Desemprego executivo: a crítica ao terceiro espírito do capitalismo no cinema
contemporâneo
A forma como o trabalho foi organizado dentro do sistema capitalista esteve,
desde as primeiras décadas do século XX, no foco de produções cinematográficas.
Filmes que criticavam de forma ácida o modelo produtivo que vai sendo
estabelecido a partir da Revolução Industrial, especialmente no que se refere à
racionalização do trabalho em linhas de montagem, modelo este que ganha
acabamento e tom de ciência na tradição taylorista e fordista, tornaram-se
clássicos importantes na história do cinema. Refiro-me a filmes como Tempos
modernos (Modern times, dir. Charles Chaplin, Estados Unidos, 1936), A nós, a
liberdade (À nous la liberté, dir. René Clair, França, 1931) e mesmo Metrópolis
(Metropolis, dir. Fritz Lang, Alemanha, 1927). Nestes filmes, o inimigo é a
desumanização do trabalho encarnado no uso de máquinas, no trabalho impessoal e
repetitivo, recortado e racionalizado das linhas de produção. Com humor ou
toques de ficção científica, apresentam uma versão caricatural da rotina de
trabalho nas fábricas. Os operários, separados das etapas criativas da
produção, movem-se ao ritmo da esteira, que, por sua vez, se move ao ritmo
ditado pela gerência. Os trabalhadores formam uma massa homogênea, não
reflexiva, até que uma insurgência contra o establishment quebra o circuito da
exploração; isso se dá sempre na figura de um indivíduo inadaptado que emerge
de uma massa coletiva, e por isso heróico, ou consciente da mecânica de
exploração, e por isso também heróico, revelando uma tensão entre a vontade
individual e os constrangimentos do mundo do trabalho.
Estes filmes fazem parte de uma massa crítica cujo alvo é o formato de
acumulação capitalista e a organização do trabalho nas primeiras décadas do
século que passou. Eles fazem parte, no vocabulário de Boltanski e Chiapello,
do "espírito do capitalismo" naquele momento, conceito que consiste no
"conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para
justificar essa ordem e a sustentar, legitimando-os, os modos de ação e as
disposições que são coerentes com eles" (Boltanski e Chiapello, 1999, p. 46).
Particularmente interessante na noção de "espírito do capitalismo", no formato
dado pelos autores, é que ela permite "associar em uma mesma dinâmica a
evolução do capitalismo e as críticas que a ele se opõe" (Idem, p. 69). As
críticas teriam, inclusive, um papel importante como motor de mudanças no
capitalismo, visto a capacidade do sistema para absorver parte dessas críticas,
desarmando-as. Para os autores, essa capacidade faz do capitalismo um sistema
"robusto", que encontra assim um meio de sobrevivência e constante re-invenção;
seria esta natureza inquieta, que incentiva o risco e a constante transformação
(equipamentos transformados em produção, produção em moeda, moeda em novos
investimentos) que teria permitido a sua continuidade apesar das crises pela
qual o sistema passou no século XX.
A crítica ao capitalismo e aos formatos de organização do trabalho elegeu mais
um inimigo no início do século XXI, e, mais uma vez, este inimigo aparece
representado também em produções cinematográficas.1 Este inimigo está encarnado
em idéias como reengenharia, reestruturação produtiva, fusões, cortes,
acumulação flexível, globalização, terceirização, flexibilização, adaptação e
nas conseqüências humanas desses processos. O inimigo são as falsas promessas
de liberdade, criatividade, autonomia e reinvenção de si que o novo modelo
flexível de trabalho prometia; as novas vítimas não são somente os operários
das linhas de montagem (que não deixaram de existir, tampouco deixaram de ser
as principais vítimas quando mudanças bruscas transformam o modelo de produção
e acumulação), mas também os membros das classes executivas e administrativas,2
que se vêem cedo envelhecidos e obsoletos por um sistema que pede constante
inovação tecnológica e reinvenção de competências. A este momento Boltanski e
Chiapello (idem, p.57) chamam o terceiro espírito do capitalismo, que seria
"isomorfo ao capitalismo mundializado", estaria atualmente em formação, sistema
no qual a renovação tecnológica é central. Se o primeiro espírito do
capitalismo3 é criticado de diferentes formas nos filmes clássicos citados
acima, uma safra de filmes produzidos nos últimos anos formam uma massa crítica
ao terceiro espírito, denunciando os constrangimentos impostos aos
trabalhadores, mas com um novo enfoque: a ansiedade das classes executivas,
cuja segurança se vê abalada no contexto de um modelo que ampliou a insegurança
no emprego para os extratos médios e altos da população.4
Documentários e filmes de ficção a respeito da situação da classe operária em
suas várias manifestações e períodos históricos são uma constante na história
do cinema no século XX. Mas o desemprego entre as classes médias e altas parece
ser uma novidade como temática cinematográfica, especialmente com a freqüência
atual. O objetivo desse texto é analisar alguns filmes com uma temática comum,
o fenômeno que chamarei aqui de desemprego executivo, explorando paralelamente
a bibliografia de ciências sociais que trata dessa ampliação da insegurança
salarial e lança luz sobre a existência de uma disposição de ethos particular
no universo corporativo.
