Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada
Os homens não produzem habitação ou abrigo. Poduzem moradias de tipos
definidos, como a cabana de um camponês ou o castelo de um nobre. Essa
determinação de valores de uso, de uma casa particular como uma moradia
particular, representa um processo contínuo da vida social, em que os homens
reciprocamente definem objetos em relação a si mesmos e a si mesmos com relação
a objetos.
SAHLINS (1976, p. 169)
Introdução
Maio de 2005. Cheguei à favela de Bela Vista1 mais tarde do que o usual; eram
cerca de duas horas da tarde. Após estacionar no pé do morro, contemplei a
possibilidade de subir de Kombi. Mas, além de ter perdido a hora do rush das
crianças voltando do turno matutino da escola - o que implicaria uma longa
espera para a Kombi encher - gostava mesmo de subir a pé. Tomei o caminho do
principal beco de acesso à Bela Vista. Este conduz o pedestre por um caminho
tortuoso que desemboca na única rua da favela. Nessa junção, lancei (como
sempre fazia) um olhar discreto para a "boca". Como era de se esperar a essa
hora do dia, os seis ou sete enormes fuzis (além de algumas pistolas)
ostensivamente à vista contrastavam com o semblante entediado dos jovens que os
seguravam. Aglomerados em torno de um banco de concreto à sombra de uma
amendoeira, jogavam conversa fora; relaxados, fumavam um enorme baseado.
Algo parecia fora do lugar, mas eu não identificava de imediato a fonte do meu
estranhamento. Um segundo olhar, agora menos discreto, revelou o que me
inquietava: cerca de três metros dos jovens com suas armas, havia uma
caminhonete da Light - a empresa provedora de eletricidade do Rio de Janeiro.
Pouco acima da "boca", um técnico da empresa, amarrado ao poste, distraidamente
consertava os estragos do tiroteio da noite anterior. Ele parecia tão
indiferente aos jovens armados quanto estes à sua presença.
A cena é, sem dúvida, banal. E é esta banalidade que a torna um bom ponto de
partida para pensar sua novidade histórica: a imagem torna visível uma série de
transformações ocorridas no mundo social, que abrem a possibilidade de
reconstituirmos suas trajetórias históricas, de esboçar uma genealogia do
presente. Há apenas trinta anos, a cena seria uma impossibilidade: talvez
houvesse "bandidos"2 na "boca", mas suas armas seriam menores e certamente não
usadas de modo ostensivo. A "boca" não exigiria tanta vigilância, pois a
maconha, que seria então sua principal mercadoria, não mobilizava tantos
recursos ou lucros. De todo modo, a "boca" estaria em outro lugar, pois o platô
de concreto onde se encontra, assim como o banco em torno do qual os jovens se
sentam, foi erguido como parte do programa "Favela-Bairro", projeto de
urbanização de favelas iniciado na segunda metade dos anos de 1990, orçado em
cerca de 600 milhões de reais, parcialmente financiados pelo Banco Mundial.
Aliás, há trinta anos o concreto seria escasso por toda a favela; no lugar das
casas de alvenaria de vários andares, barracos de estuque e madeira
constituiriam a forma construída dominante. A presença do técnico da Light
constitui outra novidade. Ainda que redes de eletricidade - clandestinas ou "de
cabine" - já existam há algumas décadas em muitas favelas cariocas, a
instalação de relógios de luz e de contas individuais (que hoje cumprem o papel
de comprovantes da propriedade no mercado imobiliário de favelas) também
constituiriam uma impossibilidade nesse recuo imaginário a meados dos anos de
1970.
O presente artigo visa a constituir uma genealogia histórica dessa cena, tendo
como fio condutor a produção social, os usos e as apropriações do espaço
construído das favelas cariocas. Seu objetivo principal é elaborar, a partir de
uma perspectiva etnográfica, um termo que, ao longo dos últimos dez ou quinze
anos vem ganhando espaço no léxico de urbanistas, arquitetos, engenheiros e
técnicos da administração pública que trabalham com e nas favelas cariocas: a
"favela consolidada".
Termo de uso corrente na literatura especializada (tanto técnica como
acadêmica), a "favela consolidada" é raramente definida. A própria
naturalização do termo (que parece duplicar a indiferença recíproca entre o
técnico da Light e os jovens armados na "boca") aponta para o fato de que, em
seu uso corrente, não chega a constituir conceito, mas deve-se à necessidade
prática de distinguir, do ponto de vista do planejamento e da governança
urbanos, favelas já estabelecidas e bem equipadas em termos de infra-estrutura
de favelas mais recentes e outros modos de produção de moradia de baixa renda.3
Afinal, como diversos estudos vêm demonstrando, as características que
tradicionalmente definiram as favelas cariocas - ilegalidade do solo,
precariedade de infra-estrutura, concentração da pobreza extrema da cidade - já
não dão conta seja da diversidade de realidades que o termo favela nomeia (do
ponto de vista legal ou urbanístico), seja do tipo ideal cristalizado no
imaginário social da cidade que ele evoca, a saber, a favela dos grandes
contrastes socioespaciais, tipicamente localizada em encostas de morros
(Valladares, 2005). A comparação entre os indicadores sociais e econômicos
referentes a áreas de favelas e outras regiões habitadas por populações de
baixa renda revela que já não é mais possível afirmar que os níveis mais
extremos de pobreza, de precariedade na infra-estrutura urbana, ou no acesso a
serviços públicos se concentrem nas favelas cariocas (Preterceille e
Valladares, 2000). Isto não significa que não há pobreza extrema nas favelas,
mas que a segregação socioespacial na cidade vem se complexificando ao longo
das últimas décadas (Lago, 2000).
