Praia da Rocha (Algarve, Portugal): um paradigma da antropização do litoral
1. Introdução
Primeira estância balnear do Algarve, a Praia da Rocha (Fig._1) – assim
denominada por causa dos seus inúmeros e peculiares rochedos - tem pouco mais
de um século de existência no que toca à sua ocupação com vista à utilização
dos banhos marítimos. Em finais do século XIX, não passava de um pequeno
povoado à beira-mar com meia dúzia de casas agrícolas, tendo-se transformado
substancialmente com o advento da vilegiatura marítima, que favoreceu o
aparecimento de pequenos chalets, hotéis, pensões familiares e alguns escassos
espaços de comércio e diversão – dos quais o mais importante era o casino. Em
Portugal, o jogo esteve desde muito cedo ligado a certas estâncias balneares,
como Espinho, Figueira da Foz e Cascais, primeiro de uma forma clandestina -
até 1899 não estava regulamentado e entre 1900 e 1926 esteve proibido por lei
-, depois, a partir de 1927, de modo legal com a criação de zonas de jogo
específicas – Estoril, Madeira, Espinho, Figueira da Foz, Praia da Rocha,
Curia, Sintra e Póvoa do Varzim. As receitas do imposto especial do jogo e as
obrigações impostas às concessionárias dos casinos tiveram um papel fundamental
na promoção do turismo português e na dinamização dos núcleos populacionais
onde se instalaram (Pina, 1988; Cunha, 2010).
Figura_1
Com o desenvolvimento do turismo de massas, a Praia da Rocha converteu-se num
grande centro urbano que, durante o verão, atrai milhares de turistas. Neste
processo, os anteriores equipamentos foram substituídos por torres de
apartamentos, grandes cadeias hoteleiras e uma pluralidade de restaurantes,
cafés, bares, discotecas e lojas, sendo também criado um novo espaço destinado
aos jogos de azar. Este crescimento urbano desmedido, registado sobretudo nas
últimas décadas do século XX, mostra-se muito semelhante ao que ocorreu na
maioria dos núcleos costeiros do Algarve Central (por exemplo, Albufeira,
Quarteira e Vilamoura). O caso da Rocha, porém, revela-se paradigmático, uma
vez que no arranque da expansão turística de massas, no princípio dos anos de
1970, se procedeu à alimentação artificial da praia, aproveitando as areias que
tinham sido dragadas do porto com vista à criação de uma bacia de
estacionamento e rotação de navios. O objectivo desta alimentação era o
alargamento da praia para aumentar a sua capacidade de utilização balnear e
para evitar que as vagas atingindo as arribas pusessem em risco as construções
edificadas ali na última década. O sucesso da operação teve consequências
irreversíveis na orla costeira e no núcleo urbano adjacente que se desenvolveu
em resultado da criação de um sistema totalmente antropizado. O estudo deste
caso, com base na análise da evolução histórica desta localidade e no confronto
entre os usos dados a este espaço e o seu impacto sobre o meio envolvente,
permite ilustrar com clareza a relação que se estabeleceu nos últimos séculos
entre a sociedade e o litoral, baseada numa interligação estreita que assenta
na capacidade de transformação do homem - que procura domesticar o espaço e
criar paisagens artificiais que se enquadrem nos seus objectivos e aspirações -
e na resposta dos sistemas naturais a essas alterações, gerando novas
realidades que obrigam os seres humanos a buscar outras soluções, num ciclo
aparentemente interminável de acção-reacção, impossível de ignorar.
2. Materiais e métodos
A partir da leitura do passado, os historiadores podem fornecer dados
indispensáveis para uma reflexão sobre os litorais numa linha evolutiva
"sem a qual a respectiva situação presente nunca poderá ser plenamente
compreendida e muito menos poderá ser projecto no seu desenvolvimento
futuro" (Araújo, 2002). O método utilizado neste trabalho é aquele
habitualmente utilizado pela Ciências Sociais e que se baseia no esquema
teoria-documentação-reflexão, ou seja, desenvolvimento de uma ideia, procura de
informação para sustentá-la ou refutá-la (através da análise crítica das fontes
disponíveis e do recurso a bibliografia sobre o tema), e reflexão a partir dos
dados obtidos e da comparação com outros casos mais ou menos semelhantes.
