Problemas para a atividade internacional das unidades subnacionais: estados e
municípios brasileiros
Considerações gerais
A literatura acadêmica e a experiência concreta sugerem que o tema da
participação internacional e regional dos governos subnacionais vem ganhando
importância e poderá emergir como questão relevante em diferentes países. Do
ponto de vista internacional, seu crescimento é visível há algum tempo, e a
literatura apresenta estudos de casos que comprovam essa afirmação. Os autores
que pesquisaram sobre o papel dos governos subnacionais sugerem que há
experiências consolidadas, sobretudo nos países da OCDE (Organisation for
Economic Co-operation and Development). Soldatos (1990), curiosamente, lembra
que, já em 1882, Quebec indicou um general agentem Paris. Cornago (2004), em
estudo sobre o mundo pós-soviético e a Ásia-Pacífico, mostra como, ao longo da
década de 1990, as ações internacionais de regiões e cidades ganharam uma
relevância até então inexistente. O caso brasileiro não difere desse quadro
geral. O debate não se consolidou ainda, mas há sinais de que a questão terá
maior importância futuramente. As atribuições constitucionais de estados e
municípios ' estes últimos reconhecidos como entes federados a partir da
Constituição de 1988 ' abrem perspectivas para o aprofundamento do debate sobre
a possibilidade e a capacidade descentralizada de interveniência internacional.
Em geral, os estudos nesse campo sugerem que um fator importante para a
paradiplomacia é a existência de governos democráticos e, de preferência,
sistemas federativos. Também nesse caso, o Brasil não seria uma exceção, pois a
retomada da vida democrática entre 1985 e 1990 acabou projetando o tema no
debate político, ainda que de modo limitado.
As constituições estaduais, assim como as Leis Orgânicas dos Municípios, não
absorvem o debate específico sobre o tema, mas constata-se uma busca por parte
do governo nacional e nas ações de facto de algumas instâncias subnacionais no
sentido de adaptações, muitas vezes estimuladas pelos próprios acontecimentos.
No caso brasileiro, o papel dos estados e dos municípios no tocante ao
desenvolvimento e ao planejamento sugere que o problema da inserção
internacional, ou melhor, a absorção da dinâmica internacional, global e
regional nas ações subnacionais, seja cada vez mais relevante. De acordo com
Mariano e Barreto, "o enfrentamento da questão regional constitui-se, assim,
num verdadeiro indicador do avanço da integração" (2004, p. 31). A literatura
mostra que um aspecto que viabilizou inicialmente o debate a respeito das
relações externas dos governos subnacionais foi a existência de fronteiras
porosas entre os países, especificamente o movimento transfronteiriço,
denominado perforated sovereigntiesou mesmo percolated sovereign boundaries.
Por exemplo, à medida que as fronteiras entre o Canadá e os Estados Unidos,
entre os Estados Unidos e o México (independentemente dos aspectos
assimétricos, que não são analisados aqui), ou entre a França e a República
Federal Alemã depois de 1945, transformaram-se em fator de integração
econômica, social e cultural, estimularam-se relações recíprocas e
apresentaram-se novas necessidades institucionais. No Brasil, embora de forma
modesta, verificou-se essa situação em algumas iniciativas surgidas a partir do
processo de integração Argentina-Brasil, portanto depois de 1985; e, no quadro
do Mercosul, também em relação ao Paraguai e ao Uruguai, assim como à Bolívia.
Também estados e municípios mostraram algum ativismo transfronteiriço
(Colacrai, 2004). No governo Lula, visando a fortalecer essa possibilidade,
alguns programas educacionais e de saúde estão especificamente voltados à
lógica transfronteiriça. De todo modo, no Brasil e na América do Sul esse tema
não apresenta a mesma relevância que em outros continentes, já que os centros
econômica e socialmente mais importantes dessas regiões não se situam em áreas
de fronteiras; ao contrário, há regiões de escassa densidade econômica e
demográfica nos limites dos Estados sul-americanos.
Hocking (1993) afirma que o crescente envolvimento internacional das entidades
subnacionais tem sido um movimento que os governos nacionais tendem a ver
negativamente, ou ao menos a manter dentro de estreitos limites. A concepção
realista, estatocêntrica, sugere que a coerência e a unidade da política
exterior sejam necessárias para evitar qualquer vantagem para adversários ou
mesmo para parceiros. Isso explica por que, historicamente, mesmo havendo laços
entre entidades subnacionais, não tenham ganhado relevância política geral e
tampouco tenham se tornado um tema de estudos acadêmicos. Como veremos, em
virtude de adaptações institucionais, que também aconteceram em outros países,
inclusive nos Estados Unidos e na União Européia, no caso do Brasil parece
surgir uma oportunidade de compatibilizar a manutenção do papel do Estado
nacional no campo da política exterior com uma ação efetiva das esferas
subnacionais. Ainda que não seja o objeto específico deste trabalho, sugere-se
com isso a necessidade de uma melhor discussão conceitual a respeito da suposta
inconciliabilidade entre o monopólio, estabelecido por todas as constituições,
da política exterior pelo governo central e a ação subnacional nesse quesito
(Duchacek, 1990). O governo central, no caso brasileiro, mostrou uma busca de
adaptação a movimentos que podem ser inevitáveis. A criação, em 1997, da
Assessoria de Relações Federativas ligada ao gabinete do ministro das Relações
Exteriores parece seguir essa direção, especialmente quando se sabe que ela vem
trabalhando em razoável sintonia com os governos subnacionais.