A perspectiva ampla que embasa tais trabalhos é a consolidação de favelas como
um fato social consumado e bem documentado.4 Como já dizia Michel de Certeau, a
perspectiva "do alto" dos urbanistas (ou da sociologia quantitativa)
"transforma o mundo enfeitiçante pelo qual foi outrora 'possuído' em um texto
que repousa diante dos olhos, oferecendo-se à leitura, permitindo ao leitor
tornar-se um Olho Solar, olhando para baixo como um Deus" (1984, p. 92). No
entanto, essa mesma perspectiva também silencia os efeitos das estruturas
territoriais do tráfico sobre a experiência fenomenológica, cotidiana e
discursiva do espaço da favela. Em suma, a visão "do alto" produz suas próprias
categorias analíticas e descritivas - tais como a noção de favela consolidada -
que impõem indagações sociológicas acerca de transformações recentes que só
podem ser exauridas se complementadas pela perspectiva míope, "do chão" à qual
tem acesso no campo.
Assim, de um ponto de vista antropológico ou, mais precisamente, etnográfico,
pensar a favela consolidada implica levar em consideração a historicidade da
favela como forma social e espacial, ou melhor, pensar a consolidação de
favelas como processo espaço-temporal, atravessado por relações de poder que se
(re)produzem em diversas escalas.
A hipótese aqui desenvolvida é a de que essa conjuntura é marcada pelos efeitos
sociais de dois processos sócio-históricos, que vêm paulatinamente se
interconectando. De um lado, a substituição de programas de remoção por
projetos e programas de urbanização, o que possibilitou um boom de construção
civil nas favelas ao longo das últimas décadas e no incremento do mercado
imobiliário das mesmas, e a conseqüente mercantilização de seus espaços. De
outro lado, a apropriação do espaço da favela pelo tráfico de drogas, por meio
da imposição de novos usos e rotinas sociais que produzem e reforçam as
fronteiras sociais e simbólicas entre a favela e o dito "asfalto". Em suma,
pensar a consolidação de favelas traz à tona a questão de como as
espacialidades da consolidação urbanística e da "melhoria" - para usar uma
expressão cara aos agentes nela envolvidos - se choca, intersecta ou justapõe
ao que é sabido ser o aspecto mais crucial da vida cotidiana em estruturas que
conectam a favela - agora como território do tráfico - a uma economia política
no bojo do que se convém chamar de "criminalidade violenta" (cf. Machado da
Silva, 2004).
Da perspectiva das práticas, dos usos e das apropriações que produzem o espaço
da favela, portanto, sua apropriação pelo tráfico impõe-se como uma entre
várias espacialidades que constituem a favela, atuando inclusive como elemento
potencializador de novas intervenções urbanísticas, dada a centralidade da
questão da segurança pública na política - não só carioca, mas nas grandes
cidades em geral, no Brasil e no mundo. Aqui, projetos de urbanização e
programas sociais figuram como estratégias de contenção do "risco social"
representado pelas desigualdades que constituem o espaço urbano. Tal paradigma
é surpreendentemente consensual: de políticos mais conservadores a movimentos
sociais endógenos, as três esferas do governo, bem como no discurso do
urbanismo e do social, um consenso emerge de que é por intermédio de mais
investimentos que será possível conter a "violência urbana". ONGs, ativistas e
moradores encampam esses mesmos discursos na disputa por investimentos
(Pandolfi e Grynszpan, 2003).
Assim, o que parece à primeira vista uma contradição transmuta-se em uma
interconexão: do ponto de vista da consolidação de favelas, a territorialização
do tráfico figura como elemento potencializador de novas melhorias
urbanísticas, reproduzindo também a crescente desigualdade entre os pobres
(Preterceille e Valladares, 2000). Reconfiguram-se, assim, as relações
historicamente constituídas entre pobreza, (i)legalidade e espaço urbano no Rio
de Janeiro contemporâneo. Enquanto vigoravam as políticas de remoção, era a
(i)legalidade urbanística que possibilitava o desenvolvimento de outras
ilegalidades, tais como as redes de contravenção sobre as quais a
territorialização do tráfico iria reestruturar (Misse, 2006). Hoje, as
condições para a visibilidade e relevância política inéditas da favela residem
em sua constituição, no nível dos discursos e das práticas, como uma ameaça à
cidade. Essa imagem, paradoxalmente, traduz-se em melhorias e investimentos no
espaço físico da favela que, por sua vez, se revestem de sentidos e valores
particulares para os atores assim beneficiados.
É a partir desse campo problemático que o presente artigo pretende explorar o
fenômeno histórico da consolidação de favelas no Rio de Janeiro contemporâneo.
