A arte da catira: negócios e reprodução familiar de sitiantes mineiros
Catiras
Ao final do século XIX, Karl Kautsky escrevia que raros profissionais conheciam
o comércio tão bem quanto os camponeses. Eles acompanhavam as flutuações dos
muitos mercados em que entravam com sua produção diversificada, e a negociação
com tantos vendedores e compradores gerava um conhecimento preciso, que
dificilmente seria igualado por grandes produtores ou especialistas em
comércio.
Na literatura, João Guimarães Rosa escreveu quase o mesmo no conto Corpo
fechado, em que narrava as aventuras de Manuel Fulô que, por vingança,
negociara com uns ciganos dois cavalos imprestáveis como se fossem animais da
melhor qualidade. Ele engordou, ensaiou e enfeitou os cavalos para fazer a
barganha diante dos olhos dos moradores do arraial e mostrar que era,
realmente, especial na arte da catira.1
Como esses, existem centenas de exemplos do conhecimento que sitiantes têm dos
mercados e de como sabem fazer valer seus trunfos quando podem ganhar num
negócio. Esse pequeno movimento de trocas, regido por normas próprias e pouco
articulado aos mercados nacionais, é vital para gerar, conservar e ampliar sua
renda. A lógica peculiar desses negócios explica atitudes que desconcertam
técnicos e pesquisadores: para que recriar bezerros se a Cooperativa compra
somente o leite? Para que criar porcos se não há produção de milho? Por que
gastar em bens duráveis de consumo o apurado na migração? Essas atitudes fazem
parte de estratégias bem concertadas, levadas a cabo no correr de anos, às
vezes para apoiar a colocação profissional do filho, para ampliar o terreno
familiar, para liberar a esposa de parte do trabalho doméstico e acrescentar
uma trabalhadora parcial à lavoura.
O objetivo deste artigo é investigar a lógica e o propósito dessas trocas,
denominadas catiras em quase todo o estado de Minas Gerais. Analisa-se por que
são tão recorrentes esses negócios garantidos por relações de confiança, em que
são investidas as beiradas, que criam, aos poucos, os patrimônios materiais e
simbólicos desses sitiantes.
Trocas e estratégias
O tema da catira surgiu de maneira periférica em diversas pesquisas de campo
entre 1985 e 2004. Entrevistados abordavam o assunto entre risadas e evasivas,
insistiam em reduzir sua importância e regularidade, referiam-se aos negócios
como tradição, e a sua ritualidade ocultava os interesses materiais. Mas a
freqüência com que o tema aparecia nas pesquisas e na prática dos entrevistados
impôs sua relevância. A idéia deste artigo surgiu com a refocalização de
cadernos de campo e a releitura de subtextos de autores consolidados, que
revelaram a importância dessas pequenas trocas que ocupam muito do cotidiano de
sitiantes. Este estudo partiu, assim, de pesquisas realizadas com outros
propósitos em áreas rurais do Norte, Noroeste, Sudoeste, e, particularmente,
Zona da Mata (municípios de Espera Feliz, Muriaé e, sobretudo, Miradouro), Alto
Paranaíba (municípios de Rio Paranaíba, Campos Altos e São Gotardo), Mucuri e
Oeste de Minas Gerais (municípios de Araújos, Moema e, principalmente, Bom
Despacho). Tudo indica que nessas regiões de pecuária leiteira mais ativa
existem mais catiras ou, pelo menos, são encontrados mais especialistas no
assunto.
Nos cerrados do Oeste mineiro, no Alto São Francisco, foram pesquisados oitenta
produtores integrados à Cooperativa Agropecuária de Bom Despacho, que respondeu
na década de 1990 pela maior produção leiteira do estado. Nessa região havia
uma grande fragmentação das unidades de produção ' com média de 28 hectares,
variando entre 12 e 97 hectares ', a produção leiteira distribuía-se
harmonicamente entre os grupos de áreas, incluindo as glebas menores, e o
trabalho familiar dominava em todas as explorações. As entrevistas trataram de
produção, terra, produtividade do rebanho, família e geração de renda.
Outra parte das informações veio de entrevistas com quarenta produtores
atingidos pela expropriação dos 60 mil hectares, para a implantação do Programa
de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba ' Padap, que até os anos de 1990 foi
a estrela do agronegócio no cerrado. Sitiantes das terras desconsertadas ' a
topografia acidentada das vertentes dos chapadões ' explicaram como remontaram
seus sistemas de produção depois do estabelecimento do Padap para se reproduzir
à margem da integração agroindustrial que se constituíra em norma cultural.