Autores como Keating (1998) indicam que as causas das estratégias de inserção
internacional dos governos subnacionais não têm origem ideológica nem surgem de
definições precisas. O Estado nacional constitui-se tendo como prerrogativa a
ação internacional; aliás, esta é uma de suas características e razões de ser,
a partir do momento em que cria um mercado protegido. Estados e municípios
buscam o mundo exterior por razões sobretudo pragmáticas; as estratégias stop
and gosão prevalentes. Um elemento que ganhou peso nos anos de 1980, quando se
iniciavam os estudos sobre o tema, foi a percepção de que o que acontece no
plano local, regional ou no território repercute no mundo exterior e é
profundamente influenciado por ele. Na verdade, não há novidade alguma nisso:
desde Tucídides (2003) sabemos que as cidades desempenham um papel
internacional relevante. Foi assim na Idade Média, às vezes por longo tempo,
como no caso das cidades comerciantes; o mesmo vale para os casos de Hamburgo
ou mesmo de Veneza, no Renascimento e depois. O Estado nacional, em seu modelo
westphaliano, absorveu o monopólio legal e real da política externa. Podemos
afirmar que este papel não está questionado mesmo agora, no início do século
XXI. O que levou os governos subnacionais a buscarem relacionar-se com seus
parceiros, em alguns casos mesmo com outros governos centrais, nos processos de
integração regional ou internacional tem a ver com suas necessidades práticas.
Com isso afirmamos que a ação externa subnacional não provoca necessariamente
um movimento crítico do monopólio da política exterior pelo Estado nacional,
como alguns poderiam pensar (Ohmae, 1995). Essa ação acaba sendo, como
certamente sugeririam os funcionalistas, uma necessidade política dos governos,
das elites, dos grupos dirigentes, ou, mais em geral, da sociedade, dependendo
das condições específicas.
No caso do Brasil, pode-se supor que uma das razões pelas quais cidades e
estados aumentaram sua preocupação com o mundo exterior é o fato de que eles
vêm sendo vistos como agentes de desenvolvimento econômico. Tussie e Paglieri
(2004) mostram o entrelaçamento existente entre a capacidade de afirmar uma
política local de desenvolvimento, a ação coordenada em nível nacional e a
intervenção num mundo cada vez mais interdependente. Maior flexibilidade e
capacidade de adaptação às mudanças das sociedades, dos mercados, da tecnologia
e da cultura parecem produzir o incentivo para se aproveitar os benefícios da
globalização ou, ao menos, para se evitar as perdas que podem advir do
alheamento a esse fenômeno. Isso não é estrutural, pois depende das relações
políticas, das inclinações de governos e das forças partidárias e sociais.
Keating (2004) afirma que muitas das ações subnacionais dependem das percepções
e dos interesses dos grupos governantes. Essa flexibilidade, num contexto de
limitação da capacidade indutora do Estado nacional na América Latina ' e que
pareceu acentuar-se na década de 1990 ', poderia estimular novas posturas na
busca de alternativas de crescimento, facilitando a instauração de projetos,
buscando atrair investimentos, utilizando capacidades implantadas,
particularmente as que contribuem para o desenvolvimento tecnológico e a
inovação. Apesar de sucessivas queixas de governadores e prefeitos, a
Constituição Federal de 1988 melhorou as condições estruturais das finanças de
estados e municípios ' ao menos os maiores estados brasileiros têm papel
significativo na indução do desenvolvimento.
No Brasil, parece comprovar-se um dos aspectos mais discutidos no tocante ao
tema da ação internacional dos governos subnacionais e que parece ser uma
característica sua. O aumento do peso dos aspectos internacionais no conjunto
da vida dos países, a interdependência, obriga a que esses tenham que ser
levados em conta nas políticas públicas em geral. Segundo Duchacek (1990), a
preocupação pelo welfareteria estimulado a tendência à adaptação de estados e
municípios e sua busca no sentido de fazer política também em direção ao
exterior. Assim, teria ocorrido um aumento da percepção de que as questões
locais se entrelaçam com o mundo externo, percepção esta que atinge parte da
população, viabilizando o suporte político e social para as ações
governamentais. Quando, em 1987, no governo Pedro Simon, foi criada a
Secretaria Especial para Assuntos Internacionais no Rio Grande do Sul, o tema
da integração regional, sobretudo as relações Argentina-Brasil, era objeto de
grande interesse de parte da população. Portanto, apesar de não ser nova essa
ação, ela ganha contornos específicos na década de 1990 em razão das mudanças
que se produzem no environment internacional, estimulando adaptações a regras e
a valores que têm seu foco nos países ricos. A tendência da adaptação não é
peculiar a este tema, tendo ocorrido também em questões como o comércio e o
meio ambiente, entre outras. No entanto, o tema da ação externa dos governos
subnacionais, mesmo não sendo inédito, ganha novo status, embora se constatem
ainda grandes oscilações na forma como ele é tratado: por exemplo, o governo do
Estado de São Paulo não dispõe de uma agência específica de política
internacional, mas no Brasil inúmeros outros governos estaduais e mesmo
municipais têm procurado se adaptar, criando secretarias ou segmentos
administrativos específicos para a área.
