A primazia dos cientistas naturais na construção da agenda ambiental
contemporânea
Introdução
Este texto tem o objetivo de mostrar que a agenda ambiental contemporânea foi
construída quase integralmente por cientistas filiados às ciências naturais ou
tecnológicas. Considero, por conseqüência, que os cientistas sociais chegaram a
ela de forma retardatária e, por vezes, parcialmente equivocada. Este texto foi
motivado por uma antiga constatação de ordem pessoal, qual seja, a de que os
cientistas sociais em geral resistem à primazia dos cientistas naturais na
questão ambiental, e por isso se permitem ignorar suas contribuições, ou ' o
que dá no mesmo ' criticá-las de forma errada e empobrecedora.
Não sustento que quem "chegou primeiro" tenha toda a virtude, nem que quem
"chegou depois" careça de qualquer virtude, pois não se trata de uma corrida, e
sim de um processo de construção do conhecimento. A "lição" mais relevante a
tirar desse fato é prosaica: os cientistas sociais interessados em estudar a
questão ambiental têm e continuarão a ter muito a aprender com os cientistas
naturais. Embora o inverso também seja verdadeiro, em muitos casos foram os
próprios cientistas sociais que, infelizmente, contribuíram para enquadrar os
pioneiros da questão ambiental em rótulos desqualificantes e equivocados ' tais
como serem "insensíveis aos problemas sociais", "neomalthusianos",
"naturalistas", "preocupados apenas com plantas e animais" e assim por diante.
Este texto discute primeiro o conceito de "desenvolvimento sustentável",
importante marco estabelecido há cerca de quinze anos e que baliza o pensamento
de quase todos os cientistas sociais que hoje se ocupam de temas ambientais.
Segundo, analisa a resistência generalizada dos cientistas sociais ao estudo
das questões ambientais emergentes. Em seguida, com a finalidade de
contextualizar a "linha de ascendência" do conceito de desenvolvimento
sustentável, focaliza as contribuições mais antigas de cientistas "ícones" da
descoberta ou formulação das grandes questões ambientais dos últimos setenta
anos 'Paul Sears, Aldo Leopold, Rachel Carson, Paul Ehrlich, Donella Meadows,
Garrett Hardin e James Lovelock. Esses autores são abordados em separado, de
acordo com tópicos que descrevem a contribuição principal de cada um, mas
buscando também identificar algumas linhas de continuidade ou, ao menos, de
contato entre eles.
Esses autores ' ao contrário do que se divulga persistentemente entre os
cientistas sociais ' mostraram, sim, sensibilidade quanto às questões humanas
ou sociais, entendidas como conexas aos ' e causadas ou causadoras dos '
problemas ambientais ou naturais, mesmo sendo todos formados nas ciências
naturais ou da tecnologia ' biologia, ecologia, química, física, medicina etc.
Argumento ao longo deste texto que os cientistas sociais ainda têm muito a
aprender com esses "pioneiros", caso se disponham a conhecer em fonte direta
suas contribuições. Isso servirá para melhor entender e aplicar, entre outras
coisas, o paradigma mais conhecido e consensual do desenvolvimento sustentável.
O conceito de desenvolvimento sustentável
O conceito de desenvolvimento sustentável e o paradigma da sustentabilidade
foram amplamente veiculados pelo documento intitulado Our common future,
escrito em meados da década de 1980 pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e
Desenvolvimento, da ONU, chefiada por Gro Brundtland. No Brasil, esse relatório
(por vezes conhecido como "Relatório Brundtland") foi publicado em 1987 com o
título Nosso futuro comum (CMMAD, 1987).
Publicado em muitos idiomas, esse texto teve larga divulgação e aceitação em
muitos fóruns científicos, governamentais, intergovernamentais, não-
governamentais e empresariais, não obstante as inevitáveis polêmicas em torno
de um conceito tão complexo quanto o de desenvolvimento sustentável. Considero
que o principal motivo para a sua grande divulgação e aceitação foi o
equilíbrio alcançado no equacionamento conjunto dos problemas propriamente
ecológicos ou biofísicosdo mundo natural, de um lado, e das questões
sociaiscorrelatas, de outro. Esta é, de fato, uma forte virtude presente no
conceito. Quase duas décadas depois de sua formulação original, o conceito e o
paradigma da sustentabilidade continuam a ser amplamente adotados como
componentes de um modelo interpretativo a um só tempo abrangente e sintético, o
que mostra que há uma tendência no sentido de ganhar cada vez mais espaço.
Produzido pela chamada Comissão Brundtland, tal relatório formulou
sinteticamente o conceito de desenvolvimento sustentável como "aquele
desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer as
possibilidades de as gerações futuras atenderem às suas próprias". Essa
formulação é inovadora sob diversos aspectos, embora não o seja em outros. O
componente da "solidariedade intrageracional", por exemplo, é mais comumente
conhecida como eqüidade. No entanto, ele faz parte de muitos ideais, ideologias
e conceitos mais antigos e bastante disseminados. Já o preceito de visar ao
bem-estar das gerações futuras, além de também não ser original, é apresentado
pela CMMAD sem qualquer fundamentação capaz de resgatá-lo de meras advinhações
bem-intencionadas sobre o que seria bom para as gerações futuras ' no limite,
ele se resume a conselhos genéricos quanto a atitudes de prudência.
De toda forma, reunir sustentabilidade, eqüidade e preocupação com as gerações
futuras é suficiente para garantir a originalidade e a relevância do conceito.
O que interessa destacar aqui é que a idéia de desenvolvimento sustentável
buscou explicitamente atingir um equilíbrioentre uma visão "naturalista" e uma
visão "social" da moderna questão ambiental, conforme ela foi construída nas
décadas anteriores. O Relatório Brundtland conectou, com sucesso, dois
conjuntos de problemas: (1) os propriamente ecológicosdo mundo natural,
decorrentes das ações humanas (uso ou escassez de recursos naturais, extinção
de espécies, poluição, contaminação, aquecimento global, desertificação etc.) e
(2) os propriamente sociais(doença, fome, pobreza, exclusão etc.).
No entanto, é necessário fazer uma grande ressalva. Rigorosamente, a dimensão
ecológica do conceito de desenvolvimento sustentável também carece de
originalidade, pois nasce de um conceito estabelecido há décadas na ciência da
biologia ' "capacidade de carga" (carrying capacity), ou "capacidade de
suporte". A "novidade" é a sua aplicação sistemática para o estudo de
sociedades humanas, o que é fruto do trabalho de cientistas naturais
interessados nas questões ambientais.
"Capacidade de carga" é definida em obras de referência de várias formas
parecidas. Afirma o A dictionary of ecology da Oxford University Press, por
exemplo, que se trata da "população máxima de um determinado organismo que pode
ser sustentado por um ambiente particular" (Allaby, 1998, p. 73). "Capacidade
de suporte" é definida por outra fonte de referência como "a população limite
de uma espécie num sistema natural" ou a "densidade populacional que pode ser
sustentada por recursos limitados" (Silva et al., 2002, p. 40). Munidos desse
conceito, biólogos e ecólogos criaram e aplicam há muitas décadas métodos para
descobrir quantas plantas ou animais de certas espécies podem ser sustentados
"indefinidamente" por um ecossistema, ou seja, sem causar um colapso nele ou
sem eles mesmos entrarem em colapso a ele. Isso depende de diversas variáveis,
como a posição da espécie estudada na cadeia trófica, suas necessidades de
alimento e abrigo, sua taxa de reprodução e a competição que ela sofre de
outras espécies com que disputa alimento e abrigo. Esses estudos buscam
resolver uma fração cujo numerador é o número de indivíduos de uma espécie que
vive numa área e cujo denominador é dado pela quantidade de recursos da mesma
área usados "indefinidamente" pela espécie, o que leva a um cifra cuja unidade
pode ser, por exemplo, o número de indivíduos por hectare.
Aplicado às sociedades humanas, o conceito de capacidade de carga levou
diversos cientistas naturais a enxergarem os limites relativos ao que a espécie
humana poderia retirar do planeta como um todo para reproduzir sua existência
sem prejudicar os ecossistemas. Isso direcionou a atenção de parcelas
crescentes de cientistas, governantes e cidadãos para uma grande variedade de
questões ambientais, associadas a usos e abusos que as sociedades humanas fazem
dos recursos naturais finitos do planeta.
Com efeito, tal conceito, quando aplicado aos humanos, diz respeito, antes de
tudo, àquela fraçãojá mencionada, em que:
1. O numerador é o número de seres humanosque consomem os recursos
escassos (ou seja, como sources, ou fontes) e geram resíduos que têm
lugares escassos (ou seja, como sinks, ou pias) ou para serem
"jogados fora".
2. O denominador é a soma de duas parcelas: (1) os recursos naturais
finitos e/ou escassos consumidos pelos humanos+ (2) a capacidade
limitada dos ecossistemas naturais de assimilar as pressões e os
resíduos gerados pelo modo de vida humano(o que não deixa de ser uma
outra forma de escassez) ' ou seja, souces + sinks.