A terceira fonte importante de dados foi criada na pesquisa com quinze
sitiantes, plantadores de café, feijão e criadores de gado, das ladeiras
esconsas da Zona da Mata mineira. Neste caso, os pesquisadores permaneceram
doze meses na comunidade camponesa, registrando histórias e estratégias que
surgem no encontro produtivo dos homens com a terra.
Mais tarde, outras pesquisas agregaram dados a essas fontes originais e, com
mais alguma observação participante, a catira pôde começar a ser pensada como
uma prática que ocupava um lugar definido, tornando-se objeto de consulta em
textos que foram relidos para conformar um marco teórico, impreciso ainda, que
se situa na fronteira difusa entre antropologia, sociologia e economia rural.
A base bibliográfica deste artigo, então, veio de uma observação já clássica de
Schultz (1965) sobre o tradicionalismo rural. O autor criticava a
identificação, freqüente e insensata, entre pobreza e irracionalidade: a
pobreza, escreveu, não levaria o agricultor a organizar sua unidade de produção
de forma irracional; pelo contrário, a ameaça da escassez estimula a gestão
criteriosa dos parcos bens e recursos, inclusive um planejamento rigoroso e de
longo prazo que tenderia a ser eficiente no horizonte de possibilidades postos
à sua disposição.
Essa lição de Schultz indica que é vital compreender a lógica dessas sociedades
rurais. Foi seguindo essa sugestão que tantos autores conseguiram explicar a
dinâmica própria e as relações específicas que parte do meio rural mantém com a
sociedade inclusiva, pois a ação econômica dos agricultores tradicionais '
ressalvada a ambigüidade do conceito ' tem por propósito reproduzir família e
terra; ela ordena recursos culturais, humanos, materiais e naturais num
conjunto de ações coerentes, denominadas estratégias de reprodução, que
compreendem desde a inserção nas companhias integradoras (Santos, 1978;
Lovisolo, 1989) até o planejamento do consumo familiar (Heredia, 1979; Brandão,
1981); desde o ciclo emigratório para formar patrimônio (Garcia Jr., 1989;
Woortmann, 1990) até o uso regulado dos recursos naturais (Almeida, 1988;
Godoy, 1998); e, ainda, a exclusão planejada de herdeiros (Moura, 1978;
Galizoni, 2002) ou a incorporação das atividades não-agrícolas (Amaral, 1988;
Schneider, 2001). Sempre, porém, serão estratégias marcadas pela junção de
fatores disponíveis, recombinando recursos que seriam inúteis noutras
sociedades rurais.
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Assim, é possível perceber que esses agricultores não mantêm apenas uma relação
passiva com os mercados. Pelo contrário, produzem constantemente minúsculas
estratégias de convívio, que variam de acordo com situações, regiões, condições
de acesso aos recursos, cultura e economias locais. Recursos, conhecimentos e
oportunidades definem um conjunto particular de alternativas, a partir das
quais são construídos os arranjos específicos de negócios que cada coletividade
efetivamente pode executar.
As possibilidades que conformam os arranjos são, ao mesmo tempo, singulares e
plurais, e as estratégias econômicas emergem de um mesmo conjunto de variáveis
combinadas de maneira muito diversas. Assim, fluxos de renda podem surgir de
migração sazonal, integração agroindustrial, pluriatividade, programas
públicos, feiras locais ou pequenos negócios, mas sitiantes de um lugar tendem
a privilegiar mais algumas atividades do que outras. As escolhas são balizadas
por circunstâncias, conhecimentos e recursos ' materiais, naturais, sociais e
simbólicos ', que se combinam de maneiras diferentes para criar situações novas
que reproduzem, renovadamente, os mesmos sujeitos.
Porém, comércio, dinheiro e liquidez ocupam um lugar central nessas
estratégias, mesmo quando os mercados estão em posição secundária na hierarquia
de valores da sociedade rural. A lógica das relações tradicionais pode se
articular aos mercados, como mostrou Maria Sylvia de Carvalho Franco (1974).
Investigando o comércio de café no século XIX paulista, a autora observou que o
dinamismo do negócio se devia aos laços pessoais que uniam fazendeiros e
comissários de café. As relações sociais de proximidade ' que autorizavam ao
comissário vender café sem consultar o produtor, e davam ao produtor o crédito
para sacar dinheiro sem ter colhido o café ' agilizavam os negócios. A
confiança cimentava as relações econômicas e lastreava a circulação de
mercadorias.