Um tema recorrente da ação subnacional em política internacional, tanto na
literatura como na práxis, é aquele que discute o seu potencial de conflito com
a política exterior do Estado nacional. A literatura indica que, apesar dos
riscos, isso dificilmente acontece, a não ser quando há crises abertas do
sistema federativo, como ocorreu no Canadá nos anos de 1960, ou quando há
intenções secessionistas por algum motivo ' étnico, lingüístico, nacional ou
outro ', como sucedeu na ex-Iugoslávia na década de 1990. De todo modo, esse
conflito potencial ' ou suas formas de resolução ' entre governos locais e
governo central é um ponto central quando se discute a política externa dos
entes subnacionais. No caso brasileiro, parece confirmar-se a tendência
observada na maioria dos países à concentração de ações ligadas apenas à low
politics, especificamente movimentos que não interferem na estratégia
internacional do país, não se relacionando nem remotamente a temas da high
politics, como estratégicos ou de segurança, e nem mesmo a opções econômicas de
caráter geral.
O que prevalece é aquilo que denominamos stop and go: há ativismo em questões
como convênios tecnológicos, cooperação técnica, empréstimos, turismo,
investimentos, entre outras, mas nunca houve um movimento em torno de qualquer
outro tema que não estivesse ligado a questões locais. Ainda assim, as ações de
alguns governos no sentido de atrair investimentos estrangeiros por meio de
favorecimentos fiscais não pactuados na federação acabaram levando a crises,
nem sempre superadas. Alguns estados, como Rio Grande do Sul e Bahia, em certas
ocasiões chegaram a causar problemas para o pacto federativo em razão da ação
assimétrica adotada para a atração de investimentos, sobretudo do setor
automotivo. De fato, a realização de viagens, de negócios e de acordos
aparentemente deu-se sempre sob a guarida do Estado nacional e com o
beneplácito do Ministério das Relações Exteriores. Nas experiências que
estudamos mais especificamente ' estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul e
cidade de São Paulo (Cedec e PUC/SP, 2002; Cedec, Unesp, PUC/SP e FGV/SP, 2004
' Projeto Temático Fapesp) ', constata-se o crescimento do peso da política
exterior, ainda que dela nem sempre tenham resultado conseqüências
administrativas consistentes. Conforme Duchacek (1990), os temas prevalentes na
ação subnacional são comércio, investimentos, tecnologia, energia, meio
ambiente, turismo, itens sociais, intercâmbios culturais, políticas
migratórias, tráfico de drogas, epidemias e políticas de sanitárias ' são estes
também os temas que prevalecem no caso do Brasil. Com eles, e como se verifica
em boa parte das experiências de outros países, evitaram-se conflitos entre as
esferas de governo nas questões de política exterior.
Em virtude da relevância que as unidades subnacionais estão adquirindo no
tocante à presença internacional, no caso brasileiro podemos preliminarmente
afirmar que elas podem ser vistas como novos atores. Ainda que não tenham
autonomia para negociar, assinar acordos ou se fazer representar, tais funções
se mantêm como atributos específicos do Estado nacional. Assim, estados e
municípios permanecem não sendo sujeitos do direito internacional público.
Apesar disso, de facto, não de jure, participam de modalidades de cooperação
internacional, estabelecem ou buscam acordos de cunho econômico e cultural, de
modo formal ou informal. A Constituição do Brasil estabelece claramente que,
como em todos os países, sem exceção, as relações externas são de competência
privativa do Estado, cabendo a ele estabelecer vínculos ou acordos com outros
Estados, com organizações internacionais ou com outras entidades. Nos temas
gerais da política externa, Duchacek (1990) assinala que os interesses locais,
que existem, se manifestam ou deveriam se manifestar por meio dos órgãos
nacionais. Isso é válido para as negociações econômicas, para as de segurança,
para os tratados relativos a qualquer tema, ainda que de interesse para uma
região ou de uma cidade. No Brasil, diferentemente do que ocorre em outros
países, como Canadá ou Estados Unidos, por exemplo, parece que a capacidade de
incidência dos governos locais sobre as esferas nacionais é relativamente
restrita, não sendo objeto de ações específicas, sobretudo não tendo canais
institucionais. Como vimos nas pesquisas que realizamos, os interesses locais
pressionam as autoridades federais por meio de representações setoriais,
empresariais, sindicais, de categorias, de classe ou corporativas. No entanto,
a adaptação institucional do governo central para incluir as instâncias
regionais é fraca. No processo de integração regional do Mercosul, busca-se
fazer algo nesse sentido, embora com resultados concretos reduzidos, pois mesmo
quando se tenta constituir organismos específicos, eles não chegam a ter
poderes reais.
Paradiplomacia
A literatura especializada ampliou na década de 1990 o conceito de
paradiplomacia para indicar a participação de outros atores estatais, que não o
Estado nacional, na ação internacional. A questão tem origem remota, sempre
entrelaçada com os debates clássicos sobre o conceito de soberania nacional e
sobre o federalismo. Desde a década de 1980, a formulação conceitual vem se
afirmando, estimulada pelas necessidades concretas. As obras de Soldatos (1990)
e de Feldman e Feldman (1990), entre outros, com base na experiência canadense,
têm sido pioneiras na formulação de um novo marco teórico. A marcante e
crescente presença dos níveis subnacionais no cenário externo vem sendo operada
via contatos formais e informais com entidades públicas ou privadas
estrangeiras, em algumas circunstâncias ultrapassando ' sem contudo rompê-los
abertamente ' os limites aos quais cada entidade subnacional está
constitucionalmente vinculada. Trata-se de um campo onde há formas difusas de
atuação e onde os limites legais não são precisos. Visando a alcançarem
eficiência e operacionalidade, é de fundamental importância esclarecer a
atribuição dos respectivos papéis e os parâmetros jurídico-legais que envolvem
esses contatos e subseqüentes acordos.