3. O resultado da fração é uma cifra que indica quantas pessoas podem
ser sustentadas por uma unidade do recurso (em volume, em peso, em
área etc.), quer como source, como sink, quer como ambos.
O relatório da Comissão Brundtland veio na esteira de pelo menos quarenta anos
de preocupações ecológicas-ambientais entre cientistas naturais e de aplicação
do conceito de capacidade de carga ao que hoje chamamos de questões ambientais.
Quem pensou sobre essas questões, pioneiramente, foram os cientistas naturais
que, trabalhando individualmente ou em grupos, redes e comissões, produziram
estudos tão importantes e influentes, guardadas as especificidades de época,
quanto o relatório da Comissão Brundtland, embora em geral tenham tido uma
recepção mais polêmica.
Sem que ninguém pudesse prever, esses estudos cumpriram, no entanto, a difícil
tarefa de fundar ou codificar as grandes questões ambientais reconhecidas e
debatidas contemporaneamente. O texto da Comissão nasceu, portanto, num
território já aberto por esses pioneiros ' território não apenas temático, mas
também conceitual. Sustento, portanto, que o conceito de desenvolvimento
sustentável é, por assim dizer, um "filho" sociológico do conceito biológico de
capacidade de carga.
Cabe ressaltar que a grande maioria dos cientistas sociais que hoje se
interessa pelas questões ambientais usou como "porta de entrada" o conceito
mais recente de desenvolvimento sustentável. Mas, infelizmente, poucos conhecem
o trabalho daqueles cientistas naturais pioneiros, e alguns ainda proclamam que
é preciso "derrubar a ditadura dos biólogos" ' exortação acompanhada às vezes
por declarações "ousadas" a favor da interdisciplinaridade.
Não há dúvida de que os textos fundadores da questão ambiental foram quase
todos escritos por cientistas naturais ou da área tecnológica ' biólogos,
ecólogos, químicos, analistas de sistemas, físicos etc. Foram eles que
identificaram, publicaram trabalhos a respeito e levaram para a agenda pública
as grandes questões ambientais modernas ' esgotamento e poluição de recursos
naturais (solos, água, minérios, atmosfera), extinção de espécies e perda da
biodiversidade, estrangulamentos e externalidades da produção de energia,
desertificação, efeito estufa, destruição da camada de ozônio, destinação
inadequada de resíduos, reciclagem e re-uso, entre outras ' de que se ocupam
hoje novas gerações de cientistas naturais e sociais, além de cidadãos,
organizações civis, governantes e empresários.1 Para quem conhece em primeira
mão a literatura produzida por aqueles autores e, de início, sua limitada
receptividade entre cientistas sociais do mundo inteiro, é patente a
constatação de que muitos cientistas sociais persistem como retardatáriosna
questão ambiental.
A resistência dos sociólogos à questão ambiental ' fundamentos
O marco do desenvolvimento sustentável evoluiu, como vimos, na esteira de um
prolongado debate, explicitado a partir da década de 1950, dentro de um novo
campo de preocupações que sequer angariara para si a chancela de "científica"
ou o nome de "ambiental". É certo afirmar que esse campo foi fundado com um
viés que hoje se chama pejorativamente de "naturalista", refletindo a formação
científica daqueles pioneiros. Não obstante, seria errôneo afirmar que aqueles
cientistas não tinham preocupações com a sociedade humana e que foi preciso a
intervenção "salvadora" de cientistas sociais para que emergissem tais
preocupações.
Vale dizer, em primeiro lugar, que, ao "inventarem" a questão ambiental
moderna, aqueles cientistas pagaram preços altos, uma vez que entraram em
confronto direto com interesses poderosos. Refiro-me (1) ao mainstream do
pensamento científico de muitas disciplinas estabelecidas e poderosas, (2) a
órgãos governamentais, (3) a grupos empresariais, e (4) a agências
financiadoras de pesquisas. Esses grupos sequer admitiam a existência dos
problemas apontados e/ou não admitiam que suas atividades fossem de alguma
forma limitadas pelo reconhecimento de tais problemas. Estudar a questão
ambiental nas décadas de 1950 e 1960 estava, pois, ainda longe de ser uma opção
promissora para consolidar ou iniciar carreiras científicas bem-sucedidas. Era
muito mais uma maneira de abalar o status quo científico-tecnológico, o que
nunca se faz sem reações de grupos poderosos e sem implicações sociais.
Em segundo lugar, é preciso ter em mente que, nessa fase e mesmo muitos anos
depois, os cientistas sociais foram quase sempre indiferentes à matéria, mesmo
nos países desenvolvidos. Dunlap e Catton (1979), por exemplo, mostram que a
disciplina da sociologia como um todo (representada principalmente, mas não
unicamente, pela produção em língua inglesa, original ou traduzida) deu uma
atenção "tardia" às questões que hoje chamamos de ambientais. Além de tardia,
foi também limitada, pois havia ainda uma questão de fundo, metodológica ou
filosófica, qual seja, a recusa implícita ' e às vezes explícita ' dos
cientistas sociais de levar em conta fatores naturais e biofísicos como
variáveis legítimas da análise sociológica. Ou seja, os sociólogos entraram na
nascente era ambiental portando o que considero um sério handicap ' o princípio
durkheimiano de que só é possível explicar o social pelo social. Perderam,
assim, a chance de ter um papel significativo na emergência dos estudos e das
pesquisas sobre as questões ambientais, em que o social era definido,
desafiado, limitado ou condicionado pelo natural.
Dunlap e Catton argumentam que sociólogos clássicos como Durkheim, Weber e
Marx, apesar de admirarem o triunfo do evolucionismo biológico darwinista,
construíram modelos explicativos da sociedade tacitamente concebidos para
diferir do modelo biológico. Fred Buttel (1986) afirma que o estilo de trabalho
eclético desses e de outros clássicos da sociologia permite que se encontre em
seus trabalhos alguma atenção a fatores naturais ' como espaço, densidade
populacional e escassez de recursos, em Durkheim; complexas tecnologias
agrícolas e industriais, em Weber; e a ciência dos solos e a agronomia em Marx.
No entanto, a emergência, no final do século XIX e início do século XX, do
"darwinismo social" de Spencer e de teorias racistas ou de "espaço vital" (como
a de Ratzel), inclusive com implicações belicistas e genocidas, fez com que os
cientistas sociais seguidores dos clássicos dispensassem as variáveis naturais,
que já eram empregadas de maneira tão frágil, como instrumentos da explicação
sociológica.
Dunlap e Catton sustentam também que, em meados do século XX, quando emergia a
questão ambiental, os sociólogos estavam imersos num "paradigma de imunidade
humana" (human exemptionalism paradigm), que se baseava na imunidade das
sociedades humanas em relação às variáveis naturais. Explicar o social pelo
social era nesse momento um traço mais do que cinqüentenário das ciências
sociais. Duas ou três gerações de sociólogos tinham sido treinadas para estudar
os processos e os eventos sociais e culturais como fenômenos imunesao alcance
das variáveis naturais. Foi isso que prevaleceu na disciplina.
Esses autores constatam, ainda, que essa situação mudou mais recentemente, com
a formação de um campo de "sociologia ambiental", mas insistem no fato de que
isso só ocorreu devido a pressões "externas", na forma de questões ambientais
cada vez mais visíveis, mais graves e mais amplas, e que resistiam a
explicações puramente sociológicas. Lembram que essas questões foram
identificadas e estudadas por cientistas naturais e da área de tecnologia, cujo
trabalho propriamente científico (em alguns casos, eles se tornaram também
ativistas ambientais, empenhando-se na divulgação dessas questões) deu margem à
emergência de uma consciência ambientalista entre parcelas crescentes da
população. Em outras palavras, a emergência de um "novo paradigma ambiental"
entre os sociólogos não decorreu de uma mudança endógena no âmbito da
perspectiva e da metodologia da disciplina. Escrevendo em 1986, Buttel afirmava
que a "sociologia ambiental" de língua inglesa, mesmo depois de vinte anos de
produção e ganhando legitimidade crescente nos meios sociológicos, não
conseguira dar uma nova forma ou direção à sociologia praticada nos Estados
Unidos.2
Destaque-se ainda que, para a maioria dos sociólogos, mesmo entre os que
ingressaram na questão ambiental pelo portal mais recente da sustentabilidade,
continuou a prevalecer o "paradigma da imunidade humana". Essa é, a meu ver, a
mais grave limitação à eficácia das intervenções de cientistas sociais no
estudo das questões ambientais.
As ciências naturais e a "invenção" das grandes questões ambientais
A seguir, examino as contribuições de sete cientistas naturais que, a partir da
década de 1930, "criaram" ou contribuíram para disseminar os principais
problemas que hoje classificamos consensualmente como "ambientais". Esse tipo
de problema é tão facilmente identificado hoje graças ao pioneirismo, à
competência, à ousadia e, por vezes, à capacidade "cidadã" desses cientistas de
lutar e divulgar suas descobertas fora do meio científico, remando contra
"marés" pouco propícias, como, por exemplo, a generalizada indiferença e
eventual hostilidade que suas contribuições mereceram de cientistas sociais.