Confiança e reciprocidade são a base dos negócios nas sociedades tradicionais,
o que garante o acesso ao crédito (Santos Filho, 1957), à terra (Martins, 1981)
e à rede de trocas (Garcia, 1984). A importância dos mercados é mediada pela
ética camponesa (Woortmann, 1987), e os negócios são animados por relações de
proximidade (Abramovay, 2004).
Nessas comunidades rurais há pouca circulação monetária e nem sempre os bens
são trocados por dinheiro; mais freqüentemente, as trocas se baseiam em
animais, bens de valor estável e aceitação generalizada. Os animais constituem,
portanto, o mealheiro, base do acúmulo e do pecúlio familiar.
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A literatura a esse respeito revela que as estratégias são formuladas para
garantir a reprodução e, secundariamente, a ampliação do patrimônio; mostra
também que, com base na confiança e na reciprocidade, são as circunstâncias que
constroem moedas e mercados específicos. Assim, é possível compreender as
catiras: pautadas por cálculos de longo prazo, cimentadas por relações sociais
costumeiras, mediadas por um pecúlio vivo, formam um conjunto miúdo e contínuo
de trocas de bens de pequeno valor que influem decisivamente no comércio de
regiões rurais e, portanto, na sua dinâmica.
Os negócios
Na economia dos sitiantes de Minas Gerais, não é somente a produção
agropecuária que amplia o patrimônio familiar, ou pode-se afirmar que isso
raramente ocorre. Por uma série de razões ' exclusão setorial política e
econômica, canais precários de circulação mercantil, condição subordinada na
negociação ', a produção garante o sustento, mas não a ampliação da riqueza. A
lavoura de mantimentos e/ou a integração agroindustrial asseguram os alimentos;
a produção de café e/ou a integração agroindustrial pagam as contas
corriqueiras da família ' roupas, remédios, energia etc. ', mas a expansão do
patrimônio familiar vem de atividades que estão à margem da produção
agropecuária regular.
Na Zona da Mata, os pagamentos feitos pela indústria garantem a mantença e o
custeio dos integrados da avicultura, mas seu ganhame é gerado no comércio de
subprodutos, cama-de-frango e leite. Os sitiantes dessa região e, também, do
Sul de Minas Gerais produzem mantimentos, pagam as contas com a venda de café,
mas acumulam bens com o pequeno comércio. Nos sítios do Alto Paranaíba, o
pecúlio forma-se em períodos de trabalho temporário em fazendas ou com
parcerias em lavouras. No Norte e Nordeste, amealha-se com a migração sazonal;
no Sudoeste e parte do Oeste, mais integrados, os sitiantes ganham com a
indústria a domicílio; artesanato ou atividades urbanas costumam gerar os
excedentes no Centro e no Campo das Vertentes; os produtores de leite no Oeste
mineiro mantêm-se com a integração, mas fazem renda com venda de bezerro4
Em suma, nas mais diferentes regiões, os sitiantes formam seu patrimônio
segundo um cálculo de longo prazo que difere de um para outro, mas perseguem,
sempre, quatro metas de aquisição bem definidas:
1. Bens de uso generalizado e negociação fácil, como utensílios domésticos,
eletrônicos e automóveis.
2. Animais de valor, como porcos, cavalos ou vacas.
3. Partes da herança partilhada pelos pais: lotes de cunhados de um dos
esposos, ou, quando isto não é possível, terrenos urbanos.
4. Terrenos rurais de não-membros da família.5
Os meios usados para alcançar tais metas variam, mas sempre incluirão o
trabalho ' migração sazonal, pluriatividade e parceria, que produzem rendas
fora da produção agrícola da unidade familiar ', os repasses ' como
aposentadorias e bolsas, que produzem rendas independentemente do esforço
familiar ' e, finalmente, os negócios ' que no decorrer do tempo transformam em
patrimônio os subprodutos e os bens periféricos amealhados. A reprodução pode
ser ampliada pela terra, por criame de gado ou pelas relações de trabalho,
quando, por exemplo, a parceria gera um a-mais para o parceiro-proprietário.
Escolher um ou outro método depende do regime agrário e das conjunturas; a
lógica, porém, sempre é a mesma, apresentada de maneira esquemática no Quadro
1.