No caso brasileiro, a dimensão dessas atribuições pode ser claramente
identificada na preocupação do Ministério das Relações Exteriores em adequar-se
à nova situação, não institucionalmente formalizada, mas ganhando significativo
peso. Segundo Moura Daniel, a criação da Assessoria de Relações Federativas no
Ministério em 1997 busca responder à necessidade de adequação aos fenômenos
novos:
Vou dar uma pequena notícia sobre a organização no Itamaraty, dessa
nova unidade, denominada Assessoria de Relações Federativas. Seu
objetivo consiste, exatamente, em coordenar e apoiar os governos
subnacionais no processo de integração que se realiza não só no
âmbito do Mercosul, mas com outros países também [ ]. Ela foi criada
exatamente em razão dessa nova e intensa participação dos governos
subnacionais, estaduais e municipais, no processo de integração do
Mercosul. Cada vez mais estes governos subnacionais participam na
organização e na condução da política externa brasileira. A
Assessoria de Relações Federativas do Itamaraty foi instituída em
junho de 1997, criada por determinação expressa do presidente da
República, Cardoso, e vinculada diretamente ao gabinete do ministro
de Estado de Relações Exteriores, com a missão precípua de
intermediar as relações entre o Itamaraty e os governos dos estados e
municípios brasileiros, com o objetivo de assessorá-los nas suas
iniciativas externas, tratativas com governos estrangeiros e
organismos internacionais. A assessoria tem por objetivo sistematizar
e centralizar os contatos entre os governos estaduais e municipais e
o Itamaraty, até então dispersos entre as várias áreas substantivas
da Secretaria de Estado. Busca promover, além disso, a interlocução
dos Estados e municípios com os escritórios regionais do Itamaraty no
Brasil. A essa Assessoria do Itamaraty estão subordinados oito
escritórios regionais, sediados em oito Estados brasileiros (2002, p.
45).
Em outros termos, o crescimento da importância da paradiplomacia acabou por
afetar o Ministério das Relações Exteriores, visto haver um fenômeno de spill
over em relação à capacidade do Estado nacional em administrar os temas
subnacionais, que deveria de algum modo ser equacionado. Segundo alguns
funcionários, a preocupação de uma parte da diplomacia foi aumentando na medida
em que os estados e municípios passaram a articular relações externas, o que
gerava situações irregulares visto que todo acordo internacional é atribuição
do Estado nacional e deve ser aprovado pelo Senado federal. Em junho de 2003,
um novo Decreto reformula a Assessoria, constituindo a Assessoria Especial de
Assuntos Federativos e Parlamentares e unificando as assessorias de relações
federativas e de relações parlamentares, até então desvinculadas. Não estão
claras as conseqüências dessa mudança, certamente implicando em risco de
diminuição da atenção em relação a uma das partes sob responsabilidade do órgão
assim criado. Parece nesse caso confirmar-se a idéia do stop and go à qual
fizemos referência, ora fortalecendo-se o tema no aparelho estatal, ora
atenuando-se o seu peso. Tanto no que se refere aos governos locais, como ao
aparelho central do Estado, parece também se confirmar a afirmação de Keating
(2004) de que muito depende de políticos empreendedores, pois é por intermédio
deles que a ação paradiplomática se fortalece; se não existirem, essa ação se
debilita.
A preocupação do governo central com a relação entre as questões federativas e
a ação internacional pareceu ampliar-se no governo Lula, atingindo o núcleo da
administração. A criação da Assessoria de Cooperação Internacional Federativa
em 2003, seguida pela Subchefia de Assuntos Federativos, na presidência da
República, em 2004, sugere essa tendência. Como em outras experiências, a
direção geral do processo não é clara. Parece que a busca de maximização da
capacidade nacional de promover a participação exterior dos governos
subnacionais não é homogênea no governo. Nos setores em que, como lembra
Kincaid (1990), a preocupação pela ação centralizada do Estado é maior, o
impulso em direção ao fortalecimento da paradiplomacia parece menor. Isso
acontece em alguns órgãos da diplomacia, ainda que nela surjam também
movimentos opostos.
Para Colacrai e Zubelzú, analisando o caso argentino,
[ ] para se entender, em parte, a emergência destes novos processos
de integração e a atuação externa das unidades subnacionais, é
preciso vinculá-los com as mudanças ocorridas no sistema
internacional, em meio ao processo de globalização econômica. A
tendência de formação de blocos regionais, a crescente
transnacionalização e interdependência têm implicado vários canais de
vinculação de atores diversos, ampliando os temas de tipo recíproco
(2004, p. 305).
Em outras palavras, a interdependência que afeta o sistema internacional, que
ganhou status de grande debate teórico a partir da década de 1970,
particularmente com a publicação do livro de Keohane e Nye (2001) em 1997,
acabou fortalecendo o papel de outros sujeitos do direito internacional
público, além dos Estados nacionais. A interdependência é por isso uma
referência teórica que surge reiteradamente no debate. Se isso é válido para os
estados subnacionais, cabe lembrar que também vale para organizações
internacionais, para estruturas supranacionais ou mesmo para entidades
privadas. De fato, como é bem visível na União Européia, com a
institucionalização do Comitê de Regiões, as unidades subnacionais de países
integrantes de blocos econômicos e espaços regionais geograficamente próximos,
ou mesmo distantes, têm tomado iniciativas próprias (Jeffery, 1997).
