As relações em eixo: novo paradigma da teoria das relações internacionais?
"O esforço é grande e o homem é pequeno (...)
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus (...)"
Fernando Pessoa,"Mensagem"
Introdução
Desde 1870, as relações franco-alemãs e argentino-brasileiras evoluem,
submetidas aos condicionalismos regionais respectivos, porém de modo amplamente
coincidente quanto à forma gradativa, já que à rivalidade permanente que as
dominou inicialmente, sucedeu-se uma fase assente numa base de cooperação, que
alcançaria, depois, uma cooperação verdadeiramente suportada por parcerias
estratégicas ligando especialmente os líderes dos Estados considerados , até
alcançarem um patamar de entendimento regional, das quais se afirmam
efectivamente como eixos-motores. Neste processo evolutivo estão as relações em
eixo na base de suporte, de modo que, desde 1870, as relações franco-alemãs e
argentino-brasileiras se afirmam como relações em eixo, essenciais para a
criação, condução e consolidação dos processos regionais de integração,
constituindo-se como novo conceito paradigmático que se espera vir a ser
incorporado pela Teoria das Relações Internacionais 1.
O paradigma
As relações em eixo surgem como um paradigma que permite analisar a formação de
processos integracionistas de forma gradativa: qualquer processo regional de
integração que pretenda alcançar um nível considerável de aprofundamento
económico-político-institucional, de acordo com a Teoria da Integração
Regional, tem que passar por etapas gradativas nas quais as relações em eixo
desempenham papel de fundamental importância, na ausência das quais a
integração regional limitar-se-á a uma vertente puramente económica.
Sendo a União Europeia o processo integracionista mais avançado do mundo e o
Mercosul aquele que mais se lhe aproxima, no sentido de estabelecer objectivos
de longo prazo ambiciosos, evidentemente teriam de ser os casos de estudo
abordados. Os restantes exemplos de integração regional que organizam a
sociedade internacional global num multilateralismo pós-westfaliano, pós-
moderno e pós-hegemónico, à maneira de Robert Cox2, não ultrapassam o âmbito
económico; não têm, na base, relações em eixo unindo os dois maiores Estados de
uma mesma região, mas também não têm objectivos ambiciosos em matéria de
aprofundamento integracionista.
Sugere, assim, confirmar-se a existência de uma correlação entre o papel
desempenhado pela França e pela Alemanha, por um lado, e pelo Brasil e pela
Argentina, por outro, no seio das respectivas regiões, originando relações em
eixo que ligam cada um destes dois Estados, desempenhando esses eixos papel de
forças-motrizes do entendimento bilateral, catalisando o contexto regional
respectivo e, assim, derivando para a integração regional. Aprofundando o
paradigma do eixo, o novo conceito das relações em eixo, assentando todavia
naquele, aprofunda-o, ultrapassando o nível bilateral, em função do mais
abrangente nível regional.
As relações em eixo surgem, neste contexto, como uma relação especial
estabelecida entre duas potências que fazem entre si fronteiras vivas e
desenvolvem uma profícua complementaridade económica, numa primeira fase
assentando sobre rivalidades mútuas que evoluem, num segundo momento, para um
comportamento cooperativo finalmente assente sobre verdadeiras parcerias
estratégicas, designadamente entre os respectivos líderes políticos, cuja
vontade de potência, elaboração política e percepções de interesses convergem
num mesmo sentido, por forma a articular as ligações entre os núcleos dinâmicos
do eixo sobre o qual assentam. Sobressaindo da região em que surgem pela
criação de potência, as relações em eixo acabam por afirmar-se como o eixo de
gravitação regional, beneficiando da aceitação popular que lhes reforça a
coerência interna, ainda que sejam influenciadas por Estados terceiros, bem
como pelas evoluções conjuntural e estrutural da região e da sociedade
internacional global em que se inserem. Assim definidas, as relações em eixo
funcionam como condição necessária para a existência de processos regionais de
integração, estando na origem, na consolidação e condução destes pela força
integradora que geram.
Estas têm forte impacto sobre as relações regionais porque produzem um efeito
de criação de potência, já que os Estados que assim se unem são potências
regionais. Estados de peso relativo em função dos vizinhos que, com eles,
compõem a região em que se inserem, têm os factores determinantes do poder,
segundo o entendimento realista de Raymond Aron3.
Não reunindo os elementos que lhes permitam actuar, influenciar e constranger
os demais à sua vontade, os Estados não são considerados potências regionais.
Deste modo, mesmo que estabeleçam, entre si, relações privilegiadas, estas
nunca serão consideradas em eixo, porque não derivarão de uma situação de
rivalidade, o que não determinará a necessidade de estabelecerem entre si um
relacionamento privilegiado como forma de a ultrapassar. Por isso, não
influenciarão a região e não provocarão a criação de um processo de integração
regional.
Sendo potências regionais, os dois Estados da mesma região surgem,
necessariamente, como unidades políticas rivais, porque cada um é afectado pela
acção do outro, ao mesmo tempo que suspeita irreversivelmente das suas
intenções. Actualmente, o comportamento cooperativo tem feito as relações em
eixo, outrora assentes sobre tensões e rivalidades, assentar sobre a cooperação
que tem dado consistência às parcerias. Ainda assim, cada um dos Grandes
continua a ser afectado pela acção do outro e a suspeita em torno das intenções
mútuas e recíprocas mantém-se. Simplesmente, este comportamento encontra-se
balizado pela criação deliberada, por ambos, na respectiva região, de
Autoridades Comuns que impedem a adopção de comportamentos agressivos.
Por outro lado, e uma vez que as condições de capacidade, material e humana,
administrativa e moral, dos dois Estados rivais variam, ao longo do tempo,
sendo detidas apenas por estes Estados, sucede que, nuns momentos, um dos
Estados detém a supremacia sobre o outro, enquanto, noutros, a situação
inverte-se: as duas potências regionais rivais vão-se intercalando na posição
de hegemon regional segundo um movimento pendular, que influencia sempre cada
uma das regiões como um todo, fazendo as respectivas relações internacionais
girar em torno das relações bilaterais dos dois Grandes, num contexto em que os
restantes países pouco peso relativo possuem na respectiva região, sujeitos,
pois, ao caminhar tortuoso e cíclico das relações em eixo franco-alemãs e
argentino-brasileiras, em que os períodos de rivalidade são intercalados com
momentos de cooperação e paz e vice-versa.