Desde esta perspectiva, a história da mudança de paradigma das políticas
governamentais calcadas na remoção para programas que visam à "integração" da
favela à cidade dita "formal" pode ser lida como a história da passagem do
"barraco" de estuque para a "casa" de alvenaria.
Do barraco à casa
Benedito mora em uma casa de três andares na favela de Bela Vista. Ou melhor,
em um dos três andares de uma casa que é uma espécie de condomínio familiar,
pois abriga o que são, na realidade, quatro residências distintas que dividem
uma área interna. A fachada que dá para a rua é revestida de azulejos em tons
de azul, que combinam com as grades das duas janelas que dão para a rua, bem
como uma terceira, que protege a porta de vidro. Esta última, através de uma
escada um tanto íngreme, dá acesso a três residências: a de Benedito, matriz
original do edifício, localizada no primeiro andar onde ele viveu durante mais
de meio século com sua esposa que faleceu já há alguns anos; a de sua filha,
casada e mãe de uma filha, e a de seu filho, que permanece solteiro. Essas duas
casas possuem, ainda, entradas separadas, acessíveis por um beco. Vistas dessa
perspectiva não parecem sequer parte da mesma construção, pois possuem fachadas
inteiramente distintas: a do filho é pintada em um tom róseo, com janelas e uma
porta de madeira, pintadas em azul; a da filha é revestida de tijolinhos
rústicos, e conta com uma grande varanda repleta de plantas, no segundo andar
da construção. Na ocasião de minha visita, Benedito concluía a última
residência, que ocupa o espaço térreo voltado para a rua principal de Bela
Vista. Sua intenção era alugar o quarto e sala (com cozinha e banheiros
próprios) de modo a complementar sua aposentadoria. O valor do aluguel seria de
R$250, segundo Benedito me disse ao indicar a obra quase pronta.
Depois de me mostrar as casas separadas, e de contar um pouco da história da
construção que ocupa cada centímetro do espaço marcado oficialmente como
pertencente à família de Benedito na ocasião do programa pioneiro de
regularização fundiária "Cada Família, um Lote", ele me convidou para tomar um
suco na sala de estar. Sinceramente impressionada com as dimensões e o
acabamento da construção, perguntei quando a casa havia sido concluída. Ele
sorriu, um tanto condescendente, e disse: "casa na favela nunca fica pronta,
minha filha".
De fato, uma das coisas que mais chama atenção em Bela Vista - ou em parte
considerável das cerca de setecentas favelas cariocas - são as visões e os sons
de trabalho de construção civil em andamento. Diversas fotografias que tirei ao
longo do trabalho de campo apresentavam múltiplas obras em andamento, sem que
fosse minha intenção retratá-las.5 No entanto, o interesse acadêmico pelo tema
parece ter se dissipado nas últimas décadas, depois de alguns trabalhos
seminais que exploraram a autoconstrução como modo privilegiado de produção de
moradia em comunidades de baixa renda (Valladares, 1983; Maricato, 1979;
Durham, 1973). O hiato em estudos sobre o tema corresponde, justamente, ao
período em que a consolidação das favelas deu-se de fato. Assim, faz-se
necessário um breve recuo histórico para reconstruir os sentidos sociais e
valores atribuídos à prática da autoconstrução.
A história dos grandes projetos, planos e intervenções governamentais nas
favelas cariocas é bastante conhecida. Faço, portanto, apenas um histórico
impressionista, de modo a contextualizar a etnografia que segue. Ainda que haja
indícios de construções nas encostas de morros do centro da cidade desde os
anos de 1870, foi apenas no Estado Novo que as favelas foram, pela primeira
vez, objeto de legislação: categorizadas como uma "aberração", foram proibidas
pelo código de obras de 1937 (Burgos, 1998). Quatro anos depois, Vargas lança o
projeto dos "Parques Proletários Temporários",6 primeiro programa de remoção
pelo Estado, cuja importância reside não tanto em sua escala ou efeitos
concretos, mas no fato de ter estabelecido dois precedentes: o da remoção e,
diante da proibição, o de possíveis incursões policiais (Burgos, 1998; Lima,
1989; Valla, 1992; Zaluar e Alvito, 2008). Desde então, o espectro da remoção
passou a constituir o cotidiano das favelas, coexistindo com pequenas obras de
melhoria, como parte de um esforço mais amplo de moralização dos pobres,
processo em que a Igreja Católica foi a grande protagonista, por intermédio da
Fundação Leão XIII, criada em 1947, e da Cruzada São Sebastião, fundada em 1955
por Dom Hélder Câmara.
Como vários autores já assinalaram, ambas as instituições objetivavam
desconectar as demandas dos moradores de questões políticas mais amplas, de
modo a diluir os possíveis efeitos da mobilização política esboçada como
resistência a ameaças de remoção (Rios, 1992, p. 47; Burgos, 1998, p. 30; Lima,
1989, p. 100). Em 1954 é fundada a Fafeg, associação de nível estadual,
reunindo as associações de moradores e lideranças dos movimentos contra a
remoção. O período de mobilização política, no entanto, esbarrou em uma
conjuntura que justapôs os primeiros programas de remoção ao regime militar.