Pensar novos marcos jurídico-institucionais para esses fenômenos é fundamental,
particularmente na perspectiva política que considera relevante o papel do
Estado nacional. No Brasil, aceita essa relevância ' que não é questionada por
nenhum grupo significativo ' o debate sobre as contradições e as novas
oportunidades que se abrem para os níveis subnacionais ainda não alcançou o
nível apropriado.
A globalização e a integração regional não chegam a desencadear maiores debates
sobre o papel político dos governos subnacionais no sistema internacional, mas
são claras as preocupações de segmentos dos governos locais e de setores da
sociedade a respeito da influência desses fenômenos na economia. Segundo
Kugelmas e Branco (2004), duas forças convivem e combatem na relação entre o
governo central e os poderes locais: uma, centrípeta, que procura reter o poder
para o governo central, permitindo ações autônomas das unidades subnacionais
desde que as regulando e as controlando; outra, centrífuga, que mostra as
unidades subnacionais em busca de maior autonomia política e econômica para
seus interesses específicos, tendência esta acentuada atualmente pelas
crescentes assimetrias na distribuição de recursos internos e nas oportunidades
de negócios abertas em decorrência da globalização. Para esses autores, a
concentração de fatores produtivos, industriais, agrícolas, de serviços e
tecnologia, numa região do país em detrimento de outras, e a concentração
populacional, distorcendo o equilíbrio federativo, são ingredientes que no
contexto atual poderiam fortalecer os elementos centrífugos, ainda que não
tendo concretamente surgido no Brasil.
A busca de ação internacional dá-se em alguma medida em razão dos problemas que
se apresentam objetivamente, mas, como sugerem as análises construtivistas,
também influem a percepção de mundo e os valores de que estão imbuídos os
atores políticos e os agentes econômicos. No estado de São Paulo, alguns
governantes e políticos incentivam regiões administrativas a buscar na
integração regional e na globalização saídas para o desemprego ou para a
depressão econômica localizada: empresas e municípios são incentivados a
relacionarem-se diretamente com o mundo exterior. Estimulam-se empresários a
investimentos necessários a uma melhor adequação da infra-estrutura do Estado,
visando à economia global, à melhora de portos, aeroportos, conexões por vias
navegáveis, estradas e ferrovias. No estado do Amapá, trajetórias de vida de
alguns políticos revelam um movimento na direção do estreitamento de relações
com o governo francês, em vista da extensa fronteira comum com a Guiana
francesa. Isso tem conseqüências no tocante à política de preservação da
floresta amazônica, à biodiversidade, a projetos comuns geridos por
organizações não-governamentais. Geram-se, assim, inputs que estimulam a
paradiplomacia.
Em análises extremamente radicalizadas, como a de Ohmae (1995), não confirmadas
pela experiência brasileira, os governos subnacionais seriam os novos
protagonistas da economia e da política internacional. Como discutido por
Barreto (2001) para o caso brasileiro, o ambiente internacional acentuou ' em
alguns momentos, não em todos ' o papel de estados e municípios como
protagonistas da atividade econômica, uma vez que a lógica global busca
mercados e fatores produtivos visando à economia-mundo e não mais concentrando
interesse no entorno geográfico imediato. Para a autora, "assim, foi-se
caracterizando a interface global-local: embora a competição ocorra nos
mercados globais, as capacidades competitivas foram sendo construídas nos
níveis locais" (Idem, p. 78). Em outros termos, a sinergia entre o nacional e o
sub-regional ganha relevância para fortalecer competitividade e melhorar as
condições sociais e econômicas.
Tradição centralizadora e cooperação
O pensamento que parece dominante no Ministério das Relações Exteriores do
Brasil é que a paradiplomacia deve servir para
[ ] integrar as iniciativas e prioridades de Estados e municípios ao
processo de identificação dos grandes interesses nacionais que exigem
constante aprimoramento do diálogo entre o Ministério das Relações
Exteriores, os diversos níveis da administração pública e a sociedade
civil organizada (Moura Daniel, 2002, p. 46).
O desafio no Brasil é conjugar o potencial interesse pelas relações externas
dos governos estaduais e municipais com os interesses do Estado nacional,
evitando situações dúbias que possam questionar a legalidade da ação externa
desses governos. Isto é, como minimizar os conflitos e maximizar a
complementaridade de interesses, por meio da legislação existente ou de
projetos para sua reforma (Bogéa Filho, 2002). Nesse campo, podemos afirmar que
existem contradições. O risco para o Estado nacional não se refere a movimentos
externos que buscariam romper o tecido do Estado; isso aconteceu em algumas
circunstâncias do passado, na crise político-militar de 1964, mas depois não se
repetiu (Rodrigues, 2004). Como discutido em Kincaid (1990), o problema reside
na dificuldade de o Estado nacional repensar sua ação levando em conta que as
formas de fazer política exterior têm que considerar novos agentes, que buscam
espaço, sem debilitar a política central.