Em tese, estes filmes perturbadores retratam situações de trabalho menos
constrangedoras do que aquelas a que estão submetidos os operários. Mas é
justamente contra essa visão que os filmes se colocam: os constrangimentos são
extensivos às classes executivas e administrativas, ainda que, é claro, sejam
constrangimentos de outra ordem, que dizem respeito à formação contínua do
trabalhador, suas competências, idade, sexo, postura em relação à empresa e aos
outros empregados, além da possibilidade de desemprego. Bourdieu (2001) comenta
a armadilha em que se pode cair ao levar ao pé da letra a margem de liberdade
oferecida em ocupações que podem parecer menos constrangedoras em comparação à
linha de montagem, ao ressaltar o tipo de violência doce à qual esses
trabalhadores estão submetidos. Para ele, os novos modelos flexíveis de
organização do trabalho, que oferecem mobilidades de horário, pequenas
liberdades e autogestão, contribuem para uma exploração com menor visibilidade.
Nessas práticas, trata-se de explorar, para Bourdieu, as ambigüidades entre a
verdade objetiva do trabalho (a sua dinâmica de exploração, no extremo, o
trabalho forçado) e a verdade subjetiva, "que leva a encontrar no trabalho um
ganho intrínseco, irredutível ao mero rendimento em dinheiro" (o que ele chama
de trabalho escolástico, "cujo limite é a atividade quase lúdica do artista ou
do escritor") (Idem, p. 247) A suposta liberdade dos modelos flexíveis
ocultaria a violência simbólica por trás de uma relação de caráter frágil,
transitória e precária.
Se o cinema já denunciou o formato do fordismo-taylorismo, hoje denuncia também
a ênfase dada ao risco e a idéia de que
[...] a flexibilidade dá as pessoas mais liberdade para moldar as
suas vidas. Na verdade, a nova ordem impõe novos controles, em vez de
simplesmente abolir as regras do passado - mas também esses novos
controles são difíceis de entender. O novo capitalismo é um sistema
de poder muitas vezes ilegível (Sennett, 2005, p. 10).
Apropriando-me especialmente de idéias de Boltanski e Chiapello (1999), este
artigo levanta hipóteses para compreender o formato desses filmes e o recente
interesse do cinema sobre o desemprego executivo.
A agenda e O corte: a infâmia social do desemprego
Em um texto de 1996, Loic Wacquant afirma que a taxa de desemprego dos
colarinhos brancos tende a equiparar-se à dos colarinhos azuis nos Estados
Unidos: a diferença que era de um para três quinze anos antes estava no final
dos anos de 1990 em equivalência de um para dois. Apesar dos recordes de lucro
atingidos pelas empresas norte-americanas no governo Clinton,
[...] as reestruturações de empresas e as ondas de demissões que
devastaram as fileiras operárias nas duas décadas precedentes abatem-
se, a partir de agora, sobre os técnicos, pessoal administrativo e
pessoal de gerência e direção (Wacquant, 1996, p. 66).
Wacquant comenta o drama de alguns funcionários de colarinho branco que se
viram desempregados; um deles é James Sharlow, um ex-diretor de fábrica que,
após procurar um novo emprego por três anos, disse que aceitaria trabalhar de
graça se recuperasse o seu antigo status profissional. Aos 51 anos, ele
considera um ponto de honra vestir o seu terno todas as manhãs, ainda que
permaneça em casa. Após enviar 2.205 cópias de seu CV sem resultado positivo,
aceitou um emprego abaixo da sua qualificação na empresa em que trabalha sua
mulher. A esposa de Sharlow teria dito a Wacquant querer apenas que tudo
voltasse a ser como antes.
Com algumas pequenas modificações e um toque dramático de ficção, o caso real
que Wacquant conta poderia ser o de Vincent, personagem central de A agenda
(L'emploi du temps, dir. Laurent Cantet, França, 2001), o primeiro filme ao
qual assisti com essa temática do desemprego executivo, e que me causou grande
impressão. O filme inicia com Vincent já desempregado, demitido após trabalhar
onze anos na mesma empresa, como consultor financeiro. O espectador sabe disso
desde a primeira cena: Vincent dorme em seu carro, quando soa o telefone
celular; sua esposa, que não vemos neste momento (a câmera mantém-se nele, como
se visto a partir do banco de trás do carro), pergunta como ele está; Vincent
faz um relato do seu trabalho, das tensões com os clientes, informa que pode
voltar tarde pra casa devido às obrigações profissionais. Sua esposa faz um
comentário sobre o bom homem com quem ela teria se casado: "o que eles fariam
sem você?", ela pergunta, referindo-se aos empregadores de seu marido. Ele
volta a dormir e tem-se a impressão de que estamos no carro com ele. Sabemos
então de algo que a família nuclear e amigos de Vincent não sabem: ele foi
demitido e optou por esconder o fato, continuando a sair de ca-sa nos mesmos
horários, como se nada tivesse acontecido. Ele vai conseguir temporariamente
que as coisas continuem a ser como antes. Já nesta primeira cena assistimos ao
casal em interação, tomando os seus papéis no drama social do desemprego, ainda
que a esposa de Vincent não saiba disso.5
O protagonista vive os seus dias fora de casa, simulando estar em atividade,
mesmo estando desempregado há cerca de três meses. As coisas parecem poder se
complicar quando ele pede um empréstimo ao seu pai, para ajudá-lo a instalar-se
na Suíça, onde estaria um suposto novo emprego, ainda melhor que o anterior,
também uma farsa; mais ainda quando Vincent convence amigos a investir em um
inexistente fundo de investimentos altamente lucrativo, que apostaria na bolsa
de valores russa, e usa o dinheiro para manter as aparências.