Por outro lado, estes Estados, unidos em eixo, provocam forte impacto sobre a
região em que estão inseridos, porque promovem a identificação sub-regional dos
cidadãos ao processo integracionista a que as suas relações em eixo dão origem.
A ligação destas duas potências em eixo une indissoluvelmente os destinos
desses países, o que permite que, por arrastamento, os cidadãos desses Estados
se sintam também ligados. A contiguidade territorial é aqui determinante para
associar os dois Estados, já que as correntes migratórias assim impulsionadas
contribuem para a união dos mesmos, não só a nível político e económico, como
também a nível social, cultural, psicológico. Importante, a contiguidade
territorial não é, todavia, suficiente, porque os modos de pensar, as
mentalidades, as formas de vida quotidiana, as práticas sociais de cada um dos
dois povos não são facilmente conciliáveis. Caberá, portanto, às Autoridades
Públicas dos dois Estados unidos em eixo proceder à promoção do imaginário
unificador através de iniciativas políticas com o objectivo de animar a
identificação binacional das identidades nacionais que gravitam nas suas
extremidades e sobre as quais as respectivas relações em eixo assentam, para
que, depois, ocorra uma identificação regional que girará em torno daquela, de
modo que as mesmas sejam legitimadas pelas populações como tal, que assim lhes
reconhecem autoridade.
Surge claro que, sendo as integrações regionais europeia e mercosulina
multiculturais, ambas possuem uma identidade idiossincrática, que as distingue
dos restantes actores da sociedade internacional global, ainda que, enquanto na
União Europeia, a identidade regional funciona na base dos impulsos políticos
que lhe são dados sobretudo pelo casal franco-alemão, no Mercosul a identidade
regional é inata, subjacente à própria existência dos Estados, como resultado
da moldagem étnico-cultural sub-regional reforçada pela união proporcionada
pela existência de problemas comuns, sendo certo que a aceitação da
multiculturalidade dá consistência e coesão ao processo de integração, sendo,
por conseguinte, necessário, que as lealdades locais e nacionais sejam tidas em
conta no procedimento diário das Instituições Comunitárias da União Europeia e
dos Órgãos do Mercosul, para formação das respectivas vontades.
A correlação entre o processo de integração regional e as relações em eixo é
evidente, assumindo-se estas, simultaneamente, como causa e efeito daquele. De
facto, os interesses divergentes entre duas potências, através do movimento
centrípeto originado pela estruturação de relações em eixo são transformados em
objectivos comuns que rendem vantagens a ambas as partes.
É o reconhecimento da necessidade de transformar interesses divergentes que
leva potências vizinhas a descortinar, no estabelecimento de relações em eixo,
a única forma de proporcionar vantagens e, consigo, arrastar, na mesma
direcção, a região de que fazem parte, já que tais relações transformam-se em
ponto de referência para os Estados, da mesma região, menos potentes, que
gravitam na sua órbita, produzindo forte impacto sobre o contexto regional em
que se inserem, designadamente sobre o equilíbrio desse contexto. A integração
regional, necessária e rentável no contexto da ambivalência que conduz à
estruturação de relações em eixo, surge, assim, como uma acção colectiva
visando reduzir os custos de transacção num contexto de economia aberta e
optimizar os ganhos, de acordo com o Intergovernamentalismo pelo viés da
Rational Choice, de Alan Milward, porquanto os Estados inscritos num regime
internacional (como a União Europeia e o Mercosul) estão inscritos num jogo de
trocas repetidas em que, ora são ganhadores, ora perdedores, mas não têm,
nunca, vantagem em retirar-se do jogo. A reciprocidade difusa de Keohane4 torna
o custo da defecção mais pesado do que o ganho da cooperação, conforme sugere o
Institucionalismo Neoliberal, através da conjugação dos conceitos de regime
internacional de Krasner5 com o de jogo interactivo de Ruggie e o de
reciprocidade difusa de Keohane.
O novo paradigma das relações em eixo assenta, pois, no paradigma do eixo,
amplamente utilizado no estudo das relações bilaterais e incorporado, já, pela
Teoria; mas tem um alcance mais abrangente porque aplica-se às relações
bilaterais e às relações regionais configurando processos regionais de
integração.
O eixo surge, de facto, como o ponto de partida da análise das relações em
eixo, tendo sido introduzido, nas relações internacionais, no caso sul-
americano, pelo Professor Doutor Luiz Alberto Moniz Bandeira, em livro
intitulado O Eixo Argentina-Brasil, de 1987, desenvolvendo-o posteriormente na
abordagem das relações inter-americanas. Amado Luiz Cervo utiliza-o também no
estudo das relações Brasil-Venezuela; Mario Rapoport, Samuel Pinheiro
Guimarães, José Maria Lladós, Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Heloisa Vilhena de
Araújo utilizam-no no estudo das relações regionais dos principais países da
região, especialmente o Brasil, a Argentina e a Venezuela, bem como os demais
membros da Comunidade Andina. No caso europeu, o termo é amplamente utilizado
para o estudo das relações França-Alemanha, por especialistas dentre os quais
se salientam Robert Picht, Hendrik Uterwedde, Wolfgang Wessels, Pierre Gerbet,
Christian Lequesne, Helen Wallace, Klaus Grewlich, Christian de Boissieu, Hans-
Eckart Scharrer, Françoise de la Serre, Axel Herbst e Jacques Morizet, uns
favoráveis à existência efectiva de um eixo franco-alemão no seio da União
Europeia, outros vigorosos críticos dessa realidade. As relações em eixo,
partindo do eixo, alçado à categoria epistemológica de conceito paradigmático
da Teoria das Relações Internacionais, vai mais além, construído
gradativamente, o que permite analisar os processos regionais de integração de
forma também gradativa.
As relações em eixo franco-alemãs
De 1870 (ano em que a unificação alemã viria trazer, à hegemónica França, um
rival no espaço continental europeu) a 1945, as relações em eixo franco-alemãs
haviam sido tensas, assentando numa base de rivalidades mútuas, essencialmente
em torno da questão siderúrgica e da pujança económica do Ruhr, ligado à
Alsácia-Lorena e ao Sarre. A partir de 1945, o problema siderúrgico do Sarre e
do Ruhr afirmou-se como o principal ponto de discórdia entre os Dois, mantendo-
se as relações em eixo, assentes no medo e na desconfiança, em virtude da
necessidade de relacionarem-se pacificamente.