No caso brasileiro, há uma tradição federalista centralizadora, historicamente
explicável, que remonta ao caráter unitário do período imperial, de 1822 a
1889. A ruptura do regime democrático em 1964 reforçou o centralismo. A
redemocratização a partir de 1985 e a Constituinte de 1987 e 1988 viabilizaram
mecanismos novos para uma maior efetividade descentralizadora e autônoma das
unidades federadas, mantendo a ação internacional nas mãos do governo central.
Prazeres (2004) lembra que todas as constituições brasileiras do período
republicano atribuíram exclusivamente ao presidente da República o poder de
celebração de compromissos internacionais. A primeira Constituição Republicana,
de 1891, atribuía ao presidente poderes para manter as relações com os estados
estrangeiros e entabular negociações internacionais, celebrar ajustes,
convenções e tratados, sempre ad referendum do Congresso Nacional. A
Constituição de 1988, ao estabelecer as competências da União, diz que cabe a
ela "manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações
internacionais" (Price Waterhouse, 1989, p. 251). Numa utilização ao menos
parcial do princípio da subsidiaridade, em outro parágrafo explicita-se que
"são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta
Constituição" (Idem, p. 289). Dessa forma, temos os parâmetros exatos em que se
exercem as atribuições dos governos subnacionais.
Pode-se apontar aqui uma evidente contradição em termos. Estando claramente
definido o papel dos governos estaduais e municipais no ordenamento jurídico
nacional, não existindo dúvidas quanto à sua impossibilidade de participação
legal no campo das relações exteriores, de fato essas ações acontecem e, em
alguns casos, têm importante significado. Ou seja, é necessária uma reflexão em
profundidade sobre o papel de outros níveis de governo, além do nacional, no
campo da política externa. Alguns estados brasileiros têm centros de comércio
no exterior, como o escritório do estado de Pernambuco em Lisboa; outros
recebem representações de unidades federativas ou regionais de outros países,
como é o caso da representação da província Argentina de Entre Rios em Porto
Alegre. Todos os governadores brasileiros e muitos prefeitos, assim como
secretários de Estado, secretários municipais, dirigentes de empresas públicas
estaduais e municipais têm realizado missões no exterior, na área do Mercosul e
em países de todos os continentes. Um razoável número de governos estaduais,
assim como prefeituras maiores e mesmo médias, criaram secretarias específicas
para as relações internacionais, com uma preocupação em comum, evidenciada
desde os anos de 1980, a saber, incentivar o comércio exterior, a busca de
investimentos, o turismo. A primeira experiência significativa deu-se em 1987,
durante o governo Pedro Simon, no Rio Grande do Sul. A constituição da
Secretaria Especial para Assuntos Internacionais (Seai) foi o marco, ainda que
não tenha tido plena continuidade ao longo do tempo (Seitenfus, 1994; Silva
Nunes, 2005). O vínculo relativamente forte entre o Codesul (Conselho para o
Desenvolvimento Econômico do Sudoeste do Brasil, do qual participam os estados
de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul) e o
Crecenea-Litoral (Comissão Regional do Nordeste da Argentina para o Comércio
Exterior, integrado pelas províncias de Chaco, Corrientes, Entre Rios, Formosa,
Misiones e Santa Fé) é um exemplo de institucionalização das relações
internacionais.
Nos anos de 1990 e no início da década atual, muitos convênios e protocolos de
intenções foram assinados por governos subnacionais ' paradoxalmente, não há
uma cobertura legal, explícita e clara para eles. O município de São Paulo,
além de relações com órgãos internacionais como o BID e o Bird, desenvolveu
contatos continuados com cidades e regiões de diferentes partes do mundo, não
apenas numa linha tradicional, como seria o estabelecimento de acordos de
cidades-irmãs, com significado sobretudo cultural e simbólico, mas também
visando a parcerias de maior densidade. A organização das Urbis, assim como o
acordo com a UNCTAD para a realização, em junho de 2004, da XI Conferência da
organização teriam o objetivo de projetar a cidade como pólo de referência
mundial. A existência de fronteiras brasileiras com quase todos os países da
América do Sul acabou por diversificar nos últimos anos o relacionamento até
então existente: Mato Grosso, Acre e Rondônia buscam relações específicas com
os departamentos bolivianos de Pando e Beni; por sua vez, Acre, Amazonas e
Roraima desenvolvem privilegiados com as províncias correspondentes do Peru, da
Colômbia e da Venezuela.; o Ceará tem políticas específicas e consolidadas de
relacionamento comercial com o exterior.
Ainda nos anos de 1990, a paradiplomacia, mesmo num contexto de centralização
da política exterior, foi responsável pela implementação de inúmeros acordos,
difíceis de serem exaustivamente examinados por suas diferenças e relativa
indefinição legal: Santa Catarina e Galícia, assinado em 1997; Rio Grande do
Sul e Veneto, assinado em 2001; acordos entre o Rio Grande do Sul e a Província
chinesa de Hubei e com a canadense de Quebec; acordo com o Paraguai etc. O
Codesul e o Crecenea estabeleceram relações específicas com a Galícia, tendo o
governo do Rio Grande do Sul, em 2001, assinado um acordo entre a Feira Verde
da Galícia e a exposição gaúcha Expointer. Embora sejam apenas alguns exemplos,
em todos esses casos prevaleceram formas de cooperação institucional no Brasil,
tendo o governo federal, por meio da Assessoria de Relações Federativas e das
embaixadas no exterior, prestado seu apoio informal às iniciativas
subnacionais. Em 2003, a Embaixada do Brasil em Buenos Aires criou uma área
especialmente dedicada aos assuntos subnacionais e regionais. Desenvolve-se,
assim, uma experiência aparentemente inovadora, que podemos interpretar como
precursora, e cujas conseqüências deverão ser avaliadas em vista da possível
ampliação deste novo campo de atividade no futuro.
