que levaram os autores de uma pesquisa de opinião
(Folha de S. Paulo-Datafolha, 1995) a considerarem o racismo no Brasil um
"racismo cordial".
Sendo assim, a nosso ver, o problemático não é a ausência de uma estratégia
política por parte do movimento negro, nem a ausência de luta pelo poder, como
pretende Hanchard (1996), mas a ausência de uma estratégia que procure ligar a
redistribuição ao reconhecimento, o que poderia dar um maior respaldo social a
esse movimento, ao mesmo tempo em que possibilitaria a construção de alianças
com outras forças sociais.
Um exemplo dessa possibilidade é a experiência das comunidades remanescentes de
quilombos no país. Após a aprovação na Constituição de 1988 de um dispositivo
possibilitando a legalização das terras ocupadas por remanescentes de antigos
quilombos, diversas comunidades rurais passaram a reivindicar uma identidade
negra e a se organizar politicamente para conseguir do Estado o reconhecimento
do estatuto de remanescentes e, por conseguinte, a posse legal das terras
(Arruti, 1997). Esse é um fato raro no país, onde a revalorização da identidade
é acompanhada de uma perspectiva redistributiva visível, o que talvez explique
a participação ativa da população negra não militante em uma ação política de
cunho racial.
Seja como for, nos últimos anos, parece estar havendo uma transformação na
prática das organizações do movimento negro no Brasil. Ainda é cedo para se ter
uma idéia definitiva desse processo, porém a maior abertura dos governos (nas
esferas nacional, estadual e municipal) a algumas demandas desse movimento,
inclusive a participação de militantes nos órgãos governamentais, parece estar
formando uma postura mais pragmática21 e menos voltada para uma política da
identidade.
Contudo, o que parece mais e mais visível é que a proximidade de parte do
movimento negro com o poder estatal fez com que esse movimento se abrisse a
outras demandas que não a busca por identidade. A crescente preocupação com a
igualdade é o contraponto de uma maior responsabilidade na condução de
políticas públicas, seja como membros do governo, seja como representantes de
ONG's que realizam parcerias com agências governamentais ou com agências
financiadoras internacionais.
Um exemplo dessa transformação é a posição de parte do movimento negro diante
da adoção das chamadas políticas afirmativas voltadas para a população negra,
uma das discussões políticas que, atualmente, mais aparecem nos meios de
comunicação do país. Essas medidas, uma das bandeiras dos intelectuais e
militantes negros, visam, por intermédio de políticas públicas diferencialmente
aplicadas segundo critérios raciais, a diminuir as desigualdades sociais que
separam as populações brancas e não-brancas.
Assim, pela primeira vez em sua história, o país assume oficialmente que a
democracia racial, o discurso oficial da identidade nacional depois dos anos de
1930, não funciona a contento quando se trata de integrar econômica e
socialmente os afro-descendentes.
Tal fato não poderia deixar de despertar vivos debates na imprensa e nos meios
políticos do país, alguns criticando as políticas afirmativas por ferirem o
princípio da igualdade de todos perante o Estado e a lei, outros as defendendo,
com o argumento de que, por vezes, faz-se necessária a implantação de políticas
públicas desiguais para promover a igualdade.22
Estaríamos nesse momento assistindo à passagem do movimento negro de uma ação
prioritariamente marcada pela denúncia e pelo viés culturalista a uma ação mais
política e mais voltada ao combate das disparidades sociais? A preocupação com
a criação de uma identidade negra estaria desaparecendo para ceder lugar a uma
maior preocupação com formas de diminuir as disparidades? Ainda é cedo para
podermos ver claramente os contornos desse processo, que não se dá apenas no
nível local, mas que, desde meados dos anos de 1990, com o governo FHC, tem
marcado a ação do movimento negro em âmbito nacional.
Entretanto, o estudo empírico que realizamos junto aos movimentos negros do
estado de Sergipe mostra que a preocupação identitária persiste entre os
militantes, o que traz consigo a possibilidade de o Estado ser utilizado para a
adoção de práticas que visem a desenvolver uma forma específica de identidade
negra. Mas, nesse caso, quem determina o que é a identidade negra? Os
militantes próximos dos partidos que estão no poder?