Na verdade, embora o sonho da unidade europeia tenha raízes seculares, foi no
período entre as duas guerras mundiais que a ideia unificadora mais frutificou,
encontrando, nos condicionalismos pós-Segunda Conflagração Mundial, as
condições ideais para iniciar-se. Ainda que determinante efectivamente tenha
sido o pragmatismo da necessidade política de pacificar o Velho Continente,
meta que surgia, aos olhos de todos, como algo alcançável apenas através do
enquadramento das relações em eixo franco-alemãs em estruturas supranacionais
que controlassem a produção franco-alemã do carvão e do aço, de modo a tornar
qualquer esforço de guerra, não só impensável, como materialmente impossível,
que garantissem o comprometimento da potência dominante com estruturas
abrangentes e que constituíssem uma terceira via ao ordenamento bipolar
centrado no confronto Estados Unidos-União Soviética, de modo a fazer face à
ameaça soviética e, simultaneamente, à preponderância económica dos Estados
Unidos.
Acresce que, embora variados, na base do impulso franco-teutónico, os motivos
para a adesão dos Estados ao Projecto Europa convergem na obtenção de um
compromisso com valores comuns e princípios europeus como a paz, os Direitos
Humanos, a economia de mercado, os direitos sociais e a superação das
rivalidades multisseculares que jogam em simultâneo com os interesses
particulares de cada Estado, desde os económicos, aos princípios próprios de
cada um e às relações de vizinhança. Ao mesmo tempo, os nacionalismos europeus,
obsoletos desde 1945, predispuseram os líderes políticos a cogitar formas
transnacionais de organização, que foram favorecidas pela vontade política de
grandes estadistas europeus.
De modo paralelo, actuaram sempre iniciativas europeias privadas, fundamentais
para sustentar o projecto europeu posto em movimento, funcionando como poderoso
meio de pressão política. Igualmente determinante para concretizar o processo
europeu de integração foi a consideração, pela Alemanha, de que a sua
participação em tal projecto permitir-lhe-ia resolver o problema da divisão do
país, o que fez com que a integração europeia, desejada pela França como forma
de enquadrar a Alemanha e, numa fase inicial, o rearmamento alemão , fosse
também desejada pela Alemanha, que assim poderia, também, integrar-se
lentamente nas estruturas da sociedade internacional ocidental, para então
alcançar a independência e soberania temporariamente perdidas6.
A celebração do Tratado de Paris, em 1951, criando a Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço, marcou, neste sentido, o início da integração franco-alemã
solucionando as questões em torno do Sarre, do Ruhr e da Alsácia-Lorena. As
relações em eixo franco-alemãs, evoluindo no sentido da cooperação, permitiram,
assim, desbloquear o impasse franco-alemão, pondo em movimento uma engrenagem
não bi, mas multilateral que, pelo jogo dos fenómenos económicos e políticos a
que daria lugar, acabaria por ultrapassar o quadro apertado de uma organização
sectorial, abrindo caminho à criação da Comunidade Europeia da Energia Atómica
e, muito especialmente, da Comunidade Económica Europeia, em 1957, pela
assinatura dos Tratados de Roma.
As Comunidades Europeias organizaram-se, assim, no sentido da interdependência
mediante integração, assente na Escola Pluralista das Relações Internacionais,
e enquanto goravam-se as tentativas de integração política a Seis, a França e a
Alemanha decidiram encetá-la a dois, estabelecendo, definitivamente, o
entendimento bilateral concertado com a assinatura do Tratado do Eliseu
(janeiro de 1963), que tem uma importância determinante na consolidação, entre
os dois Estados, das relações em eixo capazes de originar a integração
regional, já que foi a partir daí que a almejada pacificação entre os Dois
Grandes rivais continentais da Europa efectivamente ganhou contornos de
realidade insofismável, concretizando a substituição das rivalidades em que
assentavam as relações em eixo por um comportamento amplamente cooperativo.
Na verdade, a integração europeia buscava ser franco-alemã o eixo em torno do
qual giram as relações internacionais da Europa desde o século XIX tendo-se
porém estendido ao continente quando a fundação contou também com a
participação dos países do Benelux e da Itália. O objectivo era, todavia,
encontrar, na integração, a forma de conter as rivalidades que separavam os
Dois Grandes da Europa Ocidental. A participação dos restantes Estados fica a
dever-se, num primeiro momento, à necessidade política que sentiam impeli-los a
participar dos esforços de pacificação do Velho Continente e, ao mesmo tempo,
assegurar-se de qualquer eventual ameaça soviética e, numa segunda fase, da
prosperidade económica que o êxito da primeira Comunidade Europeia rapidamente
alcançava. Foi este, aliás, o motivo essencial que terá determinado a adesão da
Grã-Bretanha ao Projecto Europeu. Potência média, a Grã-Bretanha rapidamente
concluiu que excluir-se do projecto que pretendera destroçar inicialmente não
lhe traria senão desvantagens económicas e, após ultrapassada a firme oposição
de De Gaulle, que a compreendia como a entrada subreptícia dos Estados Unidos
nos esforços europeus de cooperação, os Britânicos alcançaram a aceitação da
adesão, concretizada em 1973. Desde então, e até hoje, ainda que de forma mais
subtil, a Grã-Bretanha tem vindo a desempenhar, na União Europeia, a função de
chefe de fila dos cepticismos que barram a evolução da integração europeia, ao
mesmo tempo que criam reflexões sobre a essência do projecto, assim
contribuindo para fortalecê-lo.
Na verdade, os Estados-membros marginais ao eixo têm igualmente uma função
importante a desempenhar em prol da integração europeia. Funcionam como
contrapeso à força centrípeta das relações em eixo franco-alemãs, constituindo,
não raras vezes, minorias de bloqueio que tornam o processo comunitário de
decisão verdadeiramente comunitário, garantindo que a vontade da União
Europeia, senão resultado da vontade consensual de todos os Estados-membros,
resulte, pelo menos, de uma negociação que se torna indispensável.