Diplomacia federativa
Aceito o pressuposto de que a participação dos governos subnacionais nas
relações externas dos países já é um fato, é preciso entender por que o debate
sobre o tema é ainda relativamente escasso. Não se trata de trilhar o caminho
mais fácil das mudanças constitucionais e legislativas, mas de estabelecer
condições para alguma forma de descentralização decisória que seja aceitável no
contexto federativo.
Junto com a globalização, os projetos de integração regional na
América representam mais desafios para a Federação brasileira. Ao
serem implementados numa época de antagonismos exacerbados e governo
federal fraco, estes projetos podem incentivar esses antagonismos de
uma forma que pode se assemelhar aos primeiros dias do Império e às
primeiras décadas republicanas (Rezende e Afonso, 2004, p. 340).
Isto é, para fortalecer a inserção internacional, os processos de integração
regional têm que ter como contrapartida uma maior capacidade na criação de
incentivos que equilibrem as desigualdades existentes numa federação, ou entre
regiões de um Estado unitário. Sabemos que a insuficiência ou a inexistência
dos incentivos foram importantes para impor obstáculos à plena implementação
dos acordos do Mercosul, levando à ampliação de listas de exceção, de
restrições voluntárias e outras. "A probabilidade do estabelecimento de laços
mais estreitos entre os estados do Sul e os países do Mercosul contribui para
aumentar a preocupação nas regiões brasileiras menos desenvolvidas sobre as
perspectivas de distribuição regional da produção e renda" (Idem, pp. 340-341).
A dificuldade dos países pobres para criar mecanismos equilibradores das
diferenças regionais acaba fortalecendo o surgimento de contrapesos à maior
autonomia, pois se acredita que esta implicaria aumento de riscos para a
Federação e para o Estado nacional.
De acordo com Prazeres (2004), dessa situação surgem duas possibilidades
principais para a paradiplomacia e para a diplomacia federativa. A primeira
seria uma reforma constitucional semelhante à da Argentina, de 1994, visando a
permitir uma maior atuação internacional das unidades federadas. A segunda
seria reconhecer e legitimar atuações informais dos governos subnacionais. É
largo o espectro de alternativas apresentado pela autora: vão de uma possível
reforma constitucional que rompa o monopólio do Estado federal em matéria de
atuação externa a uma representação concreta dos interesses das unidades
federadas mediante mecanismos de diplomacia federativa desenvolvidos pelo
Ministério das Relações Exteriores ou ainda a ajustes complementares do próprio
Ministério. Neste último caso, uma unidade federada brasileira poderia agir no
exterior com mandato expressamente delegado pelo Estado nacional. Esse modelo
foi utilizado em alguns casos pelo governo federal, particularmente para
administrar questões fronteiriças.
Questões legais
Os dilemas para legalizar as ações e as políticas externas dos governos
subnacionais são cada vez mais uma preocupação brasileira, tanto quanto em
outros países. Os fenômenos da globalização e da integração regional, em nossa
perspectiva, não parecem ter diminuído o papel do Estado nacional. Os países, e
dentro deles as regiões, que conseguiram se adaptar melhor e obter benefícios
muitas vezes o fizeram porque o Estado nacional teve a capacidade de otimizar
as novas condições. No Brasil, a dificuldade conceitual que se apresenta aos
círculos restritos que discutem o tema da participação dos governos
subnacionais na política internacional refere-se a como mudar as regras
jurídicas sem ferir os limites constitucionais, tendo em conta que os
constituintes de 1987 e 1988 inseriram o federalismo entre os princípios
imutáveis, entre as cláusulas pétreas. Há algum debate sobre este tema entre
funcionários, no meio acadêmico, e em alguns círculos da sociedade civil.
Num Estado federal a representação externa é atributo do governo nacional,
portanto não é viável o caminho da alteração da Constituição para a
descentralização da política internacional. Como dissemos, os trabalhos
acadêmicos mais relevantes no plano internacional, o mainstream, não sugerem a
segmentação do poder do Estado nacional. Lembrando Kincaid (1990), a
constituent diplomacy seria uma forma de fortalecer a ação exterior e não de
debilitá-la. Uma emenda constitucional com o objetivo de descentralizar
prerrogativas do Estado nacional iria contra os princípios sobre os quais se
apóia o Estado brasileiro e, assim, não teria viabilidade. O aumento, nas
últimas décadas, da ação internacional dos governos subnacionais ocorreu de
facto, não alterando os fundamentos jurídicos pré-existentes. Apenas um direito
consuetudinário fortemente assentado poderia levar, a longo prazo, a mudanças
na legislação.