Ou seja, o risco é vermos o Estado adotar políticas mais diferencialistas do
que distributivas. Diferencialistas no sentido de incitarem à reivindicação da
diferença, mas sem muita efetividade no combate às desigualdades sociais. Por
exemplo, as políticas de cotas nas universidades e nos órgãos públicos se
pensadas apenas em termos raciais e não em termos de desigualdade social,
garantindo vagas para negros, independentemente de eles serem pobres ou não,
correm o risco de, malgrado o incentivo à autoclassificação como negro,
favorecer apenas aos membros das classes médias negras, com pouca efetividade
em relação aos negros pobres, a grande maioria dos negros e dos pobres do país.
Conclusão
Esses são dilemas de difícil resolução, mas que a luta anti-racista impõe aos
brasileiros no processo de construção de uma nação igualitária e democrática.
Nesse sentido, qualquer que venha a ser a avaliação sobre essa luta no futuro,
ela tem o mérito inquestionável de ter despertado o debate sobre o preconceito
racial e as formas de exclusão social dos negros.
Porém, uma vez feita a constatação do racismo, o problema está longe de ter
sido resolvido. Como fazer para superar o racismo constatado? Que tipos de
políticas se fazem necessárias para tornar o país mais igualitário, inclusive
no que se refere às distorções de origem racial?
De certa maneira, até aqui, esse movimento tinha-se contentado em propor uma
política de revalorização das manifestações culturais de origem africana e em
buscar a construção de uma identidade negra mobilizável politicamente que
possibilitasse o acesso dos militantes aos centros de decisão governamentais.
Mesmo se em alguns discursos a mudança da estrutura social se apresentasse como
uma perspectiva de longo prazo, na prática o movimento negro tinha privilegiado
as mudanças simbólicas em torno da questão racial no país.23
Isso parece estar se transformando rapidamente no que se refere à prática do
movimento negro nos últimos anos, como procuramos mostrar anteriormente. Mas, o
que acontece quando uma das grandes bandeiras desse movimento, as políticas
afirmativas, começam a ser implantadas em diversas partes do país? Trata-se de
medida destinada a reduzir as diferenças entre brancos e não-brancos ou é
apenas uma forma de reforçar uma identidade baseada na origem africana entre os
não-brancos no Brasil? São elas capazes de alterar as desigualdades sociais ou
apenas correspondem a um rodízio dos indivíduos em relação às posições sociais
de prestígio?
Nos Estados Unidos, país que implanta as políticas afirmativas desde os anos de
1960, não há um consenso sobre seus efeitos sobre a promoção da igualdade
social. Wieviorka (2001) mostra como o debate em torno das políticas
afirmativas nos Estados Unidos é marcado, por um lado, pelas críticas à
naturalização das diferenças e ao conseqüente aumento das tensões raciais que
essas políticas implicam, e, por outro, pela defesa das ações afirmativas como
luta contra as desigualdades sociais. Como podemos observar, a tensão entre
esses dois campos continua elevada mesmo depois de mais de trinta anos de
políticas afirmativas.
Para os críticos, estas não são, no sentido próprio do termo, ações
distributivas, pois, se a rigor elas podem beneficiar certo número de
indivíduos do grupo alvo da ação, os resultados globais em termos de diminuição
das diferenças sociais no conjunto da sociedade não são evidentes. Em
contraposição, para seus defensores, o caráter obrigatório dessas políticas
conseguiu, por exemplo, reduzir de forma efetiva a discriminação racial no
mercado de trabalho. Isso teria como conseqüência uma melhoria na situação
geral da população negra norte-americana.
Donzelot et al.(2003) mostram como as políticas afirmativas foram implantadas
nos anos de 1960, sobretudo a partir do governo Nixon, como uma tentativa de
dar respostas às insatisfações da população negra sem, contudo, aumentar as
despesas do Estado. Ao transferir para o nível da aplicação da lei a
perspectiva de redução da discriminação contra os negros, implicitamente
retirava-se do Estado a obrigação de garantir as condições sociais que pudessem
modificar as condições de vida nos guetos negros. Esperava-se que a inserção de
alguns de seus membros no mercado de trabalho qualificado seria capaz de
exercer um efeito positivo no seio das comunidades negras. O que, para alguns
opositores às políticas afirmativas, não ocorreu, pois na maioria dos casos os
negros em ascensão procuraram distanciar-se dos guetos de onde eram
originários.