Abordarei esses autores ' reitero: Paul Sears, Aldo Leopold, Rachel Carson,
Paul Ehrlich, Donella Meadows, Garrett Hardin e James Loveloc ' seguindo um
roteiro de tópicos (parcialmente em ordem cronológica) de que me vali para
enquadrar suas contribuições mais expressivas.3
A desertificação esteriliza projetos humanos4
Focalizo primeiramente uma obra editada em 1935, cerca de vinte anos antes do
início da disseminação da preocupacão ambiental moderna em meados da década de
1950. Foi escrita por Paul Bigelow Sears (1891-1990), botânico norte-americano
que fez parte de um grupo de cientistas naturais advindos de diferentes países,
dedicados a estudar o fenômeno da desertificação em escala planetária. Este
grupo formou duradouras linhas e redes de pesquisa e de monitoramento que se
tornaram a base de políticas públicas e que atuam de maneira contínua há sete
décadas, às vezes com apoio de organizações intergovernamentais, como, por
exemplo, a FAO ' United Nations Food and Agriculture Organization. Entre outras
coisas, essas linhas e redes fizeram dos desertos ecossistemas mais conhecidos
cientificamente do que as florestas tropicais úmidas, valorizadas apenas mais
recentemente. O livro mais famoso de Sears, Deserts on the march(1988 [1935]),
foi lançado quando os Estados Unidos vivenciavam, em seus desertos ou quase-
desertos, um dos maiores desastres ambientais registrados no mundo moderno ' as
tempestades de vento e areia que ganharam o apelido de Dust Bowl, amplas e
graves conseqüências para os habitantes da região dos Great Plains, limítrofe a
vários desertos, a oeste e sudoeste, o que despertou temores quanto à expansão
dos mesmos.
Conhecido livro de divulgação científica, Deserts on the march focaliza o
rumoroso Dust Bowl e deve parte de sua popularidade ao medo "doméstico" dos
norte-americanos ante o desastre ambiental e a perspectiva de ampliação dos já
extensos desertos do país. No entanto, Sears trata dos desertos de uma maneira
em geral, em outros continentes e de períodos da história antiga e
contemporânea. Narra dezenas de processos e episódios em que sociedades
diversas foram algozes de si mesmas, ao praticar extrativismo, agricultura,
pecuária, corte de árvores e manipulações da água que ajudaram a formar ou a
ampliar desertos estéreis, incapazes de sustentar as atividades humanas.
Apesar de se basear principalmente em conceitos e análises oriundos da
geologia, da climatologia e da botânica, áreas nas quais desenvolvia trabalhos
estritamente "naturalistas", sobre os quais acumulou prêmios, homenagens e
honrarias, Sears notabilizou-se precisamente por documentar como muitos povos '
denominados por ele "fabricantes de desertos" ' cavaram o seu próprio abismo,
repetindo erros e recusando-se a respeitar os limites que a natureza impõe às
sociedades humanas. Ele não lamentava "naturalisticamente" a erosão dos solos
ou o secamento dos rios, o sumiço da flora ou a morte da fauna ' o que lhe
interessava era mostrar os efeitos desastrosos da desertificação sobre homens e
mulheres de muitos lugares e diferentes épocas. Vale lembrar que muitos
desertos consolidados do mundo continuam a se expandir hoje em dia, mesmo
depois de décadas da atenção e da intervenção fundadas por Sears e
contemporâneos, e que há muitos outros lugares ' inclusive no Brasil ' sujeitos
a processos menos adiantados de desertificação.
"Não é apenas o solo, nem a planta, nem o animal, nem o clima que precisamos
conhecer melhor, mas principalmente o próprio homem"; "Não se consegue
conquistar a natureza, a não ser nos seus próprios termos" (Idem, pp. xiv, 3)
são frases lapidares que ilustram de maneira precisa o ponto que desejo
destacar, a saber, o fato de esses cientistas naturais terem usado seus
conhecimentos sobre a natureza e seus processos para diagnosticar problemas que
estavam longe de ser apenasnaturais. Em outras palavras, eles tentaram explicar
como esses fenômenos eram ligados a atividades humanas e como interferiam no
bem-estar e na própria sobrevivência dos humanos. Interessavam-se em discutir
como tais problemas poderiam ser evitados e como suas conseqüências poderiam
ser mitigadas ou revertidas pela ação coletiva de sociedades e governos. Nem
sempre foram os analistas mais bem preparados ou mais competentes das causas e
das implicações sociais, econômicas e políticas desses problemas naturais, e
nem sempre propuseram ações viáveis. No entanto, foram eles que trouxeram tais
problemas para a agenda pública, abrindo espaço para que cientistas sociais,
entre outros grupos, pudessem examiná-los com o instrumental próprio de suas
ciências e propusessem ações viáveis, embora isso, infelizmente, quase sempre
tenha demorado décadas para ocorrer.
A ética da terra ' ou a questão do comportamento humano
Aldo Leopold (1887-1948), norte-americano, formou-se em engenharia florestal,
mas sua fama como cientista se deve principalmente ao seu papel de fundador de
uma nova disciplina científica, denominada "manejo de vida silvestre" (wildlife
management). Fez carreira como funcionário do US Forest Service e, depois, como
diretor associado do importante Laboratório de Produtos Florestais da
University of Wisconsin. Nessa mesma universidade, fundou uma cadeira pioneira
dessa disciplina, por meio da qual ajudou a formar centenas de estudiosos e
gerentes de áreas preservadas, especializados em reconhecer e neutralizar os
percalços que a vida selvagem e seus habitats sofrem com a expansão das
atividades humanas, dentro e fora de unidades de conservação. O departamento e
o curso de pós-graduação de manejo de vida silvestre da University of Wisconsin
existem até hoje e continuam na vanguarda da área.
Leopold foi também um ativista ambiental. Em 1924, ajudou a fundar a Wilderness
Society, importante organização civil ambientalista que se dedica
principalmente à proteção de animais selvagens e de seus habitats, apoiando a
criação e a administração de UCs, fazendo lobby a favor de leis protetoras da
fauna e da flora e engajando-se em campanhas educacionais e protetoras. Além
disso comprou uma fazenda falida em Wisconsin e gastou grande parte do seu
tempo livre tentando restaurar o ecossistema nativo (pradarias de gramas
altas), trabalho que se conectou com o de outros grupos de cientistas que
ajudaram a University of Wisconsin a emergir na vanguarda da ainda jovem
ciência de restauração de ecossistemas.
Como se pode observar, Leopold tinha as mãos repletas de tarefas
"naturalistas", aparentemente desconectadas de problemas "sociais". Poderia se
ocupar delas por toda a vida, se quisesse. Porém, poucos meses antes de morrer
acidentalmente combatendo um incêndio nas proximidades de sua fazenda, entregou
a uma editora os originais do que viria a ser um dos textos mais influentes
para a formação da moderna consciência ambientalista ' A Sand County almanac
(Leopold, 1984 [1949]). O livro reuniu escritos inéditos e alguns dos seus
muitos textos publicados em diversas fases de sua vida de profissional e
ativista.
As primeiras duas partes do livro consistem de relatos, em forma de vinhetas e
crônicas, sobre mudanças na natureza que ocorriam em sua fazenda e vizinhança,
causadas tanto pela sucessão de estações como por atividades produtivas das
fazendas. Aparentemente simplórios e "naturalistas", esses textos breves de
história natural contêm, no entanto, ricas observações registradas pelo seu
olho bem treinado para distinguir mudanças naturais das mudanças de origem
antrópica ' uma distinção nada banal para quem lida com a questão ambiental. A
terceira parte reúne textos publicados anteriormente sobre a paisagem rural-
selvagem de várias regiões dos Estados Unidos, iniciativas de proteção de
paisagens e espécies etc. Tudo "naturalista" demais, talvez, para alguns
cientistas sociais. Na quarta parte, porém, Leopold dá um salto e adentra o
terreno da filosofia, dos valores e do comportamento humano em relação à
natureza. Ele trata do conceito de land ethic, expressão que se pode traduzir
como "ética da terra" ou "ética ambiental". Esse seria o tipo de ética que a
sociedade deveria assumir para ter um comportamento conseqüente em relação ao
ambiente ' uma ética a ser praticada não apenas entre seres humanos, mas também
entre esses e os demais membros da "comunidade biótica". Leopold destacava a
expansão da ética na história das sociedades ocidentais, de forma a proteger
círculos cada vez maiores de pessoas ' mulheres, pobres, escravos e
estrangeiros ' das arbitrariedades e da violência de seus semelhantes. Fazia um
paralelo disso com a nova expansão ética que teria que ocorrer nas relações
entre os homens e a terra. Assim como não mais se admite nas sociedades
modernas que se cometam arbitrariedades contra seres humanos, dizia Leopold que
a terra ' se se deseja que ela seja protegida' não mais poderia ficar a mercê
da arbitrariedade dos comportamentos humanos. A relação puramente econômica dos
homens com a terra, segundo ele, criaria apenas privilégios unilaterais, e não
obrigações e restrições mútuas, levando a um tratamento predatório sistemático
em relação a ela. Ou seja, ele propunha uma relação estreita entre as formas
com que os homens se tratam e a maneira que eles interferem nos demais
componentes do mundo natural.