Tudo poderia acabar mal. Vincent conhece casualmente um contrabandista, que
percebe a sua farsa e oferece a ele um posto em sua organização. Após relutar,
ele aceita o trabalho, mas não sem tensões; apesar de lucrativo, o status
social torna-se um problema. É disso que parece se tratar, não apenas esse
filme, mas outros com a temática: o desejo de manutenção de status e o
constrangimento social nesse sentido.
Ao final do filme, já descoberto, Vincent argumenta com o seu filho mais velho
que nada teria mudado ou faltado para a família, e que esse seria o seu
objetivo. Vincent sai dirigindo na contramão, um acidente é iminente, mas ele
pára o carro, sai da estrada e anda em direção à escuridão. O diretor parece
ter tomado neste momento uma decisão: o filme poderia ter acabado nesse
instante, com o protagonista mergulhando no escuro da noite, representando a
disrupção do seu papel social, conseqüência da "infâmia social que é a
demissão" (Wacquant, 1996, p. 68), mas um corte nos leva para uma última cena,
que mostra o protagonista em uma entrevista de emprego, marcada por intermédio
da rede de relações de seu pai. Vincent é salvo na última cena e terminamos o
filme com um final feliz, que me pareceu descolado da perspectiva pessimista
que atravessa toda a longa viagem desemprego adentro de Vincent.
Em O corte (Le couperet, dir. Costa Gravas, França, 2006), também com produção
francesa,6 a solução encontrada pelo protagonista para superar o desemprego
ganha um colorido mais absurdo e violento. Um executivo de meia idade da
indústria de papel procura emprego, ainda sem sucesso, após dois anos de sua
demissão, devido a um processo de reengenharia na empresa. Ele é considerado
qualificado demais para os cargos que surgem, e as poucas entrevistas que
consegue não resultam em nada. Nosso protagonista está obcecado por uma empresa
de papel de nome Arcadia, da qual ele recebe um vídeo publicitário em casa,
apresentado pelo diretor da empresa, emprego que ele passa a cobiçar por
considerar adequado ao seu perfil.
O cenário escolhido para representar a situação de "desemprego executivo" -
como eu proporia chamá-la - é peculiar. Em primeiro lugar, no que se refere ao
setor industrial no qual o drama vai se desenrolar, o das indústrias de papel e
celulose. Lembremos que a expressão "capitalismo de papel" designa a lógica
financeira corrente, na qual se ganha mais em processos especulativos com ações
(papel é um sinônimo para ações) do que no processo produtivo ele mesmo. Indo
um pouco mais longe, e correndo aqui o risco de um excesso de interpretação,
"papel" remete a uma estrutura frágil num certo registro, que pode ser rasgado
facilmente, representando algo de mutável e transitório, assim como o são os
vínculos entre empresas, pessoas e localidades. Em segundo lugar, Arcadia, o
nome da indústria onde está o emprego desejado pelo protagonista, é também o
nome de uma província da Grécia, situada na península do Peloponeso. Além de
uma província real, Arcádia é para a cultura ocidental sinônimo de um paraíso
idílico, terra de paz, felicidade e comunhão com a natureza, espaço que remete
a um paraíso não corrompido.
A concorrência para um cargo como esse existe e nosso anti-herói toma uma
decisão: cria uma caixa postal e anuncia um emprego para executivos com um
perfil semelhante ao seu; entre as dezenas de currículos recebidos via este
anúncio, ele seleciona os principais possíveis concorrentes e passa a
assassiná-los; a última vítima seria o executivo da Arcadia, deixando o caminho
"livre" para que ele mesmo fosse contratado.
O problema é que a sua estratégia dá certo demais: não param de chegar novos
currículos à sua caixa postal, apresentando mais executivos desempregados,
alguns considerados por ele como não estando à altura de si mesmo. A cena
poderia levar à percepção de que o caso da personagem não é particular; a certa
altura, o executivo (voz em off), refletindo sobre a sua estratégia, conclui
que o seu inimigo não são os diretores responsáveis pelas demissões, mas sim os
seus concorrentes diretos por uma possível vaga no mercado das indústrias de
papel. Não se trata aqui, e é claro o recado, da construção de estratégias
coletivas. Estamos no mundo das classes médias e altas, cuja estrutura difere
do holismo relacional das classes populares.7 A questão é que os assassinatos
não teriam fim, como vemos na última cena do filme: já em seu novo cargo,
ocupando a mesma mesa e cadeira de seu antecessor assassinado, o nosso anti-
herói é observado por uma mulher de aspecto deprimido, por volta de 40 anos,
talvez alguém que tenha ficado pelo caminho em alguma fusão entre empresas de
papel. A mulher o observa exatamente da mesma forma como ele observava o seu
antecessor no cargo, em uma cena anterior, no restaurante freqüentado pelos
profissionais da Arcadia.
