"Quem tem razão, Kant ou Stendhal?" uma reflexão sobre a crítica de Nietzsche à
estética de Kant
I
No capítulo 6 do Terceiro Ensaio da "Genealogia da Moral" ' onde se trata da
questão do "interesse" e da concepção kantiana e schopenhaueriana do juízo
estético como um juízo "desinteressado" ', Nietzsche repensa "o problema
estético" como uma oposição entre Kant e Stendhal (GM III 6). Segundo diz, uma
das razões por que Kant (tal como, depois, Schopenhauer) pôde interpretar o
juízo "isto é belo" como um juízo desinteressado foi o facto de ter pensado a
arte e a experiência estética do ponto de vista do "espectador", e não sob a
óptica da criação artística, i.e. não sob a óptica do artista:
[...] a única coisa que quero sublinhar é que Kant, como todos os
filósofos, em vez de encarar o problema estético a partir das
experiências do artista (do criador), conduziu a sua reflexão sobre a
arte e o belo estritamente a partir do ponto de vista do
'espectador', e que, desse modo, sem se dar conta, introduziu o
próprio 'espectador' dentro do conceito de 'belo'. Se ao menos os
filósofos do belo conhecessem bem este 'espectador'...! Ou seja, se
conhecessem nele uma experiência pessoal grande, um facto pessoal
grande, uma enorme quantidade de vivências, de desejos, de surpresas,
de encantamentos singulares e intensos, no plano do belo! Mas temo
bem que tenha acontecido sempre o contrário: e assim, o que têm para
nos dar são, desde o princípio, definições em que a falta de uma
experiência pessoal com alguma subtileza reveste a forma do verme
gordo que habita as regiões do erro radical, como acontece com a
famosa definição kantiana do belo. 'Belo', diz Kant, 'é o que agrada
desinteressadamente'. Desinteressadamente! Compare-se com esta
definição uma outra, dada por um verdadeiro 'espectador' e artista,
Stendhal, que a certa altura chama ao belo 'une promesse de bonheur'.
Ao menos aqui recusa-se e elimina-se precisamente a única coisa que
Kant destaca no estado estético: le désintéressement. Quem tem razão,
Kant ou Stendhal? (GM III 6)
Se pensarmos o "espectador" como espectador interessado e se pensarmos o seu
interesse no belo a partir da óptica do artista, i.e. da óptica da criação do
belo, chegamos à definição do belo como "uma promessa de felicidade". O que
significa esta ideia de uma "promessa de felicidade"?
A chave está obviamente no famoso conceito de "cristalização", criado por
Stendhal:
Aquilo a que chamo cristalização é a operação do espírito que em tudo
o que se lhe apresenta descobre que o objecto amado tem novas
perfeições. [...]
Este fenómeno, a que me permito chamar cristalização, provém da
natureza, que nos ordena que tenhamos prazer e faz subir o sangue
para o cérebro com o sentimento de que os prazeres aumentam com as
perfeições do objecto amado, e com a ideia: ela é minha.1
O "amor-paixão" depende fundamentalmente desta "operação do espírito" que
descobre em todos os acontecimentos e circunstâncias (mesmo naquelas que, de
outro modo, seriam consideradas negativas) sinais de novas perfeições do
objecto amado. A sua intensidade depende não tanto da admiração, da esperança e
da proximidade que geram a "primeira cristalização" quanto da dúvida e da
distância, que resultam da "segunda cristalização". Nesta, o espírito oscila
entre o "sim, ela ama-me" e o "será que ela me ama?", mas a imaginação forma um
tal sentimento das "perfeições" do objecto amado, i.e. da sua beleza, que essa
dúvida tem sempre como pano de fundo a certeza: "ela vai proporcionar-me
prazeres que só ela em todo o mundo me pode proporcionar".2 É neste sentido que
o belo é uma "promessa de felicidade": o belo só se manifesta num objecto que,
de uma forma ou de outra, se tornou um "objecto amado", e só se manifesta nele
na medida em que ele se constitui como "promessa", como signo de uma felicidade
por vir, como um sinal de prazeres que se imagina só poderem vir a ser
proporcionados por esse objecto-amado (pelas suas supostas "perfeições"), e por
nada mais.
Stendhal é um dos poucos autores sobre os quais Nietzsche se pronuncia de forma
sempre positiva, e poucos conceitos parecem ter despertado nele uma admiração
tão incondicional como o de amour-passion.3 De facto, a interpretação do amor-
paixão como cristalização tem imediatamente uma série de implicações anti-
schopenhauerianas ' e, em última análise, anti-niilistas ' que são
particularmente apelativas para Nietzsche. Podemos, talvez, sistematizá-las da
seguinte forma:
1. O conceito de cristalização faz depender a beleza do amor, até do amor-
paixão, e está portanto nos antípodas da concepção do belo como objecto de uma
contemplação desinteressada.
2. O conceito de cristalização permite pensar o belo artístico e a própria arte
a partir da experiência do amor-paixão e do sentimento de que a mulher amada é
bela. No fundo, identifica as duas experiências: do ponto de vista psicológico
(ou "fisio-psicológico"), a arte é em tudo semelhante ao amor-paixão, o amor-
paixão é em tudo semelhante à experiência da contemplação e da criação
artísticas.
3. O conceito de cristalização permite pensar o desejo como uma forma de
prazer: se o desejo é uma "falta", isso não implica, ao contrário do que
sustenta Schopenhauer (e, por exemplo, a personagem Sócrates no "Górgias" de
Platão), que o desejo seja "dor". Na própria dúvida e na distância, o
apaixonado tem o mais intenso dos prazeres ao imaginar as "perfeições" do
objecto amado e ao antecipar os prazeres únicos (ou a felicidade) que elas
prometem. Quer na arte, quer no amor-paixão, o desejo já é prazer ' ou, na
terminologia de Nietzsche, é em si mesmo uma forma de Rausch, de "embriaguez",
"intoxicação", "êxtase".
4. O conceito de cristalização permite pensar o belo como uma projecção, no
fundo como o efeito da representação das perfeições que a imaginação do
apaixonado (ou, no caso da arte, a imaginação do artista primeiro, a imaginação
do espectador depois) projecta no objecto amado. (Veremos adiante que o belo é
para Nietzsche uma projecção no sentido de um antropomorfismo que projectamos
nas coisas e que nos devolve uma imagem da nossa própria perfeição).