Leopold via no ainda nascente movimento ambiental uma nova força social capaz
de, finalmente, incluir a terra no rol dos entes eticamente protegidos. A ética
da terra não poria fim ao inevitável uso humano dos componentes da natureza,
mas "afirmaria o seu [da natureza] direito à existência contínua", até mesmo no
que concerne o estado natural ou intocado, em alguns casos. O autor afirmava
que a conservação baseada apenas numa ética econômica ou utilitarista era
insuficiente, pois deixaria de fora a maior parte da flora e da fauna (por
serem "inúteis"), as terras não-agricultáveis, os minérios sem uso, as
paisagens "feias" e assim por diante.
A ética proposta por ele abarcaria a sociedade humana e todos os componentes da
natureza numa única e abrangente "comunidade biótica". Isso é outra maneira de
dizer que a natureza e seus componentes não precisam ser úteis para os humanos
para merecerem proteção ou uso cuidadoso ' eles têm um valor intrínseco,
independente de e irredutível à sua utilidade. Vale lembrar que esse é o núcleo
conceitual de uma sofisticada e radical corrente ambientalista contemporânea,
desenvolvida décadas depois, principalmente por filósofos e denominada
"ecologia profunda" (deep ecology).
Leopold sabia que, ao propor uma postura como essa, estava exigindo muito
Coerentemente, considerava que a conservação da natureza baseada nessa ética
não seria tarefa a ser desempenhada por governos vigilantes e repressivos,
dedicados a espionar minuciosamente os cidadãos; seria tarefa de cidadãos
virtuosos, educados, conscientizados de que a ética da terra seria a melhor
para todos. A conservação, nesses termos, não consistia um empreendimento
repressivo, embora fossem necessárias leis severas. O autor reconhecia que se
tratava de uma missão para gerações, no sentido de convencer e educar a
população em geral, trabalho que certamente seria conduzido por uma minoria
ativa e desinteressada, visando à mudança de comportamentos profundamente
enraizados. Somente cidadãos, fazendeiros e industriais convencidos da validade
da ética da terra seriam capazes de tratar a natureza de forma não-destrutiva.
Pode-se dizer que Leopold era um otimista, pois via na história filosófica
humana uma passagem profícua da barbárie, em que os homens se encontravam num
estado hipotético de natureza, à formalização de uma ética primeiramente
limitada a alguns círculos sociais e, depois, inclusiva de todos os seres
humanos. Estender tal ética aos componentes da natureza seria um grande passo,
mas nada tão ou mais difícil do que a humanidade já conseguira.
Não há dúvida, portanto, de que essa influente reflexão desse cientista natural
sobre as relações humanas e entre os humanos e a natureza nada tem de
"naturalista".
Poluição e contaminação ' de passarinhos, peixes e pessoas
Depois da década de 1950, na esteira de Sears, Leopold e outros cientistas
naturais, os biólogos lideraram a formulação das grandes questões ambientais do
nosso tempo e o seu enquadramento simultâneo como questões sociais. Muitos
autores que se dedicam a estudar as origens do movimento ambiental
contemporâneo consideram que o marco fundador foi o lançamento, em 1962, do
livro Silent spring(1962), da bióloga norte-americana Rachel Carson (1907-
1964). O livro causou forte e duradoura comoção pública nos Estados Unidos e em
outros países, influenciou carreiras científicas, criou linhas de pesquisa e
desdobrou-se em regulamentos e leis que tiraram do mercado produtos modernos e
de alto valor agregado. É comum cientistas e ativistas ambientais veteranos, de
muitas partes do mundo, afirmarem hoje em dia que se "converteram" à questão
ambiental lendo esse livro e testemunhando sua repercussão.
Ao contrário do que geralmente se pensa, no entanto, Silent Spring foi para
Carson um livro de maturidade e quase de ruptura. Antes de 1962, ela publicara
ao menos outros três livros (ver, entre eles, Carson, 1941; 1950), cujas
narrativas e foco eram inteiramente diferentes de Silent Spring. Tratava-se de
textos que a inseriam no que hoje se chama ' quase sempre pejorativamente ' de
campo "naturalista". Ela praticava uma espécie de história natural dos mares,
oceanos e litorais, e dos seres vivos que neles habitavam, dando atenção apenas
secundária às sociedades humanas. Publicou em editoras e revistas de prestígio,
lecionou em universidades renomadas, teve bolsas de pesquisa, ganhou prêmios
literários e foi bastante homenageada. Trabalhou como bióloga (e depois como
editora) de um órgão federal que mais tarde assumiria grande importância nas
políticas ambientais dos Estados Unidos (US Fish and Wildlife Service).
Silent Spring é uma obra bem diferente. Trata-se de um livro de denúncia.
Carson narra as sombrias descobertas e constatações (suas e de outros
cientistas naturais) a respeito das conseqüências diretas e indiretas, na
natureza e na sociedade, do uso indiscriminado dos modernos pesticidas,
herbicidas e fungicidas agrícolas (e substâncias associadas). O título refere-
se, um tanto poeticamente, ao fato de que certas espécies de pássaros dos
Estados Unidos, antes com populações muito numerosas, tornaram-se raras,
"silenciando" as primaveras antes marcadas pelos seus cantos. Suas pesquisas
mostraram que essas aves estavam sendo eliminadas pelos efeitos diretos e
indiretos daquelas substâncias, em alguns casos aplicados em áreas agrícolas
situadas a centenas de quilômetros dos litorais e dos estuários atlânticos nos
quais a autora realizava suas pesquisas.
Não se trata, porém, de um livro lírico sobre passarinhos, mas um relatório
sério, áspero e perturbador sobre os riscos e as calamidades que a sociedade
mais próspera do planeta estava introduzindo voluntária e entusiasticamente no
ambiente natural do seu próprio território. Contestou, com sólida base
científica, a moderna, dinâmica e lucrativa prática agrícola ' propiciada por
conglomerados e produtos industriais de prestígio inabalado ' que criava
efeitos deletérios de longo prazo sobre o ambiente natural e as sociedades
humanas, uma vez que essas também eram altamente suscetíveis aos efeitos
negativos dos agrotóxicos. Assuntos "desagradáveis" como câncer, mutações
genéticas, lesões nervosas, intoxicações, defeitos congênitos, envenenamentos '
tudo isso em seres humanos ' abundam nos concisos e bem organizados parágrafos
de Carson. Ela por certo abordava pássaros raros e peixes envenenados, mas
estava preocupada, antes de tudo, com a saúde e o bem-estar dos humanos.
Silent Spring desencadeou um movimento social que, entre outras coisas, levou
ao banimento do DDT e ao controle sobre outros agrotóxicos e substâncias
tóxicas nos Estados Unidos, um dos primeiros casos de controle público sobre
atividades produtivas modernas. Embora alguns cientistas sociais equivocados
ainda hoje pensem que Carson se preocupava apenas com passarinhos, já em 1962
os executivos de empresas produtoras de pesticidas, o lobby dos fazendeiros
modernizados e os dirigentes de alguns órgãos públicos sabiam muito bem que ela
estava desafiando o seu poderio econômico. Tentaram, sem sucesso, desqualificá-
la como cientista e estigmatizá-la como alarmista, mas foram derrotados com o
banimento da produção e do uso nos Estados Unidos do DDT, símbolo maior da
primeira geração de pesticidas sintéticos. Mesmo assim, esse produto continuou
a ser fabricado e usado em outras regiões do mundo que desprezaram as
constatações de Carson e de outros cientistas que, desde então, monitoram os
efeitos negativos de sucessivas gerações de pesticidas sintéticos. Graças a
ela, no entanto, o tema dos efeitos potencialmente perigosos de pesticidas e de
muitas outras substâncias sintéticas foi inscrito permanentemente na agenda
ambiental, quer nas ciências, nas políticas públicas, quer no campo do ativismo
ambiental.5
Crescimento populacional ' os humanos sobrelotam o planeta
A questão do crescimento populacionaltambém fez parte da "invenção" da questão
ambiental contemporânea. O melhor registro disso são os escritos de Paul R.
Ehrlich (1932), biólogo norte-americano. Ele fez carreira na University de
Stanford (Califórnia, Estados Unidos) como professor de estudos populacionais
(trata-se de populações de plantas e animais). Ehrlich iniciou sua carreira na
década de 1950, pesquisando casualmente um assunto que preocupava bastante
Rachel Carson no final de sua carreira ' o desenvolvimento de populações de
insetos (considerados "pragas") resistentes aos pesticidas, por via da seleção
genética. Ehrlich tornou-se um perito em populações, co-evolução, dinâmicas
reprodutivas de animais e biologia da conservação, além de ser um importante
divulgador do darwinismo e do conceito de serviços ecossistêmicos. São assuntos
mais do que suficientes para compor uma bem-sucedida carreira científica na
disciplina da biologia. Ehrlich poderia ter prosseguido estudando
exclusivamente a dinâmica reprodutiva das populações de simplórias e
incontroversas borboletas checkerspots residentes nas vizinhanças do campus de
Stanford. No entanto, a partir de 1968, ele se deteve no estudo da reprodução
dos seres humanos. Publicou um livro que se tornaria um clássico da questão
ambiental ' The population bomb (Ehrlich, 1986 [1968]), um dos grandes best-
sellers mundiais de sua época. Com ele, Ehrlich passou a ser porta-voz e
protagonista do movimento ambientalista, já que o livro é uma conclamação à
ação. A "bomba populacional" de que ele tratou nãoera a das inofensivas moscas
Drosophila (cuja resistência ao DDT ele estudara no início da sua carreira),
mas a de seres humanos. Como vemos, era mais um biólogo a tratar de uma questão
a um só tempo social ambiental, sob a ótica da sustentabilidade.