Essa estrutura de gestão dos bens e das fontes de recursos familiares foi
resumida na frase definitiva de um sitiante de Miradouro, Estevão Dias: "Roça é
comida, lavoura é dinheiro, gado é negócio". Ele explica, didaticamente, que a
roça de mantimentos, ou lavoura branca, provê o alimento; que a venda do café
(lavoura, nesse caso, deve ser sempre entendida como lavoura de café) paga as
contas da casa e o custeio da produção, mas que a renda que dará forma ao
patrimônio advem fatalmente dos negócios.
Para os sitiantes, essas fontes não se confundem. Eles costumam diferenciar
rigorosa, didática e eticamente as origens dos recursos, inclusive para avaliar
a evolução do patrimônio. Mesmo pequenos acréscimos têm origem num determinado
crédito, o que é evidente em frases como "este carro veio de uma panhade café",
"esta égua veio na troca de uns leitões" e "este terreno aumentado veio da
venda de uma ponta de gado". Assim, como o patrimônio se forma com ações
independentes da produção imediata de alimentos, ele é considerado uma riqueza
construída à margem, porque expande sem sacrificar o consumo familiar. E, com
exceção dos recursos advindos de migrações sazonais e ocupações não-agrícolas,
o crescimento da riqueza é creditado em parte à "natureza mesma das coisas",
pois surge apartado da lida concreta na roça familiar. É como se fosse um
capital mágico, já que o patrimônio cresce pela mediação do meio natural: a
lavoura que produz seus frutos ' que são antes de tudo produtos da própria
terra; a terra que subordina o parceiro e acrescenta renda ao seu próprio preço
' aparentemente por ser terra e não pelas relações sociais que a envolvem; o
gado criado solto que aumenta em peso, bezerros e negócios. Seria apenas
mágica, não fosse a interferência do cálculo humano, de um lado, e da catira,
de outro: o cálculo governa a lidae rege a catira; a catira dá forma material
ao recurso criado à margem da produção de mantimentos e o converte, lentamente,
em patrimônio. A catira cria um fluxo de reconversão contínua que, às vezes,
consome uma vida para dar forma patrimonial a um cálculo humano.
É por isso que catira ' ou barganha, breganha, baldroca, negócio, rolo: as
denominações são muitas ' é uma das instituições mais sólidas do meio rural
mineiro. Trata-se da troca de animais por bens de consumo, produtos agrícolas,
dinheiro ou um pouco de cada, e vice-versa. Em algumas regiões é um negócio
bastante freqüente e os negociadores são extremamente dedicados; em Minas
Gerais serve para dispor bens sem serventia, trocar o miúdo pelo remediado e
este pelo graúdo, para encorpar, aos poucos, os bens que compõem o patrimônio
familiar.
Catira, então, o leitor já percebeu, não é um negócio qualquer, mas, uma troca
essencial. A ritualidade, o respeito aos costumes e às culturas conformam os
atos, o cenário, a coreografia e o palco onde o cálculo humano é executado. As
trocas têm por base a confiança e o nome dos parceiros, são marcadas pelas
histórias pessoais, carecem de muita conversa e, às vezes, de uma encenação
emprestada ao jogo do truco, mesmo quando, desde o começo, todos já saibam qual
será o desfecho do negócio.
As catiras nascem de bases materiais já dadas: apartação de bezerro-de-ano,
milho no paiol, uma bicicleta, leitões engordando, um Chevette encostado, vacas
niquentas ' dessas que nunca amansam, que parecem esconder no corpo uma nica,
ou moeda de níquel, daí o nome. Há, sempre, o quê negociar: "Tudo dá
negócio...", gostava de dizer Itamar de Mattos, criador de gado, mensageiro da
Palavra, plantador de café, meio-negociante lá do Miradouro. E negócios surgem
até de encontros que parecem acidentais:
Ele estava nesta égua e eu ia passando com um milho para levar para
os porcos. Ele falou que apreciava muito uns capadinhos. E ainda
falou: "Sabe que dá prejuízo sustentar porco com milho da gente?
Porco come é do nosso suor...". Aí eu senti que ele queria era
negociar, mas eu não sabia direito era o que eu queria conseguir
dele. E aí eu falei, falei mais é para valorizar o que é meu: "Eu fui
criado com gordura de porco e nunca que acostumei com óleo". Dai
começou... (José Nelson, sitiante da Zona da Mata).