5. Na verdade, o conceito de cristalização antecipa a ideia de que a
contemplação do espectador é um acto criativo e deve ser pensada do ponto de
vista do artista como criador. Mesmo a "primeira cristalização" não resulta de
uma percepção passiva, mas já de uma "operação do espírito" em que a imaginação
está activa e, de forma espontânea e sem intenção consciente, não só destaca
como aumenta determinadas propriedades do objecto amado ' "cristaliza-as",
transformando-as em "perfeições" deste objecto. No único passo em que Nietzsche
usa o termo "cristalização" ' uma nota póstuma de 1880-1881 ', põe em relevo
precisamente este aspecto, perguntando-se se a cristalização implica uma
determinada forma de mentira (o auto-engano) e de criação de erros: "Mas quando
deixamos as nossas paixões crescer, com isso cresce também, como sabemos, a
'cristalização': ou seja, tornamo-nos desonestose entregamo-nos livremente ao
erro?" (KSA 9. 391, 8[40]).
6. Por fim, e na sequência do ponto anterior, o conceito de cristalização
permite pensar um fenómeno que é crucial para Nietzsche, e que já referimos no
capítulo 3: a "espiritualização" (Vergeistigung), "sublimação" (Sublimieren),
ou "refinamento" (Verfeinerung) das pulsões, e em particular da pulsão sexual.
O processo de surgimento do amor-paixão é um típico processo de
espiritualização, quer nos casos em que principia apenas com um primeiro olhar,
quer nos casos em que corresponde, por exemplo, a uma progressiva transformação
de um "amor-prazer", de um "amor físico", ou de um "amor-vaidade". A
espiritualização de uma pulsão, no sentido nietzschiano do termo, é algo
totalmente diferente do que Schopenhauer descreve como a passagem do
"interesse" ao "desinteresse" (à impessoalidade, imparcialidade e
universalidade). A espiritualização nietzschiana é um processo de
interiorização, e não de des-afectação. Uma pulsão torna-se mais "espiritual"
quando é, por assim dizer, refeita por uma multiplicidade de actos de
imaginação e conceptualização que a intensificam. Por um lado, a nossa relação
com o objecto torna-se mais distante ' pois é mediada por imagens e conceitos
que se formam em novos afectos, bem como em novos sentimentos, volições e
pensamentos conscientes ', mas, por outro, torna-se mais intensa, num certo
sentido mais próxima ' pois tudo acontece como se o espírito se estivesse a
apropriar do objecto da pulsão, a "interiorizá-lo". O que de todo não acontece
é que a pulsão seja temporária ou permanentemente erradicada (como supostamente
acontece na passagem do "interesse" ao "desinteresse", bem como em certas
concepções da "sublimação" do desejo). É ainda elaque é espiritualizada, são os
seus afectos inconscientes e sentimentos conscientes que se intensificam e o
seuobjecto que é interiorizado. Pode, de facto, falar-se aqui de uma
intensificação do desejo ' portanto do contrário do que seria a erradicação do
desejo implicada na contemplação desinteressada.
Embora, como dissemos, Nietzsche só use o termo "cristalização" numa nota
póstuma, são muitos os passos em que pensa a arte a partir do fenómenoda
cristalização. Assim é, sobretudo, no "Crepúsculo dos Ídolos" e em diversas
notas de 1887 e 1888, onde a "embriaguez" (Rausch) se torna o termo-chave para
designar a "pré-condição fisiológica" (CI Incursões 8) da arte e de toda a
criação e contemplação estética e artística. A embriaguez, defende Nietzsche,
tem muitas formas (há, por exemplo, a embriaguez da festa, da competição, da
vitória, dos narcóticos, da crueldade ou da vontade), mas a principal (a "mais
antiga e mais originária") é a embriaguez da "excitação sexual" (CI Incursões
8). Em todas as suas formas, a embriaguez torna possível a arte porque é um
"idealizar", é uma pulsão para "tornar perfeito", um processo "fisio-
psicológico" de cristalização de perfeições:
O essencial na embriaguez é o sentimento de intensificação da força e
do preenchimento. Com este sentimento damo-nos às coisas, obrigamo-
las a tomarem-nos, violentamo-las,' chama-se a este processo
idealizar. Libertemo-nos aqui de um preconceito: o idealizar não
consiste, como geralmente se crê, em subtrair ou eliminar o que é
pequeno, o acessório. O decisivo é, antes, um tremendo pôr em
destaque das características principais, de tal forma que as outras
desaparecem. (CI Incursões 8)
Neste estado, o nosso preenchimento faz que tudo aumente: o que
vemos, o que queremos, vêmo-lo inchado, repleto, forte,
sobrecarregado de força. O ser humano que se encontra neste estado
transforma as coisas, até que o seu poder se acha espelhado nelas,'
até que elas se tornam reflexos da sua perfeição. Este ter de
transformar em perfeito é ' a arte. Mesmo tudo aquilo que o ser
humano não é se torna, apesar disso, um prazer que ele tem consigo
mesmo; na arte, o ser humano desfruta de si mesmo como perfeição. (CI
Incursões 9)
Aqui, torna-se clara pelo menos uma parte do que Nietzsche quer dizer quando
critica as teorias estéticas que pensam a arte do ponto de vista do espectador
e não do artista. Só se pensarmos do ponto de vista da fisio-psicologia do
criador perceberemos realmente que a arte é este tornar-perfeito, idealizar,
violentar as coisas de forma a destacar nelas determinadas perfeições e fazer
surgir o sentimento de que elas são belas. Esse ponto de vista é, ao mesmo
tempo, o ponto de vista do apaixonado e da sua embriaguez ' um ponto de vista
no qual o próprio desejar é já o mais intenso dos prazeres porque, ao projectar
no objecto-amado todas as perfeições e ao antecipar a felicidade que estas
prometem, permite àquele que assim deseja desfrutar de si mesmo como perfeição.