Como vemos, mesmo nos Estados Unidos não é fácil realizar uma avaliação isenta
sobre as políticas afirmativas. De todo modo, o que pode ser dito sobre essas
políticas é que elas não se destinam necessariamente a combater as fontes das
desigualdades sociais; seus objetivos são mais modestos, buscam, sobretudo,
integrar um grupo ou membros desse grupo ao sistema, afastando algumas
barreiras que lhes impediam o acesso. Nos termos de Nancy Fraser (1997), tais
políticas são reformadoras e não transformadoras da estrutura social.
Dessa forma, queremos apenas lembrar que as cotas, elevadas nesses últimos anos
no Brasil ao status de solução para combater os efeitos sociais do racismo, não
demonstraram ainda de maneira efetiva, nos países onde já foram implantadas,
ser capazes de combater as desigualdades sociais de forma global e, por
conseguinte, de reduzir a pobreza entre os negros e demais grupos subalternos.
Isso não significa que as políticas de cotas sejam sem interesse. Na situação
atual do país, talvez elas sejam efetivamente as únicas medidas factíveis a
curto prazo para engajar o Estado no combate à discriminação racial. Além
disso, essas políticas, ao possibilitarem a ascensão de negros a posições de
destaque na sociedade, têm um efeito importante no aumento da auto-estima da
população negra. Seu maior interesse reside, talvez, no fato de suscitar um
debate sobre as desigualdades sociais de origem racial no país. Todavia, isso
não deveria levar as forças sociais anti-racistas a esquecer as reivindicações
por políticas públicas que favoreçam o conjunto da população discriminada.24
De todo modo, a prioridade dada às políticas de cotas mostra que uma parte
importante do movimento negro reduziu suas expectativas à criação de uma classe
média negra, a qual teria a missão de tornar a sociedade menos desigual.25 Ora,
o que a experiência norte-americana tem mostrado é que a criação de uma classe
média negra não significa necessariamente uma ação dessa classe em favor dos
negros mais pobres.
Tudo isso talvez não seja mais que um reflexo do que vem ocorrendo em todo
mundo. Como Nancy Fraser tem insistido em seus textos recentes, a depreciação
do ideal socialista teve como conseqüência a redução do apelo mobilizador das
lutas redistributivas. Assim, os valores individualistas de uma sociedade de
mercado tornaram-se o referencial não só dos governos, como também de muitos
movimentos sociais.
É certo que as lutas por reconhecimento, como as que o movimento negro tem
feito no Brasil, não podem ser interpretadas apenas sob esse prisma. Mas também
é certo que no caso específico aqui analisado tem havido uma tendência a
dissociar a busca de identidade da luta pela igualdade de chances para todos. O
dilema do movimento negro atual é justamente como conciliar essas duas faces de
uma mesma moeda.
Uma das respostas possíveis, como procuramos mostrar anteriormente, é trazer a
discussão sobre o reconhecimento para o espaço da cidadania. A metáfora
marshalldiana sobre uma cidadania compósita, malgrado as críticas que lhe podem
endereçar, apresenta o mérito de mostrar que a cidadania não se reduz apenas à
participação política ou ao gozo de direitos civis, ou ainda ao usufruto de um
certo bem-estar social. Como se sabe, para Marshall a cidadania evolui para a
integração dessas três perspectivas. Da mesma forma, podemos dizer que os
movimentos identitários, surgidos a partir da última metade do século XX,
entendem o reconhecimento como uma outra dimensão da cidadania, qual seja, a
cidadania simbólica.
Inserir o reconhecimento na esfera da cidadania significa dar-lhe um estatuto
que vai além da auto-estima pessoal ou dos direitos de um grupo específico.
Significa que o reconhecimento passa a ser concebido como um dos critérios de
justiça da sociedade.
Como vimos, a crítica de autores como Fraser (1997), Rorty (1998) ou Bauman
(2003) às políticas de reconhecimento é no sentido de que essas políticas não
podem servir de álibi para o esquecimento da dimensão social da cidadania.
