O enigma da democracia em Marx
Marx afirma, na Crítica da filosofia do direito de Hegel, que "a democracia é o
enigma resolvido de toda constituição" (Marx, 1992a [1843], p. 87). Mais do que
conceber a democracia como um enigma, Marx a concebe como um "enigma resolvido"
(aufgelöste Råtsel). Um enigma resolvido é aquele que se sabe ser a solução do
próprio problema para o qual aponta. Trata-se de um conceito que contém em si
simultaneamente um enigma e a solução capaz de decifrá-lo. Na qualidade de
enigma resolvido de toda constituição, a democracia marxiana apresenta-se como
resposta para os problemas levantados pelas formas políticas. O principal
destes problemas, de acordo com Marx, diz respeito à contradição entre o Estado
e a sociedade civil. É este, afinal, o enigma da modernidade política, que o
mais astuto dos discípulos de Hegel soube logo cedo diagnosticar. Ao romper com
seu mestre e recusar à política qualquer forma de mediação, Marx faz de seu
conceito de verdadeira democracia (wahre Demokratie) a resolução do enigma
colocado pelo Estado moderno.
Isso explica por que "na democracia o Estado abstrato deixa de ser o momento
governante" (Idem, p. 89). Quando a democracia atinge a sua verdade, ela supera
a si mesma, encontrando sua real expressão no processo de desvanecimento do
Estado e da sociedade civil ' única solução possível para dois extremos reais
que, como tais, não admitem mediação. Com a superação (Aufhebung) destes, o
político encontra-se definitivamente com o social, e nenhuma relação de
subordinação ou dependência passa a ser possível entre uma e outra esfera. No
entanto, a realização da democracia foi modernamente concebida na forma de um
"Estado democrático": uma aliança impertinente entre dois termos
inconciliáveis, afinal "todas as formas de Estado têm a democracia como sua
verdade e por esta razão elas são falsas, na medida em que não são a
democracia" (Idem, ibidem).
O Estado que desvanece com a verdadeira democracia consiste na forma ilusória
daquela que deve ser a comunidade política real (wirklich Gemeinschaft), ou
seja, ele é um produto da alienação política. As "falsas democracias", ou as
democracias que não são verdadeiras, necessariamente coincidem com uma forma de
Estado, seja ela aristocrática, monárquica ou republicana. A verdadeira
democracia, por sua vez, não se identifica com nenhuma dessas formas e, ao
contrário, se insurge em oposição a elas. A concepção de democracia de Marx é
concomitantemente uma democracia para além do Estado (Avineri, 1968, p. 38) e
contra o Estado (Abensour, 1998 [1997]) e, nesse sentido, ela rejeita todas as
formas políticas que acompanham a moderna idéia de Estado. Por isso, o
principal pressuposto do pensamento político de Marx é justamente o de que a
contradição entre o Estado e a sociedade civil deve ser superada para que,
então, se possa encontrar o verdadeiro significado da democracia. E isso
implica pensar a política para além do Estado; ou melhor, isso implica conceber
uma outra forma de organização política que possa servir de lugar à democracia.
O objetivo deste artigo consiste em examinar o conceito marxiano de verdadeira
democracia, tal como desenvolvido, sobretudo, na Crítica da filosofia do
direito de Hegel, de maneira a indicar o modo pelo qual ele se apresenta como o
"enigma resolvido" das formas modernas de organização política. Nesse sentido,
argumentarei que tal enigma aponta para a contradição entre Estado e sociedade
civil que, para Marx, constitui a principal característica da modernidade
política. Em conseqüência, argumentarei também que como solução do enigma que
revela, a "verdadeira democracia" implica na superação daquela contradição, a
qual apenas pode se dar mediante a criação de um novo lugar para a política: a
comunidade real fundada em uma livre associação de homens igualmente livres.
A democracia como a verdade da comunidade
Como conceber a verdadeira democracia? Como ela resolve o enigma que Marx
identifica na política moderna, isto é, a contradição entre o Estado e a
sociedade civil? Em primeiro lugar, é preciso entender a verdadeira democracia
como um conceito que é em sua essência normativo. É o que indica Engels em um
texto de 1845, intitulado "O festival das nações em Londres":
Não estamos falando sobre a democracia real que a Europa inteira
apressa-se em adotar e que consiste em uma democracia bastante
especial, diferente de todas as democracias anteriores. Estamos
falando sobre uma democracia bastante diferente que representa o
meio-termo entre as democracias grega, romana, americana e francesa;
em resumo, estamos falando sobre o conceito de democracia. Não
estamos falando sobre as coisasque pertencem ao século XIX, e que são
ruins e efêmeras, mas sobre categorias que são eternas e que existiam
antes de "as montanhas serem sido criadas". Em suma, não estamos
discutindo aquilo sobre o que se tem falado, mas uma coisa bastante
diferente (Engels, 1845, p. 3).
A excepcionalidade do conceito marxiano de democracia encontra-se revelada
nestas palavras de Engels. Não se trata da "democracia real", aquela que se
verifica hoje empiricamente ao redor do mundo, e que no século XIX a "Europa
inteira" estava "apressando-se em adotar". Trata-se de uma democracia "bastante
diferente", inclusive diferente "de todas as democracias anteriores" e desta
"sobre a qual se tem falado", na época de Marx e na nossa. Não se encontra,
esta democracia, entre as "coisas que pertencem ao século XIX". Ao contrário,
trata-se de algo que esteve desde sempre posto, na forma de "categorias que são
eternas" e que nasce quando surgem os homens; trata-se de um "meio-termo" entre
as democracias grega, romana, americana e francesa.1 Trata-se, afinal, da
essência, do ser (Wesen), da democracia; aquilo que permite que ela possa ser
formulada na forma de um conceito e, como tal, concebida como o "vir a ser"
(Werden) do político, uma concepção normativa sobre como a política pode ser
uma vez concebida para além do Estado moderno com o qual ela historicamente se
identifica.