Em relação aos materiais de trabalho recorreu-se sobretudo a fontes primárias:
corografias, monografias, folhetos/livros de propaganda turística, relatórios
técnicos, cartografia antiga e recente e fotografias áereas, que assinalam a
transformação da paisagem durante o século XX. Depois, para dar maior coerência
ao trabalho e suportar as teorias explanadas utilizou-se bibliografia
actualizada, de carácter interdisciplinar.
Por último, um esclarecimento sobre a utilização dos conceitos “arriba” e
“falésia”: neste artigo os dois termos são usados de forma indistinta. Ainda
que “falésia” seja um galicismo escusado, a sua utilização impõe-se para
facilitar a compreensão dos leitores brasileiros que raramente se servem do
termo “arriba”.
3. Evolução urbana e turística versusas condições da barra e da praia
3.1 A té aos anos de 1920: um ambiente rural em condições naturais
A) A ocupação
Nas corografias e dicionários de meados do século XIX, a Praia da Rocha não é
mencionada, talvez por não existir ainda como lugar digno de nota ou por não
ser sequer povoada. O único elemento ali situado que oferecia algum destaque
era a fortaleza de St.ª Catarina, baluarte de defesa da barra e rio de
Portimão, vila já então com algum relevo pela importância do seu porto
marítimo. A Rocha revestiase então de um pendor essencialmente rural, dominada
por terrenos cultivados que se estendiam até à orla das arribas e desciam até
ao rio (Leal, 1876). Imagem que perdurou até ao início do século XX, já que há
algumas alusões às vinhas e figueirais que povoavam as colinas fronteiras ao
mar, formando maciços de verdura onde alvejavam casinhas brancas (Arruda, 1908;
Vieira, 1911). Desta data são também os primeiros relatos sobre as qualidades
da Praia da Rocha enquanto estação balnear privilegiada pelas suas belezas
naturais e climáticas e as primeiras notícias sobre a utilização da praia pelas
famílias ilustres de Portimão, Monchique e até do baixo Alentejo, a quem
pertencia o pequeno número de casas que se estendiam sobre as falésias. Alguns
anos mais tarde, surge notícia da existência de uma avenida, um hotel, algumas
casas para alugar e um casino, que assegurava aos banhistas, bailes, teatro e
outras distracções (Vieira, 1911; Mendes, 1916) (Fig._2 e 3). As condições
existentes eram consideradas já na altura como propícias ao seu desenvolvimento
como“centro de tratamento medicinal e de vilegiatura”(Marrecas, 1915) e aí se
organizou, em 1915, o I Congresso Regional do Algarve. Mas, ao contrário do que
era esperado, daquele não resultaram quaisquer consequências práticas para o
incremento do turismo local (Cunha, 2010). Em 1918, a Praia da Rocha aparece
incluída no guia da Sociedade Propaganda de Portugal (1918), que a descreve
como “magnífica”, com um “clima dulcíssimo” e “paisagens lindas”. A localidade
possuía então bastantes construções, algumas de boa qualidade, para além dos já
referidos casino e hotel.
B) A barra e a praia
Antes da Praia da Rocha se tornar uma estância balnear conhecida
internacionalmente, a vila de Portimão estava ligada ao país e ao mundo através
do seu porto marítimo. A vida económica desta urbe dependia, desde tempos
remotos, do comércio que se fazia através do rio, por onde se escoava a
produção agrícola do interior serrano e as conservas de peixe fabricadas nas
unidades industriais instaladas na frente ribeirinha desde meados do século
XIX. Dada a importância deste tráfego marítimo e do perigo a que estavam
sujeitos todos aqueles que demandavam a barra por causa do seu assoreamento, a
melhoria das condições de entrada e de navegação no rio foi uma preocupação
constante das autoridades, dando origem a vários estudos e intervenções.