Dessa forma, considerar a questão do reconhecimento em termos de cidadania
simbólica sugere que o reconhecimento é indissociável das outras esferas da
cidadania e que, portanto, as lutas por reconhecimento devem se dar pari passu
com as lutas por ampliação da cidadania em uma sociedade. Ora, a globalização
no âmbito das demandas por reconhecimento, que em relação à questão negra
inicia-se com o movimento da negritude e com os laços que se tecem em torno da
noção de diáspora negra e de Atlântico negro, tende a desvincular as demandas
por reconhecimento das demandas de cidadania, tornando-as meras questões de
identidade e de construção de fronteiras das diferenças. Nessa vertente, ainda
forte no seio do movimento negro, as diferenças entre negros e brancos são
naturais e não construídas socialmente.
Como fazer, então, para conciliar na prática as demandas por reconhecimento e
as lutas pela ampliação da cidadania, tornando essas demandas verdadeiras lutas
por uma cidadania simbólica, sem cair em uma reificação das diferenças,
conforme analisado por Appiah (1997).
Este texto chega ao fim compreendendo mais perplexidades do que conclusões
definitivas. Isso tem a ver com a dificuldade de se abordar essa temática com a
distância necessária, nem tão próxima, que impeça uma visão crítica, nem tão
distante, que leve a uma visão totalmente desinteressada dos rumos que possam
tomar as ações analisadas. Não estamos certos de termos encontrado esse ponto
de equilíbrio, mas foi esse o espírito que nos animou. Para concluir,
gostaríamos de fazer uma retificação. O título deste artigo faz referência aos
dilemas da luta anti-racista no Brasil. Na verdade, os dilemas não são apenas
dos que lutam contra o racismo no país. Em uma das reuniões nacionais
preparatórias para a III Conferência Mundial Contra o Racismo em Durban, uma
militante negra disse algo que nos parece pertinente: para ela, o movimento
negro teria cumprido um papel importante ao fazer as denúncias contra o
racismo, obrigando assim a sociedade brasileira a olhar para si própria com
menos condescendência em relação à questão racial. Isso, de certa forma, havia
sido alcançado; agora teria chegado a vez de a sociedade civil intervir,
incorporando as demandas anti-racistas na agenda pública do país.
Essa é uma maneira de dizer que o principal papel de um movimento social é o de
ajudar a mudar as representações vigentes em uma sociedade. As transformações
estruturais, embora influenciadas por essas mudanças no âmbito do imaginário,
dependerão das alianças que os movimentos sociais conseguirem estabelecer, mas
não apenas eles. Assim, o dilema do qual falávamos há pouco, na verdade, é de
todos nós!
Notas
1 As quais congregam alguns dos mais importantes filósofos e pensadores sociais
de nossa época: de Junger Habermas a Charles Taylor, de Alain Touraine a
Zygmunt Bauman, de Richard Rorty a Paul Ricoeur, de Axel Honneth a Nancy
Fraser, de Marion J. Young a Seyla Benhabib, entre outros.
2 O rico debate que essas críticas geraram ficou conhecido no mundo anglo-saxão
como o debate entre comunitaristas e liberais. Para uma boa síntese a respeito,
ver Kymlicka (1990), Wieviorka (2001) e Vita (2000).
3 É certo que essas duas correntes não esgotam o debate sobre as teorias da
justiça. Uma análise mais apurada deveria abranger os autores que trabalham com
a noção de "exploração" (Roemer, 1982 e 1996), ou os que, como Habermas (1997),
discutem a justiça dentro do quadro do Estado democrático de direito.
4 Essa incapacidade de formação de coalizões entre os grupos subalternos é um
dos principais pontos da crítica que autores como Zygmunt Bauman (2003),
Richard Rorty (1998) ou Amélie O. Rorty (1997) fazem às políticas pautadas nas
identidades culturais e/ou étnicas. Segundo eles, essas políticas serviriam
para dissimular as injustiças sociais e as novas formas de exclusão gestadas no
mundo contemporâneo. Aqui, vale a pena lembrar que Fraser diverge desses
autores quando afirma a pertinência das lutas por reconhecimento uma vez
associadas às lutas distributivas.
5 Sobre esse ponto, Zurn (2003) critica o abandono de uma postura
desconstrutivista das identidades por Fraser em sua nova fase por não
considerar a possibilidade de se constituírem identidades autoreferenciadas em
torno dos grupos de status, mesmo de status degradados, retornando assim às
demandas por identidade.