Ele deve ter sido o primeiro autor bastante difundido que transferiu
explicitamente para o estudo das sociedades humanas o conceito de capacidade de
carga. Aplicou esse conceito em escala planetária e chegou a conclusões
alarmistas ' quando não catastrofistas ' de crises e mesmo de colapsos
iminentes na produção de alimentos e na oferta de matérias primas em geral.
Apesar de seu tom sombrio e alarmista (aspecto aliás muito comum em várias
correntes da literatura ambientalista, até hoje) e de alguns cálculos
equivocados, trata-se de um estudo do que hoje chamamos de "sustentabilidade
ecológica" da espécie humana como um todo, tendo como base os recursos naturais
do planeta.
A recepção à obra foi polêmica, originando debates sérios e duradouros. Os
críticos logo compararam Ehrlich a Thomas Malthus (1766-1844), economista
político britânico que, no século XVIII, propôs a existência de uma relação
direta entre a fome e o crescimento acelerado da população carente na Grã-
Bretanha. Ehrlich e outros cientistas e ativistas que o apoiavam foram
instantaneamente rotulados de "neo-malthusianos", o que não era exatamente um
elogio, pois seus críticos queriam mostrar que, tal como supostamente fez
Malthus, Ehrlich via a pobreza (e a degradação ambiental) como conseqüência do
aumento da população carente. Sendo evolucionista, ou seja, um herdeiro
intelectual de Charles Darwin, tal crítica não é infundada, uma vez que o
próprio Darwin aponta o trabalho de Malthus como a matriz da idéia de "economia
da natureza", o contexto original de sua teoria da evolução das espécies via
seleção natural.
Em geral, os cientistas sociais ignoraram-no ou estigmatizaram-no. Em primeiro
lugar, estranhavam que um biólogo aplicasse aos humanos um método próprio para
estudar animais e plantas. Este é um exemplo claro do quanto esses sociólogos
estavam tomados pelo já citado "paradigma da imunidade humana" às variáveis
naturais ' ou seja, a idéia de que os homens seriam a única espécie cujo
crescimento exponencial não teria limites nem implicações sobre a natureza. Em
segundo lugar, rejeitavam a perspectiva malthusiana de Ehrlich, estabelecendo-
se firmemente no campo daqueles para quem o crescimento populacional não é um
problema grave, ou sequer um problema. isso deriva de uma visão profundamente
utilitarista sobre a natureza, que defende a expansão contínua da espécie
humana para além de quaisquer considerações sobre a base de recursos naturais
que sustentam a espécie.
De fato, havia um tom malthusiano em The population bomb se pensarmos nos dados
sobre a pobreza com que Ehrlich lidava. No entanto, o autor afirmou que também
as populações dos países ricos tinham crescido exponencialmente, ou seja, não
os "inocentava" ' detalhe importante que os críticos não sabem justamente
porque não o leram devidamente. Ehrlich focalizava a tensão que considerava
mais alarmante, qual seja, a coincidência de haver cada vez mais pessoas e
menos comida nos países pobres; foi por esse motivo que se deteve no estudo
desses países. Fundou um movimento/organização denominado ZPG (zero population
growth [Crescimento Populational Zero]), incentivando campanhas para conter o
crescimento populacional e estimular o planejamento familiar, tanto em países
ricos como pobres.6
Ehrlich logo incorporou parte das críticas recebidas. Em outro livro ' The end
of affluence, lançado em 1974, com a colaboração da sua esposa, Anne Ehrlich,
deu o devido peso ao papel dos níveis elevados de consumo dos países mais ricos
no quadro do esgotamento de recursos naturais. Embora menos numerosos e com
crescimento populacional muito mais lento (no século XX) em comparação com o
que ocorria em países subdesenvolvidos, esses países consumiam
proporcionalmente muito mais recursos naturais e, por isso, tinham um maior
peso na destruição ambiental em escala planetária. Esse tipo de "regra de três"
se banalizou, aliás, na literatura ambientalista, principalmente na dos
ambientalistas "sociais" ou partidários da "ecologia política", que muitas
vezes pensam que um biólogo não possui a sensibilidade para perceber as nuanças
que envolvem as questões ambientais ' pensam assim porque não leram Ehrlich.
Este autor passou a cruzar os dados e as taxas de crescimento populacional com
os níveis médios de consumo. Em The end of affluence, os autores discutem, para
além da análise de países subdesenvolvidos, indicações da insustentabilidade do
moderno modelo industrial de países ricos, enfocando sua voracidade por
recursos naturais.
Vale lembrar da crítica ao Brasil numa breve seção intitulada "O Brasil: o
gigante adormecido que pode morrer em breve" (pp. 128-137), que se segue a
outra seção ' igualmente crítica ' sobre o "sobre-desenvolvimento" japonês no
período pós-1945. Ehrlich critica o Brasil não apenas pelo crescimento
populacional, mas também por sua adoção sôfrega de um modelo de crescimento
acelerado, baseado em grandes unidades de produção e no consumo abundante de
energia. Mais especificamente, a crítica recai sobre o que chamamos de "milagre
brasileiro" da década de 1970, alvo de todo ambientalista que se preze. É
curioso ver como esse texto breve e até superficial, bastante desconhecido
entre os brasileiros, contém argumentos (certos ou equivocados) que hoje estão
integralmente incorporados nas análises de neófitos do ambientalismo "social"
ou "de esquerda" brasileiros ' disparidades regionais do desenvolvimento,
concentração de renda, expansão da soja e outras monoculturas, ocupação
desordenada da fronteira amazônica, inadequação dos solos amazônicos para
cultivos de grande escala, escalada da construção de estradas, deslocamento de
populações indígenas, posição "pró-poluição" da delegação brasileira na
Conferência de Estocolmo etc. Trata-se de uma agenda de temas sociais bastante
respeitável para um "simples naturalista"
Assim, para Ehrlich, o foco no crescimento populacional não foi um obstáculo
para a construção de uma relação mais racional entre os seres humanos e os
meios de suporte extraídos do mundo natural. Ainda baseado no conceito
biológico de "capacidade de carga" do planeta, ele introduziu nesse segundo
livro, como variáveis intervenientes, a moderna tecnologia de grande escala e
os níveis médios diferenciados de consumo dos recursos naturais dos países
ricos ' e até de um país emergente como o Brasil.
Desde então o conceito biológico de "capacidade de carga" se inscreveu de modo
indelével ' se bem que nem sempre explicitamente ' na literatura científica e
nos debates políticos e ideológicos sobre o meio ambiente. Muitos cientistas e
ambientalistas "sociais" ainda o ignoram ou simplesmente o desconsideram. No
entanto, o mais moderno e flexibilizado conceito de sustentabilidade, proposto
pela Comissão Brundtland, nasceu da concepção de "capacidade de carga",
buscando, além disso, resolver a mesma fração implícita nessa idéia. Ninguém
mais se choca hoje em dia quando, por exemplo, um estudioso divide a oferta de
água doce dos mananciais de uma bacia hidrográfica pelo número de consumidores
e chega a uma cifra indicativa do nível alegadamente "sustentável" de consumo
por habitante. Isso se tornou um procedimento tão imprescindível quanto banal.
A implicação mais ampla da reflexão de Ehrlich sobre o crescimento populacional
é que a humanidade trilha um caminho insustentável, pois tende a consumir mais
do que a natureza tem a seu dispor e mais do que a capacidade produtiva
instalada pela sociedade humana consegue atender. Pode-se discordar dele, ou
chamá-lo de catastrofista e neo-maltuhisiano, mas é preciso admitir que, no
final das contas, Ehrlich não é tão "naturalista" assim
A extinção de espécies e a biodiversidade ' efeitos sobre os homens
Extinction: the causes and consequences of the disappearance of species
(Ehrlich e Ehrlich, 1985 [1981]) contribuiu decisivamente para inserir na
agenda ambiental global dois outros tópicos bastante correlacionados ' a
extinção de espéciese aproteção da biodiversidade. Novamente, trata-se de um
cientista natural analisando um problema natural que, por sua vez, se tornou
também ambiental, ou seja, um problema situado na interface natureza-sociedade.