Criadas as Comunidades em função do papel líder desempenhado pela França e pela
Alemanha no seio da Europa Ocidental, estes Estados assumem-se como o eixo
central de toda a União Europeia, determinando um elevado grau de coesão à
região e, desta forma, ao projecto integracionista então iniciado,
posteriormente aprofundado, paralelamente aos vários alargamentos, estimulado
pela acção propulsora do entendimento dos líderes alemães e franceses. Monnet-
Schuman, De Gasperi-Adenauer, Spaak-Monnet assumiram-se, desde logo, como
parcerias importantes para o esforço de pacificação do Velho Continente,
prelúdio das parcerias verdadeiramente franco-alemãs que a História não se
cansaria de repetir. Adenauer-Schuman, Adenauer-De Gaulle, Schmidt-D'Estaign,
Mitterrand-Kohl seriam parcerias determinantes para a construção da Europa
Unida, ainda que o panorama tenha também sido manchado por entendimentos
bilaterais não tão profícuos, como o que uniu Schröder e Chirac, ou como o que
desuniu Ludwig Erhard e De Gaulle, sendo insípido o que hoje une Chirac e
Ângela Merckel. A partir de determinado momento, todavia, a velocidade de
evolução é mais lenta, mas existe, comprovando, no fundo, a relevância das
referidas parcerias, os casais vinte das relações franco-alemãs7.
Na verdade, tem sido o casal franco-alemão a impulsionar a força integradora
das Comunidades, hoje União Europeia. O impulso federalista, desencadeado pelo
Congresso da Haia de 1948, teve continuação com a criação do Conselho da Europa
no ano seguinte, com a Declaração Schuman de 1950, a criação da Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, no ano seguinte, com a criação da Comunidade
Económica Europeia e, simultaneamente, da Comunidade Europeia da Energia
Atómica, em 1957, e com a assinatura do Tratado do Eliseu, em 1963, como início
de uma caminhada que, ante avanços e recuos, conduziria a décadas de construção
europeia, com o Acto Único Europeu, o Tratado de Maastricht e a transformação
das Comunidades em União Europeia, integrando a Política Externa e de Segurança
Comum e a Cooperação na Justiça e nos Assuntos Internos, o Tratado de
Amesterdão, o Tratado de Nice, o Tratado Constitucional e os vários
alargamentos sobretudo o de maio de 2004 ; décadas nas quais sempre ressaltaria
o papel de liderança do eixo franco-germânico, criando laços e
interdependências numa rede complexa e multifuncional que, se não pacificou
essas relações, ao menos enquadrou-as politicamente, por forma a resolver,
diplomaticamente, os conflitos.
Simultaneamente, tem sido o casal franco-alemão a permitir ultrapassar as
dificuldades que à integração europeia se têm, desde o início, deparado. O
fracasso da Comunidade Europeia de Defesa e da Comunidade Política, do Plano
Fouchet e da integração política; a crise da chaise vide; o eurocepticismo dos
anos 70; as dificuldades de ratificação do Tratado de Maastricht e, hoje, do
Tratado Constitucional; os desentendimentos surgidos nas revisões realizadas,
aos Tratados Comunitários, em Amesterdão e Nice, particularmente entre a França
e a Alemanha, relativamente à questão do emprego e à aprovação do Pacto de
Estabilidade; as dificuldades que envolveram todo o processo de entrada na
terceira fase da União Económica e Monetária, de cumprimento dos critérios de
convergência e de entrada em vigor da Moeda Única, afirmaram-se como
dificuldades que o motor franco-alemão logrou solucionar e ultrapassar,
surgindo como verdadeira locomotiva da União Europeia, cuja condução e
consolidação se lhe fica a dever.
As dinâmicas, hoje, são distintas. Todavia, o papel de eixo-motor mantém-se
para as relações em eixo franco-alemãs. Efectivamente, a União Europeia depara-
se, hoje, não apenas com a questão do alargamento desmesurado aos Estados da
Europa Central e Oriental, bem como à Turquia, sucessivamente adiado, ainda que
as negociações para uma futura adesão se tenham finalmente iniciado a 3 de
outubro de 2005, como com a problemática que tem envolvido a renegociação do
Tratado Constitucional Europeu, como ainda com o potencial que a Alemanha em
seu seio representa. Sendo o Estado mais rico, mais forte e mais populoso de
todos os Estados-membros da União, a Alemanha, após ter recuperado o papel
político que durante anos lhe estivera vedado, na sequência da desagregação do
Império Soviético, assumiu um lugar central no seio da União Europeia, que a
localização geográfica no coração da Europa vem reforçar. Para que o eixo
franco-alemão continue a funcionar como motor central da integração europeia e
como cerne das relações franco-alemãs pacificadas, é necessário que a União
Europeia seja capaz de conviver com a Alemanha fortificada, combinando a
fraqueza e a divisão que hoje a afectam com o poder reunificado que cresce em
seu seio e, ainda, que reconhecendo a grande influência que a Alemanha tem
junto dos Estados da Europa Central e Oriental, fruto da sua tradicional
política externa, a União Europeia lhe permita estar integrada num processo
regional de integração que funcione como unidade estratégica, dotada de uma
verdadeira Política Externa e de Segurança Comum. Tal permitirá à Alemanha
exercer os atributos de grande potência integrada na União Europeia e
irreversivelmente ligada à França, numa unidade em simbiose, no seio da qual a
Alemanha permanecerá pacificamente e a União Europeia fortalecer-se-á,
conjugando os binómios alargamento-aprofundamento político, de modo a reforçar
a confiança em si própria e, a partir daqui, enquadrar os dilemas que a
envolvem na actualidade. Se, além disto, a União conseguir formular uma
estrutura de defesa própria, o modelo franco-alemão de cooperação militar
existente será, certamente, o eixo central dessa nova força, o que coloca, uma
vez mais, as relações em eixo franco-alemãs no cerne da condução e consolidação
do processo europeu de integração.
As relações em eixo argentino-brasileiras
As relações em eixo argentino-brasileiras assentaram numa base de tensões e
rivalidades de 1870 (ano em que a formação do Estado argentino viria trazer um
rival ao Império do Brasil, até então hegemónico na Bacia do Prata) a 1979-1980
(Acordo Tripartite e Acordo de Cooperação Nuclear), assentando, a partir daqui,
numa base de cooperação (incluindo parcerias estratégicas entre os líderes). A
partir de 1991, afirmaram-se como eixo-motor da integração regional.