6 Desigualdades que podem ser interpretadas em termos de status, de classes e
de identidade, respectivamente.
7 Embora para esses autores o reconhecimento se constitua de forma
intersubjetiva, ele se manifesta, sobretudo, na possibilidade de "auto-
realização" individual. Nesse sentido, Caillé e Lazzeri (2004, p. 91) observam
que a reatualização de Hegel por Honneth priorizou as três categorias centrais
do reconhecimento (eticidade social, direito e amor), mas negligenciou a
categoria "trabalho", uma das três potências para Hegel.
8 Uma tentativa preliminar de conceitualização da cidadania simbólica pode ser
vista em Neves (2002).
9 A respeito das posições do movimento negro desse período, ver Nascimento e
Nascimento (2000).
10 Nesse sentido, o movimento negro que surge nos anos de 1970 é bem diferente
daquele dos anos de 1930, por exemplo, quando a prioridade era buscar uma
integração na sociedade nacional a partir da introjeção pelos negros dos
valores dessa sociedade. A esse respeito, ver Hofbauer (1999) citado por Costa
(2002).
11 Entrevista de Vicentinho, então presidente da CUT, ao jornal Folha de S.
Paulo, 1/7/95, pp. 3-6.
12 Exemplos desse fenômeno encontram-se na freqüência com que a discussão sobre
o preconceito aparece em programas televisivos e o aparecimento de uma imprensa
voltada para a população afrodescendente. O mais badalado projeto editorial com
essa perspectiva, a revista mensal Raça Brasil, existe desde setembro de 1996.
13 Sobre o aspecto cultural do movimento negro brasileiro, ver a polêmica entre
Michael Hanchard e Luíza Bairros (revista Afro-Ásia, 17 e 18).
14 Já existe uma rica literatura sobre o processo de construção da identidade
nacional centrada na idéia de democracia racial; ver, a esse respeito, Skidmore
(1989 e 1994).
15 As relações entre os militantes dos movimentos negros e os intelectuais das
ciências humanas que, a partir dos anos de 1950, começam a estudar as relações
raciais no país de um ponto de vista crítico ainda precisam ser mais bem
investigadas, mas há indícios de que eles já foram muito próximos.
16 O termo racial aqui é utilizado no sentido dado por Banton (1970) e
Guimarães (1999 e 2002), isto é, raça não como conceito biológico, mas como
conceito socialmente legitimado nas interações sociais.
17 Tendo isso em vista, Michel Wieviorka (2001) faz a distinção entre duas
situações de reivindicação identitária: de um lado as identidades acompanhadas
de exclusão e, de outro, as identidades sem exclusão.
18 Ver a esse respeito Appiah (1997) e Gilroy (2001), entre outros.
19 Esse aspecto da discussão da questão racial no Brasil deu lugar a intenso
debate que se seguiu à publicação de um texto de Pierre Bourdieu e Loïc
Wacquant (2002) criticando o uso dos modelos analíticos oriundos dos Estados
Unidos para interpretar a questão racial no Brasil. Ver também, Costa (2002) e
Sansone (2002).
20 Ver a esse respeito Agier (1991a e b).
21 Essa avaliação foi-nos repetida por diversos militantes negros ao curso da
pesquisa, sobretudo após a ascensão do Partido dos Trabalhadores à presidência
da República.
22 Para a defesa dos argumentos favoráveis às políticas afirmativas, ver
Guimarães (1999 e 2002). Uma visão crítica é ilustrada em Fry e Maggie (2002).
23 O que, diga-se de passagem, constituía-se, por si só em uma tarefa hercúlea
e das mais importantes. Além disso, deve-se considerar que um movimento social
por mais potente que seja não pode ir além dos limites pragmáticos que a
sociedade lhe impõe.
24 As ações afirmativas do tipo cotas visam a atingir os indivíduos
considerados representantes de um grupo discriminado. Há ainda outras ações que
se destinam a abranger uma comunidade como um todo, por exemplo, os projetos de
renovação urbana, as criações de zonas especiais de educação etc. Esta oposição
entre políticas urbanas é conhecida em termos de people versus place (Donzelot
et al., 2003).
25 A prioridade na criação de uma classe média negra explica-se, segundo alguns
militantes, na visão de que assim a mobilização política dos negros em torno da
discriminação racial seria mais intensa.