As notas póstumas sublinham a natureza eminentemente sexual desta embriaguez,
no fundo o facto de a arte e o amour-passionserem espiritualizações da pulsão
sexual. Eis dois exemplos:
[...] os artistas, quando são bons, têm uma disposição forte (também
de corpo), excessiva, são animais de força, sensuais; sem um
sobreaquecimento do sistema sexual um Rafael é impensável... [...]
os artistas não devem ver as coisas como elas são, mas de forma mais
cheia, mais simples, mais forte: para tal, têm de ter no corpo uma
forma de eterna juventude e primavera, uma forma de embriaguez
habitual. (KSA 13. 293, 14[117])
[...]para a génese da arte. Aquele tornar-perfeito, ver-como-
perfeito, que é próprio de um sistema cerebral sobrecarregado de
forças sexuais (a noite passada com a amada, as mais pequenas
casualidades transfiguradas, a vida uma sucessão de coisas sublimes,
'a infelicidade dos amantes infelizes considerada como a coisa mais
importante de todas'): por outro lado, tudo o que é perfeitoe belo
como lembrança inconsciente desse estado de paixão e do seu modo de
ver ' cada perfeição, toda a belezadas coisas evoca por contiguitya
felicidade afrodisíaca. Fisiologicamente: o instinto criador do
artista e a distribuição do sémen pelo seu sangue... O anseio por
arte e belezaé um anseio indirecto pelos êxtases da pulsão sexual,
que esta comunica ao cérebro. O mundo tornado perfeito, através do
'amor'... (KSA 12. 325-326, 8[1])
No "Crepúsculo dos Ídolos", esta relação entre a sexualidade e a arte é tornada
explícita de diversas formas. Uma delas é a reformulação da oposição "Stendhal
contra Kant" como uma oposição entre Platão e Schopenhauer. Nesta oposição,
Platão está do lado de Nietzsche e Stendhal ' pois, ao contrário de
Schopenhauer (e de Kant), concebe a beleza como o objecto de eros. Nos passos a
que me refiro (CI Incursões 21-23), Nietzsche começa por criticar Schopenhauer
por ter usado todas as "contra-instâncias" da desvalorização niilista da vida
para defender justamente esta desvalorização (CI Incursões 21). Entre essas
"contra-instâncias" (ou entre "as grandes auto-afirmações da 'vontade de
viver', as formas de exuberância da vida"), conta-se a beleza, que Schopenhauer
interpretou como uma "ponte" para a negação da vida e da vontade, como uma
possibilidade de salvação ou redenção "do 'foco da vontade', da sexualidade '
na beleza, ele vê a pulsão reprodutora negada..." (CI Incursões 22). Tudo na
natureza contradiz esta tese: na natureza, a sexualidade e a beleza são
inseparáveis. Mas também Platão contradiz essa tese, nomeadamente ao defender
que só há beleza quando há eros e que toda a beleza é, portanto, "um estímulo à
procriação" (CI Incursões 22).4 A própria filosofia, segundo Platão, é no fundo
um "concurso erótico" (CI Incursões 23). Uma das falhas da modernidade é a
incapacidade de perceber este conceito de eros e a ligação entre a beleza e
fenómenos como a procriação, a reprodução ou a gravidez. É por isso que os
pensadores modernos, como Kant ou Schopenhauer, mas também os poetas modernos,
como Goethe, não podem perceber o sentido mais profundo da religiosidade grega,
que via o deus Dioniso como sendo "o símbolo sexual" e interpretava, não só a
embriaguez dionisíaca, mas também a própria vida à luz dos "mistérios da
sexualidade" (CI Antigos 4).5
Ao promover esta espécie de regresso ao erosplatónico e à embriaguez
dionisíaca, Nietzsche mostra a que ponto é radical a sua intenção de romper não
só com a estética schopenhaueriana, mas também com a estética kantiana. Por ter
pensado o belo apenas "a partir do ponto de vista do 'espectador'" e por não
ter podido reconhecer na experiência do espectador "uma experiência pessoal
grande, um facto pessoal grande, uma enorme quantidade de vivências, de
desejos, de surpresas, de encantamentos singulares e intensos, no plano do
belo" (GM III 6), Kant fez do juízoestético o cerne da experiência estética e
interpretou esse juízo como sendo fundamentalmente um juízo crítico, um juízo
dotado da imparcialidade, impessoalidade e universalidade típicas da avaliação
crítica e da perspectiva científica: "Kant pensava que estava a conceder uma
honra à arte ao destacar e colocar em primeiro plano como predicados do belo
aqueles predicados que são a honra do conhecimento: a impessoalidade e a
validade universal" (GM III 6).
Para Nietzsche, pelo contrário, não só a experiência estética tem o carácter
profundamente pessoal de um "amor-paixão", como radica na mais básica das
pulsões e intensifica (em vez de suprimir) o mais básico dos afectos.
Mas não devemos dar razão a Kant? Não é o gosto que está em causa na
experiência estética, e não devemos entender o gosto estético como a faculdade
que nos permite fazer uma avaliação ou apreciação (Beurteilung) do belo, do
feio e do sublime? Como negar que essa apreciação só possa ser expressa e
comunicada num juízo? E, sobretudo, como negar que, no que respeita à arte, o
valor deste juízo dependerá sempre do seu grau de espírito crítico, portanto do
seu grau de imparcialidade, impessoalidade e universalidade? Se uma pessoa nos
comunica apenas a sua reacção afectiva a uma obra de arte, se nos fala apenas
da forma como esta a afectou pessoalmente ou se se refere à sua "beleza" como
um efeito emocional imediato, não temos qualquer motivo para valorizar o seu
juízo como juízo estético. O seu juízo estará ao mesmo nível de outros juízos
em que exprimimos um agrado ou desagrado sensorial, por exemplo em relação ao
sabor de um alimento ou ao cheiro de um perfume. Não esperamos de um juízo
estético que ele seja um veredicto definitivo formulado com conceitos
cientificamente verificáveis, mas esperamos, pelo menos, que ele seja uma
crítica (inteiramente positiva, inteiramente negativa ou mista) que possa
pretender ser comunicada a outrem e aceite por outrem ' e que portanto
nãoassente numa emoção apenas pessoal, pois esta é incomunicável por definição.
Dizer que "o anseio por arte e belezaé um anseio indirecto pelos êxtases da
pulsão sexual, que esta comunica ao cérebro", não é, ao invés, a forma mais
grosseira e redutora de entender a experiência estética? Fazer equivaler a
experiência estética à experiência do amor-paixão não elimina a dimensão
crítica da experiência estética, de tal forma que o efeito da obra de arte
passa a ser apenas algo que o espectador ou sente ou não sente? Devemos, de
facto, envolver o erosplatónico na experiência estética ou é preferível que
preservemos a concepção kantiana do juízo estético como uma avaliação crítica?6
O espólio de Nietzsche contém muitas notas com base nas quais se poderia
reconstruir uma teoria do juízo estético alternativa à de Kant, e talvez se
possa dizer que essa teoria está pressuposta em alguns passos cruciais da obra
publicada. Vejamos em que consiste esta teoria e de que modo ela pode ajudar a
esclarecer a oposição "Stendhal contra Kant".