Duas oposições destacam-se aqui: o conceito de democracia que se opõe à
democracia real, e as categoriasque são eternas e se contrapõem às coisas
pertencentes ao século XIX. O que entender disso? Primeiro, não se trata de
descrever, empiricamente, uma realidade, mas de se opor a ela por meio de um
conceito capaz de subvertê-la, capaz de conduzi-la à sua própria transformação.
Segundo, trata-se de entender este conceito propriamente como uma categoria
epistemológica e como um princípio de ação que não se verifica em uma realidade
estática, nem em um momento concreto e determinado; ao contrário, trata-se de
entender a democracia como um "conceito de movimento" que se espraia pelo
espaço e pelo tempo, da Grécia à América, de Roma à França. Terceiro, esse
movimento não pode ser aprisionado em um momento: se a democracia opõe-se às
"coisas do século XIX", o conceito de verdadeira democracia não se identifica
com a modernidade política; ele busca superá-la.
Foi com o intuito de compreender o enigma da modernidade política, a separação
entre o Estado e a sociedade civil, que, desenganado com o fechamento de sua
Gazeta Renanapelo governo prussiano, Marx refugia-se em Kreuznach, onde, entre
março e agosto de 1843, irá formular a crítica que marcou seu rompimento
definitivo com Hegel. Nesse profícuo período de sua atividade intelectual,
Marx, buscando prover soluções para os problemas deixados em aberto por Hegel,
elabora o conceito de verdadeira democracia e prepara sua primeira abordagem do
comunismo, o que resultará na nomeação, no ano seguinte, daquele que viria a
ser o seu sujeito histórico, o proletariado.
Em Hegel, a contradição entre o Estado e a sociedade civil remete diretamente à
dicotomia entre o particular e o universal. A "esfera política", ou o Estado,
apresenta-se como a esfera do universal, ao passo que a "esfera
socioeconômica", ou a sociedade civil, é a esfera do particular. Nessas duas
dimensões separadas, a particularidade dos interesses privados ou pessoais
contrapõe-se à universalidade dos interesses "públicos" ou estatais.
Conseqüentemente, a relação dicotômica entre o universal e o particular, por
sua vez, converte-se na relação também dicotômica entre o político e o social.
Como então superar esses dualismos? Como fundir o universal e o particular em
uma unidade que resolva o seu antagonismo, conciliando-os e tornando-os uma
substância única?
A intuição mais aguçada de Hegel foi sua percepção da separação da
sociedade civil e política como uma contradição. Mas seu erro foi
ter-se contentado com a aparência de sua dissolução, e deixar passar
o que importa; enquanto as "assim chamadas teorias" que ele
menospreza demandam a separação das classes civil e política, e
corretamente, pois elas expressam uma conseqüência da sociedade
moderna (Marx, 1992a [1843], p. 141).
Hegel reconhece o problema, nomeia-o, mas não se mostra capaz de resolvê-lo.
Ilude-se ao crer serem os estamentos uma espécie de síntese entre o Estado e a
sociedade civil, uma vez que eles teriam a função de mediar a relação entre um
e outra. Para Marx, isso consiste em uma construção logicamente absurda, que
apenas pode ter lugar no misticismo da dialética idealista. Contra Hegel, Marx
concebe os estamentos como a mais pura expressão da contradição entre Estado e
sociedade civil: "os estamentos políticos não são nada senão a expressão fática
da verdadeira relação entre o Estado e a sociedade civil ' sua separação"
(Idem, p. 141). Portanto, crer que os estamentos operam como síntese da
contradição entre Estado e sociedade civil, e mais, crer que uma contradição
possa ser resolvida por meio de uma mediação, implica crer em uma solução
ilusória e logicamente falsa.
Extremos reais [wirkliche Extreme] não podem ser mediados
precisamente porque são extremos reais. Nem precisam eles de
mediação, porque são totalmente opostos. Eles não têm nada em comum
um com o outro, não têm necessidade um do outro, não se complementam
um ao outro (Idem, p. 155).
Extremos reais não são mediáveis. Em suas essências opostas, os extremos reais
não podem existir um pelo outro, não podem se completar. A oposição real de
essências, uma contradição (Widerspruch) verdadeira, apenas pode ser resolvida
quando seus termos se excluem mutuamente. A única relação possível entre os
dois termos de uma contradição, portanto, é a de exclusão. Para que cesse a
oposição entre eles, os dois xtremos precisam ser definitiva e simultaneamente
eliminados.
A fim de resolver este que seria o "dualismo fundamental da lógica de Hegel",
ou seja, a oposição entre universalidade e particularidade como expressão da
contradição entre Estado e sociedade civil, Marx sabe, portanto, que as
mediações não bastam. O problema da lógica hegeliana consistia, segundo Marx,
em não perceber que entre dois extremos não há mediação possível, de modo que
não há mediação possível entre o Estado e a sociedade civil. É por isso que
Marx mostra que a representação, por exemplo, não serve à democracia, pois ela
constitui uma mediação e, como tal, não serve para resolver aquela contradição.
Ao contrário, a representação, seja ela estamental como no feudalismo, seja ela
"política" como na modernidade, apenas aprofunda a contradição entre o Estado e
a sociedade civil. A representação não é nada além de uma forma de mediação, ou
seja, implica em uma solução falsa e ilusória para a principal contradição
engendrada com e pela modernidade política. Uma contradição real, o antagonismo
entre dois extremos reais, portanto, apenas pode ser resolvida por meio da
negação da negação, isto é, do Aufhebungdestes dois termos, simultaneamente. O
desvanecimento do Estado e da sociedade civil consiste, assim, na única maneira
de resolver a contradição que entre eles se expressa. Foi este o enigma que
Hegel não soube decifrar.
Já em 1843, por conseguinte, Marx forma uma convicção da qual jamais se
desfará, qual seja, a idéia de que a democracia não pode se realizar senão em
uma sociedade onde os homens não mais se alienam por meio de mediações, sejam
elas políticas, sejam econômicas. Isso implica reconhecer que a democracia não
pode se realizar verdadeiramente no Estado moderno, tampouco na sociedade civil
que a ele se contrapõe. No primeiro livro de O capital, quando seu afastamento
de Hegel não mais se questiona, Marx volta a argumentar que as contradições não
devem ser resolvidas por meio de uma superação abstrata, como são as mediações,
mas sim pela dissolução dos termos opostos mediante a criação de uma forma
nova, na qual as contradições a um só tempo resolvem-se e reconciliam-se.