Não cabe, aqui, uma análise mais detalhada dos programas de remoção, que já
constituíram objeto de estudos já clássicos (Lima, 1989; Valladares, 1978;
Zaluar, 1985; Burgos, 1998). O fato é que em meados dos anos de 1970, quase 140
mil moradores já haviam sido removidos de cerca de noventa favelas, sendo
realocados para áreas distantes das favelas de origem.7
De um modo geral, portanto, ao longo do século XX esboçou-se um padrão nas
políticas públicas direcionadas às favelas: durante períodos de governo
autoritário, iniciativas de remoção ganhavam força e eram efetivamente
implementadas. Em períodos de democracia, a urbanização - parcial, no mais das
vezes - caminhava a passos lentos por meio de arranjos clientelistas, a dita
"política da bica d'água", que garantia certa tolerância em relação às favelas,
traduzindo-se em melhorias de infra-estrutura, sem, no entanto, constituir uma
política sistemática.
É esse panorama que se transforma nos anos de 1980, especificamente no primeiro
governo Brizola (1983-1986).8 No período, mais de 245 mil moradores de favelas
passaram a ter acesso a inéditas redes de esgoto, cerca de cem comunidades
receberam eletrificação pública, por intermédio do programa de "Eletrificação
de Favelas" da Light, a coleta de lixo passou a ser organizada, no âmbito do
programa "Gari Comunitário", por uma série de iniciativas que articularam
diversas secretarias de governo em níveis estadual e municipal. Apesar do
fracasso do ponto de vista institucional, o programa "Cada Família, um Lote"9
efetivamente acabou com o espectro da remoção ao trazer a regularização
fundiária para o horizonte normativo de intervenções urbanísticas em favelas
(cf. Burgos, 1998; Fiori, Riley e Ramirez, 2000). Assim, a implantação do
programa "Favela-Bairro", a partir de meados dos anos de 1990, constituiu menos
uma ruptura do que uma consolidação e ampliação da escala - tanto das obras
como do financiamento - das políticas iniciadas no primeiro governo Brizola.
Mas se essa história é pensada como narrativa das condições de possibilidade da
produção de moradia nas favelas cariocas - isto é, da produção social do espaço
da favela desde a perspectiva de seus moradores - e como fio condutor para uma
possível análise do espaço como construção social, deparamo-nos com outros
sentidos atribuídos aos mesmos fatos e dinâmicas sociais. A história da mudança
de paradigma das políticas governamentais calcadas na remoção para programas
que visam à "integração" da favela à cidade dita "formal" torna-se a história
da passagem do "barraco" de estuque para a "casa" de alvenaria.
Nessa narrativa, no lugar do relativo "vazio" narrativo que precede os anos de
1930, proliferam-se relatos da chegada ao Rio de Janeiro de famílias de
migrantes que, quase sem exceção, se espantam com o "mato", a "selva", o "ermo"
nas cercanias de seus barracos. Ainda que os primeiros relatos de jornalistas10
das favelas da zona central do Rio de Janeiro dessem a entender que elas
"brotassem" quase que espontaneamente, como se os migrantes construíssem
barracos de modo aleatório em qualquer encosta de morro disponível, as
narrativas de moradores concatenam uma outra história: a maioria relata ter
alugado seu primeiro barraco de grileiros sobretudo no caso de moradores mais
antigos.11 Com a relativa estabilização dos núcleos das comunidades, a partir
dos anos de 1950, tais relatos passam a privilegiar a figura do presidente da
Associação de Moradores, que "marcava" lotes e auxiliava na organização de
mutirões para a construção do barraco de estuque - mediante inscrição dos
interessados em construir seus barracos na Associação. No mais das vezes, a
construção dos barracos era realizada à noite, de forma clandestina, como modo
de evitar a vigilância seja da polícia, seja dos capangas dos grileiros.
A superação de tantas dificuldades tende a ser expressa em função da "luta" -
individual e coletiva - dos moradores. A expressão "as lutas" nomeia tanto um
período específico na memória coletiva de Bela Vista (isto é, as "lutas contra
a remoção") que constitui "a comunidade" como sujeito da "luta", quanto um
recurso narrativo para expressar uma atitude diante do mundo, marcada pela
resiliência diante de dificuldades cotidianas que marcam a trajetória
individual de cada morador. Nesse último caso, encontra correlatos nos termos
"ralar" ou "batalhar". Alba Zaluar já discutiu como esses termos também
expressam uma distância e diferenciação deliberada com relação ao modo de vida
dos "bandidos", cuja vida é fácil, pois "não trabalham" (Zaluar, 1985, pp. 132-
172). Meu objetivo, aqui, é ampliar essa teorização de modo a levar em conta o
modo como a idéia de "luta" é produtiva de noções de valor atreladas ao espaço
da favela.
A frase tem efeito teleológico, que produz os moradores como sujeitos de sua
própria história, e é constitutiva de uma ética que valoriza o trabalho duro e
a perseverança: nada vem facilmente. Mas apesar das lutas cotidianas, pequenas
vitórias sucedem-se, melhorias são implementadas e o futuro será melhor do que
o passado. A glorificação (muitas vezes nostálgica) dos sujeitos da "luta", da
"luta" em si e das relações sociais e comunitárias por estas engendradas
convertem-se em evidência de força moral em diálogos intergeracionais. Perdi a
conta de quantas vezes testemunhei situações em que pais repreendiam seus
filhos por ter a vida "fácil". Como disse uma de minhas informantes sobre seus
filhos de oito e dez anos: "Não dão valor a nada! Abrem a torneira e sai água!