Então, deram-se a troca dos porcos pela égua, a parição da égua e a catira do
potro, a produção das leitoas e novas, e encadeadas, séries de trocas, porque
fêmeas dão vida às trocas, desde aquelas originárias, de irmãs por terra ' que
são a base física e genética da reprodução dos sítios ', até aquelas outras,
rotineiras, que conduzem para o sítio os bichos-fêmeas e levam o sitiante à
prosperidade, porque a sabedoria ensina que "é bicho que urina para trás que
bota o dono para a frente". No entanto, mulheres raramente fazem catiras, que
estão muito ligadas ao papel e à representação masculina.6
Os preços que correm no mercado nacional são apenas balizas para as catiras.
Elas são marcadas, sobretudo, pelas peculiaridades locais e por um horizonte
limitado de benefícios, de forma que se tornam um jogo onde ganham todos os que
se reconhecem: os que sabem a utilidade do bem que recebem, os que adivinham o
destino do produto que dispõem. Por isso esse tipo de barganha é, também, um
jogo regulador do patrimônio e da fortuna ' uma redistribuição, conforme
definiu Mauss ', porque realoca os bens nas parcelas necessárias para cada
jogador fazer seu jogo. E como, às vezes, a arte serve ao cálculo, o rito
funciona como o pano que cai para ocultar o ator que esqueceu sua fala que
modificaria, para melhor, o cenário: ele torce o assunto para fugir de um tema
delicado, oferece um café para mudar um diálogo que não estava no roteiro que
previra, começa a fazer um cigarro de palha quando a proposta recém-apresentada
pelo parceiro gasta cálculo mais lento, conta um caso passado há anos '
aparentemente sem propósito, mas finalizado com boa lição moral para a situação
presente ' no momento em que o negócio está chegando ao desenlace para aumentar
a tensão do parceiro e fazê-lo aluir mais ligeiro; ou sugere, com infinita
sutileza, que sabe por que o outro deseja o bem que adquire, para mostrar que
domina os resultados da catira.7
Nos sítios, a troca de bens é constante, diversificada e, possivelmente, muito
mais negociada do que nos grandes mercados; é regulada por uma gama variada de
regras e avaliações objetivas e subjetivas. Os termos das trocas são abertos
num leque tão amplo quanto a variedade de bens que se troca, porque nas catiras
a necessidade e o cálculo individuais são referências muito objetivas. Lidando
com tantas trocas e dominando um varejo extenso ' como notava Kautsky ', os
sitiantes ganham um insuspeitado conhecimento de mercados, preços e
oportunidades. Mas negociar não é apenas um meio para conseguir bens materiais,
serve também para confirmar laços, refazer acordos e complementar necessidades;
é um meio de tornar os homens iguais, tanto porque eles se encaram olho-no-olho
' e a medida do homem será dada por sua capacidade de enfrentar o outro ', como
porque a circularidade das trocas tende a equilibrar os ganhos.
Por isso nos sítios tudo está para negócio ' "menos a mulher e os meninos",
gostava de ressalvar Donizete, dos Bernardinos, da Chapada do Doce, em Moema ',
se o negócio está em acordo com o cálculo. Assim, cresce a massa de bens, de
estoques e animais, e sempre parece que isto vem do fato de que alguns bens e a
própria terra gozam da capacidade de se valorizar sem a mediação do esforço
humano. O progresso material pode ser percebido no decorrer da vida de uma
família, mas nunca aparece em estatísticas porque os censos registram apenas
fragmentos, fotogramas, dessas vidas, e porque o jogo redistributivo da herança
sempre recoloca o filho no ponto em que o pai partira. Ao longo dos anos, os
bens multiplicam-se nas mãos de quem sabe o momento certo de dispor, por
exemplo, de um fusca para adquirir uma nesguinhade terra.
Tudo sempre é bom para uma barganha, mas o gado bovino, conforme Totonho Alves,
sitiante do Capivari dos Macedos, Bom Despacho, é o "mais principal", o melhor,
mesmo, para converter bens, mercadorias e dinheiro. Solto nos pastos, rende por
si: medeia negócios, é líquido, é meio de produção, aumenta, pode ser estocado,
fracionado, reunido, cedido à meia e, até, alugado ' uma inovação criada por
alguns produtores de leite do Oeste mineiro quando querem ir passar uns dias
pagando promessas no santuário católico de Aparecida do Norte, em São Paulo.
Por isso os sitiantes gostam de manter parte do patrimônio em gado, que é
garantia sólida na inflação alta e no juro baixo, além de ser quase-moeda,
pois, na definição exata de Estevão Dias, da Fazenda Pica-pau, de Miradouro:
"Gado é dinheiro andando".