II
Nietzsche concorda com Kant em que os nossos juízos estéticos são juízos de
gosto. Mas, por outro lado, introduz a ideia de que: a) há juízos instintivos e
devemos distingui-los dos juízos intelectuais; b) os juízos de gosto são
primariamente instintivos; e c) quando os juízos de gosto se tornam
intelectuais, dependem ainda (ou são contínuoscom) juízos instintivos. Numa
nota póstuma de 1887, por exemplo, Nietzsche diz o seguinte:
Aesthetica. Sobre a génese do belo e do feio. Aquilo que nos
repugnainstintivamente, esteticamente, é o que se comprovou ser
prejudicial, perigoso, digno de desconfiança no curso da mais longa
experiência do ser humano: o instinto estético (por exemplo, no asco)
que subitamente se exprime contém um juízo. Nessa medida o belo
pertence à categoria geral dos valores biológicos do útil, benéfico,
intensificador da vida: o que nos dá o sentimento do belo é uma
multiplicidade de estímulos que, à distância, nos lembram de, e
provocam associações com, coisas e estados úteis [...]. (KSA 12. 554,
10[167])
O sentimento de que algo é belo deriva, portanto, do instinto, mas tem a forma
de um juízo. Podemos chamar-lhe, de facto, um "juízo instintivo" (Instinkt-
Urtheil, KSA 12. 554, 10[167]). Numa nota de 1881, Nietzsche explica o que
entende por esta ligação entre instinto, juízo e gosto: "Falo de instinto
quando um qualquer juízo (ou o gosto no seu nível mais baixo) é incorporado, de
tal forma que ele agora se estimula espontaneamente a si próprio e já não
precisa de esperar por outros estímulos" (KSA 9. 505, 11[164]).
Os instintos são o produto "da mais longa experiência" da espécie humana, são o
que a espécie "incorporou" na sua evolução ao longo do tempo. Alguns instintos
são "automatismos" que resultam de experiências pessoais, mas mesmo esses devem
ser vistos como desenvolvimentos de pulsões, afectos, sensações e memórias que
se foram formando no curso do tempo-profundo da evolução da espécie.7 Os
instintos "já não precisam de esperar por estímulos" porque são, no fundo,
pulsões que se tornaram permanentemente activas, que constantemente procuram e
encontram satisfação em estímulos e, portanto, se estimulam a si próprias. E a
razão por que os instintos têm a forma de juízos é que, nesta sua permanente
actividade, dizem "sim" e "não" ' são afirmações e negações: avaliam umas
coisas como "prejudiciais, perigosas, dignas de desconfiança" e outras como
"úteis, benéficas, intensificadoras da vida". Dito de outro modo, os instintos
são juízos porque os afectos e os sentimentos que necessariamente acompanham a
sua actividade afirmam ou negam. Por exemplo: "[...] a dor [é] um juízo (um
juízo negativo) na sua forma mais tosca[,] o prazer é uma afirmação" (KSA 12.
256, 7[3]). Quer isto dizer que os instintos são juízos porque criam valores,
modificam outros valores, funcionam como avaliações ou apreciações, tais como
"xé belo" ou "x é feio". Assim, o gosto "no seu nível mais baixo" não é senão
um conjunto de juízos instintivos que discriminam e avaliam segundo o valor
"belo" (ou "o que é útil, benéfico, intensificador da vida") e o valor "feio"
(ou "o que é prejudicial, perigoso, digno de desconfiança").
Porém, como é óbvio, os juízos instintivos não são o único tipo de juízo que
existe. Na mesma nota de 1887 acima citada, Nietzsche estabelece o seguinte
contraste entre juízos instintivos e juízos intelectuais:
Todos os juízos instintivos têm vistas curtas no que respeita à
cadeia de consequências: aconselham sobre o que fazer primeiro. O
entendimento é essencialmente um aparelho de inibição contra a
reacção imediata ao juízo instintivo: ele retarda, continua a
reflectir, vê a cadeia de consequências até mais longe e durante mais
tempo.
Os juízos de beleza e fealdade têm vistas curtas ' têm sempre o
entendimento contra si ': mas são persuasivos no grau mais elevado:
apelam aos nossos instintos no ponto em que eles decidem mais
depressa e dizem o seu sim e não, antes de o entendimento poder usar
da palavra. (KSA 12. 554-555, 10[167])
Porque os instintos são "automatismos", ajuízam muito depressa e fazem-nos agir
antes de avaliarmos de forma consciente e racional as suas avaliações; o
"entendimento" (ou o "intelecto", no fundo a razão consciente) é precisamente
um "aparelho de inibição" que nos permite distanciarmo-nos do que
percepcionamos, reavaliarmos as nossas avaliações mais imediatas e ponderarmos
as consequências das nossas acções. Os juízos instintivos são, na verdade, algo
que sempre já aconteceu quando tomamos consciência deles, ao passo que os
juízos intelectuais (ou "sapientes") são processos conscientes, que levam o seu
tempo. Dado que têm esta natureza, chegam muitas vezes tarde demais, isto é, já
depois de termos agido em conformidade com um "sim" ou um "não" instintivo. Mas
não deixam por isso de ser os nossos melhores juízos: a sua lentidão torna-os
superiores do ponto de vista cognitivo.
O passo que acabámos de citar sugere também que todos os juízos instintivos são
juízos estéticos(i.e. juízos de gosto), e todos os juízos estéticos são juízos
instintivos. Os nossos juízos estéticos são sempre os que têm vistas mais
curtas, os nossos piores juízos? Há certamente aqui um mistério. Primeiro
porque Nietzsche apresenta muitas vezes os juízos instintivos como aqueles que,
por terem atrás de si uma longa história na evolução da espécie, garantem o
funcionamento normal e saudável do organismo, e os juízos intelectuais,
racionais e conscientes como juízos superficiais, que tendem a ser inibitivos a
ponto de porem em risco o próprio funcionamento do organismo.8 Depois porque na
obra de Nietzsche abundam os juízos estéticos intelectuais, longos raciocínios
e elaborações críticas sobre múltiplas obras de arte e os artistas que as
criaram. É evidente que há juízos estéticos que são intelectuais, juízos que
resultam do uso desse "aparelho de inibição" que trava as avaliações mais
imediatas e que as reavalia. Se o gosto "no seu nível mais baixo" é instintivo,
isso não exclui de forma alguma que o gosto seja também algo que se educa, algo
que se transforma com a reflexão e a acumulação de experiências diferentes '
algo sobre o qual o entendimento tem, portanto, influência. Por que razão
sugere então Nietzsche que todos os juízos estéticos são instintivos?