Destrocei minhas costas carregando lata d'água! Água em casa e eles ainda
reclamam!".
Nesses testemunhos podemos discernir uma narrativa subjacente que, na maioria
das vezes, elabora a percepção de - progressivas, porém inegáveis - melhorias
materiais do lugar. É certo que essa imaginação de um progresso ao longo do
tempo coexiste com expressões de desespero e desalento no que concerne ao
futuro imediato, marcado por um contexto de grande desemprego e subemprego, de
poucas perspectivas e de um acesso precário à educação, à saúde etc. Como os
moradores do "asfalto", a preocupação com a segurança dos filhos figura como
elemento central da vida cotidiana - não só em casa, na favela, onde "o tráfico
está na porta", mas também na "rua", pois o medo ligado à possibilidade de
vitimização pela "violência" aleatória, constitutivo da experiência do espaço
da cidade é um fenômeno agravado pelas próprias temporalidades engendradas pela
territorialização da favela, sobretudo em momentos de escalada de conflitos.
Todo esse contexto engendra narrativas de declínio social ou moral, e de um
futuro pior do que o presente. A narrativa de progresso oferece um contraponto
à criminalidade violenta, que produz suas próprias temporalidades, entre as
quais, de modo geral, a mais corrente e constitutiva do ritmo cotidiano é
aquela instaurada pela onipresente possibilidade de eclosão de um tiroteio (cf.
Cavalcanti, 2008). Não resta dúvida de que a territorialização da favela pelo
tráfico também produz narrativas de declínio social, de esgarçamento das
relações comunitárias, da decadência e da falta de respeito.
Nesse contexto, a imaginação da melhoria gradativa é necessariamente reflexiva.
Ela requer uma abstração das vicissitudes e das "lutas" da vida cotidiana
(ontem e hoje) para que os processos de longo prazo - todos esses componentes
da "melhoria" (outro termo nativo) - concatenem uma narrativa mais coesa de
progresso, cujas evidências são visíveis, irrefutáveis e expressas justamente
nessa passagem do "barraco" à "casa". O fato é que o impacto do primeiro
governo Brizola em muito excedeu as intervenções e as obras em si. Uma vez
sepultado o espectro da remoção, transforma-se a própria relação dos moradores
com o espaço da favela; a promessa da permanência permitiu-lhes investir em
suas casas. O barraco de estuque sem valor de mercado foi substituído por casas
de alvenaria que podem chegar a valer o equivalente a um apartamento próximo da
favela, em alguns casos extremos, produzindo, assim, casos (mais emblemáticos
do que exemplares) de ascensão social. A construção da casa e as melhorias
coletivas dos espaços comunitários emergem, então, como atividades que
constroem futuro e constituem os moradores como sujeitos de sua própria
história, de sua própria melhoria.
Assim, essas múltiplas temporalidades - da memória, mas também da imaginação do
futuro - produzem uma tensão que é constitutiva do processo de consolidação de
favelas. A "favela", nas narrativas dos moradores, oscila entre uma realização
- como evidenciam as melhorias efetuadas pelo próprio trabalho - e um estigma,
a forma de categorização externa e a priori de seus moradores que tem efeitos
concretos sobre suas vidas. A própria consolidação das favelas reforça essa
tensão ao reproduzir, no nível dos discursos e de práticas das políticas
públicas e sociais, a dicotomia favela-asfalto: o que legitima muitas das
iniciativas sociais e urbanísticas recentes é o consenso de que são concebidos
como medidas de inclusão social justificadas pelo discurso da segurança pública
- que também afeta diretamente a própria construção da casa na favela.
A fortaleza de Helena
Helena e Pedro se conheceram em 1981 em Bela Vista, onde ambos haviam sido
criados (Helena viera do Espírito Santo com apenas 1 ano, mas se considera
nativa de Bela Vista). Pedro vivia em um barraco de estuque, com sua mãe, duas
irmãs, um cunhado, e os três filhos de sua irmã mais velha. Havia acabado de
conseguir um emprego no (hoje extinto) Banco Econômico e guardava dinheiro todo
mês para realizar melhorias na casa de sua família. As obras começaram em 1984,
com a demolição de parte do barraco de estuque e sua substituição por um quarto
de alvenaria. Foi mais ou menos nessa época que técnicos do governo visitaram a
vila e demarcaram seis lotes, um dos quais foi registrado no nome de Pedro, por
ser o "chefe" da família, uma vez que seu cunhado havia abandonado a irmã mais
velha. Aproveitando o espaço demarcado, deu-se início a transformação completa
do barraco de estuque em casa de alvenaria: Pedro utilizou todo o espaço
disponível, a casa ganhou uma sala de estar, além de dois quartos. Mas a maior
realização, para Pedro, foi a execução de uma laje, sobre a qual já planejava
construir sua própria casa onde iria morar com Helena.