É verdade que há décadas botânicos e zoólogos já lidavam com o problema de
extinção de espécies (e da conseqüente perda de diversidade), advindo tanto de
causas puramente naturais, como das atividades humanas. No entanto, os
cientistas sociais só prestaram atenção nesse problema depois que um grupo de
cientistas naturais sistematizou dados a esse respeito em escala planetária,
estabelecendo correlações importantes entre extinção de espécies e atividades
humanas ' desmatamento, caça ou pesca indiscriminada, poluição, eliminação de
habitats, expansão de fronteiras agrícolas etc. '; ressaltou, ainda, o valor da
biodiversidade para o bem-estar dos humanos, discutindo sobre isso por muito
tempo e incansavelmente. Ehrlich foi um dos líderes desse grupo.7
Focalizado, é evidente, em plantas e animais, no entanto, esse estudo
sistematiza (principalmente no Capítulo 4) informações e análises sobre os
benefícios que aqueles trazem para a humanidade, em termos de alimentos,
remédios, materiais de construção, fontes de energia, controle biológico (de
"pragas"), serviços ambientais etc. Basta ler os títulos de capítulos ou seções
' por exemplo, "Benefícios econômicos diretos da preservação de espécies";
"Extinções e serviços ecossistêmicos"; "O comércio de animais selvagens";
"Energia e destruição de habitats"; "Reprodução em cativeiro"; "Geração e
manutenção de solos"; "Desenho de reservas"; "Recuperação de ecossistemas";
"Regulação da oferta de água doce"; "Polinização" ' para ver que se trata
principalmente de um livro sobre como as atividades humanas influenciam a vida
na natureza, de um lado, e como as plantas e os animais atuam em nosso
benefício, de outro. É um precursor de muitas pesquisas, impulsionou carreiras
científicas e desencadeou políticas de proteção de espécies. Três capítulos
inteiros (8, 9 e 10), bem ao gosto do ativista Ehrlich, são dedicados ao "que
estamos fazendo e o que podemos fazer", ressaltando leis, políticas e práticas
relevantes que tiveram êxito em muitos países.
No Capítulo 3, o autor envereda por um campo mais propriamente filosófico,
sistematizando razões "simbólicas" para não se extinguir animais e plantas '
compaixão, estética, fascinação e até o seu "direito intrínseco à existência".
Nesse aspecto Ehrlich, tal como fez Leopold quase trinta anos antes, com mais
profundidade, tangencia a raiz de uma corrente do ambientalismo contemporâneo,
a deep ecology, ou "ecologia profunda", que assume uma posição biocêntrica ou
ecocêntrica. Em outras palavras, o "naturalista" Ehrlich mais uma vez extrapola
seu nicho e trata de atividades produtivas, valores humanos, argumentos
utilitaristas e filosóficos, áreas em que muitos cientistas sociais, engajados
apenas recentemente na questão ambiental, acreditam-se pioneiros.8
Esgotamento de recursos naturais ' a dispensa planetária se esvazia
Outro tema importante para a formação do campo do ambientalismo moderno é o do
esgotamento da oferta de recursos naturais. Esse tema preocupou cientistas e
governantes europeus de meados do século XX, porém por razões especificamente
políticas, ou seja, o esgotamento de recursos como conseqüência dos bloqueios
comerciais ocorridos nas duas grandes guerras mundiais, do fim do colonialismo
e das ameaças ou práticas de boicotes durante a Guerra Fria. No entanto, foi
apenas no âmbito da nascente preocupação ambiental global que a escassez passou
a ser vinculada ao funcionamento "normal" da economia mundial, e não uma
decorrência de guerras, boicotes etc.
A questão emergiu como problema ambiental pleno com a publicação de um livro
que teve uma enorme divulgação e influência duradoura, intitulado The limits to
growth (Meadows et al., 1978 [1972]), também conhecido informalmente como
"Relatório do Clube de Roma". Foi traduzido para cerca de trinta línguas, em
grandes tiragens e debatido durante anos em todo o mundo e todo tipo de fórum.
Trata-se de um estudo coletivo, interdisciplinar e bastante inovador, realizado
por um grupo de dezessete pesquisadores de alto nível, oriundos de pelo menos
seis países e liderados por Dennis Meadows e Donella H. Meadows, do
Massachusetts Institute of Technology (Estados Unidos) ' peritos em teoria dos
sistemas, informática, recursos naturais, poluição, agricultura, mineralogia,
econometria, ciência política e administração.
Embora seu marido, Dennis Meadows, fosse o diretor do projeto e detivesse os
direitos autorais do relatório que deu origem ao livro, foi a norte-americana
Donella Meadows (1941-2001) quem emergiu como o porta-voz do grupo. Graduada em
química com Ph. D. em biofísica, era também analista de sistemas; fez carreira
no Massachussets Institute of Technology e no Dartmouth Colllege, e, graças à
repercussão do livro e ao fato de ter sido uma exímea debatedora e divulgadora
das idéias ali propostas, tornou-se, por assim dizer, uma "cidadã do mundo".
Por anos a fio esse livro gerou polêmicas e desencadeou eventos, pautou o
trabalho de outros cientistas, inspirou relatórios similares, tanto aliados
como rivais, e influenciou a discussão de tratados internacionais e planos de
desenvolvimento. Donella Meadows aproveitou esse movimento para criar o
International Network of Resource Information Centers, também chamado de Grupo
Balaton. Essa rede é uma espécie de think tank que reúne analistas de sistemas
de cinqüenta países, comprometidos com o aumento da eficiência no manejo de
recursos naturais, tendo em vista seu uso sustentável. Em 1992, ainda na
esteira do impacto do livro lançado vinte anos antes, Donella Meadows lançou
outro livro, que pode ser considerado uma atualização do primeiro: Beyond the
limits (Meadows et al., 1992). Com efeito, quando muitos cientistas sociais
começavam a se interessar pela questão ambiental, Meadows já estava dando
continuidade àquele projeto ambiental fundador.
Em The limits to growth, o grupo de pesquisa do MIT discutiu cinco fatores como
limitadores do crescimento econômico global: aumento da população, estagnação
da produção agrícola (por causa da exaustão de solos apropriados), exaustão dos
recursos naturais (principalmente petróleo e certos minérios), pressões da
produção industrial crescente e poluição. Nenhum deles pode ser considerado um
assunto exclusivamente "natural", pois todos têm causas e implicações sociais.
Vale lembrar que, mesmo com a ausência de biólogos na equipe, continuavam em
evidência temas, como crescimento populacional e "capacidade de carga" do
planeta, tão caros aos biólogos.
Meadows e equipe usaram uma modelagem computadorizada, muito sofisticada para a
época, para desenvolver cenários baseados em análise multifatorial e em
correlações simples e múltiplas. Este é hoje um procedimento comum adotado por
universidades, planejadores governamentais, grupos de pesquisa, consultores e
empresas. Os modelos absorviam e processavam, segundo os diferentes cenários
programados, grandes volumes de dados sobre a disponibilidade de recursos
(solos agrícolas, minérios e fontes de energia), o consumo de recursos naturais
e alimentos, o crescimento populacional, as cargas de poluição lançadas nas
águas e no ar etc. Todos os cenários desenvolvidos (que incluíam mudanças
"atenuantes", como a multiplicação hipotética de reservas de minérios ou o
aumento da produtividade agrícola) indicavam fortes possibilidades de colapsos
sociais, econômicos e ecológicos globais, advindos da fome, da exaustão de
petróleo e de certos minérios cruciais para a vida industrial, da destruição de
solos agrícolas e da contaminação do ambiente natural por substâncias tóxicas.
Alguns ocorreriam dentro de poucas décadas, caso as atividades produtivas e a
população continuassem a crescer no mesmo ritmo.
Para alguns o livro era uma profecia catastrófica e iminente, para outros, um
diagnóstico alarmante, mas representou antes de tudo um modelo para realização
de novos estudos. Contudo, foi duramente criticado por marxistas e estudiosos
de outras linhagens, por nacionalistas e por cientistas do terceiro mundo. Eles
o consideraram determinista, alarmista, insensível à capacidade humana de fazer
adaptações políticas e sociais que pudessem evitar as catástrofes previstas.
Creio que seja uma crítica injusta, pois a própria teoria dos sistemas (que
orientou a equipe de Meadows) pressupõe a ocorrência de "retroalimentações
positivas", com base em constatações, decisões e mudanças de comportamento
capazes de reverter ou suavizar a crise de qualquer sistema.
Por causa de sua preocupação com o crescimento populacional, o livro também foi
rotulado de "neomalthusiano", o que era previsível. A crítica de políticos e
cientistas dos países subdesenvolvidos incidiu sobre o fato de eles o
considerarem uma tentativa "imperial" dos países ricos de restringir o processo
de desenvolvimento dos mais pobres, em nome da amenização dos impactos das
atividades humanas sobre o ambiente natural em escala global. Cientistas
sociais que também o criticaram ainda sucumbiam ao paradigma do "social pelo
social" e reduziam a questão ambiental a mais um item das polaridades entre
países ricos e pobres, mas ao menos começavam a prestar atenção à questão
ambiental e aos dados necessários para aferir sua existência e mensurá-la.