É bem verdade que o início concreto da ampliação do mercado regional sul-
americano pode ser situado nos anos 30 do século XX, ainda que o
desenvolvimento, efectivo, dos esforços de integração sejam posteriores. Em
fevereiro de 1960, assistiu-se à criação da Associação Latino-Americana de
Livre Comércio Alalc , impulsionada pela Comissão Económica para a América
Latina Cepal e de objectivos mais económicos do que propriamente políticos,
como a Organização de Estados Americanos. O fracasso seria, porém, o resultado,
já que a Alalc não conseguia superar a primeira etapa do processo
integracionista e, assim, criar uma zona de comércio livre.
O Tratado da Bacia do Prata, assinado em 1969 pelo Brasil, a Argentina, o
Uruguai, a Bolívia e o Paraguai, assim como, mais tarde, o Acordo de Cartágena
mais conhecido por Pacto Andino e, ainda, o Sistema Económico Latino-Americano
Sela , de 1975, iriam, depois, constituindo tentativas de resposta ao
esgotamento dos projectos integracionistas cepalinos, que veriam consolidação
em 1980, com a substituição da Alalc pela mais ambiciosa Aladi Associação
Latino-Americana de Integração.
Entretanto, o Encontro de Uruguaiana de 1961, entre os presidentes Jânio
Quadros e Arturo Frondizi, aproximou mais os dois países, com base na
perspectiva mais política de aumentar o peso negocial face aos Estados Unidos,
a qual seria mantida e aprofundada por João Goulart, enquanto a Argentina de
Galtieri entrava numa fase de aproximação a Washington e consequente
afastamento de Brasília.
Tal não impediria, contudo, que Castelo Branco e Ongania procurassem, anos mais
tarde, instrumentalizar a doutrina das fronteiras ideológicas em favor de novas
formas de integração regional, não com o objectivo de resistir aos Estados
Unidos, mas com fins puramente económicos. O Tratado da Bacia do Prata afirmar-
se-ia como o instrumento principal desta tentativa, na medida em que o
aproveitamento hidrográfico dos rios da região constituía fonte de conflitos
acrescidos.
Apesar de toda a caminhada calcada por brasileiros e argentinos, foi, de facto,
na passagem dos anos 70 para os 80, com a assinatura do Acordo Tripartite de
1979, pondo fim ao contencioso das águas, e do Acordo de Cooperação Nuclear do
ano seguinte, pondo fim à corrida pela bomba atómica e estruturando a
cooperação nuclear argentino-brasileira, que a integração assumiu uma
importância decisiva no contexto sul-americano. Até lá, a integração era um
projecto marginal que, quando falado, referia-se apenas a uma lógica
industrial-produtiva.
Com efeito, as dificuldades geradas pelo endividamento externo e pelas crises
econômicas dos dois países, que tinham criado dificuldades que a diferenciação
crescente da estrutura produtiva dos Dois com o Brasil a apresentar uma
estrutura eminentemente industrial e a Argentina uma estrutura primária
agravava, tornando evidente o esgotamento do modelo de desenvolvimento assente
na substituição de importações; bem como a solidariedade política e económica
que floresceu entre ambos durante o conflito das Malvinas/Falklands e uma vez
que estava já resolvido, pelo Tratado de 1979, o contencioso das águas, e
encetada a cooperação nuclear binacional pelo Tratado de 1980, a abertura das
economias e as garantias recíprocas oferecidas em matéria de orientação
pacífica dos respectivos programas nucleares, foram factores determinantes que
permitiram o lançamento concreto da integração entre os dois países,
constituindo-se como factores essenciais constitutivos das relações em eixo
argentino-brasileiras. Foi neste contexto que chegaram ao fim as fortes
ambições nacionais, abrindo caminho à assinatura, pelos Dois, dos Doze
Protocolos que se afirmariam peças essenciais na futura integração sul-
americana.
Seriam os recém-empossados governos de José Sarney e Raúl Alfonsín a
protagonizar a mudança de orientação, trazendo a perspectiva da integração como
forma de solucionar problemas comuns, que constituiria, a partir daí, elemento
definidor da natureza própria do processo de integração do Cone Sul.
Politicamente, a aproximação entre os dois países motivo principal da
integração franco-alemã afigurava-se benéfica para ambos, já que permitiria
fortalecer o processo democrático recentemente iniciado em cada qual ainda que,
na realidade, as relações em eixo situem-se, fundamentalmente, acima dos
regimes políticos e os próprios militares haviam sempre manifestado apoio à
estruturação de um eixo Brasília-Buenos Aires.
No campo económico, o estreitamento de relações entre o Brasil e a Argentina
abria, a ambos, perspectivas e oportunidades novas, como ocorrera entre a
França e a Alemanha após o sucesso da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço,
em especial para a expansão das exportações brasileiras de produtos
manufacturados, para além de conferir-lhes um maior poder de negociação da
dívida externa na arena internacional.
A integração entre o Brasil e a Argentina apresentava, pois, do ponto de vista
de ambos os países, um carácter marcadamente económico, em contraste com o
carácter político da integração franco-alemã, estrategicamente iniciada pelo
domínio económico. A conjugação dos esperados ganhos, uns comuns, outros
específicos de cada um dos Dois mas convergentes em funcionalidade, gerou, em
ambos, uma visão pragmática favorável à integração bilateral, assente no apoio
dos níveis decisórios mais elevados de cada país, com destaque para os
presidentes da República. Situação favorecida pela inexistência de interesses e
objectivos conflituais, que pudessem, de alguma forma, concorrer para
desencorajar o processo.
O objectivo da integração bilateral então introduzido, projecto de carácter
eminentemente neoestruturalista assente na integração industrial e no
desenvolvimento não possuía, porém, um âmbito demasiado alargado, ao contrário
do que ocorrera décadas antes na Europa. Sarney e Alfonsín pretendiam
estabelecer um processo de cooperação económica e desenvolvimento conjunto, mas
não uma abertura económica acentuada, nem mesmo entre os dois países, o que os
Tratados de Paris e de Roma estipularam desde o início, no caso da integração
europeia. Por isso, o Brasil e a Argentina viriam a decidir por uma abordagem
sectorial de prazo dilatado dez anos , que se referia ao estabelecimento, entre
os Dois, de um espaço económico comum, e não de qualquer outra forma mais
elaborada de integração.
O Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, de 1988, viria reforçar
este impulso, desempenhando, na consolidação das relações em eixo argentino-
brasileiras, papel semelhante ao que o Tratado do Eliseu desempenhara nas
relações franco-alemãs, pois, como este, viria, na sequência dos Acordos e
Protocolos assinados em 1986, preparar o caminho para a génese da integração
regional, que assenta, efectivamente, nas ideias-chaves contidas no Tratado de
1988, que o Tratado de Assunção viria reforçar e aprofundar.
Em 1989-1990, todavia, o mundo abalaria perante as transformações ocorridas na
Europa de Leste. O desmoronamento da União Soviética e a derrocada do
Comunismo, alterando o quadro geopolítico mundial, produziriam efeitos, também,
sobre a América do Sul, designadamente sobre a força das ditaduras locais e
sobre a viragem democrática, com alternância no poder e as primeiras eleições
directas para a Presidência da República, no Brasil.
Diante do novo cenário internacional, as relações em eixo argentino-brasileiras
pareciam perdidas, incapazes de actuar no sentido da racionalidade e
continuidade que vinham imprimindo ao processo de integração em curso. A
adaptação do pensamento cepalino por meio do conceito de regionalismo aberto,
sugerindo a abertura dos mercados, dos sistemas produtivos e dos serviços e a
concretização de acordos regionais de integração, em nada ajudou à indefinição,
porquanto nada propunha quanto à fórmula de obter-se aquela internacionalização
das economias. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos, assumindo-se como potência
líder de um mundo que, à deriva, parecia caminhar para o unipolarismo, não
tardaria a potenciar as acções que considerava vitais para os respectivos
interesses nacionais. Encerrando o ciclo desenvolvimentista da política externa
do Brasil e da Argentina em 1989, as novas orientações provinham de Washington
e dominavam a intelectualidade governamental brasileira e argentina.
Desde logo, os Estados Unidos, sentindo-se lesados pela crise económica da
América Latina e visando reduzir o desequilíbrio da sua Balança Comercial,
promoveram a liberalização do comércio exterior, através da proposta, de 1990,
do presidente George Bush, daEnterprise For The Americas Initiative. O
Objectivo era a criação de uma zona de comércio livre do Alaska à Terra do Fogo
(Western Hemisphere Free Trade Area) que permitiria a abertura, aos
exportadores norte-americanos, de novos mercados consumidores e, com o mesmo
objectivo, promoveram o Washington Consensus, conjunto de medidas neoliberais
impostas pelo governo norte-americano aos Estados latino-americanos e que estes
se viam constrangidos a adoptar e aplicar efectivamente. O anúncio da
Iniciativa para as Américas vinha juntar-se ao projecto arquitectado entre os
Estados Unidos, o Canadá e o México, o North American Free Trade Agreement
(Nafta), em matéria de relações económicas hemisféricas, alterando
possivelmente os equilíbrios que se procuravam construir.
Assim, se num primeiro momento, o Brasil e a Argentina estiveram de acordo
quanto aos benefícios que a Iniciativa para as Américas certamente traria
posição defendida pelos restantes países latino-americanos , numa fase
posterior o Brasil mostrou-se bastante mais relutante, já que passara a
analisar os efeitos perversos que tal iniciativa teria relativamente aos seus
interesses. O arrefecimento do apoio brasileiro à Iniciativa para as Américas,
contrastando com o entusiasmo dos restantes países da região, dentre os quais
se contava a Argentina, despertou, no Brasil, o receio de uma dispersão de
esforços em matéria de construção de uma resposta conjunta a dar aos problemas
económicos comuns que o Brasil e a Argentina enfrentavam. E, por isso, levou-
o a procurar conciliar, num mesmo sentido, as acções desses países visando
enformar uma refutação única, e em bloco, à Iniciativa para as Américas, o que
viria a constituir um impulso considerável ao processo de integração entre o
Brasil e a Argentina, que decidiram, em Declaração Conjunta de 6 de julho,
coordenar a Acta de Buenos Aires, na qual os presidentes Collor e Menem
tomariam a decisão de reduzir, de dez para cinco anos, o prazo que havia sido
fixado no Tratado de 1988 para a supressão das barreiras ao comércio bilateral.
Tratava-se de uma mudança qualitativa e formal do objectivo da integração, já
que tomava forma o objectivo formal e expresso de criar, entre os Dois, um
mercado comum, o que apenas em 1990 era enunciado, quando as condições internas
de ambos os países, assim como a envolvente externa, haviam já evoluído em
sentido mais favorável.
Contudo, o estabelecimento desse mercado comum não surgia incompatível com o
carácter gradual que a integração económica brasileiro-argentina deveria
apresentar, assumindo, por isso, uma feição basicamente comercial, a qual viria
a ser apresentada, posteriormente, pelo próprio Mercosul, avançando o projecto
para a filosofia neoliberal que prioriza o comércio e o regionalismo aberto.
Simultaneamente, ganhava importância a transição do projecto, de bipolar a
multipolar, ao que não esteve alheia a circunstância de se afigurar a
possibilidade de o Uruguai e o Chile virem, também, a participar da coordenação
da resposta conjunta à Iniciativa para as Américas; hipótese que conferiu um
grau de pragmatismo ainda mais acentuado ao processo integracionista que unia o
Brasil e a Argentina. De facto, Sarney e Alfonsín haviam estabelecido um
processo de integração bilateral, no qual a passagem ao regional não era, como
ocorre de um modo geral em processos desta natureza, e como ocorreu
relativamente ao processo europeu de integração, um objectivo desejado. A
institucionalização das relações em eixo Brasil-Argentina satisfazia plenamente
os objectivos dos líderes brasileiro e argentino e a regionalização não era, de
facto, uma vontade política expressa por nenhum deles. A conjuntura regional,
porém, especialmente do Cone Sul propriamente dito, acabou por conduzir a
institucionalização das relações em eixo argentino-brasileiras a um processo
regional, que, assim, resultou de uma contingência de que a globalização
constituiu uma variável posterior, enquadrando a ambivalência das relações
Brasil-Argentina numa realidade que supõe fornecer o equilíbrio de toda a
região.