Em 1985 os recém-casados Pedro e Helena foram morar em uma casa - que na
verdade não passava de um quarto que fazia as vezes de sala, cozinha, sala de
estar e quarto de dormir. Era o que foi possível realizar naquele momento.
Pedro e Helena continuaram juntando dinheiro e, na ocasião do nascimento de sua
primeira filha, em 1986, já haviam anexado um segundo quarto à estrutura
inicial. Os anos seguintes foram de muita economia e dificuldades financeiras.
Helena voltou à escola, concluiu o segundo grau, inscreveu-se em um curso de
enfermagem. Ficou grávida. Os nove meses de gravidez foram marcados por uma
obra de vulto, em 1993, possibilitada pela indenização que Pedro recebera ao
perder o emprego e à sorte de ter arrumado trabalho logo em seguida, agora como
corretor de seguros. A obra foi além da expansão usual. Os tiroteios constantes
com a favela vizinha deixavam marcas em uma das paredes da casa - justo o lado
da construção onde estavam localizados os quartos. A nova obra visava a ampliar
a segurança interna da casa: a janela do que havia sido, desde sempre, o quarto
do casal foi fechada, e o cômodo convertido em cozinha. Pedro e Helena ficaram
com o segundo quarto, ainda na linha de tiro, mas um pouco mais protegido. Os
quartos das crianças foram construídos com as janelas voltadas para o pátio
interno da vila.
A segunda etapa da obra - concluída na mesma época do nascimento do segundo
filho do casal - constituiu na construção de uma varanda, onde foi colocada a
máquina de lavar, e de uma escada que dava para a laje, onde as roupas eram
penduradas para secar. A família prosperava. Helena passou em concurso público.
Após uma breve crise conjugal, o casal se reconciliou, e logo depois se
converteu a uma Igreja neo-pentecostal, pouco antes do nascimento da caçula, em
1996.
Enquanto ela ainda mamava, realizaram nova obra: fecharam por completo a
varanda, instalando um segundo portão, que permanecia trancado, e também
gradearam a janela da sala, para dificultar o acesso da casa do vizinho (que
também havia expandido consideravelmente no período, como as de tantos outros
moradores da favela).
Toda essa trajetória me foi relatada por Helena, em meados de 2004, enquanto me
mostrava fotos de família. As melhorias da casa encontravam-se amplamente
documentadas, junto com imagens de aniversários, festas familiares e outras
datas memoráveis. Helena demonstrava um enorme orgulho de suas realizações, de
suas "lutas". Ela se tornou uma das maiores entusiastas de meu projeto,
apresentando-me a novos informantes, e ela própria refletindo sobre as
transformações do espaço da favela ao longo dos anos, reflexões essas que
dividia sempre comigo. Ela falava que planejava, ainda, cobrir parcialmente a
laje, para ter um espaço de lazer, onde poderia colocar a churrasqueira (que
ficava na varanda) e, no verão, uma piscina de plástico para as crianças se
divertirem.
Em fevereiro de 2005, uma pilha de tijolos apareceu no centro da vila. Dois
dias depois, sacos de concreto apareceram na laje da casa de Pedro e Helena.
Helena nada me contou. Achei estranho, pois assim que eu havia começado o
trabalho de campo, a irmã mais nova de Pedro estava concluindo a construção de
sua casa, aproveitando a laje expandida da casa de Pedro e Helena como teto
para o seu pequeno quarto-e-sala. Naquela época, não se falava em outra coisa
na vila, tamanha a empolgação com a expansão. Dessa vez, as pilhas de materiais
de construção não despertavam nada além de silêncio.
Como Helena não estava em casa, perguntei à sua cunhada sobre os planos do
material. Seus olhos encheram-se de lágrimas: um jovem que havia praticamente
crescido na vila, por morar em uma casa logo abaixo, cujo acesso principal era
precisamente através de uma porta da vila, havia entrado para o tráfico. Sua
avó - que havia encontrado uma pistola e munição escondidas em seu jardim -
dera a notícia para os moradores da vila na semana anterior. Em outras
palavras, a vila tornara-se, potencialmente, um atalho que a polícia poderia
vir a usar caso tentasse prender (ou matar, pegar, que eram as expressões
utilizadas) o jovem. O atalho passava pela laje de Helena, fato que todos
conhecíamos por ser o caminho que crianças faziam para pegar pipas caídas.
No dia seguinte, encontrei uma Helena desolada. Ela, que era das poucas
informantes que jamais havia mencionado a possibilidade de sair da favela,
dizia que dali para frente todas as suas economias seriam investidas em uma
caderneta de poupança para que um dia pudessem dar entrada em um apartamento
"na rua". "Mas", dizia, "para onde eu vou, Mariana? Onde eu vou achar um lugar
que não tenha esse problema? Quem vai comprar minha casa? Investi tudo que eu
tinha nessa casa!" Helena suspirou, resignada: "enquanto eu não posso me mudar,
vou construir a minha fortaleza aqui mesmo".
Em menos de três semanas estava concluída a fortaleza: um enorme muro cercou a
laje, dificultando a passagem para a casa do jovem "bandido". Qualquer
observador externo pensaria que a obra de emergência era apenas mais uma
"melhoria". Mas, na realidade, a fortaleza de Helena já estava sendo
paulatinamente erguida desde o início da década de 1990. De melhoria em
melhoria, Helena viu-se presa em sua prosperidade relativa.