Podemos, talvez, começar a tentar responder a esta pergunta se considerarmos o
facto de, nos passos aqui em causa, Nietzsche procurar dar às palavras "belo" e
"feio" o sentido mais lato possível. A identificação entre juízos instintivos e
juízos estéticos pretende fazer do "belo" e do "feio" os valoresmais básicos da
nossa vida pulsional, e pretende fazer do gosto a nossa forma mais básica de
nos relacionarmos connosco mesmos e com o mundo. Numa outra nota de 1881,
Nietzsche escreve o seguinte: "Os juízos estéticos(o gosto, mal-estar, asco
etc.) constituem a base das tábuas de valor[ou 'tábuas de bens', Gütertafel].
Estas, por sua vez, são a base dos juízos morais" (KSA 9. 471, 11[78]).9
O que encontramos aqui é novamente a ideia de um continuum, que determina que
estados psicológicos mais complexos sejam superfícies, espelhos, instrumentos,
signos, sintomas de outros estados psicológicos mais simples, sendo os
primeiros, em regra, estados instintivos e inconscientes e os segundos, estados
conscientes que envolvem conceptualização e simbolização. Os juízos estéticos,
no seu nível mais elementar, são reacções imediatas ' reacções de mal-estar,
asco, mas também de prazer, agrado, etc.. Podemos dizer também que são o mesmo
que manifestações de um gosto ainda meramente instintivo, ou afirmações e
negações que, de forma imediata e instintiva, avaliam umas coisas como
"prejudiciais, perigosas, dignas de desconfiança" e outras como "úteis,
benéficas, intensificadoras da vida". Todas as tábuas de valor são
desenvolvimentos destas avaliações mais básicas, instintivas. Portanto, mesmo
os valores mais complexos e supostamente mais elevados ' os valores morais '
são ainda desenvolvimentos de avaliações instintivas sobre o que é, no sentido
mais lato do termo, "belo" ou "feio". Ou, dito de outro modo, os valores morais
são superfícies, espelhos, instrumentos, signos, sintomas de valores estéticos.
Quando se apresentam como algo válido "em si", continuam a ser, na verdade, uma
questão de gosto, simplesmente de um gosto mascarado por conceptualizações e
simbolizações cuja reificação gera a ilusão de um "em si", a ilusão de uma
absoluta independência em relação a avaliações estéticas instintivas.
Isto permite concluir já que não se trata, para Nietzsche, de reduzir o
estético ao instintivo, mas de defender que toda a complexificação, todo o
desenvolvimento conceptual e simbólico do instintivo é sempre ainda estético. A
sua ideia não é que não haja juízos estéticos intelectuais, mas sim que estes
juízos são desenvolvimentos conceptuais e simbólicos de outros juízos mais
básicos. Tanto assim é que até os juízos morais são também desenvolvimentos
destes juízos mais básicos (e, neste sentido, os juízos estéticos intelectuais
são como os juízos morais).
Assim se esclarece também por que razão Nietzsche parece fazer avaliações
contraditórias do valor dos juízos instintivos e dos juízos intelectuais. Os
juízos intelectuais são, no fundo, juízos instintivos que se tornaram
intelectuais, e dependem sempre ainda (ou são sempre ainda contínuoscom) dos
juízos instintivos a partir dos quais se desenvolveram. Assim, são meramente
inibitivos e chegam a pôr em risco o funcionamento normal do organismo apenas
quando as conceptualizações neles envolvidas entram em tensão com os juízos
instintivos a partir dos quais se desenvolveram ' ou seja, quando há uma
espécie de curto-circuito no continuume isto os impede de serem "incorporados"
(GC 11). Em contrapartida, a sua superioridade cognitiva é aproveitada, e não
desperdiçada, quando a sua acção inibidora logra integrar-se na acção dos
juízos instintivos pré-existentes ' i.e. quando ela transforma a constelação de
instintos que a sustenta e, por fim, o seu conteúdo se torna ele próprio
instintivo e inconsciente (ou é "incorporado").
Isto não significa, porém, que seja benéfica a incorporação de todosos juízos
intelectuais. Os mais básicos de entre os juízos instintivos, aqueles que fazem
o gosto "no seu nível mais baixo", resultam da longa evolução da espécie e são,
por isso, formas de protecção, preservação, afirmaçãoda espécie. Correspondem
àquilo a que Schopenhauer chama a "vontade de viver", cujo "foco", como
sabemos, é a sexualidade, o instinto reprodutor. Ora, sendo assim, os juízos
intelectuais que entram em curto-circuito com esses juízos instintivos mais
básicos são juízos que põem em risco a "vontade de viver" ' criam o tipo de
conflito e contradição interna que promove a negação da vida, e a que Nietzsche
chama décadence. Aqui o risco não está tanto no efeito perturbador da sua não-
incorporação quanto na sua incorporação. É esta incorporação que cria o tipo de
organização instintiva, pulsional e afectiva a que se pode chamar decadente,
negadora, auto-lesiva ' o tipo que determina que um ser humano possa escolher e
preferir aquilo que o prejudica enquanto espécime e enquanto indivíduo (AC 6).