Cedo se verificou que o rio era sinuoso e variável, apresentando diversos
baixios. Para isto concorriam causas naturais - os sedimentos trazidos pelas
cheias - e artificiais, como as alterações às margens para aumento de campos
agrícolas e construção de moinhos, a instalação de represas no leito para
irrigações, o deslastre dos navios que frequentavam o porto, a falta de
fiscalização das práticas dos proprietários ribeirinhos e a ausência de obras
de conservação das margens e leito. Os estudos e planos hidrográficos do rio
Arade, feitos por diferentes entidades em 1894, 1916 e 1934 (Fig._4),
permitiram verificar que a barra tinha tendência para se deslocar para oeste,
em resultado da curvatura do trecho final do estuário, do prolongamento da
Praia Grande e da incapacidade do rio, perante a acção da ondulação, de
dissipar aqueles baixios, formando-se assim um canal de acesso estreito e
condicionado, com orientação SSW. Em períodos de temporal conjugados com
enchentes do rio, as águas rompiam os bancos a SE iniciando-se novo ciclo de
caminhamento da barra para Oeste (Loureiro, 1909).
3.2 A té aos anos de 1960: a transformação progressiva
A) A ocupação
Foi com a consubstanciação das práticas balneares marítimas que a Praia da
Rocha começou a ser efectivamente ocupada. No final da década de 1920, o Guia
de Portugal (Proença, 1927) enumerava os serviços já disponíveis nesta praia:
carrinhas em carreiras constantes, correios e telégrafo, luz eléctrica e água
canalizada (fraca) – indicando também que a sua frequência rondava os 600 a 700
banhistas por ano, predominantemente de origem regional ou do Alentejo. No
Inverno, segundo Raúl Proença (1927), a praia era “apenas frequentada por
escassos ingleses”. Tal revela já certa vocação para estância balnear
internacional, o que viria a ser plenamente confirmado mais tarde, a partir dos
anos de 1960. Todavia, é interessante relevar que os parâmetros de
atractividade eram, no início do século XX, contrastantes com os actuais,
preferindo-se então as águas frias. Isto está bem expresso no aludido texto em
que se afirma que “a sua temperatura durante o Verão (média 23º) a põe num pé
de inferioridade em relação às praias do norte e do centro de País (...). É
pois como estação de Inverno que se impõe e começa a ser procurada pelos
estrangeiros”.
Nesta época, o casario existente – falava-se em cerca de 100 casas para alugar
- dispunha-se sobretudo à beira da falésia, onde por vezes um carreiro ou tosca
escadaria talhada na arriba permitiam descer até às pequenas praias. No aspecto
geral, a Rocha mantinha o seu carácter rústico, com casinhotos dispersos pelos
campos, rodeados de pomares e jardins (Proença, 1927). Cerca de vinte anos
depois, a Rocha parecia já um pequeno resort com um Grande Hotel (antigo Hotel
Viola), o Hotel Bela Vista, uma pensão, algumas vivendas dos magnatas da
indústria da sardinha, serviços de Correios, Telégrafos e Telefones e um Posto
de Turismo. Possuía uma série de moradias - muitas das quais alugadas a
turistas -, campos de ténis, casino e as ruínas do Hotel Blitz, que não fora
concluído por falta de verbas nos anos de 1930. Ao longo de toda a falésia
havia caminhos, bem pavimentados, de acesso à praia (Stuart, 1942) (Fig._5).
Nos anos de 1950, a Praia da Rocha tinha uma população fixa de 200 habitantes,
aos quais se juntavam uma população flutuante de 600 indivíduos durante os
meses de Agosto e Setembro. Havia falta de água para abastecimento público,
sobretudo no verão; não existia rede de esgotos; a iluminação pública e os
serviços de limpeza eram manifestamente deficientes. Os pavimentos das ruas,
com excepção das Avenidas Tomás Cabreira (que ligava Portimão à Rocha) e
Marginal, estavam em más condições, quase não dando passagem durante o inverno,
por causa das chuvas. Os únicos equipamentos desportivos resumiam-se a dois
campos de ténis e um de golfe, abandonado (MOPC, 1952). A fotografia aérea de
1958 (Fig._6) mostra que não houve alterações significativas na mancha urbana
da Praia da Rocha em relação à década anterior. Mantinha-se o principal núcleo
centrado entre a estrada para Portimão e a Fortaleza, com uma pequena extensão
para poente. O povoamento concentrava-se junto à estrada marginal e mais para o
interior observavam-se manchas de vegetação, que revelavam como os campos
agrícolas se estendiam quase até ao litoral, sobretudo no sector ocidental, o
que atesta que a Rocha possuía um cunho de rusticidade ainda nos anos de 1950.