As reses não se enquadram muito nos padrões do mercado formal, pois o gado
raramente é terminado, isto é, nunca chega às 16 arrobas convencionadas para o
abate. Selecionam as fêmeas por juventude, rusticidade e habilidade materna;
importa menos a produtividade leiteira. Essa cultura que envolve o rebanho
territorializa sua liquidez, mas não a elimina, ou seja, há sempre um
ajustamento de preço às demandas do mercado nacional, ao menos em parte. A
criação é orientada para reprodução, troca e reserva de valor:
Estou criando estas novilhas e esperando elas para leite. Mas elas
estão para negócio, ou se apertar a gente negocia. Os garrotes também
são para recria, mas se apertou a gente vende e se aparecer negócio a
gente faz. Para ver: eu estava devendo meu cunhado. Ele veio, olhou
um gado e ficou com ele pela dívida. Sempre tem um aperto de pasto,
um aperto de dinheiro, vende um garrote para comprar um adubo de
café, estamos sempre vendendo ou trocando (Ivo Almeida, sitiante do
Oeste de Minas Gerais).
Mas, antes de tudo, gado é um meio para adquirir terra. A terra "cria" o gado,
que é trocado por mais gado, que, recriado, produz mais terra. É por isso que
os ganhos da migração, as sobras da panhade café, as rendas não-agrícolas e do
trabalho a-diassão convertidos em gado. A sobra, o apurado, o ganhameviram
gado, que, se espera, produza mais sobras, e, por fim, mais terra:
Vendi o gado e comprei a terrinha, com um sócio, e daí pra frente
todo cobrinhoque sai da minha mão é para comprar mais um gadinho. A
gente faz é fundo[gado pior] e cabeceira[gado melhor], mas vende
indiferente: quer cabeceira? Vai cabeceira! Junta um café, um
mantimento que sobrou, faz mais uns bezerros. Hoje mesmo, se meu
sócio der de vender a parte dele, eu desfaço desse gado, que já dá
para pagar. ["E fica sem gado?"] Vou refazendo, e de um capado mais
uns alqueires de arroz sai mais bezerra... ["E se ele não quiser
vender?"] Se for outro caso, eu desfaço das novilhas do mesmo jeito,
para botar noutra coisa mais parada, noutro terreno (Estevão Dias,
sitiante da Zona da Mata de Minas Gerais).
É esse cálculo demorado que o sitiante faz, avaliando as oportunidades de
economizar, criar, catirar e, finalmente, adquirir terra. Quando quer partes de
terras da herança comum dominada por irmão ou cunhado, o sitiante corta
despesas, descobre novas receitas e catira animais para ir comprando terra aos
poucos, porque quanto mais compra mais tem condição para tornar a comprar. É
uma combinação de cálculo de longo prazo ' que avalia disponibilidades,
recursos, prazos, precisões e oportunidades ', sorte ' para a boa saúde do gado
e da família, para que apareçam as transações que precisa fazer ', esperteza '
para reconhecer a boa oportunidade, alongar os prazos e levar a cabo trocas
vantajosas sem prejudicar ninguém das proximidades ' e muito trabalho ' para
garantir o sustento diário, fazer sobras e poder comprar mais gado.
Nessa combinação, a família forma o pecúlio ao longo do tempo.
Independentemente da quantidade de bens que possui, ou chega a possuir, o
estilo de aquisição e as combinações que deve fazer são as mesmas. Sempre,
também, ao final de um ciclo de vida o sitiante se encontra, no máximo, no
ponto em que seu pai chegara: reuniu as terras que foram partilhadas entre
irmãos e cunhados, criou seus filhos e partilhou entre eles o patrimônio
amealhado. Aí então o ciclo recomeçaria, mas fatores externos podem mudar a
situação, como vem acontecendo desde a década de 1980 com a queda brutal da
natalidade, que aumentou a legítima dos herdeiros ao reduzir a partilha e
reduziu o monte-mór com a diminuição da massa de trabalho-sobrante que seria
estocada pela família do fim da infância ao início da idade adulta dos muitos
filhos. Além disso, a universalização das aposentadorias e das pensões rurais e
a quase generalização do acesso aos recursos de programas compensatórios
contribuíram para inverter o padrão histórico de dependência e reprodução entre
gerações e gêneros, ao tornar os idosos mais líquidos do que os adultos jovens
e as mulheres mais endinheiradas do que os homens.