Vimos em um capítulo anterior que a troca de mercadorias implica
condições contraditórias e mutuamente exclusivas. A diferenciação das
mercadorias em mercadoria e dinheiro não abole essas contradições,
mas, antes, provê a forma dentro da qual elas têm espaço para se
movimentar. Este é, em geral, o modo pelo qual contradições reais são
resolvidas. Por exemplo, é uma contradição descrever um corpo como
constantemente caindo sobre outro, e como, ao mesmo tempo,
constantemente voando para longe dele. A elipse é uma forma de
movimento dentro da qual esta contradição é ao mesmo tempo realizada
e resolvida (Marx, 1992 [1867], p. 198).
No que toca à contradição entre o Estado e a sociedade civil, o enigma resolve-
se na forma elíptica da comunidade. É a comunidade a "forma de movimento", ou
uma forma em movimento, que resolve a contradição ao mesmo tempo em que a
realiza. Conforme argumentei alhures, a comunidade é o conceito marxiano que
significa, simultaneamente, Estado e sociedade civil, precisamente por não ser,
ao mesmo tempo, nenhum dos dois. A unidade constituída pela comunidade tem como
fundamento os sujeitos políticos reais, os homens que realizam a sua liberdade
na e através da associação. Na comunidade real não se encontra mais em jogo o
problema da procedência ou derivação da esfera socioeconômica e da esfera
política. A realidade contida na idéia de comunidade torna desnecessário
argumentar, contra Hegel, que o Estado deriva da sociedade civil e não o
contrário.2
A comunidade como a forma política da sociedade comunista que viria se realizar
após o desvanecimento do Estado e da sociedade civil não coincide com um
suposto apelo marxiano de retorno às formas comunitárias primitivas ' como a
Gemeinwesendo medievo germânico ou os artéis russos ', onde os modos de
produção précapitalista asseguravam a unidade do social e do político por meio
da unidade entre o homem e o produto de seu trabalho na propriedade
comunitária. Tampouco, ao idealizar a sociedade pósrevolucionária, Marx tinha
em mente um retorno às formas políticas antigas, nas quais a união entre o
particular da sociedade civil e o universal do Estado supostamente se
encontraram. Nem mesmo as comunidades feudais da Idade Média ou a pólis grega,
que constituem exemplos recorrentes na obra de Marx da unidade entre o Estado e
a sociedade civil, viriam a ser convocadas a fim de restabelecer a unidade
desejada entre o universal e o particular. Essas duas formas políticas, afinal,
traziam consigo o inconveniente da ausência de liberdade, quando não da própria
servidão.
Na Idade Média, a vida do povo era idêntica à vida do Estado (i.e,
vida política). O homem era o princípio real do Estado, mas o homem
não era livre. Conseqüentemente havia uma democracia da não-
liberdade, um sistema perfeito de alienação. A antítese abstrata
refletida disto pode ser encontrada apenas no mundo moderno. A Idade
Média foi uma idade do dualismo real; o mundo moderno é a idade do
dualismo abstrato(Marx, 1992a [1843], p. 90).
A recusa da modernidade não pode, portanto, ser compreendida como um elogio à
pré-modernidade. Marx escrevia contra o seu tempo, mas em favor do nosso tempo.
Seu pensamento revela-se, ainda, como uma alternativa para uma modernidade
política que muito pouco se alterou desde o século XIX. O meio que Marx
encontra para clamar pela possibilidade de reunificação entre o universal e o
particular é a verdadeira democracia. Um conceito que não se apresenta como
abstração justamente por consistir, ele mesmo, em uma antiabstração; um
conceito desenvolvido não como uma abstração da realidade existente, mas como
uma projeção normativa do que ela pode vir a ser, na forma de um princípio de
concretização: "apenas a democracia é a verdadeira unidade do particular e do
universal" (Idem, p. 88).
A verdadeira democracia, por conseguinte, consiste no momento da união entre o
universal e o particular; no momento da fusão entre as esferas política e
social; no momento do reencontro entre o indivíduo egoísta da sociedade civil e
o cidadão abstrato do Estado. O lugar onde o dualismo abstrato da modernidade
se resolve e os extremos reais se reunificam é a comunidade. Ao clamar pelo
Aufhebungdo Estado e da sociedade civil, isto é, seu desvanecimento, Marx busca
também transcender todos os demais dualismos que derivam da separação que
existia entre eles. Assim, a comunidade, como forma em movimento, como um uno
múltiplo fundado na associação, traz para dentro de si o universal e o
particular, o social e o político, o homem e o cidadão. Os dualismos
característicos do pensamento político moderno encontram abrigo na unidade da
comunidade.
Assim entende-se por que, "na democracia, o princípio formalé idêntico ao
princípio material" (Idem, p. 88), o que equivale a dizer que "a democracia é
ao mesmo tempo forma e conteúdo" (Idem, p. 87). Há uma indissociabilidade entre
a comunidade e a democracia: a comunidade é a forma política da democracia, ao
passo que esta consiste no único conteúdo que pode preencher aquela. Por
conseguinte, na verdadeira democracia não há sentido conceber o "social" e o
"político" como duas dimensões separadas. Assim como o universal se identifica
com o particular, e o formal, com o material, também o político é ele mesmo o
social. Nenhum desses conceitos adquire conteúdo enquanto formas separadas: sua
substância é conferida por sua unidade. O princípio material reatualiza-se
constante e incessantemente, reconstruindo a sua própria forma; o particular
constitui-se na sua própria universalização; o político, por sua vez, só
constitui-se como político na medida em que é social, e vice-versa.
Na democracia, o Estado como particular é apenas particular, e como
universal ele é realmente universal; ou seja, não é algo determinado,
destacado de outros conteúdos. Nos tempos modernos, os Franceses
entenderam isso como significando que o Estado político desapareceem
uma verdadeira democracia. Isso está correto no sentido de que o
Estado político, a constituição, não é mais equivalente ao todo
(Idem, p. 88).