B) A barra e a praia
Em 1926 e 1927, o mau estado da barra e os prejuízos causados à pesca e à
indústria conserveira da sardinha levaram à realização de dragagens no canal de
acesso e no estuário do rio, sendo retirados cerca de 360 000m3 de sedimentos
(Gomes & Weinholtz, 1971). Contudo, os bancos de areia rapidamente se
restabeleceram e a situação manteve-se idêntica
Perante isto, chegou-se à conclusão que o problema do assoreamento e a
dificuldade de acesso – impedindo a entrada de barcos de maior porte e
obrigando ao transbordo das mercadorias para embarcações menores -, só poderiam
ser resolvidos com a construção de dois molhes que fixassem a embocadura,
direccionando as águas do rio e obstando à entrada das aluviões marítimas
empurradas para dentro do estuário. Assim, em 1946 teve início a construção dos
molhes – um enraizado na Ponta de St.ª Catarina e outro na Ponta do Altar. Os
trabalhos foram interrompidos pouco depois, só vindo a ser retomados em 1952,
ficando terminados – depois de vicissitudes várias – em 1959 (LNEC, 1973).
As obras tiveram consequências no sistema morfodinâmico da Praia da Rocha, uma
vez que a sua robustez ou magrecimento dependia directamente do estado e da
localização da embocadura do rio Arade. Quando a barra se situava para W., o
prolongamento da formação arenosa de W. – chamada Ponta d´Areia – fazia-se
quase de forma paralela à Praia da Rocha, chegando em certas ocasiões – como em
1909 – a fazer-se a ligação daquele banco à terra, situação que ainda se
mantinha em 1916, como pode ver-se no Plano Hidrográfico então traçado (Fig.
4). Nesse período, podiam encontrar-se verdadeiras dunas encostadas à falésia,
dunas que ainda existiam nos anos de 1920. Contudo, por efeito das dragagens de
1926 e 1927, as praias da embocadura emagreceram e, nos anos de 1930, a Praia
da Rocha dava sinais de uma forte diminuição de sedimentos. Em finais da década
de 1940, a interrupção dos trabalhos de construção do molhe de St.ª Catarina,
quando já havia cerca de 100m erigidos, provocou o rápido emagrecimento geral
da Praia da Rocha, uma vez que aquela estrutura impedia a troca de sedimentos
entre a praia e os bancos da barra. Assim, a Rocha ficou reduzida a uma
sucessão de pequenos areais, deixando de haver espaço utilizável para as
actividades balneares durante as preia-mares de águas vivas (Fig._7).
A situação melhorou significativamente com a progressão e conclusão do dito
molhe, que permitiu a acumulação de areia até cerca de 500m para poente. Mas,
apesar da recuperação da largura da praia, por ocasião da preia-mar as falésias
eram atingidas pelas vagas, provocando o seu desgaste (Gomes & Weinholtz,
1971). Este fenómeno seria comum em períodos de forte agitação marítima,
sobretudo nas fases de emagrecimento da Praia da Rocha (que oscilava entre
períodos de robustez e emagrecimento do areal).
3.3 Anos de 1960 a 1970: as grandes transformações
A) A ocupação
Nos anos de 1960, época em que se deu o boom turístico no Algarve -
principalmente após a abertura do aeroporto de Faro, em 1965 -, a situação da
Rocha alterou-se significativamente face ao panorama anterior, tendo-se
registado um crescimento em área e em volume, com o aparecimento de novos
hotéis e blocos residenciais, que contribuíram para a densificação da ocupação
urbana num nível muito superior ao que se verificara nas décadas anteriores
(Fig.6 e 8). A Praia da Rocha impôs-se então como estância balnear
internacional. A malha urbana expandiu-se, sobretudo no lado poente, e aumentou
o número de edifícios sobre as arribas. Surgiram pelo menos duas novas
instalações hoteleiras – o Hotel Júpiter e o Hotel Algarve – e a primeira torre
de apartamentos. Só o extremo da Praia da Rocha, junto aos Três Castelos, se
mantinha livre de construções.