O fato é que as obras de melhoria cada vez mais levam em consideração os
efeitos da territorialização da favela pelo tráfico. O que parece à primeira
vista como uma expansão, como a construção de uma cobertura ou área de lazer
revela-se uma questão de segurança. A fortificação, lá, como aqui no dito
asfalto, passa a constituir o imaginário da construção de moradias. A adição de
muros, barras em janelas (para manter as crianças dentro e a polícia fora), tem
sua contrapartida em investimento em televisões, DVDs, computadores e
videogames, como modo de manter as crianças em casa, em um ambiente seguro. O
medo é assim incorporado à atividade de construção (e ao imaginário de
melhorias que a constitui), gerando novas formas sociais e novos espaços
construídos.
Conclusão: um fato social total
Em meu estudo de caso, a casa, constituída como processo que envolve
investimentos cotidianos e de longo prazo, subjetivos e econômicos, fornece uma
perspectiva privilegiada para o estudo da experiência fenomenológica da favela
- e de sua consolidação - desde a perspectiva de seu entrelaçamento na
trajetória de sujeitos sociais: barracos, casas e fortalezas correspondem a
modos distintos de se estar no mundo - e de se habitar uma favela. Para a
antropóloga, ofecerem uma janela através da qual é possível vislumbrar e
construir a consolidação de favelas como um processo histórico, como história
do presente.
A fortaleza de Helena oferece uma perspectiva por meio da qual podemos
vislumbrar a - por vezes paradoxal, por vezes perversa - simbiose de
mercantilização e territorialização do tráfico que constitui essa (nova) forma
urbana e social, a favela consolidada. Na cena com a qual abri o artigo, a
justaposição da provisão de um serviço urbano básico com os armamentos ilegais
da "boca" mostra como diferentes espacialidades podem habitar um mesmo espaço.
O relato da fortaleza de Helena aborda as mesmas dinâmicas da perspectiva do
espaço privado, a casa, levando-nos a constatar como Helena se encontra presa
em sua própria prosperidade relativa e nos investimentos materiais e subjetivos
que fez em sua casa ao longo dos anos.
Em suma, a fortaleza de Helena fornece uma daquelas raras oportunidades
interpretativas, onde "tudo se mistura", um fato social total, tal como
concebido pelo texto clássico de Marcel Mauss:
Exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições:
religiosas, jurídicas e morais - sendo estas políticas e familiares
ao mesmo tempo - ; econômicas - estas supondo formas particulares da
produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição -
; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os
fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam (Mauss,
2003, p. 187).
Assim o é com a fortaleza de Helena - para compreender os sentidos de um mero
muro construído em uma de quase setecentas favelas na cidade do Rio de Janeiro
é necessário reconstruir todo um trajeto de transformações sociais e históricas
que transcendem a favela em si; é preciso atentar para um contexto social,
histórico e econômico muito mais amplo, de um lado, bem como para as narrativas
e memórias locais de outro.
Conceber a casa como um fato social total não é, nem de longe, um movimento
original. A moradia há muito vem capturando a atenção de antropólogos por seu
potencial hermenêutico. Estamos de fato diante de um objeto clássico da
antropologia. Lewis H. Morgan (1965) realizou uma compilação detalhada de
diferentes tipos de moradia para fins comparativos; Griaule e Diertelen (1965)
decifraram a planta da casa dos Dogon como "o mundo em miniatura" por sua
representação do Deus Nommo deitado de lado e procriando-se; Turner (1955)
encontrou na distribuição espacial de moradias através de princípios de geração
a chave para a compreensão de relações de parentesco e afinidade; no noroeste
da Tailândia, Tambiah (1969) vislumbrou a configuração espacial das moradias
como homóloga a classificações relativas a regras de casamento e a
classificações de diferentes tipos de animais. Já Lévi-Strauss (1982, 1987)
abstraiu a materialidade da casa para desenvolver o conceito da casa como uma
"pessoa moral", isto é, uma instituição resultante de agrupamentos de pessoas
reunidas por "princípios antagonísticos" - aliança, descendência, endogamia,
exogamia - em sociedades em que se operava a transição de uma ordem social
baseada em regras de parentesco para uma em que interesses econômicos e
políticos começavam a estruturar o mundo social. Bourdieu (1979) responde com
uma leitura estruturalista da casa Berber, teorizada como o meio privilegiado
para a incorporação das disposições sociais que produzem e são produzidas pelo
habitus. Mais tarde, elaborou o próprio mercado imobiliário como lugar para se
pensar a construção social do valor (Bourdieu, 2001). E esses são apenas alguns
exemplos clássicos de como a antropologia já buscou na casa uma chave de
interpretação e apreensão das regras e dos valores sociais de diversas
sociedades.
No entanto, essas abordagens tendem a se aplicar a sociedades ditas primitivas
- ou então distantes no tempo, como a literatura sobre as cidades medievais.
Será que a moradia perde seu potencial interpretativo em sociedades complexas,
capitalistas?