III
É neste contexto que Nietzsche interpreta os juízos estéticos à luz da hipótese
da vontade de poder. Por exemplo, numa das notas póstumas acima citadas,
Nietzsche explica o "sentimento do belo", simplesmente, como sinónimo de um
"aumento do sentimento de poder" (KSA 12. 554, 10[167]), e na nota
imediatamente seguinte do mesmo caderno escreve que "seou onde<o> juízo 'belo'
é aplicado" é apenas "uma questão de força (de um indivíduo ou de um povo)" '
pois "o sentimento de poder aplica o juízo 'belo' também a coisas e estados que
o instinto da impotência desvalorizaria como sendo apenas merecedoras de ódio,
como 'feias'". Para esclarecer esta afirmação, Nietzsche acrescenta um
parêntesis em que diz que "'isto é belo' é uma afirmação" (KSA 12. 555-556, 10
[168]). Quando, no "Crepúsculo dos Ídolos", explica todos os sentimentos
estéticos através do conceito de embriaguez (Rausch) diz, como vimos, que o
essencial nesta embriaguez é "o sentimento de intensificação da força e do
preenchimento" (CI Incursões 8), ou seja, precisamente o crescimento do
sentimento de poder. O juízo estético "isto é belo" exprime, em suma, um
sentimento de embriaguez que é sinónimo de um crescimento do sentimento de
poder ' sinónimo de uma afirmação ou satisfação da vontade de poder dos
instintos mais básicos do organismo; o juízo "isto é feio" exprime um
sentimento depressivo que é sinónimo de um sentimento de impotência ' sinónimo
de uma negação ou insatisfação da vontade de poder daqueles instintos mais
básicos, em particular do instinto sexual.
É precisamente esta concepção dos juízos estéticos que está em causa num dos
passos mais importantes sobre todo este tema, o aforismo 19 das "Incursões de
um extemporâneo" no "Crepúsculo dos Ídolos":
Belo e feio. ' Nada é mais condicionado, digamos mais limitado, do
que o nosso sentimento do belo. Quem o quisesse pensar desligado do
prazer do ser humano no ser humano perderia imediatamente o chão sob
os seus pés. O 'belo em si' é uma mera palavra, nem sequer chega a
ser um conceito. No belo, o ser humano põe-se a si próprio como
medida da perfeição; em casos selectos, adora-se a si próprio. Uma
espécie não podesenão fazer isto: dizer 'sim' apenas a si própria. O
seu instinto mais básico, o instinto de auto-preservação e auto-
propagação, irradia ainda em tais sublimidades. O ser humano acredita
que o mundo é sobreabundante em beleza, ' mas esquece-se de que é ele
a causa disso. Foi apenas ele quem o dotou de beleza, mas, ah!, só de
uma beleza humana, demasiado humana... No fundo, o ser humano vê-se
espelhado nas coisas, toma por belo tudo aquilo que lhe devolve a sua
imagem: o juízo 'belo' é a sua vaidade da espécie... (CI Incursões
19)
Não existe o belo "em si", o belo, como já Kant havia demonstrado, é
"subjectivo". Para Nietzsche, esta sua subjectividade significa, contudo, que o
belo é relativo à espécie, só "existe" na medida em que o instinto mais básico
da espécie ' o instinto sexual como instinto de auto-preservação e auto-
propagação da espécie ' o faz aparecer nas coisas. É esse instinto que violenta
as coisas, que idealiza, que faz aparecer nas coisas (e primariamente em outros
espécimes) perfeições que geram o sentimento de que algo é belo. Este poder de
idealizar e fazer aparecer perfeições é o que, por fim, aparece espelhado nas
coisas que se sente serem belas, e isso quer dizer que tais perfeições são
reflexos, espelhos, imagens do sentimento da nossaperfeição, da nossabeleza, do
poder do instinto mais básico da nossaespécie.10 Portanto, a subjectividade do
belo significa que ele é um antropomorfismo, uma projecção antropomórfica ' a
"vaidade da espécie". E, se é assim, os juízos estéticos têm de facto vistas
curtas e não há nada "mais limitado do que o nosso sentimento do belo": as
avaliações que nos dizem que algo é belo (ou feio) nunca nos levam além de nós
mesmos enquanto espécimes de uma dada espécie, nunca são mais do que
espelhamentos ou reflexos do nosso sentimento de poder (ou de impotência).
Mas é neste ponto-chave que devemos ter a máxima cautela interpretativa. Se o
belo é um reflexo do nosso sentimento de poder enquanto espécimes, então o
sentimento do belo é o sentimento afirmativo por excelência ' é a própria
afirmação da vida, pelo menos enquanto afirmação da vida da espécie. A tese de
que o juízo e o sentimento do belo são apenas a "vaidade da espécie" parece, à
primeira vista, um simples sarcasmo, mas ela identifica a fonte de todas as
formas de afirmação da vida; e a tese de que o belo é apenas uma idealização ou
uma projecção antropomórfica parece reduzir o belo a uma ilusão, mas também
nela se trata de identificar a actividade criativa que torna possíveis todas as
formas de afirmação da vida. Mas não seria maximamente contraditório que
Nietzsche quisesse fazer pouco da afirmação da vida e dos seus pressupostos?
Na continuação do aforismo 19 das "Incursões de um extemporâneo", Nietzsche
sugere justamente que o aforismo esconde uma espécie de segredo. Um céptico,
explica Nietzsche, diria simplesmente que o belo é de facto apenas um
antropomorfismo e uma ilusão. Mas imaginemos um "juiz do gosto" mais elevado:
por exemplo, o deus Dioniso num diálogo com Ariane. Se Dioniso (que é, por
excelência, o deus da afirmação da vida) ouvisse dizer que o belo é apenas um
ilusão, puxaria as orelhas a Ariane (que representa aqui o ser humano) e diria:
"As tuas orelhas têm uma certa graça, Ariane: por que não são maiores?" (CI
Incursões 19). Precisamos, portanto, de ouvir melhor o que Nietzsche quer
dizer.
IV
Pelo menos à superfície, a posição do céptico no aforismo 19 das "Incursões de
um extemporâneo" lembra mais um aspecto da filosofia de Schopenhauer ' e faz
pensar numa das mais estranhas contradições (ou, pelo menos, aparentes
contradições) da sua obra. Schopenhauer defende, por um lado, como vimos, que o
belo só pode ser o objecto de uma contemplação desinteressada, mas, por outro,
defende que o belo é algo que certos espécimes vêem noutros espécimes porque o
seu instinto sexual os programou para terem este comportamento. O belo faz
parte da ilusão e do delírio que a espécie plantou nos indivíduos que a
constituem para os convencer a reproduzirem-se, i.e. a assegurarem a
preservação da espécie. A "vontade de viver" é a vontade da espécie, e o belo é
o engodo que a espécie utiliza para que os espécimes satisfaçam essa vontade (e
não a sua própria vontade ou o seu interesse enquanto indivíduos).11 Há, de
facto, aqui uma pura contradição, ou Schopenhauer distingue dois sentidos de
belo? Num primeiro sentido, o belo seria, por assim dizer, um evento natural '
uma projecção antropomórfica e uma ilusão subjectiva induzida pelo instinto
sexual ', mas, no seu sentido propriamente estético, seria o efeito apenas
cognitivo ou espiritual da contemplação da pura forma dos objectos. Esta
contemplação seria precisamente uma libertação da suposta tirania do instinto
sexual.