Em finais da década de 1970, a Praia da Rocha começou a sentir uma afluência
espectacular – “Portimão: 70 mil [pessoas] durante 3 meses, 25 mil durante 9”
(Veiga & Mota, 1980) -, tendo-se verificado que os alojamentos previstos
estavam manifestamente aquém das necessidades concretas dos habitantes fixos e
sazonais. Assim, obedecendo às leis de mercado da oferta e da procura, e
descurando os valores naturais e estéticos, surgiram os edifícios (torres) com
centenas de apartamentos, exclusivamente para exploração turística (Fig._9).
B) A barra e a praia
No fim dos anos de 1960, a intensificação do recuo das falésias tornou-se um
problema grave: as rochas batidas “pelo mar estavam constantemente a esboroar-
se, pondo em risco a segurança de hotéis, de moradias e de vivendas em luta
contra uma erosão que não era fácil de calcular onde parava” (Franco, 23-09-
1971). Por outro lado, a Rocha, ao contrário de outros tempos em que era apenas
frequentada por algumas dezenas de banhistas que se concentravam em dois ou
três pontos, passara a ter uma procura muito intensa e, devido à reduzida
extensão do areal, não havia espaço útil para a instalação de tão grande número
de turistas. Por conseguinte, tornou-se premente encontrar uma solução que
permitisse a defesa das arribas e o robustecimento da praia.
A oportunidade de resolver o problema surgiu com a necessidade de proceder a
algumas intervenções na foz do rio Arade. Em finais de 1960, a Direcção dos
Serviços Marítimos tinha planos para a melhoria da navegação no estuário,
concebendo um projecto de dragagem do anteporto de Portimão, com vista à
criação de uma bacia de fundeadouro e manobra para embarcações. Este plano
estabelecia também a repulsão dos dragados para a Praia da Rocha. O objectivo
desta operação era a formação de uma berma com cerca de 200 a 250 m de largura
total a partir da arriba, destinada “a criar uma praia com boas condições de
exploração balnear e a proporcionar boas condições de protecção da base da
falésia contra o ataque pelo mar” (MOP, 1970). Depois de algumas verificações
por tentativa e erro, as intervenções na Praia da Rocha tiveram lugar entre
Junho e Novembro de 1970, constatando-se desde logo a considerável melhoria do
areal, com o visível aumento das suas dimensões (Fig._10 e 11).
Na época em que estes trabalhos foram realizados a questão ambiental não era
ainda prioritária, pelo que não foram feitos quaisquer estudos de impacto, quer
da deposição das areias dragadas na praia, quer do efeito das dragagens no
ecossistema estuarino.
Na década de 1970 as principais críticas a estas operações relacionaram-se
sobretudo com a questão da alteração do aspecto visual da praia e a perda de
certos elementos icónicos: as rochas peculiares que lhe deram fama – escolhos,
leixões, pináculos, arcos, a que a população deu nomes sugestivos como Três
Ursos, Rochas Furadas, Dois Irmãos, Pirâmides, Rochedo Caraça – foram na maior
parte destruídas ou cobertas pelo areal. Houve ainda uma polémica sobre o
efeito das dragagens na destruição do património arqueológico subaquático do
rio Arade. Na sequência das dragagens efectuadas em 1970 e em 1982 foram
encontradas estruturas de navios enterradas no lodo – a descoberta foi
acompanhada e registada por equipas de arqueológos, mas não se procedeu ao seu
salvamento. Mais tarde, veio a verificar-se o aparecimento de material
arqueológico disperso nas areias depositadas na Praia da Rocha (Alves, 1999).