O que está em jogo aqui? O reconhecimento da incompletude do Estado moderno
que, separado da sociedade civil, formaliza o divórcio entre outros conteúdos
que supostamente deveriam estar associados, como, no caso, o particular e o
universal. Em qualquer regime político ' mesmo em uma democracia que não seja a
"verdadeira democracia" ', o Estado necessariamente apresenta-se de forma
incompleta, pois se revela incapaz de constituir-se como o "todo", que seria
justamente o encontro entre o social e o político, o homem e o cidadão, o
universal e o particular, e todos os demais dualismos criados com a modernidade
política e formalizados com a separação entre a sociedade e o Estado. Para
superar esses dualismos é preciso superar o Estado; esta é a primeira lição de
um conceito de democracia que almeja ter a sua verdade revelada.3
Percebe-se como o enigma simultaneamente formula-se e soluciona-se: com os
tempos modernos, o Estado separa-se da sociedade; o Estado moderno é o símbolo
desta separação, e a sua relação com a sociedade passa a ter a forma de um
antagonismo. Para que essa contradição seja desfeita é preciso desfazer o
Estado. Com o seu desaparecimento, desaparecerá também a sociedade que, afinal,
dele depende para assumir uma existência política. Apenas o desvanecimento
dessas duas esferas propiciará o surgimento de uma nova forma de organização
política, na qual tal separação não tenha sentido uma vez que nela se
realizaria a união completa ' um "todo" ' entre todos os elementos outrora
separados e que apenas podem ser apreendidos conjuntamente. Para que esse
"todo" seja alcançado e constituído, o Estado, que representa sua
impossibilidade permanente, deve necessariamente ser superado.
O Estado desaparece em uma verdadeira democracia exatamente porque nela as
antinomias e os dualismos modernos deixam de ter sentido; a verdadeira
democracia, por sua vez, só pode realizar-se em uma forma de organização do
político que se substitua ao Estado moderno. Assim, quando Marx afirma que o
Estado desaparece, ele tem em vista um movimento de mão dupla, que apenas pode
ser entendido pela simultaneidade ou concomitância que lhe é característica: o
Estado desaparece porque perde sentido em uma verdadeira democracia, na qual a
emancipação humana e o comunismo finalmente serão realizados; e a verdadeira
democracia, por sua vez, realiza-se com a conquista da emancipação humana e do
comunismo, porque o Estado desaparece, e uma nova forma de organização política
deverá surgir em seu lugar.
O Estado, portanto, representa apenas um dos conteúdos particulares da
democracia, um de seus momentos, uma "formaparticular de existência do povo"
(Idem, ibidem), dentre outras formas possíveis. O sentido verdadeiro da
democracia, entretanto, apenas revela-se quando ela se liberta do Estado e de
toda forma de mediação política: "quanto mais a democracia se aproxima de sua
verdade, mais o Estado decresce, conhece um processo de desaparecimento, isto
é, deixa de exercer uma eficácia, uma dominação, enquanto parte que pretende
valer pelo todo" (Abensour, 1998 [1997], p. 122). Se a existência da democracia
no sentido verdadeiro é incompatível com o Estado, resta buscar na comunidade
uma nova forma de organização política na qual ela possa se desenvolver.
A democracia como constituição genérica
Marx antecipa, ainda na primeira metade do século XIX, algumas das
conseqüências resultantes da contradição entre o Estado e a sociedade civil que
viriam a se tornar ainda mais exacerbadas no século seguinte, particularmente
em função do enrijecimento do modo de produção capitalista, o qual encontraria
na separação entre as esferas socioeconômica e política um terreno bastante
propício ao seu desenvolvimento.
A atomização em que mergulha a sociedade civil por seus atos
políticosé uma conseqüência necessária do fato de a comunidade
(Gemeinwesen), a essência comunista (das kommunistiche Wesen) na qual
o indivíduo singular existe, a sociedade civil, ser separada do
Estado. Ou em outras palavras: o Estado políticoé uma abstração da
sociedade civil (Marx, 1992a [1843], p. 145).
A sociedade civil moderna, que segue ao Estado moderno, funda-se no
individualismo e é incapaz de fazer do homem um ser social. Impondo aos
indivíduos relações competitivas e conflitivas, a sociedade civil os torna
seres isolados. Seus "atos políticos" ' como é o caso do sufrágio e da
representação ' apenas aprofundam esse individualismo, restando aos homens
viver em uma situação de atomismo que os separa até mesmo de si próprios. Não
há outra conseqüência senão o encontro entre o estranhamento (Entfremdung) e a
alienação (Entåusserung). É aqui que a verdadeira democracia se revela como
enigma resolvido e apresenta-se como aquilo que pode interromper essa
seqüência: a verdadeira democracia pressupõe a comunidade, que, por sua vez,
transforma os indivíduos isolados em seres sociais justamente por meio do
caráter político que assumem quaisquer de suas atividades, mesmo enquanto
atividades individuais. Como na Grécia antiga, a separação entre o mundo
privado e o mundo público se desfaz em nome da democracia verdadeira. Este
desfazimento, contudo, não teria mais o custo da liberdade. Essa, afinal, a
verdadeira unidade entre o político e o social a ser propiciada pela
democracia.
Ao afirmar que a verdadeira democracia é o enigma resolvido de toda
constituição, Marx quer dizer que a democracia se identifica com a realidade
material ' ou com a "vida do povo" ', não obstante a forma política que a
contenha. Em outras palavras, o que define como verdadeira a democracia é a
experiência humana que se encontra em sua base, e não as instituições de uma
determinada forma de governo ou regime político que porventura a reclamem. Por
isso a democracia apresenta- se como a "verdade de todas as constituições", uma
"constituição genérica" que, no entanto, não tem qualquer forma política como a
sua própria verdade.
Nos modelos originais de monarquia, democracia e aristocracia não
havia inicialmente constituição política como distinta do Estado
real, material, e dos demais aspectos da vida do povo. O Estado
político ainda não aparecia como a formado Estado material (Idem, p.
90).