Os atos de violência perpetrados pela personagem central soam como uma
caricatura. Como um executivo da indústria de papéis pode tornar-se um
assassino em série, após dois anos de desemprego, e sair ileso? Por que tantas
cenas no filme conspiram para que ele não seja descoberto? Ora, o que o filme
vai mostrar é que talvez essa exigência de verossimilhança seja o que menos
importa, e que os assassinatos de outros executivos da mesma indústria estão
ali no lugar de um outro tipo de violência; e ainda que não importa ao filme se
a justiça descobrirá o assassino, mas sim a continuação do ciclo violento do
mercado de trabalho altamente competitivo das indústrias de papel.
As personagens dos dois filmes falam da situação de dependência na qual se
encontram também os quadros superiores das empresas. Afinal, seja qual for o
nível de suas competências, elas são postas em prática dentro de corporações,
ainda que estes profissionais possam ocupar o lugar de "consultores" ou
"prestadores de serviço". A situação de desemprego é apenas uma situação limite
que mostra serem estes profissionais "capitalistas em relação de dependência"
(Lópes Ruiz, 2004). Mas, por outro lado, fomenta-se hoje no ambiente
corporativo
[...] uma ética do trabalho individualizado segundo a qual se espera
que cada indivíduo se comporte como se ele estivesse conduzindo seu
próprio negócio dentro de um negócio maior, que se sinta dono (ou
sócio) da empresa na qual trabalha, que pense em seu trabalho como um
produto ou serviço a ser vendido. Trata-se de uma ética do trabalho
empresarial (do trabalho entendido em termos de "empreendimento") que
o orienta e estimula para atuar como seu próprio chefe, para assumir
plena responsabilidade pela direção de sua própria "empresa"
(geralmente, sua carreira), para se pensar como "proprietário de si",
de suas capacidades, destrezas e talentos, para estar disposto a
investir neles e empreender constantemente novos desafios (Idem, p.
327).
É claro que este formato traz conseqüências e aponta para uma relação peculiar
do sujeito com o seu trabalho, uma relação mais, podemos dizer,
"culpabilizante". Este é o sentimento que Sennett (2005) percebeu em uma
reunião com executivos que haviam sido demitidos da IBM: eles se culpavam por
terem perdido o "trem da história", já que deveriam ter corrido riscos e se
tornado empreendedores, assim como a geração que tomou conta do Vale do
Silício. Sendo "proprietário de si" e uma espécie de gestor da própria
carreira, quando algo vai mal, o nível de frustração pode ser ainda maior.
Talvez você não tenha estudado idiomas como deveria, não tenha aproveitado as
chances certas, tenha falhado na "gestão profissional de si" e, por causa
disso, tenha que pagar um preço alto.
Esta questão leva a um debate interessante: estariam as personagens -
especialmente o nosso anti-herói em O corte - sendo verdadeiramente irracionais
ou estariam eles simplesmente levando ao limite certos mandamentos da cultura
empresarial que festeja um comportamento "maníaco", no sentido de inovador,
criativo, com uma energia intensa, adaptável, disposto à mobilidade. Por outras
razões, essa idéia é explorada por Emily Martin (2007) quando mostra uma forte
afinidade entre a cultura norte-americana, em especial no mundo do trabalho, e
o comportamento maníaco.8 Analisando especificamente o universo norte-
americano, mas com uma imagem que se assemelha ao quadro na Europa e no Brasil,
ela afirma que
Ondas sucessivas de downsizing arrastaram, além dos desfavorecidos,
um número significativo de pessoas de ocupações e classes que não
estavam habituadas a uma queda dramática nas suas perspectivas e
padrões de vida. O imperativo de se tornar o tipo de trabalhador
flexível, que pode operar bem em circunstâncias extremamente
competitivas, intensificou-se, e aumentaram muito as conseqüências
por se falhar. Um dos sinais da natureza inclemente do aumento de
competição é a multiplicação de referências à "sobrevivência do mais
apto" nos meios de comunicação populares desde o início dos anos de
1980 (Martin, 2007, p. 40).
Para o padrão corporativo contemporâneo, os mais "aptos" seriam aqueles que
conseguem evoluir
[...] com a ajuda de estudos autodidatas, de cursos de treinamento e
de uma insistência em autogestão quando têm a sorte de estar
empregados numa corporação e, ao mesmo tempo, empreendedorismo
agressivo durante os períodos freqüentes que supõem, hoje em dia, vir
a passar fora dela (Idem, p. 41, grifo meu).
O trabalho de Martin faz eco com a tese de Lópes Ruiz ao afirmar que neste
ambiente o indivíduo é uma espécie de "empresa em si mesmo", alguém que é
responsável pela sua carreira, que pode "investir" bem ou mal nela, que pode
cultivar o seu "capital destreza" (Lópes Ruiz, 2004), como se fosse "o
proprietário de si mesmo como um portfólio de ações" (Martin, 2007). Assim,
vencer a concorrência com outros profissionais ou apresentar-se para o mundo lá
fora com a performance de um vencedor, como o fazem os protagonistas dos
filmes, não seria tão-somente levar ao limite valores que informam hoje a
cultura empresarial?
Nos dois filmes comentados acima, há qualquer coisa de absurdo na forma como os
executivos desempregados buscam sobreviver à situação em que se encontram.