No entanto, a lógica permanece. Com bolsas e pensões, aposentadorias e
transferências, os sitiantes vão adquirindo e trocando porcos por gado,
produtos por animais, animais por equipamentos, e vice-versa, e, quando é
preciso, tudo por dinheiro, e novamente por gado, e finalmente por mais terra.
Com efeito, o rumo das trocas não muda: machos por fêmeas, adultos por jovens,
poucos por muitos, semoventes por mais parados.
Nas regiões mineiras onde as trocas são mais fortes, sitiantes podem até se
tornar, em definitivo ou por uns tempos, catireiros profissionais. Esses lidam
a maior parte das vezes com vacas ou bezerros descartados e fazem seus negócios
com prazos estabelecidos. São muito úteis porque dão um destino ao bezerro ' o
macho imprestável no rebanho leiteiro especializado ', à vaca de fundoe, ao
mesmo tempo, um pecúlio aos sitiantes. A atividade vai ocupar muito do seu
tempo: trocam ou compram pequenos lotes, às vezes refazem o gado em bons pastos
para barganhar mais adiante por bens ou outro gado e muitas vezes reúnem uma
bezerrada machapara negociar com invernistas que carecem de gado macho, jovem e
magro para terminare levar ao abate. Catireiros são elos ativos nessa cadeia
produtiva torta que leva gado sem serventia nos sítios para a ponta da
terminação ou do consumo.8
Catireiro tem que ser conhecido, ter bens próprios e sua rede de informantes;
tem que saber onde existe algum gado, animal ou bem para ser barganhado e,
também, onde há alguém interessado naquilo que ele tem ou que pode adquirir.
Mas, sobretudo, precisa ter um bom nome: "Catireiro não prospera com embondo
[logro ou embaraço]", resumia Jarico Rodrigues, do Paranaíba, ele mesmo um raro
sitiante que adquiriu mais terra do que a herança paterna às custas de muito
trabalho e maestria na catira.9
Os catireiros dependem desse bom nome, pois com isso podem até mesmo fazer
negócio sem ter capital, na base apenas da confiança e dos prazos. Eles dizem
que os prazos "dão os seus dias" ' "prazo, um dia, vence...", assegura
Valtervi, sitiante do Capivari dos Macedos. Mas enquanto os prazos correm por
um lado, os catireiros rodeiam pelo outro lado para produzir bens ou dinheiro
que seus compromissos exigem. Por isso o tempo e as informações sobre o seu
mercado são essenciais: para ver um animal, saber de precisões dos outros,
esperar novidades. Parece que o bom catireiro não trabalha, que tem a vida
inteira à sua disposição. Gasta tempo se informando sobre preços nos mercados
nacionais, sobre os apertos de dinheiro do produtor, sobre seus planos e
interesses, enfim, tudo o que vale saber sobre a vida alheia. Mas finge não
saber: por exemplo, vai ao sítio procurando porcos para trocar por uma
bicicleta, sabendo que o sitiante tem mesmo é garrotinho com precisão de vender
para pagar no mês que entra parte de um terreno que comprou. O catireiro finge
ser sonso, no jogo de deixar a palavra inicial do negócio ao parceiro, que,
forçado a abrira catira, revela seu teto de cálculo e fornece o galeio ' o
balanço do valor ', onde o catireiro se apóia para começar a desenrolar a trama
de possibilidades que carrega, já há muito, na cabeça.
Catiras, dons, riquezas
O negócio da catira, como a dança da catira, tem coreografia e ritmo próprios,
num e noutra só aparecem os homens. Negócio e dança formam patrimônios '
semoventes, materiais, simbólicos e culturais ' que dão vigor e perenidade a
essas sociedades rurais que se celebram e se revelam nessas suas artes.
Mas o negócio é uma arte particular. Ligado à vida mesma de todo dia, funciona
como um mecanismo que produz e ajusta a riqueza que, por sua vez, se expande
das coisas para as famílias e das famílias para o lugar, porque os bens, ao
circular, cimentam as bases que fundam a economia dessas regiões rurais. Por
isso é que não deve haver assombro nem preconceito ao ver sitiantes, com
catiras, dar nova forma material aos produtos da lavoura, da migração, da
pluriatividade, das aposentadorias e de outros meios de aquisição de renda.