Nietzsche não aceita que esta libertação exista. É essa a sua objecção à ideia
de contemplação desinteressada. Mesmo a contemplação estética aparentemente
mais desinteressada é ainda um "anseio indirecto pelos êxtases da pulsão
sexual" (KSA 12. 325-326, 8[1]). Mas significa isso que Nietzsche não reconhece
qualquer valor à passagem de um anseio directo pelos êxtases da pulsão sexual a
um anseio indirecto? A sua tese é que estamos para sempre presos à "vaidade da
espécie" e não há qualquer possibilidade de nos libertarmos das nossas
avaliações mais básicas? A sua ideia é a de que ou afirmamos a vida da forma
mais instintiva e animal, ou então negamos a vida porque determinados juízos
intelectuais perturbam a saúde animal do nosso organismo e nos tornam
decadentes?
Temos de responder "não" a todas estas perguntas se nos recordarmos do que
vimos acima sobre o fenómeno da espiritualização e da transformação do instinto
sexual em amor-paixão. Dissemos que Nietzsche entende a espiritualização dos
instintos ou das pulsões como um processo de interiorização que as intensifica.
Esta espiritualização distingue-se da contemplação desinteressada porque não
nos des-afecta. Pelo contrário, potencia os afectos, gera embriaguez. Talvez
não haja na obra de Nietzsche uma imagem mais clara do significado desta
espiritualização das pulsões do que a imagem do "pathosda distância" no
aforismo 257 de "Para além do Bem e do Mal". Este pathosdesigna, em primeiro
lugar, a psicologia de uma das partes de um dado tipo de relação social,
nomeadamente a psicologia do aristocrata que olha de cima para os seus
inferiores na escala social, crê que esta escala social reflecte uma verdadeira
diferença de valor e, por isso, sente uma enorme distânciaentre si e todos
aqueles que considera seus "súbditos e instrumentos" (BM 257). O aforismo diz
que este pathossocial é a pré-condição de um "outro pathosmais misterioso", um
pathosda distância apenas interior ' que não tem, portanto, esse cariz social e
ocorre apenas "dentro da própria alma" (BM 257). Aquele pathossocial é
sobretudo uma imagem deste outro pathosapenas interior, e podemos abstrair aqui
da discussão sobre se um é realmente a pré-condição do outro. A ideia
fundamental que nos importa reter é a de que o desenvolvimento do espírito, a
espiritualização ou sublimação das pulsões e dos afectos, é um processo que
gera um pathosde distância semelhante àquele que o aristocrata sente em relação
aos seus inferiores na escala social. Nietzsche descreve assim este pathos de
distância interior:
[...] um anseio que exige um alargamento sempre novo da distância
dentro da própria alma, o desenvolvimento de estados sempre mais
elevados, mais raros, mais longínquos, mais abrangentes, mais amplos,
em suma: precisamente a elevação do tipo 'ser humano', a contínua
'auto-superação do ser humano', para usar uma expressão moral num
sentido supra-moral. (BM 257)
A espécie humana tem esta estranha natureza. Há muito que a sua evolução passou
a ser fundamentalmente a evolução do seu espírito. Como Nietzsche bem sabia,
"evolução" é um termo neutro, que não implica em si mesmo nem progresso nem
elevação. Uma espécie pode evoluir no sentido da sua expansão, mas também pode
evoluir no sentido da sua decadência. No caso da espécie humana, as suas
possibilidades de expansão ou decadência estão no espírito ' a elevação do tipo
'ser humano', a contínua 'auto-superação do ser humano' é uma questão do
espírito, do alargamento ou do estreitamento da distância dentro da própria
alma. Fisiologicamente, a evolução da espécie é sempre a evolução das suas
pulsões, afectos e instintos, mas esta evolução depende em grande medida das
conceptualizações e simbolizações que, por um lado, emergem dessas pulsões,
afectos e instintos, por outro, os modificam, os reconfiguram, os atrofiam ou
libertam. O tipo de consciência que nos caracteriza ' um tipo de consciência
que envolve conceitos, palavras e outros "signos de comunicação" (GC 354, BM
268) ' distingue-nos, de facto, dos outros animais e, em última análise,
distingue-nos deles porque cria distância, isto é: porque os conceitos, as
palavras e os signos de comunicação que a constituem tornam possível uma
constante reavaliação das nossas avaliaçõesmais imediatas.
Sendo certo que, para Nietzsche, uma tal reavaliação nunca é afectiva ou
pulsionalmente neutra (nunca é "desinteressada"), não é menos certo que ela
ocorre e que depende em parte da consciência sapiente. A espiritualização das
pulsões, dos afectos e dos instintos consiste nesta sua modificação por meio da
consciência ' uma modificação que gera um pathosde distância porque implica um
processo de reavaliação de outras avaliações e, portanto, distância em relação
a estas outras avaliações. Quando este processo gera reavaliações que entram em
curto-circuito com os instintos mais básicos e dão origem a comportamentos
auto-lesivos e negadores da vida, ele é um processo de décadence; quando gera
reavaliações que, pelo contrário, expandem o sentimento de poder e intensificam
a afirmação da vida, é um processo de elevação e auto-superação do ser humano.