A institucionalização da realidade material, seu aprisionamento em formas, é
uma invenção do pensamento político moderno ' invenção esta da qual Marx quer
nos libertar. O pensamento político clássico, afinal, havia nos legado apenas
uma preocupação com os regimes de governo, sem criar formas rígidas, como a
própria idéia de constituição, que os separassem de seu conteúdo material,
real, expresso na própria existência e experiência humanas. Observe-se que no
trecho transcrito acima Marx apenas colocou lado a lado a democracia, a
monarquia e a aristocracia com o fito de demonstrar como antes do pensamento
político moderno converter a realidade em abstração não havia separação entre
substância e forma. Com a modernidade, os regimes políticos passaram, na
prática, a se organizar com base em tal separação. A abstração torna-se uma
realidade, mas esta não se identifica mais com a vida do povo. O Estado
moderno, afinal, instaura a alienação. E este passa a ser o problema não apenas
da monarquia ou da aristocracia, mas também da república. Com efeito, em todas
essas formas de governo apenas pode-se ter uma "democracia política" ' o que
equivale a dizer uma democracia liberal, burguesa; uma democracia como
abstração: uma "democracia moderna". Por isso Marx fala em um "Estado político"
como a forma do "Estado material" ou em uma "constituição política" distinta do
"Estado real". A verdadeira democracia seria o "Estado material" ou "real" em
oposição ao "Estado político" ou "constituição política" que é como Marx
alternativamente se refere ao Estado moderno.
A democracia é a verdade da monarquia, mas a monarquia não é a
verdade da democracia. A monarquia é necessariamente democracia como
uma inconseqüência e excrescência, o aspecto monárquico não é uma
inconseqüência da democracia. A democracia pode, e a monarquia não
pode, ser concebida em seus próprios termos. Na democracia, nenhum
aspecto recebe qualquer outro significado senão aquele apropriado
para ele. Cada um é, na verdade, um aspecto do demostodo. Mas na
monarquia uma parte determina o caráter do todo. A constituição
inteira precisa conformar-se em função de um ponto fixo. A democracia
é a constituição genérica. A monarquia é uma espécie, e de fato uma
espécie ruim. A democracia é conteúdo e forma. A monarquia podeser
apenas forma, mas ela falsifica o conteúdo (Idem, p. 87).
Por que, afinal, a democracia pode ser concebida em seus próprios termos e a
monarquia não, podendo aquela ser uma verdade desta, mas jamais o contrário? A
comparação entre monarquia e democracia serve a Marx para mostrar a diferença
existente entre forma e conteúdo.4 A monarquia é uma forma, uma forma política,
como também é uma forma a república, a qual ele cita como exemplo em diversas
passagens similares a esta. Já a democracia é um conteúdo sem forma
determinada, um conteúdo que não pode ser traduzido por uma forma outra senão a
deste próprio conteúdo. Por isso a democracia pode ser concebida em seus
próprios termos, pois que é concomitantemente forma e conteúdo. Uma monarquia
pode ser democrática, assim como uma república pode ser democrática, mas uma
democracia não é, ela mesma, uma democracia monárquica ou uma democracia
republicana: a democracia é a verdade da monarquia (como poderia ser a verdade
da república), mas a monarquia não é a verdade da democracia. A monarquia ou a
república são apenas formas que falsificam o conteúdo, isto é, falsificam a
democracia. Colocado este ponto em outra perspectiva, temos que a democracia é
o sujeito, enquanto a monarquia ou a república são predicados que podem ou não
acompanhar tal sujeito. O sujeito existe por si só, mas o predicado necessita
do sujeito para completá-lo, sem o que ele não tem sentido, não atinge a sua
verdade.
Hegel parte do Estado e concebe o homem como o Estado subjetivizado;
a democracia procede do homem e concebe o Estado como um homem
objetificado (Idem, ibidem).
Quando Marx afirma que, ao contrário do que pensava Hegel, a democracia deve
partir do homem e não do Estado, ele quer dizer que este ' assim como as formas
monárquica ou republicana que porventura assuma ' pode, quando mais, ser apenas
um reflexo do homem, uma de várias formas particulares da vida do povo, uma das
várias determinações que o conteúdo da democracia pode assumir. Quando a
democracia parte do homem, ela pode ou não chegar ao Estado, fazer dele seu
objeto, seu predicado, um "homem objetificado". Este não é um caminho
necessário. Fazer do homem, e não do Estado, o sujeito, implica que a
democracia pode existir sem o Estado, que ela não é uma característica ou uma
determinação dele. Justamente o contrário: como conteúdo, a democracia não pode
ser aprisionada em formas, ela pode apenas percorrê-las, o que faz com que a
dinamicidade de seu movimento natural se cristalize em momentos. Na condição de
movimento, a democracia desenvolve-se como um processo; na condição de momento,
a democracia manifesta-se molecularmente. Cada aspecto da democracia, cada uma
de suas partes, é apenas um aspecto do demos, do demostodo. Não há distinção
entre o todo e suas partes: ambos remetem ao povo, à vida do povo, não se
distinguindo entre si. A verdadeira democracia consiste em um todo unitário, e
é isso que permite que ela seja, concomitantemente, conteúdo e forma: seu
conteúdo dá forma a si mesmo, permanentemente. É por isso que a democracia
parte do homem: ele é o sujeito da democracia, o que equivale a dizer que ele é
o seu conteúdo. A democracia identifica-se com a experiência do homem, com sua
atividade, com sua prática, com sua vida. É assim que a democracia se faz
conteúdo e o pode refletir em distintas formas que, no entanto, com ele não se
identificam. É nesse sentido que a democracia é a "constituição genérica".
A democracia é a essência de todas as constituições políticas, o
homem socializado (des sozialisierten Menschen) como uma constituição
política particular. A democracia está para as outras formas de
constituição como o gênero está para as suas várias espécies, à
diferença apenas que aqui o gênero passa a existir e se manifesta
como uma espécie particularem relação às outras espécies, cuja
existência não corresponde à essência genérica (Idem, p. 88).