3.4 Um meio fortemente antropizado
A) A ocupação
Comparando as fotografias áereas de 1978 (Fig._9) e 1987 (Fig._12), verifica-
se, nesta última, a existência de um maior número de torres de apartamentos e o
desenvolvimento de dois novos quarteirões junto à avenida marginal e também
para o interior. Isto consubstanciava a expansão do aglomerado da Praia da
Rocha não só em comprimento, na direcção dos Três Castelos, mas também em
largura, progredindo para zonas mais afastadas do mar. Nesta época, surgiram
também as primeiras construções junto à esplanada dos Três Castelos e pode
observar-se que os espaços livres, anteriormente tão abundantes, se tornaram
cada vez mais escassos.
Nos anos posteriores, o crescimento do aglomerado intensificou-se. Assistiu-se
à disseminação dos grandes edifícios e dos blocos de apartamentos. A Rocha
desenvolveuse na direcção do Vau, ultrapassando os Três Castelos, e para norte
no sentido de Portimão, graças à multiplicação das vias de comunicação, que
permitiram que as novas construções fossem implantadas a maiores distâncias do
mar. No ortofotomapa de 2004 (Fig._13) observa-se a colmatação de todo o espaço
livre junto à Avenida Marginal e nos terrenos adjacentes, envolvidos pelo novo
eixo rodoviário construído quase paralelamente àquela avenida. Este eixo, já
esboçado na fotografia aérea de 1987 (Fig._12), constituía então o término
norte da Praia da Rocha, enquanto na imagem mais recente (2004) se verifica que
as edificações se estendem agora para além deste. Regista-se também a criação
de um novo hotel sobre as falésias – o Hotel Oriental – aproveitando o terreno
antes ocupado pelo Casino e pelos campos de ténis.
Outra alteração – porventura, a mais relevante – diz respeito à construção da
Marina de Portimão. A partir dos anos de 1970, às actividades tradicionais do
porto – pescas, indústria conserveira, comércio marítimo e construção naval –
veio juntar-se (e depois sobrepôr-se) uma outra directamente relacionada com o
turismo. Portimão ambicionava ter condições para receber os grandes navios de
cruzeiro que frequentavam as suas águas, assim deixaria de ser necessário o
transbordo de passageiros para embarcações mais pequenas em frente da Praia da
Rocha. Esta ambição, porém, só se tornou viável a partir de 1996, com a
abertura do porto de cruzeiros. A vocação turística deste espaço portuário
consolidou-se ainda mais com a construção da Marina, no ano 2000, erguida nos
terrenos marginais a nascente da Fortaleza de St.ª Catarina, numa área
conquistada ao rio (Fig._14). Isto mudou por completo a fácies ribeirinha e a
envolvência em torno daquele edifício militar, cuja arriba onde se ergue se
encontra hoje sem qualquer contacto com a água (do rio ou do mar), estando a
transformar-se numa arriba morta.
B) A praia
Passados 10 anos sobre o enchimento da Praia da Rocha, verificava-se que a
intervenção fora um êxito: de uma forma geral, o areal mantinha as suas
dimensões. O único motivo de preocupação residia na zona dos Três Castelos,
onde por razões económicas e técnicas a recarga não fora realizada. Nessa área
notava-se o progressivo encurtamento da praia, aproximando-se o mar
perigosamente da falésia, o que não podia continuar, pois faria desencadear um
processo de desaparecimento dos sedimentos depositados. Assim, em 1983,
aproveitando-se nova dragagem do rio, foram lançadas areias naquele espaço, bem
como na praia entre os Três Castelos e o sítio dos Careanos no Vau (Weinholtz,
1982).
Nas fotografias aéreas tiradas nesta época, é facilmente observável a diferença
nas dimensões da Praia da Rocha antes e depois das operações de alimentação
artificial (Fig._15_a_17). Os perfis levantados na Praia da Rocha em 1988
indicavam que mais de 80% do material depositado permanecia ali: o transporte
longilitoral reduzido, o clima de agitação marítima bastante moderado em
comparação com a costa Oeste de Portugal e o facto de a praia constituir um
sistema praticamente fechado, graças à Ponta dos Três Castelos e ao molhe W. do
porto, explicam o sucesso destas alimentações artificiais.