Essas habilidades e costumes, porém, são recebidos com certo desrespeito por
parte de técnicos e especialistas em desenvolvimento rural. Os mais puristas
garantem ser inútil esse conhecimento que sitiantes têm do mercado ' costuma
ser dito assim mesmo, como se fosse um ente único ', uma vez que esse tipo de
lógica de sobrevivência e reprodução só lhes traz prejuízos, como, por exemplo,
trocar dinheiro por bens imóveis e esterilizar investimentos, barganhar uma
safra por novilhas de sobre-ano e estar sempre montando e refazendo gados para,
ao termo, convertê-los em bens "mais parados". Os sitiantes careceriam de
cursos, de conhecer os meandros da circulação das mercadorias, dos preços e das
finanças, para se tornarem, enfim, devedores prósperos e empreendedores ativos.
Grande engano, pois as catiras são essenciais para a reprodução dessas famílias
e dos regimes agrários. Dinamizam grandes e pequenos negócios, agilizam a
circulação de bens, criam e distribuem riquezas, consolidam poupanças, expandem
o patrimônio comercial ao firmar relações costumeiras de confiança que
alicerçam novas e continuadas trocas entre os agentes econômicos. Criam,
portanto, estabilidade na economia rural ao criar oportunidades para muitos.
Isso fica evidente na força do pequeno comércio e indústria familiar ao longo
da rota Centro Oeste-Triângulo Mineiro, na demorada estabilidade econômica da
Zona da Mata mineira, na diversificação das atividades rurais e urbanas dos
pequenos municípios do Alto Paranaíba. Nessas regiões de base agrária familiar,
de boa pecuária e catiraforte, dia-a-dia os sitiantes refazem seus negócios e
dão fôlego às suas trajetórias tão iguais e diversas que conformam o campo do
país dos mineiros.
Notas
1 As categorias de uso local virão em itálico na sua primeira aparição neste
artigo.
2 Para análise dessas estratégias, ver Garcia (1984), Garcia Jr. (1989),
Schneider (2001) e Abramovay (2004). Um estudo clássico sobre o lugar da
família na estratégia de reprodução foi realizado por Chayanov (1974).
3 A esse respeito consultar Lovisolo (1989) sobre sociedades camponesas;
Teixeira da Silva (1997) sobre fazendas; Queiroz (1997) sobre o Sul do Brasil;
Ribeiro (1998) sobre o Sudeste; Andrade (1986) sobre o Nordeste. Para estudos
mais antigos consultar Santos Filho (1957) e mais recentes, ver Schröder
(2004). Como o animal é um bem que resulta da ação combinada da natureza e do
trabalho, não possui o caráter perverso e usurário da moeda. Sobre a imagem
espúria do dinheiro nas sociedades camponesas, consultar Martins (1981) e
Woortmann (1987).
4 Esses sitiantes produzem leite, matrizes leiteiras e recriam machos, que
vendem junto com vacas de descarte; criam mais gado que seus pastos suportam e
as vacas lactantes correspondem a menos de um terço dos rebanhos (Sebrae, 1996;
Ufla, 1997).
5 A diferença entre o terceiro e o último tipo de aquisição é grande, pois
irmãos(ãs) ou cunhados(as) tendem a vender terras com preços e prazos
favorecidos, e muitas vezes os negócios são casados, isto é, vendem as suas
glebas para comprar terras de outros parentes. A esse respeito, ver Moura
(1978).
6 Mulheres costumam vender produtos, mas quase nunca fazem negócios como as
catiras. Osório Dudu, sitiante da Vereda das Araras, no rio Acari, ao Norte,
explica que "juízo de mulher [para barganhas] só dura até o meio-dia".
7 O senhor Abel, sitiante de São Gotardo, contou, por exemplo,que o vizinho
avisou que "vinha catirar a charrete, p'r'eu pensar que ele queria dois
garrotinhos [novilhos]; mas eu sei que ele queria mesmo é o cavalinho, porque
está sem animal para puxar [transportar] leite". Barganharam o cavalinho por
três arrobas de café, uma leitoa e Cr$ 1.000,00 em quarenta dias.
8 Em Bom Despacho há um lugar onde os catireiros ficam esperando negócios; essa
banca de trabalho é apelidada de Catiródromo.
9 Catireiros cumprem seus acordos mesmo que isso signifique sua própria
falência. Um deles, em São Gotardo, adquiriu bezerros e os vendeu para um
frigorífico que faliu; vendeu a herança da esposa ' o bem que lhes restara ',
mas não deixou de honrar seus compromissos; pagou as dívidas e seguiu catirando
com os parceiros de sempre.