Parece-me pouco razoável, ainda que os roteiros sejam convincentes, que alguém
consiga ocultar uma demissão da forma como ocorre em A agenda ou cometer
assassinatos em série como em O corte. Acredito que esse tom absurdo das
soluções é parte de uma representação que entende o desemprego executivo como
um fenômeno recente, ainda estrangeiro à visão de mundo das classes médias e
altas. De certa forma, trata-se de um "desemprego exótico",9 que não fazia
parte do universo desses extratos sociais de forma tão generalizada até
recentemente, o que explicaria tanto a safra de filmes com essa temática como o
fato de que as soluções encontradas parecem caricaturais demais para serem
tangíveis. Mas talvez daí também decorra o efeito dramático desses filmes. O
caráter exótico das soluções encontradas pelos protagonistas dos dois filmes
transmite um tipo de angústia que pode ser relacionada com a idéia de
desfiliação (cf. Castel, 1998). Os filmes retratam o processo de
enfraquecimento dos laços sociais - familiares, de amizade, profissionais -
decorrentes do desemprego, da angústia ligada à perda de status e da
insegurança em relação à possibilidade de reproduzir seu modo de vida. Trata-se
da história de um drama em movimento, não exatamente de uma situação de
exclusão estanque, mas de um processo de desfiliação gradual (Idem, p. 26).
Essa é a máquina analítica que Castel constrói para analisar a crise da
sociedade salarial. Ele argumenta por uma relação direta entre estabilidade no
trabalho e inserção relacional sólida; e, ao inverso, argumenta que
[...] a ausência de participação em qualquer atividade produtiva e o
isolamento relacional conjugam seus efeitos negativos para produzir a
exclusão, ou melhor, como vou tentar demonstrar, a desfiliação. A
vulnerabilidade social é uma zona intermediária, instável, que
conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de
proximidade (Idem, p. 24).
Para Castel, a precarização do trabalho constitui tema tão ou mais importante
do que o desemprego em si. Não se trata, segundo ele, de banalizar o
desemprego, mas sim enfatizar a dinâmica de um processo que pode levar ao
desemprego: "enfatizar essa precarização do trabalho permite compreender os
processos que alimentam a vulnerabilidade social e produzem, no final do
percurso, o desemprego e a desfiliação" (Idem, p. 516, grifo do autor). O que
parece haver de novo no ar é que essas idéias sejam aplicáveis para muito além
da classe operária. Castel antecipa essa questão, quando afirma a possibilidade
de "se ocorrer algo como uma crise econômica, o aumento do desemprego, a
generalização do subemprego: a zona de vulnerabilidade se dilata, avança sobre
a da integração e alimenta a desfiliação" (Idem, p. 24). O movimento entre as
zonas de integração, instabilidade e exclusão é o que define e alimenta o
processo de desfiliação. Um problema novo, com o avanço da vulnerabilidade, é a
possível "não-empregabilidade também dos qualificados" (Idem, p. 521), que não
tem mais na escolaridade superior uma garantia de segurança e de reprodução do
seu modo de vida.
O núcleo da questão social hoje seria, pois, novamente, a existência
de "inúteis" para o mundo, de supranumerários e, em torno deles, de
uma nebulosa de situações marcadas pela instabilidade e pela
incerteza do amanhã que atestam o crescimento de uma vulnerabilidade
de massa (Idem, p. 593).
Entre essa "vulnerabilidade de massa" da qual Castel fala, este trabalho
comenta um nicho específico de vulnerabilidade que atinge as classes médias e
altas, um fenômeno que caracterizo como "estrangeiro" à visão de mundo desses
grupos, e que talvez por isso venha sendo tema de várias produções
cinematográficas. O que há de novo nas produções recentes é o fato de abordarem
a vulnerabilidade do trabalho pelo ponto de vista das classes "superiores",
retratando nas telas o drama social do trabalho e do desemprego de uma fatia da
população altamente qualificada - o fenômeno que chamo aqui de desemprego
executivo.
El método Gronholm: as ambigüidades morais da nova moral do trabalho
A primeira ironia a respeito de El método Gronholm (no Brasil, O que você
faria, dir. Marcelo Pineyro, Espanha, 2005)10 está no título. No mesmo dia em
que Madri vivencia intensas manifestações antiglobalização durante a reunião do
FMI e do Banco Mundial na cidade, sete candidatos dirigem-se a uma seleção de
emprego, com somente uma vaga em disputa. Eles são recebidos por uma secretária
com uma simpatia pouco natural, que os coloca em uma sala, os sete em torno de
uma mesa, tendo cada qual uma tela de computador à sua frente. Em breve eles
serão informados de que a seleção será feita por meio de um método, chamado
Gronholm, com regras desconhecidas pelos candidatos, porém às quais eles devem
se submeter se quiserem participar da seleção. Um deles é um impostor, um falso
candidato, e a primeira tarefa do grupo é decidir, mediante uma votação, de
qual deles se trata; essa decisão deve ser tomada em consenso. O resultado da
prova é que o escolhido não era o farsante; mas, e é isso o que parece
importar, ele parecia ser um farsante, aparentava estar menos à vontade na
situação. O filme deixa aqui uma primeira mensagem: se você não aparenta ser um
bom candidato, é isso que importa: talvez uma forma escolhida para ironizar a
importância que se dá à categoria "aparência" quando se lista as qualidades
requisitadas por candidatos a um emprego, juntamente com "espírito de equipe",
"vontade de crescer", "disponibilidade de deslocamento" e outras
características tão ou mais ambíguas.