Pelo contrário, no trecho litoral a ocidente, entre os Três Castelos e o Vau,
alvo das operações de 1983 e de 1996, verificou-se a perda rápida e
significativa (cerca de 60% em 1988) do material ali colocado, o que resulta
destas praias não serem sistemas fechados. No que respeita à evolução futura,
Psuty & Moreira (1990) consideram que a ponta ocidental da Praia da Rocha
continuará a ser a mais exposta à erosão e que aos poucos esta se estenderá
para nascente; no entanto, este processo decorrerá de forma lenta, na ordem dos
2% a 5% de perda de volume por ano. Uma vez que não há entrada de novos
sedimentos no sistema, o destino da praia dependerá das trocas com os bancos
exteriores, embora inevitavelmente tudo concorra para que a Rocha volte à sua
condição natural de praia encastrada. Mas isto demorará muitos anos a
acontecer, estando a sua utilização turística assegurada nos tempos próximos
(Psuty & Moreira, 1992; Teixeira, 1997).
Quando se procedeu à alimentação artificial da Praia da Rocha não havia ainda,
em Portugal, muita experiência neste tipo de intervenção. Este método praticado
sobretudo nos Estados Unidos da América (e.g., Vera-Cruz, 1977), foi aplicado
pela primeira vez, em Portugal, na Praia do Tamariz, no Estoril, perto de
Lisboa, entre 1950 e 1954 (Martins, 1977). Na década de 1960, o Laboratório
Nacional de Engenharia Civil (LNEC) participou activamente nos estudos e nos
trabalhos efectuados na praia de Copacabana (Rio de Janeiro, Brasil) (e.g.,
Vera-Cruz, 1977, Pereira, 1987). Nos anos de 1970, para além da Praia da Rocha,
procedeuse também à alimentação artificial da praia imediatamente a sul do
molhe do porto da Figueira da Foz, na costa ocidental de Portugal. Mas, neste
caso, a intervenção apenas retardou um pouco o avanço do mar, visto que a
erosão costeira continuou a manifestar-se intensamente devido à intercepção do
abastecimento sedimentar pelos molhes do porto (Martins, 1977). Nas últimas
duas décadas, o recurso à alimentação artificial das praias tem sido utilizado
com alguma frequência como forma de estabilizar a linha de costa actual e de
diminuir os impactos da erosão costeira sobre determinados núcleos urbanos. Uma
das intervenções mais significativas neste domínio tem sido levada a cabo na
praia de Vale de Lobo – no litoral a Este da Praia da Rocha. Com efeito, aquele
sector costeiro foi fortemente afectado pela construção dos esporões de
protecção de Quarteira e da marina de Vilamoura e pela instalação de um resort
de luxo nas arribas adjacentes à praia, nos anos de 1970. Uma década depois,
algumas casas, o logradouro da piscina e certos trechos do campo de golfe foram
destruídos em resultado do recuo da arriba (e.g., Dias, 1988; Correia et al.,
1996). Em final dos anos de 1990 procedeu-se à alimentação artificial da Praia
de Vale de Lobo, verificando-se que nos dois anos seguintes a erosão marítima
mal se manifestou neste trecho. Contudo, ao contrário do que acontece na Praia
da Rocha (que é um sistema com elevado grau de confinamento), a alimentação da
praia parece ter em Vale do Lobo uma durabilidade bastante mais reduzida, pois
que está integrada num sistema aberto. Em 2001, já quase não eram visíveis os
seus efeitos (Oliveira et al., 2005).
Nos últimos anos, o aumento da consciência ambiental das populações e a aposta
das autoridades no desenvolvimento sustentável ou integrado das zonas costeiras
reflectiu-se na melhoria das condições balneares da Praia da Rocha. Longe vai o
tempo em que as casas construídas nas arribas despejavam os seus esgotos
directamente no mar: com efeito, a Praia da Rocha possui bandeira azul desde
1996. Em 2006, no âmbito do Plano de Ordenamento da Orla Costeira Burgau-
Vilamoura (que abrange a Praia da Rocha) e da cooperação entre várias entidades
locais, nasceu o Projecto de Arranjo da Praia, que se traduziu na construção de
um passadiço de madeira sobreelevado, na reabilitação das infraestruturas
sanitárias e na reconstrução dos apoios de praia. Este projecto visava a
requalificação desta zona balnear, enquanto espaço lúdico e de recreio, e a
melhoria das condições de saúde pública e conservação da natureza (CCDRAlg,
2006).