A proibição de atuação das unidades federadas no âmbito externo parece atingir
apenas os contatos formais, aqueles efetivamente diplomáticos, as ações
perfeitas entre Estados soberanos. Há um terreno onde prevalecem ambigüidades,
como as das relações nos campos cultural, científico, educativo, tecnológico,
turístico, econômico, entre outros. É provável que no Brasil ainda não esteja
adequadamente interiorizada a compreensão das mudanças na governabilidade
global. Nesse sentido, Rosenau (1998) discute a realocação da autoridade. Na
perspectiva que apresentamos aqui, o reconhecimento e o fortalecimento pelos
governos nacionais de ações até recentemente não previstas podem indicar o
caminho da reconstrução da governabilidade e da construção de Estados mais
eficientes. O reconhecimento na literatura de que acordos dependem de uma
personalidade jurídica no plano internacional, que as unidades subnacionais não
possuem, não invalida essa possibilidade. A diplomacia brasileira parece
orientar-se por uma política ad hoc, examinando concretamente cada situação e
buscando, quando possível, um papel de intermediação. O Ministério das Relações
Exteriores vem agindo como intermediário em acordos que os governos estaduais e
municipais queiram estipular, procurando formas de enquadramento por meio de
ajustes complementares no framework de um acordo existente entre os Estados
nacionais. Desse modo, preserva-se o princípio constitucional da competência do
Estado, sendo a ação subnacional resultante de uma delegação de
responsabilidade. Um exemplo antigo dessa forma de atuação é o da Fundação para
o Desenvolvimento Administrativo (Fundap), do governo do Estado de São Paulo.
Essa instituição desenvolve desde os anos de 1980 atividades de cooperação
técnica com os governos de Nicarágua, Moçambique, Angola, Guiné Bissau, Cabo
Verde e outros. Quem tem a responsabilidade formal por eles é a Agência
Brasileira de Cooperação do Ministério, delegando-se poderes à Fundap para sua
execução.
Conclusão
O aumento da demanda dos entes federados na área externa poderá criar
novas condições no cenário político brasileiro e suscitar a hipótese
de uma emenda constitucional, tal como ocorreu na Argentina, na Suíça
e no Canadá. Neste sentido, não pareceria impensável formular nova
regulamentação dessas atividades no âmbito do pacto federativo,
considerando-se que os limites constitucionais à atuação externa dos
estados federados poderiam ser revistos através de um mecanismo que,
mesmo resguardando a competência exclusiva da União ' ou, melhor
dizendo, da Federação ' no âmbito externo, atribua aos entes
federativos algumas prerrogativas na matéria (Bogéa Filho, 2002, p.
168).
A questão da ação internacional "objetiva" e factual das unidades subnacionais
traz o debate, no caso do Brasil, ao mesmo patamar de outros temas federativos.
A inconstância dessas políticas de participação externa é considerada pela
literatura e manifesta-se concretamente. O tema do pacto federativo, que se
relaciona com os mecanismos de controle e balanço na vida política nacional,
que vem limitando a capacidade de ação dos governos, nacional, regional e
local, vincula-se também, na contemporaneidade, à capacidade de inserção
internacional, seja na perspectiva do fortalecimento do Mercosul, seja na busca
de uma inserção mais "forte".
Uma análise detalhada da ação de cada estado brasileiro evidencia que todos
eles têm formas de inserção internacional e interesses específicos. Amapá e
Roraima têm interesses nas relações com vizinhos e com outros países; o mesmo
pode ser dito em relação a todos os países amazônicos. A Amazônia busca no Peru
e na Venezuela interlocutores especiais. O Pará tem desenvolvido intercâmbios
com muitos países, inclusive da Ásia e do Oriente Médio. Os estados nordestinos
' Ceará, Pernambuco e Bahia ' têm fortalecido os intercâmbios, utilizando-se de
relações não apenas econômicas, mas também políticas. Essa lista pode ser
ampliada aos estados do Centro-oeste, do Sudeste e do Sul, como examinamos ao
estudar detalhadamente os casos de São Paulo e Rio Grande do Sul. Todos têm
intensa preocupação pelo comércio exterior e pelos investimentos externos,
sendo essas questões assimiladas à vida pública.
Entre as propostas possíveis, utilizando a formulação de Bogéa Filho (2002),
poderia se pensar em algumas ações: a) maior capacitação do Ministério das
Relações Exteriores para o exercício da diplomacia federativa; b) incorporação
da diplomacia federativa à ação externa do Estado nacional; c) articulação das
autoridades estaduais, de regiões metropolitanas e de cidades relevantes para a
ação internacional; d) examinar a conveniência de mudanças na legislação
infraconstitucional; e) dar poderes mais efetivos ao fórum consultivo de
autoridades regionais do Mercosul, aprovado na reunião do Conselho do Mercosul
de dezembro de 2004; f) ação mais efetiva no sentido do estabelecimento de
convênios da União com estados e municípios visando à delegação de poderes em
ações internacionais e à adaptação mais dinâmica dos convênios externos dos
estados e municípios no quadro dos acordos bilaterais do Estado nacional.
A análise proposta indica que, além de medidas administrativas, o maior
problema reside na capacidade de compreender um mundo em mudança, em que o
nível de relações internacionais passa pelo Estado nacional, mas vai além dele.
O emaranhado dessas relações apresenta uma alta complexidade: trata-se de
trazer para a política nacional a capacidade desenvolvida por outras
instâncias, considerando que sua ação pode fortalecer a Nação. Duchacek (1990),
embora admita existirem riscos para a política exterior nacional, afirma que a
ação internacional subnacional é uma realidade, devendo ser portanto
reconhecida como fato real. No caso brasileiro, aparentemente a possibilidade
de risco não se apresenta em razão da própria história. As potencialidades da
diversificação e, ao mesmo tempo, do fortalecimento da ação exterior ' ou agir
mais fortemente para a governabilidade num mundo transformado, nas palavras de
Rosenau (1998) ' não estão ainda plenamente absorvidas.