Desde o início, o método de seleção mostra-se adaptável às características dos
candidatos, e as provas parecem ser pensadas para colocar cada um em situação
de teste, realçando pontos fracos, ambigüidades morais dos candidatos em
relação à empresa ou aos seus concorrentes. Haveria realmente um método? Ou o
modelo de avaliação seria um espelho para a adaptabilidade que se espera dos
candidatos? O método, acredito, improvisa e se modifica assim como devem
improvisar e se modificar os executivos do mundo flexível.
Entre os sete candidatos, dois são mulheres, o que não deixará de ser explorado
durante a competição. Uma das provas coloca os candidatos na seguinte situação:
eles deveriam imaginar que uma guerra atômica os obrigou a buscar refúgio em um
abrigo nuclear; a prova consiste em selecionar, por unanimidade, qual deles
seria menos necessário nessa situação, sendo que o escolhido seria efetivamente
excluído da seleção. Os homens apresentam argumentos que parecem consistentes
aos outros candidatos. Entre as duas mulheres, surge uma tensão: uma delas, na
faixa dos 30 anos, propõe um argumento difícil de refutar em uma situação na
qual a humanidade vê-se ameaçada - ela seria a mãe dos filhos de todos os
homens no abrigo. A outra mulher, com idade acima dos 40 anos, em situação
frágil a partir daí, argumenta que poderia cozinhar; fica claro que ela já não
teria muitos anos de vida fértil. Diante da necessidade de buscar argumentos
imbatíveis, as duas mulheres apelam para a reprodução e para o lugar social
atribuído às mulheres - preparar os alimentos. A mulher mais velha será
eliminada nesta prova. Logo depois, uma ironia: a seleção tem uma pausa para a
alimentação dos candidatos, e é servida uma comida estragada, com péssimo
sabor; todos percebem a má qualidade da comida, mas não explicitam claramente o
desagrado por medo das possíveis conseqüências para o teste. Os candidatos
sentem na pele a falta de boa comida; mas acredito que fosse qual fosse o
candidato excluído nesta prova, o momento seguinte seria produzido para que os
candidatos sentissem a falta da sua qualidade manifesta.
Existe uma óbvia relação entre o que está acontecendo lá fora (a violenta
manifestação antiglobalização), mundo do qual o grupo de contendores está
isolado, e a violência simbólica à qual são submetidos os candidatos; o vidro
que isola o som, mas que permite que os candidatos vejam a manifestação,
espelha a luta pela sobrevivência no mundo do trabalho em seus diferentes
níveis. A construção de uma relação com a manifestação antiglobalização é
simplesmente para demonstrar a ambigüidade das regras e daquilo que se espera
de um empregado. Um candidato segreda ao outro já ter participado de movimentos
sindicais no passado, mas ter suprimido isso do seu currículo. A suposta
secretária da empresa ouve parte da discussão dos dois e pressiona o candidato
que ouviu a história, perguntando se ele sabe de alguma coisa sobre o seu
concorrente que a empresa deveria saber. Temos um teste de fidelidade: se for
fiel ao seu colega-concorrente, ele estará ocultando da empresa algo que "ela"
deveria saber; se for fiel à empresa, deveria entregar a informação de que seu
opositor tinha um passado como sindicalista. O ex-sindicalista - saberemos
depois que ele é o falso candidato - é denunciado, e o delator, eliminado da
seleção. Mas teria ele permanecido na seleção se tivesse escolhido ocultar da
empresa a informação? Não haveria lugar para um candidato com passado de
manifestante; mas tampouco para aquele que o entrega à empresa. Não há saída:
exclusão por ocultar algo que a empresa deveria saber, traindo a empresa, ou
exclusão por ter denunciado um concorrente pela vaga, o que jogaria contra os
valores de uma equipe de trabalho.
Outro ponto interessante: o aspecto de faixa etária, que atinge tanto homens
como mulheres. Ao final da contenda, os dois sobreviventes serão um homem e uma
mulher jovens e os mais bonitos do grupo. Os dois homens mais experientes serão
excluídos em etapas anteriores: o primeiro porque teria "traído" uma empresa em
que trabalhara, ao denunciar que esta pretendia jogar dejetos em um rio, o que
seria catastrófico para o meio ambiente e para a própria empresa. Ele argumenta
que tentou de todas as formas evitar a denúncia pública e que só teria exposto
a situação para o bem da empresa. Essa informação é fornecida aos outros
candidatos, que são questionados se esse executivo mereceria confiança. O grupo
decide por maioria que, se fossem eles os responsáveis pela seleção, este
candidato seria excluído, e ele sai da contenda. O segundo homem de idade mais
avançada, na faixa dos 50 anos, é excluído após uma prova que consistia em uma
dinâmica de grupo, durante a qual ele demonstrou inépcia com os idiomas inglês
e francês, fraqueza explorada pelos seus concorrentes. Segundo o responsável
pela condução da atividade, ele teria demonstrado incapacidade de lidar com
situações desfavoráveis - na verdade, domínio de idiomas sequer teria sido o
critério. Esta prova teria sido "para ele", diz o responsável; tal fala parece
desvelar a farsa do filme: não são psicólogos o homem e a mulher responsáveis
pela seleção, mas atores. Atores que se fazem passar por secretária da empresa
e um dos contendores; atores que se fazem passar por psicólogos posteriormente.