Na verdade, tem sido o casal argentino-brasileiro a permitir ultrapassar as
dificuldades que desde 1870 se lhes têm deparado, determinando a
operacionalidade do relacionamento em eixo. A herança colonial de disputa entre
portugueses e espanhóis pelo controle do estuário do Rio da Prata; o período de
formação e de afirmação dos Estados nacionais após a Independência; a involução
da grande à pequena Argentina nessa fase; as independências de partes do Vice-
Reino do Prata e a idéia de reconstruí-lo em nova grande Argentina; o
pensamento geopolítico dos diferentes países; as medidas sanitárias tomadas com
base na rivalidade e não nos interesses da saúde dos povos, dificultando o
comércio; as disputas para atrair imigrantes, que colocavam em confronto as
diplomacias na Europa, foram problemas que o casal argentino-brasileiro teve de
enfrentar. O mesmo sucedeu diante das relações com a potência hegemônica,
Inglaterra ou Estados Unidos; diante das guerras mundiais; da solidariedade
continental; das funções da OEA; sobre o controle das águas; depois a corrida
armamentista e ainda a tecnologia nuclear, numa disputa pela hegemonia regional
que se tornaria num factor acrescido a espelhar visões geopolíticas
conflituais, particularmente quando estava em jogo o destino de pequenos países
como o Uruguai, o Paraguai e a Bolívia. Recentemente, a rivalidade manifestou-
se diante do papel dos Estados Unidos e dos Estados sul-americanos na solução
de conflitos internos ou bilaterais; na construção da zona de paz do Cone Sul
ou da unidade sul-americana de segurança. A rivalidade estendeu-se aos
conceitos de globalização, tida por benigna pelas elites argentinas durante o
governo Menem, por ambivalente e assimétrica pelo governo de Fernando Henrique
Cardoso no Brasil. Enfim, aflorou em detrimento dos processos de integração em
curso, diante do papel do Estado e das respectivas nações acerca do modo como
buscar soluções para os efeitos das crises provocadas pelas experiências
neoliberais, pela desvalorização do Real em 1999 e pela falência da Argentina
em 2001-2002.
Do mesmo modo, têm sido as relações em eixoargentino-brasileiras a impulsionar
a cooperação regional, através da criação do Estado do Uruguai, em 1828; do
apoio do Brasil à consolidação do mitrismo e da moderna república Argentina por
volta de 1860; do intenso e duradouro comércio bilateral; da aliança política
entre Getúlio Vargas e Domingo Perón; da aliança desenvolvimentista entre Jânio
Quadros e Arturo Frondizi. Nas décadas recentes, uma sucessão de manifestações
têm feito prevalecer a cooperação sobre o conflito, estendendo-a a outros
países e regiões da América do Sul, como o encontro de Uruguaiana de 1961,
entre Quadros e Frondizi, em razão da filosofia política de integração
económica que espelha; o Tratado da Bacia do Prata; o Tratado de Cooperação
Amazônica firmado em 1978 pelos oito países da região; o Acordo Tripartite de
1979; o Acordo para Aproveitamento Pacífico da Energia Nuclear firmado em 1980
entre Brasil e Argentina, ponto de partida de uma série de medidas de confiança
mútua; os Doze Protocolos de Cooperação de 1986; enfim, o Tratado de 1991 que
criou o Mercosul e as iniciativas recentes de configuração de uma Comunidade
Sul-Americana de Nações. Daqui, a observação da necessária convivência e a
consciência do conflito necessário geram as sinergias que acabam moldando as
relações em eixo estendidas a toda a região.
Criado o Mercosul em função do papel de liderança desempenhado pelo Brasil e
pela Argentina, no seio do Cone Sul, estes Estados assumem-se como o eixo
central de todo o processo, funcionando como centro de gravitação da unidade da
América do Sul, cuja defesa torna-se hoje vigorosa, por oposição às Américas
Central e do Norte. Processo estimulado pela acção propulsora concretizada pelo
relacionamento bilateral dos líderes argentino-brasileiros. Assim, o
entendimento Rio Branco-Sáenz Peña, Vargas-Perón, Kubitschek-Frondizi, Goulart-
Frondizi, bem como dos governos militares, Castelo Branco-Ongania, Costa e
Silva-Ongania, Figueiredo-Videla e, depois, de Sarney-Alfonsín, Collor de Melo-
Alfonsín, foi de extrema importância para a existência e consolidação das
relações em eixo argentino-brasileiras, em virtude da compreensão de que a
cooperação binacional seria a melhor estratégia a adoptar para, a cada momento,
garantir a satisfação dos interesses nacionais. Menos relevantes, as parcerias
Itamar Franco-Menem e Fernando Henrique Cardoso-Menem saldaram-se por um avanço
bem mais lento da integração mercosulina, que basicamente se ficou a dever ao
funcionamento das engrenagens anteriormente postas em marcha, embora Lula e
Kirschner, o primeiro empossado em março de 2003 e o segundo em dezembro do
mesmo ano, tenham conferido especial atenção ao aprofundamento das relações
regionais, das quais sobressaem as relações em eixo que os unem.
Na verdade, na tentativa de superar os dilemas do Estado Normal, neoliberal, a
Argentina e o Brasil viram-se um para o outro, buscando uma inserção
internacional logística que recupere a autonomia decisória temporariamente
perdida, aceite a interdependência e actue internamente segundo os parâmetros
desenvolvimentistas, transferindo, para a sociedade civil, as responsabilidades
empresariais e a iniciativa económica, ainda que gerida por um Estado forte e
intervencionista na medida do necessário8.
Neste âmbito, a América do Sul surge, para ambos, como espaço geopolítico
prioritário dos respectivos projectos nacionais e, dentro destes, as suas
relações em eixo, especialmente no sentido de edificar um espaço regional
integrado no sub-continente. Preservar, aprofundar e alargar o Mercosul surge,
nesta lógica, como o vector essencial das relações em eixo argentino-
brasileiras, contexto no qual a Venezuela, a Colômbia e o Chile ganham
prioridade, numa valorização do conceito de América do Sul que ultrapassa o
recorrente América Latina, individualizando-se os dois projectos que existem
para as Américas: a expansão radical do Nafta sob hegemonia norte-americana; e
a América do Sul, da Colômbia à Terra do Fogo, integrada num espaço económico
resultante de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade
Andina. De modo que o Mercosul se transforme num dos pólos do sistema
internacional multipolar. Torna-se fundamental, deste ponto de vista, evitar-se
a concretização da Área de Livre Comércio das Américas, única forma de o Brasil
e a Argentina resguardarem a respectiva autonomia, bem como da América do Sul.