O que significa dizer que "a democracia é a essência de todas as constituições
políticas"? O que Marx entende por "constituição política"? Segundo Avineri,
onde Marx escreve "constituição política", devemos ler "Estado". Essa
interpretação parece-me limitada, na medida em que, neste contexto de definição
do estatuto da verdadeira democracia, "constituição política" implica, de fato,
algo mais genérico, tal como forma política' ou organização política'. De
acordo com esse último sentido, o Estado poderia ser uma forma de organização
política, assim como a comunidade poderia ser outra dessas formas. Desse modo,
a organização política consiste em uma instância genérica, da qual emanam
formas particulares por meio das quais a política se processa. Tais formas
podem ser tão diversas quanto o são a comunidade e o Estado, lembrando que este
último ainda é suscetível de outras instâncias de particularização interna
(formas de Estado e formas de governo). Vale lembrar que o uso do termo
"constituição" neste sentido genérico de forma de organização política é também
usado por Spinoza, e encontra ainda um significado semelhante àquele visado por
Aristóteles ao se referir à politeiacomo uma forma de organização política da
polis. Logo, afirmar que a democracia é "a essência de todas as constituições
políticas" implica confirmar que a democracia é uma substância sem forma, que
pode potencialmente se materializar em diferentes contextos de organização da
política. No entanto, se todas as formas políticas podem ter a democracia como
sua verdade, a recíproca não se aplica: a democracia apenas encontra sua
verdade na comunidade que supera o Estado moderno.
Isso remete a outra das questões suscitadas na passagem transcrita acima, qual
seja, a de que "a democracia está para as outras formas de constituição
política como o gênero está para a espécie". A democracia é um gênero do qual o
Estado em sua forma monárquica ou o Estado em sua forma republicana constituem
apenas espécies. Ela é uma essência da qual emanam todas essas "constituições
políticas". Mais uma vez, a democracia é uma substância que pode ou não
preencher as formas políticas. Todas a almejam como sua essência, como sua
verdade. Nesse sentido são apenas "espécies", "momentos", "expressões
particulares", "determinações" da democracia. De onde se explica ainda que "a
democracia é [ ] o homem socializado como uma constituição política
particular". A democracia remete ao homem, e ao homem socializado, isto é, o
homem como ser social, como parte constitutiva e constituinte da sociedade.
Esse "homem socializado", ou a "vida do povo", apresenta-se, por sua vez, como
uma "constituição política particular", ou seja, a manifestação do gênero que
passa a existir e a se manifestar "como uma espécie particular em relação às
outras espécies, cuja existência não corresponde à essência genérica".
A unidade da sociedade civil com o Estado conduz à unidade do indivíduo e do
cidadão, do particular e do universal. Não há mais partes que se sobreponham
umas as outras, determinando-se exteriormente. O todo formado por esta unidade
determina-se a si mesmo. Isso propicia que o enigma, afinal, se resolva:
A democracia é o enigmaresolvido de toda constituição. Nela
encontramos a constituição fundada em sua verdadeira base: seres
humanos reais e o povo real; não meramente, implicitamentee em
essência, mas em existênciae em realidade. A constituição é assim
postulada como criação própria do povo. A constituição é, em
aparência, o que é em realidade: a criação livre do homem Idem, p.
87).
Os homens devem ter controle das condições de sua própria existência. A
autodeterminação apresenta-se como determinação da universalidade em cada
evento que singulariza o sujeito. O político deve organizar-se não com base em
um artefato jurídico, mas a partir dos próprios "seres humanos reais", em sua
atividade de determinar-se a si mesmos, de consolidar a sua existência como
sujeitos. Não basta ao povo existir; para ser real ele tem que intervir
diretamente na realidade, constituindo-a, fazendo dela parte de si mesmo, na
medida em que ela também se organiza de acordo com a ação dos homens. A forma
política que resulta dessa organização não pode ser senão uma criação própria
do povo, um resultado de sua capacidade de determinar-se a si próprio. Enquanto
"criação livre do homem", a democracia prescinde de formas jurídicas. Ela
deixa, aliás, de ser uma forma, para ser simplesmente o conteúdo resultante das
capacidades criativas e criadoras dos sujeitos. A democracia combina abertura e
reflexividade; ela se exerce verdadeiramente como uma atividade, e uma
atividade do povo.5
Em vez de definir-se como um vínculo jurídico-político que une os homens ao
Estado, a cidadania passa a se definir ativa e efetivamente como a prática
democrática dos homens que é constitutiva de sua própria forma de organização
política. Cidadania "ativa" deixa de ser algo que é conceituado em
contraposição a um sentido "passivo", para remeter diretamente ao sentido de
atividade. Os cidadãos são ativos não porque deixam de ser passivos, mas porque
é a sua própria atividade que passa a definir a cidadania. Nesse sentido, toda
atividade humana, todas as ações do homem são constitutivas da cidadania. Em
outras palavras, com a verdadeira democracia, toda atividade humana é
preenchida de sentido político.
Quando não há mais separação entre uma esfera política e outra socioeconômica,
vale dizer, quando a verdadeira democracia possibilita que a comunidade surja
no espaço onde antes havia a separação entre sociedade civil e Estado, todas as
ações dos homens passam a ser ações políticas. Marx reconhece um caráter
político à prática, identificando toda atividade individual como atividade
política. Não há separação entre o que seja uma tarefa particular e uma tarefa
pública: quando o universal e o particular encontram-se, todas as atividades
individuais passam a ter um sentido público, dizem respeito à gestão coletiva
da comunidade. Conforme esclarece sobre este ponto Henry,
[ ] o político não se refere mais ao Estado, nem a uma atividade
específica do Estado. A significação política da atividade de um
indivíduo [ ] deve qualificar sua atividade individual como tal, sua
atividade cotidiana, profissional e pessoal (Henry, 1976, p. 136).
É nesse sentido, afinal, que a verdadeira democracia se apresenta como um
enigma resolvido, e não meramente como um enigma. Os homens tornam-se sujeitos
reais na medida em que ganham consciência de si, e esta consciência os torna
seres socialmente políticos. Não há distinção entre o individual, o social e o
político, uma vez que toda atividade individual é também uma atividade social
com efeitos políticos. A atividade pessoal e profissional dos indivíduos
mescla-se com a administração das coisas públicas, de modo que a prática
cotidiana da democracia é constitutiva, ao mesmo tempo, da comunidade e dos
homens que nela vivem.