Mas isso pouco importa. Afinal, poderiam ser sim psicólogos que se fazem passar
por atores para medir a reação dos últimos candidatos. A "regra do método" é
que as regras serão adaptadas ao CV de cada concorrente, expondo-os a situações
em que suas possíveis fraquezas são exploradas. Alguns pontos levaram-me a crer
que o método, temido pelos candidatos como uma técnica refinada, preconcebida,
caracteriza-se justamente pela falta de método; ou, em outras palavras,
caracteriza-se pelas mesmas qualidades que se requisita dos executivos:
flexibilidade, capacidade de adaptação, habilidade em lidar com situações
inusitadas.
Ao final da seleção, sobram dois candidatos, um homem e uma mulher jovens e
bonitos que já se conheciam e tiveram um caso no passado. Eles são separados
pelos atores (antes secretária da empresa e um dos concorrentes à vaga), agora
já apresentados como responsáveis pela seleção. A última prova consiste em
conseguir fazer o outro desistir da vaga e abandonar o prédio. O homem vai
vencer a prova, convencendo a mulher a deixar aquilo tudo, com o argumento de
que sairiam juntos; é parte do argumento uma possível retomada do romance
deles. Ela sai do prédio e caminha pela rua, onde se vê o saldo da manifestação
antiglobalização. Aliás, a sua presença naquela paisagem é parte deste saldo,
se entendermos a manifestação lá fora e a seleção de emprego cá dentro como
faces de uma mesma questão: a precariedade do trabalho e das relações em torno
dele no mundo contemporâneo.
Conclusão
Para Boltanski e Chiapello, em cada novo espírito do capitalismo, seria
necessário mobilizar os indivíduos a se engajarem no aparato de acumulação.
Haveria uma especificidade no modelo atual: ainda que, a partir dele, se possa
defender o princípio da acumulação, ele não teria suficiente poder mobilizador.
Pela primeira vez, o sistema de justificação necessário para a manutenção dos
indivíduos participando do modelo de acumulação não mais consegue gerar um
efeito positivo.
Se concordarmos com os autores, faz sentido o olhar pessimista com o qual os
filmes aqui analisados são concluídos. Mesmo quando temos um happy end, ele não
me parece convincente, caso do filme A agenda. Além das justificações em termos
de "bem comum", necessária para responder às críticas ao sistema e se explicar
ante os outros, os funcionários dos quadros das empresas também teriam
necessidade de motivos pessoais para se engajar. É em direção aos quadros que o
capitalismo deve completar o seu aparelho justificativo. Isso porque a sua
adesão é particularmente indispensável ao funcionamento das empresas e à
formação do lucro, entre os quais o alto nível de engajamento no processo de
acumulação capitalista requerido não pode ser obtido pelo puro constrangimento,
menos submetidos que estão às necessidades, caso dos operários (Boltanski e
Chiapello, 1999, p. 51).
O capitalismo deverá apresentar aos membros dos quadros atividades que aos seus
olhos pareçam excitantes, que portem a possibilidade de auto-realização e
espaço de liberdade para a ação (Idem, p. 53) Mas essa expectativa de autonomia
traz a cavalo uma outra demanda, com a qual mantém uma relação tensa, uma
demanda por segurança:
O capitalismo deverá, com efeito, poder também inspirar nos quadros a
confiança na possibilidade de que se beneficiem do bem-estar
prometido no longo prazo, para eles mesmos, [...] e de assegurar às
suas crianças o acesso a posições que as permitam manter os mesmos
privilégios (Idem, ibidem).
Lembremos que se manter em movimento é tarefa necessária para a sobrevivência
do capital no sistema capitalista, como lembram Boltanski e Chiapello. Neste
mundo, velocidade, movimento e aceleração são valores, commoditties, para usar
um vocabulário do mercado; também é tarefa requerida do material humano
engajado na lógica do terceiro espírito do capitalismo: "estar em movimento
[...] torna-se uma necessidade. Manter-se em alta velocidade, antes uma
aventura estimulante, vira uma tarefa cansativa" (Bauman, 2004, p. 13). Mas, a
manutenção desse engajamento cobra um preço: a lógica do espírito do
capitalismo oferece em troca do engajamento em um sistema de acumulação a
segurança de que um determinado modo de vida pode ser mantido. E aqui temos um
ponto de estrangulamento na lógica moderna do trabalho entre os extratos médios
e altos:
[...] a ansiedade que oprime as classes médias americanas exprime bem
mais que uma simples generalização da insegurança socioeconômica. Ela
é a tradução, na ordem da psicologia individual e coletiva, de uma
crise estrutural do modo de reprodução social que toca com força
particular os ocupantes de zonas intermediária do espaço social [...]
(Wacquant, 1996, p. 77, grifo do autor).