Independentemente de errar em quase todas as suas previsões ' risco inerente à
construção de cenários ', há dois méritos relevantes que não podem ser
esquecidos: (1) a idéia de que a continuidade da espécie humana precisa ser
debatida no contexto das limitações biofísicas do meio natural e (2) o impulso
à realização de estudos similares, de caráter global, regional ou nacional,
focalizados de forma abrangente nas relações entre os estoques de recursos
naturais e as atividades humanas. Ou seja, Meadows e co-autores mantiveram em
pauta o conceito de "capacidade de carga" como instrumento legítimo de pesquisa
sobre problemas sociais e econômicos. Esses dois preceitos estão na linhagem
ascendente direta do conceito de desenvolvimento sustentável.
A "tragédia" dos recursos de propriedade comum ' desafios à capacidade de
organização social
Outro texto de forte influência no campo do ambientalismo é um pequeno artigo
intitulado "The tragedy of the commons", de Garrett James Hardin (1915-2003),
publicado originalmente em 1968 na revista Science. Norte-americano, formado em
zoologia e com Ph.D. em microbiologia, Hardin fez uma longa carreira
universitária na University of California (Santa Barbara), onde se tornou
professor emérito de ecologia humana. Era um perito em questões de dinâmica de
populações, humanas ou não. Entre sua extensa obra ' 350 artigos e 27 livros '
o artigo supracitado foi republicado em mais de cem coletâneas, obtendo grande
repercussão no mundo inteiro e foi durante muitos anos o artigo científico mais
lido, citado e debatido em todo o mundo. Em 2003, num tributo ao autor, a
revista Science dedicou um número especial aos 35 anos de contínuos debates em
torno do polêmico artigo originalmente divulgado em suas páginas. Hardin foi,
portanto, mais um prestigiado cientista natural que formou a base para o debate
ambiental contemporâneo.
Não só cientistas naturais, mas também economistas, sociólogos, antropólogos,
cientistas políticos e psicólogos discutiram suas idéias. Assim como outros
autores já citados, Hardin estimulou, de um lado, cientistas naturais a se
ocuparem das dimensões sociais e políticas das questões ambientais e, de outro,
desafiou sociólogos a abrir novas linhas de pesquisa, utilizando-se de seus
instrumentais. Além disso, era engajado em organizações e causas sociais, como
a legalização do aborto, a referida Zero Population Growth (fundada por
Ehrlich) e o combate à imigração ilegal nos Estados Unidos.
Apesar de sua formação, a abordagem de Hardin nesse famoso artigo ' que no
Brasil é muito mais citado do que lido ' era visceralmente cultural ou
política, e não naturalista. Segundo ele, no uso de recursos naturais de
propriedade comum, o interesse individual tende a prevalecer sobre o interesse
coletivo se não houver regras eficazes de acesso e uso. Isto é, nesse caso a
dinâmica do uso dos recursos é movida pela ambição de usufruí-los
individualmente, em detrimento do interesse geral a curto ou a longo prazo.
Segundo Hardin, o acesso não-regulamentado a uma área comum ou a um estoque de
recursos naturais tende a facilitar um uso irracional e, eventualmente, gerar
seu esgotamento, com prejuízo para todos, independentemente da intenção de cada
usuário, que apenas procura maximizar seu ganho individual. Chamou isso de
"tragédia dos recursos de propriedade comum".
O exemplo que usou no famoso artigo é simplório e, rigorosamente, contraditório
à sua premissa, conforme apontado por sociólogos e antropólogos. Ele imaginou
uma situação em que uma comunidade camponesa hipotética mantém uma área de
pastagem comum que, no entanto, acaba sendo sobre-explorada pelo acúmulo de
decisões individuais maximizantes ' o aumento de animais no pasto para além do
ecologicamente possível ', levando a uma eventual degradação deste. O exemplo
de fato não é dos mais felizes, pois a prevalência do interesse individual
significa que as regras de uso comum são fracas ou inexistentes. Ou seja, a
situação imaginada de uma propriedade comum deteriorada não previa regras
socialmente acatadas. Além do mais, há o equívoco "etnográfico" de supor que
nessa comunidade a pastagem seria de propriedade comum, mas os animais,
propriedade individual. Isto é, cada dono de animais estaria submetido também a
regras comunitárias referentes ao pastoreio, o que implica regras não apenas
"deterioradas", mas de alcance limitado.
No entanto, a concepção trágica inferida no texto não é invalidada pela
fragilidade do exemplo. Hardin tinha por base o conceito biológico da
"capacidade de carga"; ele associava, assim como Ehrlich, a "tragédia" ao
crescimento populacional explosivo da humanidade, de recursos muito mais
volumosos mas tão finitos quanto os de um pasto. No caso do exemplo, a
comunidade camponesa entraria em colapso por causa da destruição dos recursos
naturais que lhe davam suporte, alimentando seu rebanho.
O inevitável rotulamento de "neomalthusiano" foi a crítica menos contundente
que Hardin recebeu. Em contrapartida, foi considerado um defensor da
privatização desregrada dos recursos naturais. De fato, foi um crítico severo
de muitos mecanismos estatais de controle sobre os recursos e simpatizante de
algumas soluções de mercado. Curiosamente, no entanto, sua posição ' geralmente
surpreendente para críticos que nunca leram sua obra ' era de que os recursos
naturais só seriam usados racionalmente com a existência de regras de acesso
acatadas e bem definidas, fossem elas públicas ou privadas.
A fé de Adam Smith de que a "mão invisível do mercado" levaria ao bem comum no
domínio econômico e social nãoecoa no pensamento ambiental de Hardin, que
supunha precisamente o contrário, ou seja, decisões individuais, pulverizadas e
desregradas, levariam ao esgotamento dos recursos naturais e, conseqüentemente,
a um "mal comum".
O fato de Hardin ser cético quanto a certas regras governamentais ou
coercitivas não significa que ele era contra todas as regras, ou a favor apenas
de regras liberais. Na verdade, parte das "soluções" que ele propunha se
baseavam no "altruísmo" (assunto ao qual se dedicou extensamente em outros
textos), ou seja, uma postura ética em que cada indivíduo deveria se preocupar
com as implicações de suas decisões sobre o bem-estar comum. Tal preocupação só
ocorreria com a internalização de regras adequadas de comportamento que
levassem em conta o próximo. Ainda assim, Hardin era cético quanto à eficácia
do altruísmo para além de pequenos grupos sociais. Sustentava que este se
diluiria em meio a rivalidades e egoísmos étnicos e nacionais das grandes e
complexas sociedades modernas. Com certeza, Hardin, tal como Aldo Leopold,
pensou a questão ambiental também no terreno da filosofia, da ética e dos
fundamentos do comportamento humano.
As questões levantadas naquele pequeno artigo em torno da propriedade comum '
ou, mais freqüentemente, da propriedade pública ineficaz ' dos recursos
naturais em face do seu esgotamento, do crescimento populacional e das formas
de ação coletiva apropriadas no sentido de aproveitá-los racionalmente
estimularam cientistas sociais a construírem um campo de estudo novo e bastante
relevante ' Common Property Resources (CPR) ', que atraiu, entre outros,
cientistas políticos, como Elinor Ostrom (ver Ostrom, 1990), e economistas,
como Mancur Olson (ver Olson e Landsberg, 1973). Talvez devamos a Hardin a
importante inovação conceitual de abordar de maneira sociopolítica os recursos
naturais como bens públicos, isto é, como bens cuja disponibilidade depende de
ação coletiva e de regras construídas por grupos sociais e pelo poder público.
O resultado mais pragmático dessa idéia talvez tenha sido apresentar a
necessidade da criação de regras de acesso e de usodos estoques de recursos
naturais de maneira teórica e conceitual, o que hoje é um consenso. Novamente,
vemos um biólogo abordando um tema ambiental de fundo, com reflexões sobre o
seu conteúdo social, econômico, cultural e político; nesse caso o autor chegou
a estimular os cientistas sociais a desenvolverem abordagens mais inovadoras.
A saúde do planeta e dos humanos
O inglês James E. Lovelock (1919) formou-se em química e pós-graduou-se em
medicina e biofísica. Ele próprio se define como um pesquisador independente,
mas em diversos momentos de sua carreira esteve ligado à Oxford University e a
outras universidades e institutos de pesquisa, como Yale e Harvard. É outro
cientista que poderia ter-se dedicado apenas a uma carreira "naturalista", com
grande sucesso e impacto. Inventou, em 1957, um aparelho conhecido como ECS
(Electron Capture Detector), que permite analisar a composição química de
misturas de gases (por meio da cromatografia), podendo identificar traços de
gases muito rarefeitos de até uma parte por trilhão (ppt). Esse aparelho
revolucionário ajudou na análise de muitos aspectos da atmosfera terrestre e
também de outros planetas. Foi usado para identificar sinais de vida em outros
planetas, quando Lovelock, a serviço da Nasa, na década de 1960, ajudou na
concepção da sonda interplanetária Voyager.