Consideremos o caso do amor-paixão. Nietzsche diz expressamente que o amor-
paixão é uma espiritualização da pulsão sexual (KSA 12. 537, 10[144]). Nesta
espiritualização, o objecto em que a pulsão se fixa é "interiorizado": a
imaginação põe em marcha conceptualizações e simbolizações que geram uma
multiplicidade de sentimentos, volições e pensamentos conscientes nos quais
esse objecto (por exemplo, a mulher amada) aparece como sendo muito mais do que
apenas um objecto que pode satisfazer aquele que seria em princípio (ou que
seria inicialmente) o alvo ou a meta da pulsão (i.e. o acto sexual). Este alvo
(Ziel) é, portanto, radicalmente modificado pelo processo de interiorização '
torna-se mais complexo, e também mais difuso: em vez do simples acto sexual,
ele é agora a felicidade prometida pelas perfeições que se cristalizam na
imagem que o apaixonado faz da mulher amada. Obviamente, este é um processo de
interiorização e espiritualização porque tudo se passa "dentro da própria
alma", no "espírito", no desenvolvimento de determinadas imagens, conceitos,
palavras, sentimentos, volições e pensamentos. Este desenvolvimento escapa ao
controloda consciência, mas não é possível sem ela, e a imaginação tem aqui um
papel crucial, mas apenas enquanto um tipo de imaginação que, por um lado, gera
palavras e conceitos, por outro é constantemente estimulada e modificada por
palavras e conceitos. Sem palavras e conceitos ' sem a forma de consciência
humana ' a imaginação não teria o poder transformador que adquire na construção
de um amor-paixão. Mas o que isso verdadeiramente significa é que sem essa
forma de consciência não pode haver a reavaliaçãodo valor do alvo inicialmente
visado pela pulsão sexual, não pode haver "o desenvolvimento de estados sempre
mais elevados, mais raros, mais longínquos, mais abrangentes, mais amplos".
Estes estados são um pathosinterior de distância, e de uma distância que, de
facto, não des-afecta, mas, pelo contrário, intensifica o desejo: "A magia e o
mais poderoso efeito das mulheres é, para falar na linguagem dos filósofos, um
efeito à distância, uma actio in distans" (GC 60).
Se olharmos agora para a arte sob a óptica do artista, podemos perceber
finalmente o sentido e as implicações da analogia entre o amor-paixão e a
criação artística. A tese do "Crepúsculo dos Ídolos" e das notas póstumas que
citámos é a de que o belo é sempre a vaidade da espécie e, no caso da arte, o
belo artístico é criado num estado de embriaguez que pressupõe um
sobreaquecimento do sistema sexual do artista. Mas isto não reduz a criação
artística a uma mera manifestação do poder do instinto sexual da espécie. A
idealização que resulta da criação artística (o "ter de tornar perfeito", a
projecção antropomórfica de perfeições) é um processo de espiritualização
semelhante ao amor-paixão. Tal como o amor-paixão pressupõe a pulsão sexual,
mas não se reduz a ela porque é a sua espiritualização, assim também a criação
artística pressupõe a vaidade da espécie e o sobreaquecimento do sistema sexual
do artista, mas não se reduz a este sobreaquecimento porque é a sua
espiritualização. Também a arte depende de um pathosda distância e do
"desenvolvimento de estados sempre mais elevados, mais raros, mais longínquos,
mais abrangentes, mais amplos". O horizonte em que ocorre o desenvolvimento
destes estados é sempre o da vaidade da espécie ' o do espelhamento do poder da
espécie ', mas esse horizonte é alargado, ampliado à medida que é criada
distância "dentro da própria alma".
O que caracteriza a arte é, portanto, a capacidade (umas vezes actualizada,
outras não) de reavaliare, assim, de ampliaro conceito de belo, a concepção que
a espécie faz (por meio dos seus espécimes, os indivíduos) daquilo que é "útil,
benéfico, intensificador da vida" e daquilo que é "prejudicial, perigoso, digno
de desconfiança". As suas vistas são curtas porque nunca vão para lá do
horizonte dos antropomorfismos em que se joga o ser "belo" ou "feio" para a
espécie ' ou em que se joga a vaidade da espécie ', mas, em contrapartida, o
seu proprium é justamente o alargamento dessas vistas, a permanente reavaliação
do que é "útil, benéfico, intensificador da vida" e do que é "prejudicial,
perigoso, digno de desconfiança". A arte "não se limita a imaginar, ela
modifica os valores" (KSA 13. 299, 14[120]) ', transforma-os num processo de
interiorização, espiritualização e alargamento da perspectiva que é já, por si,
uma "elevação" e "auto-superação do ser humano" (do "animal que permanece
indeterminado", BM 62). O instinto sexual é um instinto que afirmaa vida
afirmando a preservação e propagação da espécie ' mas a sua espiritualização na
arte afirma a vida mediante um alargamento e reavaliação de valores que recria
a espéciee a elevaa um novo patamar de desenvolvimento.
É esta, em última análise, a grande lição de Stendhal contra a definição
kantiana do belo como aquilo que agrada desinteressadamente ' contra o
princípio da pura autonomia da arte, da "arte pela arte". A arte satisfaz um
interesse: enquanto espiritualização da pulsão sexual e permanente recriação de
uma "promessa de felicidade", ela satisfaz o interesse da espécie na afirmação
da vida ' mas precisamente enquanto espiritualização, enquanto embriaguez,
enquanto análogo do amor-paixão, enquanto erosespiritual, ela satisfaz esse
interesse de um modo que modifica, expande, amplia e eleva a própria espécie e
o seu interesse. Sem esta plasticidade que resulta da sua natureza espiritual,
ela nunca poderia ter a complexidade que lhe permite ser um "contra-
movimento"12 capaz de contribuir para a "luta contra o niilismo" (KSA 12. 202,
5[50], KSA 12. 306, 7[31]). Ou, nos termos da "Genealogia": sem tal
plasticidade, a arte nunca poderia ter a complexidade que permite pensá-la como
sendo movida por uma "vontade" contrária à do "ideal ascético", uma vontade "na
qual se exprime o ideal contrário [ao ideal ascético]" (GM III 25). Só esta
complexidade a torna capaz de encontrar sempre novas formas e avaliações que
respondem ao niilismo e à negação da vida.
Portanto, não há dúvida de que Nietzsche crê na possibilidade de nos
libertarmos das nossas avaliações mais básicas e reconhece um enorme valor ao
facto de, na arte, já não estar em causa um anseio directo pelos êxtases da
pulsão sexual, mas apenas um anseio indirecto. Há uma terceira possibilidade
entre a saúde do animal que afirma a vida mediante satisfação directa dos seus
instintos e a decadência de um "animal doente" que intelectualiza e curta-
circuita os seus instintos. Essa terceira possibilidade está na
espiritualização dos instintos, em especial na sua espiritualização artística.
Embora seja uma intensificação da pulsão sexual, a arte vai muito para lá da
satisfação directa da pulsão sexual e tem, portanto, a plasticidade que lhe
permite ser um contra-movimento que combate o niilismo, essa patologia do
desejo que é o cansaço e a náusea do ser humano em relação a si próprio.