Os filmes aqui analisados são parte do terceiro espírito do capitalismo,
ocupando o espaço de corpus crítico à ideologia do momento. O problema está
longe de ser somente na América do Norte, estando presente também na França e
na Espanha, países de origem dos filmes analisados. Eles contam a história
dessa "crise estrutural do modo de reprodução social", da qual fala Wacquant; a
estrutura dos filmes confirma a idéia de Boltanski e Chiapello de que o momento
atual do espírito do capitalismo falha no suprimento de justificações coerentes
que dêem conta da manutenção do engajamento dos quadros.
Pego de empréstimo uma tira que Wacquant (Idem, p. 67) utiliza em seu artigo
para explicitar essa falha no provimento de justificações: patrão e empregado
estão em lados opostos de uma mesa e o diálogo corre da seguinte forma:
Patrão: Estamos despedindo você
Empregado: Oh?
Patrão: Com o objetivo de fazer nossas operações mais eficientes.
Empregado: Oh?
Patrão: Para que sejamos mais competitivos globalmente.
Empregado: Oh?
Patrão: Para que criemos mais empregos.
Empregado: Oh.
A inquietude do capitalismo, que leva o sistema a movimentos, por vezes
bruscos, para manter-se em estado de acumulação, nem sempre dá a segmentos da
população tempo para que haja adaptação (Polanyi, 1980). Inquietude e
desemprego fazem parte da história das classes trabalhadoras mais próximas às
zonas de vulnerabilidade. Uma novidade mais recente, que aparece representada
nos filmes aqui analisados, é a expansão da zona de vulnerabilidade às classes
executivas, aos quadros superiores das empresas. Os filmes encaixam-se no papel
de crítica cultural ao capitalismo, de crítica à forma como as ondas de
mudanças no processo organizacional tende a deixar atrás de si um saldo de
"supranumerários", vítimas de avanços das "zonas de vulnerabilidade" (Castel,
1998).
Como o sistema capitalista pode absorver as críticas que esses filmes encarnam
aos valores da flexibilidade, da liberdade, da autonomia, valores estes que
sustentam o discurso do sistema hoje? Se olharmos para outras crises do
capitalismo, e para a sua capacidade de re-invenção e absorção da crítica, não
se duvida que adaptações nos argumentos que levam os quadros a engajar-se no
sistema de acumulação levem a novos "espíritos do capitalismo".
Notas
1 O salto histórico é grande, mas não tenho aqui a pretensão de desenhar todas
as conexões possíveis entre diferentes formatos de acumulação no capitalismo e
os filmes que os retratam, positiva ou negativamente.
2 Estou tentando traduzir aqui o grupo que em francês se chama les cadres.
3 Para os autores, ao final do século XIX esse primeiro espírito está associado
à figura do burguês empreendedor, e é essencialmente familiar. No segundo, que
tem seu pleno desenvolvimento nos anos de 1930-1960, a marca é menos sobre o
indivíduo que sobre a organização. Aqui haveria um fascínio pela grande empresa
industrial centralizada e burocratizada. Está ligado à figura do diretor e a
dos quadros da empresa, a um capitalismo de grandes empresas, burocratizada
(Boltanski e Chiapello, pp. 55-56).
4 Este artigo já estava encaminhado antes que se tornasse mais aguda a recessão
global com início em 2008 e ainda sem data para terminar. Algumas questões
tratadas neste artigo - e nos filmes que analiso - tornaram-se, sem dúvida,
ainda mais evidentes.
5 A inspiração aqui é o texto de Hughes (1996), "O drama social do trabalho".
Neste artigo Hughes propõe que, se quisermos analisar a dinâmica de um
determinado trabalho, é preciso ir além dos seus aspectos técnicos, e buscar
compreender o papel das diferentes pessoas implicadas em tal dinâmica. Ele está
aplicando a matriz do interacionismo simbólico aos estudos sobre carreiras e
profissões. Os sujeitos têm um determinado papel em uma trama, ou um "drama" do
trabalho; na situação sobre a qual reflito aqui, a idéia é útil para pensar um
"drama" do desemprego.
6 Não deve ser casual a nacionalidade dos dois filmes. O chômage é um tema
importante na França e o país produziu também um corpo de pesquisadores sólido
nessa área, ver a bibliografia deste artigo.
7 Tampouco entre os operários os movimentos de resistência seriam tão
homogêneos. Ver, por exemplo, o trabalho de Pialoux e Beaud (1997) sobre a
tensão entre operários permanentes e temporários durante uma greve em 1989 na
fábrica de Peugeot na cidade de Sochaux; ver também o filme Los lunes al sol
(dir. Fernando León de Aranda, Espanha/Itália, 2002), que mostra o cotidiano de
um grupo de ex-colegas demitidos de uma empresa naval na Galícia, que deixa um
saldo de desemprego após mudar de região.
8 Tecnicamente, do ponto de vista da biomedicina hoje, o comportamento maníaco
é um dos pólos do transtorno de humor conhecido como "bipolaridade"; o outro
pólo seria a depressão.
9 Inspiro-me no uso que Sayad (1991) faz do termo "pobreza exótica", ao
discutir a situação dos estrangeiros imigrados para a França, argelinos em
especial, uma pobreza externa, estranha à história dos países mais opulentos,
que não é nacional e por isso não tem status.
10 Em janeiro de 2008, uma adaptação para teatro entrou em cartaz no Rio de
Janeiro, o que por certo demonstra que as questões suscitadas pelo filme também
dizem respeito à realidade do Brasil.