Assim, já de posse da resolução de seu enigma antes mesmo de formulá-lo na
Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx escreveu em carta enviada a Ruge
em maio de 1843:
Apenas o sentimento próprio dos homens, sua liberdade, pode fazer a
sociedade novamente um dia tornar-se uma comunidade na qual os homens
possam realizar seus objetivos mais elevados, uma polisdemocrática
(Marx, 1992b [1843], p. 201).
Considerações finais
Quando Marx afirma que a verdadeira democracia é o enigma resolvido de toda
constituição, ele está a dizer, em outras palavras, que a democracia é a
verdade de todas as formas de organização política. Mas, em contrapartida, se o
Estado moderno consiste em apenas "um momento" ou em "uma forma de existência
particular" da democracia, há apenas um tipo de organização política que se
identifica com o conteúdo da verdadeira democracia, qual seja, a comunidade. Na
comunidade, a democracia atinge a sua verdade: revela-se como a forma da
"sociedade comunista" ou a "sociedade do futuro", isto é, a "sociedade sem
classes" ou a "sociedade sem Estado", que viria a servir de lugar para a
realização do comunismo após uma revolução que fizesse com que a idéia moderna
de Estado desvanecesse, e não simplesmente postulasse que o poder fosse tomado
por novos sujeitos. Afinal, o enigma para o qual aponta a verdadeira democracia
não diz respeito à titularidade do poder ou à forma de seu exercício. O enigma
da democracia aponta para a contradição que se encontra na base da modernidade
política, isto é, a separação do Estado em relação à sociedade civil e a
conseqüente alienação política desta em face daquele.
É por isso que, conforme argumentei ao longo deste artigo, pensar a democracia
com Marx implica pensar uma nova forma de organização política que resolva a
contradição entre Estado e sociedade civil. Esta contradição, que responde por
tantos dualismos que caracterizam a modernidade política desde a Revolução
Francesa, não será definitivamente superada por mediações ' como a
representação política ', que apenas propiciam à sociedade civil uma
"existência política ilusória", conforme já percebia Marx. Apenas uma nova
forma política que ofereça espaço para que aquela contradição a um só tempo se
realize e se resolva poderá tornar a democracia verdadeira. É assim que Marx
fornece uma resposta atual para um problema moderno que ainda nos é
contemporâneo: a resolução do enigma deve ser buscada nas formas comunitárias
que realizam a democracia sem mediações, por meio da multiplicidade da
experiência humana e da prática constitutivamente política dos homens.
Notas
1 Quando anuncia "uma democracia bastante diferente que representa o meio-termo
entre as democracias grega, romana, americana e francesa", Engels denuncia
algumas das fontes de Marx ao elaborar o conceito de verdadeira democracia. As
lições sobre o modelo romano, Marx tomou de Robespierre e de seu extenso estudo
sobre Revolução Francesa, em particular do jacobinismo. Marx nutriu-se do culto
jacobino à antiguidade clássica, muito embora achasse que um de seus erros
estratégicos foi o de tentar transpor forçosamente princípios da antiguidade
para os tempos modernos. Quanto à democracia grega, Marx certamente se valeu de
estudos sobre a Atenas de Péricles. Sabe-se que a democracia ateniense e a
antiguidade clássica em geral faziam parte do currículo universitário de Marx,
afinal na Alemanha das primeiras décadas do século XIX a admiração por aquela
época histórica acompanhada de um estudo sistemático da mesma era algo
recorrente. No que tange à democracia americana, há indícios interessantes nos
cadernos de estudo de Marx do mesmo ano de 1843 em que ele propôs o conceito de
verdadeira democracia. Um desses cadernos traz inúmeras citações de Thomas
Hamilton, mais especificamente de sua obra Men and manners in America,
publicada pela primeira vez em 1833. Marx, que leu Hamilton traduzido em
alemão, copiou cerca de cinqüenta passagens de seu livro, que versavam
majoritariamente sobre os seguintes temas: federalismo, sufrágio universal,
situação jurídica dos cidadãos (questões de cidadania), constituições dos
estados americanos, conflitos de interesse entre o norte e o sul, entre outros.
Se Marx busca na democracia americana sinais de sua potencialidade
revolucionária, é certo que nas páginas de Hamilton ' particularmente em sua
observação da economia americana ' encontrou o suor das lutas de classe. Sabe-
se ainda que neste período Marx também leu Tocqueville, muito embora seus
cadernos de estudo não tragam evidências explícitas disso. Esta influência se
faz sentir não apenas em conjugação com aquela exercida por Hamilton, no que
tange ao provimento de um retrato empírico da democracia norte-americana, como
também mais diretamente no conteúdo de alguns artigos publicados na Gazeta
Renanano período que precedeu a redação da Crítica da filosofia do direito de
Hegel. A influência da democracia francesa na sua concepção de verdadeira
democracia, particularmente dos teóricos franceses da democracia, é decisiva.