Conclusão
Fenômeno multidimensional, que pode decompor-se em várias ordens de apreciação,
a integração regional tem, como substrato sobre o qual se gera, alarga,
aprofunda e ganha consistência, o das relações em eixo, ainda que a integração
bi-nacional arquitectada entre as duas potências regionais analisadas tenha,
desde o início, contado com a participação de sócios menores, o que, se era
amplamente desejado na Europa, não era objectivado no Cone Sul. Num caso como
no outro, a passagem do bi ao multinacional manteve, todavia, no cerne dos
processos regionais de integração, o papel central das relações em eixo, que
logram ultrapassar as dificuldades que se lhes vão surgindo e alcançar os
êxitos que erguem estes projectos a exemplos paradigmáticos da integração
regional.
É verdade que, para superar e contornar obstáculos é necessária uma
predisposição para a negociação lenta e paciente, sendo certo que o modelo das
relações em eixo pode ampliar-se à esfera mundial se, como novo conceito
paradigmático, contribuir para a configuração de um mundo multipolar, porém
organizado em estruturas hegemónicas que estabelecem, como objectivo de acção,
a manutenção das posições dominantes que conduz à perpetuação das assimetrias
entre os Estados. Deste modo, na América do Sul, a expansão das relações em
eixo poderá ser amplamente vantajosa. Se, pelo Cone Sul, as relações em eixo
são avaliadas como impulsionadoras do processo de integração, do lado da
Venezuela e do Chile podem surgir como oportunidade para robustecer outros
eixos bilaterais de impacto sobre a respectiva vizinhança e forma de operar as
vantagens comparativas e ampliar as capacidades de poder. Na sua essência, as
relações em eixo podem, hoje, ser extremamente úteis como modo dos países da
região ultrapassarem a crise das experiências neoliberais que provocaram a
deterioração dos respectivos indicadores económicos e de bem-estar.
O retorno a soluções nacionais, nos moldes de Roberto Lavagna e Néstor Kirchner
na Argentina, representa uma tentativa válida à luz dos efeitos benéficos das
experiências desenvolvimentistas do passado, e não é incompatível com o
paradigma das relações em eixo, mesmo porque, perante o desencanto face à
globalização, recupera-se o papel condutor do Estado pela via do comportamento
logístico, sugerindo as relações em eixo recuperar, neste sentido, a essência
política de um processo de integração que foi abandonado em razão das
directrizes neoliberais9.
Na Europa, as relações em eixo podem funcionar como elemento para robustecer
outros eixos que contribuam para a coesão da União Europeia a 25, operando
igualmente vantagens comparativas e, por conseguinte, ampliando as capacidades
de poder. Na sua essência, as relações em eixo também podem, na União Europeia
alargada e suspensa nas contradições impostas pelo engano constitucional,
funcionar como proposta de saída do impasse, promovendo a compreensão da
necessidade do alargamento como garantia da paz continental.
De facto, mesmo que existam divergências entre os Estados unidos por relações
em eixo, mesmo que muitas vezes o acordo seja difícil de alcançar entre si,
mesmo que a cooperação bilateral nem sempre seja tão profícua quanto desejável,
a verdade é que estas divergências e dificuldades, em lugar de enfraquecer as
relações em eixo, constituem testes à capacidade e vontade políticas dos
Estados assim unidos em fortalecer tais relações mútuas especiais, o que sugere
a conceptualização das relações em eixo como novo conceito paradigmático da
Teoria das Relações Internacionais.
1. O presente trabalho baseia-se extensivamente na tese de Doutorado da autora,
As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras
Génese dos Processos de Integração, apresentada no Programa de Doutorado do
Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, em dezembro
de 2005.
2. Cfr. SMOUTS, Marie-Claude; As Novas Relações Internacionais: Práticas e
Teorias, Editora UnB, tradução de Georgete M.Rodrigues, 408 páginas, ISBN 85-
230-0810-1, 1ª edição brasileira, Brasília DF, 2004, pp.146, citando COX, Robert; The New Realism. Perspectives on Multilateralism
and World Order, New York, United Nations University Press, 1997.
3. Cfr. ARON, Raymond; Paz e Guerra entre as Nações, Colecção Clássicos do
Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Imprensa Oficial do Estado,
Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais IPRI, tradução de Sérgio Bath,
Editora da UnB, Brasília DF, 2002, p. 99.
4. Cfr. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, 3rd edition,
Library of Congress Cataloging in-Publication Data, Longman Editions, New York,
2001.
5. Cfr. KRASNER, Stephen; International Regimes, edited by Peter Katzenstein,
Cornell University Press, 8th Edition, Ithaca, USA, 1995.
6. Cfr. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende; Consciência Histórica e Construção
de Identidade. Elementos Comparativos entre a Experiência Europeia e a Latino-
Americana, in RIBEIRO, Maria Manuela Tavares (coord.); Identidade Europeia e
Multiculturalismo, Actas do Curso Intensivo (26 de fevereiro a 7 de março de
2002) realizado na Universidade de Coimbra, Colecção Estudos sobre a Europa
nº2, Edição da Quarteto, 1ª Edição, Coimbra, junho de 2002, p. 211-254, p. 222-
228; MARTINS, Estevão Chaves de Rezende; Relações
Internacionais Cultura e Poder, Instituto Brasileiro de Relações Internacionais
(IBRI), UnB, Universidade de Brasília, com o apoio da Fundação Alexandre de
Gusmão (Funag), 183 páginas, Brasília DF, 2002; e PFETSCH,
Frank; A União Européia História, Instituições, Processos, Colecção Relações
Internacionais, tradução de Estevão C.R.Martins, Editora UnB, 1ª Edição,
Brasília DF, outubro de 2002, p.15-67.
7. Cfr. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende; A Construção da União Européia: Uma
Questão de Princípios, julho de 2002, 12 páginas, exemplar não publicado
gentilmente cedido pelo autor, p.10.
8. Cfr. CERVO, Amado Luiz; Relações Internacionais da América Latina Velhos e
Novos Paradigmas, Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI),
Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília DF, 2001. Vide também
CERVO, Amado Luiz; Paradigmas de Política Exterior do Brasil, RBPI, ano 46, nº
2, 2003, p.5-25.
9. Cfr. CERVO, Amado Luiz; Política Exterior e Relações Internacionais do
Brasil: Enfoque Paradigmático, RBPI, ano 46, nº 2, 2003, p.5-25, p.22.