4. Conclusão
O caso da Praia da Rocha é um exemplo paradigmático de como, em algumas décadas
(menos de meio século), o espaço e a paisagem foram radicalmente transformados,
transitando de um ambiente predominantemente natural para um sistema
profundamente antropizado. Esta impressionante transformação pode ser
atribuída, por um lado, ao desenvolvimento do turismo, principalmente do
turismo de massas e, por outro, à melhoria de condições portuárias do pequeno
estuário do rio Arade, em certa medida também relacionada com o turismo
(navegação de recreio). Aliás, neste caso específico, as obras portuárias
potenciaram o desenvolvimento turístico porque, ao contrário do que se verifica
na maior parte das vezes, o aproveitamento das areias dragadas na
reconstituição da praia permitiu sanar, pelo menos transitoriamente, processos
conflituantes e incompatíveis: a intensificação da ocupação do litoral em zonas
de risco e a erosão costeira. Por este e outros motivos a Praia da Rocha é um
excelente exemplo para reflexão a nível da gestão costeira:
* 1) A alimentação artificial da praia revelou-se um sucesso, não só porque
permitiu a sua reconstituição – com um período de vida acima da média (Psuty
& Moreira, 1992) -, mas também porque esta intervenção teve impactos
reduzidos nas áreas litorais adjacentes, ao contrário do que acontece com a
implantação de esporões. Veja-se os casos de Espinho (na costa ocidental) ou
mesmo de Quarteira, onde foram necessárias várias estruturas longilitorais
para travar a erosão local, tendo como consequência directa o alastrar deste
fenómeno para as zonas a sotamar. Ainda que o sucesso da alimentação da Praia
da Rocha se deva às suas características específicas, não deixa de ilustrar
as vantagens desta técnica face às obras de engenharia pesada na manutenção
da linha de costa.
* 2) O êxito na reconstituição da Praia da Rocha teve, contudo, um efeito
perverso no que toca à ocupação humana daquele litoral: possibilitou a
expansão do turismo de massas, ao criar uma praia com maior capacidade de
carga e ao permitir – graças à subtracção da arriba aos processos marinhos -
um crescimento da volumetria das construções, dando origem, a partir dos anos
de 1980, ao aparecimento de uma frente contínua de edificações de grandes
dimensões adjacentes à costa.
* 3) A questão da intensificação da ocupação humana nas áreas adjacentes à
Praia da Rocha suscitou ainda uma outra problemática: a da percepção do
risco. Com o passar do tempo – quarenta anos – muitos dos que frequentam hoje
esta praia desconhecem de todo a história da sua formação. Isto é, tomam por
natural o que é artificial e não têm noção de que é uma zona de risco. A
ocupação recente do litoral por populações que lhe são estranhas – porque vêm
de outras regiões e/ou ali passam apenas curtos períodos de tempo – fez
“esquecer a longa tradição que assume os litorais como lugares de forte
instabilidade” (Schmidt et al., 2011), mesmo quando não o aparentam. Ora,
ainda que as populações em geral tenham tendência para pensar o (seu)
território de forma estática, os técnicos e as autoridades com poder de
intervenção nesta matéria não o podem fazer. Tendo em conta as alterações
climáticas que se fazem sentir e que tenderão a intensificar-se no futuro -
com o agudizar dos fenómenos extremos - é essencial que quem tem
responsabilidades na gestão da orla litoral compreenda a importância da
“história e da memória da erosão costeira” (Schmidt et al., 2011), para que
não se ignorem zonas de risco em aparente estabilidade. Através do exemplo
fornecido pela história das sociedades na sua relação com um ambiente, em
constante mudança, e com base nos estudos científicos mais recente, é
necessário encontrar as soluções de adaptação que se impõem face às
contigências. Os estudos históricos sobre a relação do ser humano com o meio
litoral – como este que se apresenta da Praia da Rocha – são fundamentais
para, em associação com outras disciplinas, se perspectivar de forma
integrada este território.