Certamente não; as condições habitacionais constituem uma importante fonte de
conhecimento sobre a sociedade, sobretudo conhecimento estatístico, na forma de
estatísticas. Mercados imobiliários e condições habitacionais fornecem mapas
concretos da desigualdade e da segregação nas grandes cidades. A gentrificação
e a suburbanização constituem campos estabelecidos de pesquisa acadêmica,
sobretudo no campo da sociologia (particularmente na vertente norte-americana).
Como a própria produção acadêmica sobre a autoconstrução no Brasil urbano
demonstrou nos anos de 1960 e 1970, a moradia oferece um rico ponto de partida
para análises das mais diversas facetas da vida social. De fato, a própria
centralidade da casa própria em sociedades capitalistas permite uma teorização
da casa ou da moradia, bem como sua produção e experiência vivida como um
processo, como um fato social total.
Assim, minha análise etnográfica da consolidação de favelas mostra que a
metamorfose de um barraco de estuque em uma casa de alvenaria ao longo dos anos
- quiçá décadas - não apenas transforma a forma e a qualidade da moradia. A
transformação produz uma temporalidade particular - uma que abre a promessa de
um futuro melhor - em parte devido à própria experiência de acúmulo de capital
na forma de uma casa que participa de um mercado imobiliário dinâmico e cuja
tendência é a valorização, ainda que com os limites impostos pelas estruturas
territoriais do tráfico. Essas estruturas, por sua vez, não podem ser reduzidas
à mera obediência de leis não escritas, mas amplamente compartilhadas; elas são
incorporadas à vida dos moradores, na forma de rotinas que visam a diminuir os
riscos cotidianos e produzem uma sensação de alerta constante. Além disso, a
mera presença do tráfico torna os moradores vulneráveis à violência e ao
desrespeito típico da polícia dentro da favela. A presença - e a co-existência
- com o tráfico também reforça estereótipos que associam os moradores a
traficantes e bandidos, tornando a vida cotidiana difícil dentro e fora da
favela. Mas, paradoxalmente, pelo fato de o tráfico trazer a favela para o
centro do debate político no Rio de Janeiro contemporâneo também vem trazendo
mais investimentos e programas de urbanização.
Notas
1 Bela Vista é um pseudônimo para uma das 29 favelas distribuídas por sete
bairros da cidade dita "formal" que compõem a região conhecida como "Grande
Tijuca", na zona norte do Rio de Janeiro.
2 Mantenho aqui e em outros trechos do texto um dos termos "nativos" para
nomeá-los.
3 Por exemplo, a "favela-loteamento", proposta por Lago (2003).
4 Sobre fluxos migratórios internos na cidade, cf. Abramo (2003), Abramo e
Faria (1998) e Lago (2000); sobre o acesso da população de baixa renda à infra-
estrutura pública e aos equipamentos urbanos, ver IETS (1998), IPP (2002),
Cunha (2000), Ribeiro e Lago (2001) e Torres et al. (2006); sobre
transformações na produção de moradia e impactos de programas de urbanização de
favelas, ver Compans (2003) e Fiori et al. (2000); sobre o mercado imobiliário
de favelas, ver Abramo (2004), Abramo e Faria (1998).
5 O tema vem, inclusive, sendo abordado com bastante freqüência pela mídia
carioca, em particular o jornal O Globo, por exemplo na campanha "Ilegal, e
daí?", iniciada em outubro de 2006 e esporadicamente reeditada, e da série
premiada de reportagens "Favela S/A", publicada em agosto de 2008.
6 Foram removidos cerca de oito mil moradores para os Parques Proletários, de
três favelas, duas das quais localizadas em valiosos terrenos de uma zona sul
que já constituía objeto de políticas urbanísticas mais rigorosas, por seu
potencial para a moradia das classes mais abastadas.
7 Como Valladares (1978) demonstrou, o pagamento das prestações, o aumento nos
custos de transporte, a distância de oferta de emprego e o esgarçamento das
redes sociais que facilitavam a vida na favela fizeram com que muitos
"passassem" suas casas e retornassem para favelas localizadas nas zonas mais
centrais da cidade.
8 De um ponto de vista legal, esta transformação foi possibilitada pelos
artigos 182 e 183 da Constituição de 1988 e, principalmente, pela aprovação do
Estatuto das Cidades em 2001, depois de mais de uma década de debates,
discussões e negociações envolvendo políticos, ativistas e militantes de
movimentos sociais. A ênfase do Estatuto na "função social da cidade" e,
sobretudo, a criação de Zonas de Especial Interesse Social, cuja regulamentação
visa a lançar as bases para a regularização fundiária em um futuro próximo. No
entanto, na ocasião da promulgação da Constituição de 1988, a consolidação das
favelas cariocas já constituía um processo em franco andamento.
9 O objetivo original desse programa era conceder títulos de propriedade a
cerca de um milhão de famílias residentes em favelas e em loteamentos
irregulares. Menos de 35 mil títulos foram efetivamente concedidos.
10 Para esses primeiros relatos que evocam narrativas de viagem, ver Costallat
([1924] 1990), Edmundo (1938) e Rio (1911).
11 Para uma análise dos mercados imobiliários de favelas neste primeiro
momento, cf. Fischer (2008).