Outra descoberta científica pioneira de Lovelock foi a do destino dos gases
CFCs, produzidos sinteticamente em larga escala desde a década de 1930 e
disseminados pelo mundo afora por sistemas de refrigeração. Inspirado em Rachel
Carson, que mapeou a maneira pela qual o sintético DDT se espalhava pelos
ecossistemas e organismos, Lovelock, no final da década de 1960, decidiu se
empenhar em descobrir onde se estabeleciam esses gases sintéticos, cujos
efeitos deletérios ainda eram insuspeitados. Em 1972, adaptou seu aparelho ECD
e embarcou numa longa viagem de barco, de norte a sul do oceano Atlântico.
Documentou, então, pela primeira vez concentrações significativas dos CFCs na
atmosfera.9 Isso desencadeou o que ele chamou de "guerra do ozônio", ou seja, o
longo e complexo debate em torno da destruição da camada de ozônio pela ação
dos CFCs liberados na atmosfera.
Esse debate, por sua vez, deu origem a um volume inédito de pesquisas sobre a
atmosfera, suas mudanças e seus efeitos sobre o clima global. Lovelock fez
outras descobertas importantes sobre a distribuição e os papéis biológicos e
climáticos de outras substâncias (naturais e sintéticas), não apenas na
atmosfera, mas também nos oceanos e na crosta terrestre. Dessa forma, esse
cientista também participou dos primórdios da discussão sobre o tão conhecido
atualmente "efeito estufa" ' aquecimento planetário causado ou acelerado pelo
aumento de concentrações de certos gases na atmosfera, e as conseqüências em
termos de mudança climática. Vale lembrar que ao longo de sua carreira teve
como principal colaboradora e co-autora de muitos textos a bióloga norte-
americana Lynn Margulis.
Ainda em plena atividade, Lovelock é hoje um dos mais influentes cientistas e
divulgadores das questões ambientais. Sua fama decorre principalmente dos
livros Gaia: a new look at life on earth (1979) e The ages of gaia (1988). O
primeiro apresenta uma "hipótese" ou a "teoria de Gaia"; o segundo responde a
críticas, mostrando novas evidências e novas argumentações a respeito de sua
teoria. Trata-se de uma forma singular de entender nosso planeta como um grande
organismo vivo. A atmosfera, os oceanos, os continentes e todas as formas de
vida formam, segundo Lovelock, um sistema complexo e ativo, capaz de agir e
reagir a alterações ("naturais" ou induzidas pelos homens) e de restabelecer as
condições necessárias para o prosseguimento e a evolução da própria vida.
Ele afirma que o princípio básico da "teoria de Gaia" lhe ocorreu quando se deu
conta do caráter quimicamente "inerte" ou "entrópico" das atmosferas de outros
planetas. Em contraste, a atmosfera da Terra, sua temperatura e a salinidade
dos oceanos, entre outros aspectos, apresentam conteúdos dinâmicos e "altamente
improváveis", mas ainda assim relativamente equilibrados e duráveis, revelando-
se não-entrópicos. A explicação disso, para ele, é que esses compartimentos do
planeta são, por assim dizer, "manipulados" pela vida para reproduzir as
condições favoráveis a ela.
Apesar das críticas e contestações que apontam falhas como, por exemplo, certo
teleologismo e uma implausível intencionalidade da vida em perpetuar a si
mesma, a hipótese de Gaia ajudou muitos cientistas a contextualizar os
problemas ambientais atuais em escalas de tempo mais amplas, em escalas
espaciais globais e num abrangente esquema de auto-regulação por forças
biogeofísicas que agem muito além da esfera e da capacidade de intervenção da
cultura humana.
Em termos sociais ou filosóficos ' a dimensão que nos interessa aqui ', a
hipótese de Gaia tem contribuído para que muitos estudiosos considerem a
humanidade uma variável tardia e periférica nos grandes processos de mudança e
de manutenção da vida e, por conseqüência, nas questões ambientais. Lovelock
entende que a humanidade gera, sim, ameaças à vida, mas sobretudo em suas
manifestações "macro". Podemos extinguir espécies macro (mesmo não querendo
fazê-lo); no entanto, somos incapazes de extinguir os microorganismos (mesmo
que quiséssemos); estes são, na visão do autor, a base dos grandes processos
mantenedores da vida. Assim, Lovelock também se preocupa com a sustentabilidade
da vida, mas o faz a partir de um paradigma biogeofísico, no interior do qual a
aventura humana é uma parte ínfima de processos avassaladoramente maiores e
mais complexos.
O pensamento de Lovelock, portanto, apresenta um aparente paradoxo: sua
preocupação com a continuidade da vida no planeta convive com a visão de que o
ativismo, o planejamento e o gerenciamento ambientais talvez não sejam tão
eficazes quanto podemos imaginar para a manutenção da vida. Para aqueles
convencidos de que a ação social pode "salvar o planeta", esse é um pecado
imperdoável do autor. De fato, a visão decorrente da "teoria de Gaia"
"apequena" a ação dos humanos no contexto de processos complexos e de longo
prazo, nos quais não se pode interferir ou sua interferência é diminuta. O
máximo que Lovelock considera que os homens podem fazer para ajudar a perpetuar
a vida (e conservar o ambiente natural) é interromper atividades altamente
destrutivas. Isso não significa que ele "libera" a humanidade para destruições
"menores"; ao contrário, ele participa, como cientista e cidadão, de
iniciativas favoráveis à conservação do meio ambiente. No entanto, duvida da
eficácia de muitas iniciativas de grande escala anunciadas como "salvadoras" do
planeta.
Por conta disso, muitos cientistas sociais e ambientalistas "sociais" hesitam
em avaliar Lovelock. Se, de um lado, aprendem com a "teoria de Gaia" '
apreciando especialmente sua visão "organicista" que enfatiza o equilíbrio dos
grandes processos vitais e a capacidade da vida de lutar pela sua própria
continuidade; de outro, preferem agir ou apoiar ações e atitudes que Lovelock
considera fúteis, criticando-o por estimular o grande público a assumir uma
atitude contemplativa em relação a atividades notoriamente deletérias à vida.
Em meados de 2004, Lovelock decepcionou alguns de seus admiradores ao se
manifestar publicamente em favor da expansão da energia nuclear, mas ele se
justifica de forma previsível ' considera a energia nuclear mais limpa e
segura, uma forma menos impactante de produzir a energia necessária para
movimentar as atividades humanas.
De qualquer maneira, temos também em Lovelock um cientista natural que discute
temas novos e caros aos ativistas e sociólogos interessados na questão
ambiental, se bem que de uma forma que curiosamente qualifica certas ações
humanas como irrelevantes perante as grandes forças da natureza. Dos autores
analisados neste artigo, é o que mais se aproxima do chamado "naturalismo",
embora tenha conseguido mobilizar a atenção e a ação de milhões de pessoas, de
governos nacionais e de organismos internacionais para muitos problemas
naturais com implicações sociais.10
Considerações finais
Espero ter ao menos ilustrado a contento que a base das principais questões que
hoje chamamos de ambientais está no trabalho árduo de estudiosos do campo das
ciências naturais, assim como ter logrado alertar os cientistas sociais para o
quanto ainda podem aprender com a leitura dessa literatura.
Além do seu pioneirismo propriamente "temático", tentei mostrar que o moderno
conceito de sustentabilidade ' dentro do qual trabalha a grande maioria dos
cientistas sociais que atualmente se ocupam da questão ambiental, em qualquer
de suas dimensões ' tem raízes no conceito biológico de capacidade de carga, o
qual foi largamente utilizado nas pesquisas ilustradas neste artigo. Com
efeito, esses trabalhos foram também pioneiros em termos conceituais e
metodológicos. Reitero, portanto, a necessidade desse alerta no sentido de
aprimorar a pesquisa no contexto de concepções atuais que trabalham com o
conceito "brundtlandiano" mais abrangente de sustentabilidade, e assim avançar
o conhecimento.
É um fato relevante ' nem sempre destacado no campo das ciências naturais ' que
países subdesenvolvidos consomem recursos e poluem muito menos do que países
ricos, mas essa distinção não muda a substância da fração básica desenvolvida
nos estudos de capacidade de carga. Essa constatação apenas pondera os
componentes do denominador, mas a fração continua a ser instrumento fundamental
da análise socioambiental, como afirmei no início deste artigo.
A sustentabilidade, versão revista e ampliada do conceito de capacidade de
carga, complementa-se com a inclusão dos princípios e requisitos de eqüidade
social e econômica(entre países e povos, e dentro de cada povo e cada país) e
de solidariedade intergeracional. No entanto, esses dois últimos elementos são
mais éticos ou normativos do que científicos. Além do mais, eles estão
presentes na filosofia e nas ciências sociais do Ocidente há pelo menos dois
séculos. Ou seja, o núcleo propriamente científicodo moderno conceito de
sustentabilidade tem raízes na biologia.
Quanto mais cedo os cientistas sociais entenderem e aceitarem isso, mais bem
lidarão com o enorme legado criado por aqueles pesquisadores que, na verdade,
"inventaram" a moderna questão ambiental. Com certeza, a cooperação direta e
indireta com cientistas naturais vislumbra ganhos de conhecimento, uma vez que
a interdisciplinaridade exigida para a análise científica da questão ambiental
vai muito além de tertúlias entre disciplinas irmãs, como a antropologia, a
sociologia e a ciência política.11