Uma das principais idéias que Marx parece querer reter de tal influência diz
respeito à impossibilidade da realização da democracia dentro dos limites do
Estado. A verdadeira democracia engendra uma tensão entre democracia e Estado,
como se estes dois conceitos fossem incompatíveis; como se, onde existisse o
Estado, a democracia não fosse possível, pelo menos não em sua forma
verdadeira. Entretanto, é a influência do socialismo francês que parece ter
sido determinante. Além de Fouret e Saint-Simon, sabe-se que Marx leu com
atenção Victor Considerant, considerado uma de suas influências mais
importantes ao conceber o conceito de verdadeira democracia. Um dos principais
discípulos de Fourier e um dos mais importantes difusores diretos e indiretos
de sua obra, Considerant publicou no mesmo ano em que Marx redigiu a Critica da
filosofia do direito de Hegel o seu Manifeste de la démocratie au XIX siècle,
na forma de uma introdução ao seu jornal La démocratie pacifique, que veio a
substituir o jornal fourierista La Phalange. Na última parte deste belo
manifesto, após distinguir entre as tendências imobilista, conservadora,
retrógrada, revolucionária e progressista da democracia, Considerant elabora
uma distinção entre o que seria uma "democracia verdadeira" e uma "democracia
falsa". A primeira consistiria no "pleno reconhecimento dos direitos e
interesses de todos, e sua efetiva organização progressiva e inteligente". Além
disso, ela implicaria na "organização regulada da paz e do trabalho, no
desenvolvimento de prosperidade nacional e a realização progressiva da ordem,
da justiça e da liberdade", e resultaria em uma "organização hierárquica das
famílias e das classes em uma commune, as communesnas províncias na nação. E a
associação das nações na humanidade". Já a "falsa democracia" se identificaria
com o "espírito revolucionário" (!), o "espírito da inveja, do ódio, da
guerra", pregaria a "liberdade anárquica, a igualdade violenta e cobiçosa, o
patriotismo exclusivo e dominador", além da "independência feroz, caótica,
armada e hostil". Desse modo, a "verdadeira democracia" "une, organiza,
relaciona, classifica, associa, libera e centuplica o bem-estar e o
desenvolvimento físico, moral e intelectual de todas as pessoas, de todas as
classes". A "falsa democracia", por sua vez, "divide, subverte, destrói,
empobrece e cobre a terra com ruínas. Ela incita as classes umas contra as
outras e os povos contra os seus governos". É assim que Considerant irá
concluir que o "espírito moderno" se bifurca em duas expressões opostas, a
"democracia pacífica", que ele advoga como verdadeira, e a "democracia violenta
e revolucionária", a falsa democracia que a ela se oporia (Considerant, 2006
[1843], pp. 91-92).
2 Este ponto encontra-se desenvolvido em Pogrebinschi (2007, caps. 1 e 2).
3 Quem seriam estes franceses de quem Marx toma a lição sobre o desaparecimento
do Estado? Não há um consenso a esse respeito entre os diversos comentadores.
As hipóteses variam entre Victor Considerant (Abensour, 1998 [1997], p. 139),
Proudhon e Fourier (Draper, 1970, p. 283), ou ainda outros revolucionários
franceses como Saint-Simon e Robespierre. Com efeito, os cadernos de estudo de
Marx referentes ao período entre 1842 e 1843 indicam um estudo atento da
Revolução Francesa e de seus líderes, bem como do socialismo que a partir de
então se fez emergente naquele país, para onde viria a se mudar no ano
seguinte. Não é de se descartar ainda que, como bom jovem hegeliano que era até
mesmo em sua refutação de Hegel, Marx tenha se nutrido também das idéias de um
curioso documento que remonta às origens do Idealismo alemão: "O mais antigo
programa de sistema do idealismo alemão", manuscrito anônimo de origem
supostamente coletiva, mas por muitos atribuídos à pena solitária de Schelling.
Neste pequeno e surpreendente documento de cunho inegavelmente kantiano,
encontra-se um ataque peculiar à idéia de Estado (e, como decorrência, a
desconstrução das idéias de governo, constituição e lei) que se faz acompanhar
pela defesa irrestrita de sua superação. O Estado, para este idealismo que
parecia ainda não ter-se separado do romantismo, não podia ser tomado
propriamente como uma "idéia", reduzindo-se a uma espécie de máquina que se
relaciona com os homens como se eles fossem engrenagens mecânicas. Para que a
"idéia" dentre todas superior, qual seja, a de um ser absolutamente livre,
pudesse se fazer plena, decorria a necessidade do desaparecimento do Estado,
após o que se estabeleceria um "mundo moral" que pudesse realizar a razão que
ele apenas simulava. A verdadeira democracia, no entanto, em nada se assemelha
a este universo moral almejado nos primórdios do Idealismo alemão senão em sua
estratégia de constituir-se a si mesma em contraposição ao Estado e com ele
mostrar-se irreconciliável. "Das ålteste Systemprogramm des deutschen
Idealismus", escrito entre 1796 e 1797, é usualmente atribuído conjuntamente a
Hölderlin, Hegel e Schelling, embora seu conteúdo seja extremamente similar à
obra posterior deste último.
4 Vale recordar, a título de curiosidade, que no âmbito do jusnaturalismo
moderno faz-se freqüentemente uma distinção entre Civitase Respublica, as quais
são relacionadas como materiae forma, ou subjectum e finis, ou corpo e alma. A
Civitasconsiste no grupo ou comunidade que é a base do Estado, enquanto a
Respublicaé a constituição daquele grupo; desse modo, a Civitasé definida como
um corpo de pessoas, e a Respublica, como uma ordem de relações. Ainda, a idéia
de societàsliga-se à primeira, e a idéia de summa potestas, à segunda (cf.
Gierke, 1958, p. 235).
5 A influência de Spinoza na concepção marxiana de democracia pode ser
percebida aqui. Spinoza é uma das peças-chave para se entender a
démarcheintelectual que leva Marx à democracia, e desta ao comunismo. Foi na
escola de Spinoza que Marx teria, afinal, aprendido a conciliar necessidade e
liberdade, e uma vez de posse desse conhecimento lhe foi possível desconstruir
a mistificação hegeliana, em particular sua metafísica do Estado. A relação
inseparável entre a democracia e o homem e entre este e a liberdade, Marx
certamente traz de Spinoza. O filósofo holandês, afinal, responderia aquilo que
ele teria em vão demandado de Hegel ou Rousseau: a possibilidade de o indivíduo
reconciliar existência social e direito natural sem fazer recurso a uma ficção
jurídica (um contrato social no qual se transfiram direitos e por meio do qual
se constituam a soberania e a representação). A associação, conceito que Marx
desenvolve inspirado em Spinoza, possibilita que a democracia seja realizada em
uma forma de organização política na qual a permanência do chamado "estado de
natureza" impede a separação entre a sociedade civil e o Estado. Marx encontra
em Spinoza a idéia de uma democracia total, e dela se beneficiará
posteriormente sua noção de comunismo.