Pescadores, conhecimento local e mudanças costeiras no litoral Português
1. Introdução
É por demais conhecido que as zonas costeiras tenderão a sofrer severos
impactos com as alterações climáticas (Dolan & Walker, 2011). Alterações
como a subida do nível médio do mar e a rotação da direção predominante das
ondas têm efeitos na deriva sedimentar ao longo da costa portuguesa, podendo
agravar os processos de erosão costeira. Para além dos impactos previstos das
alterações climáticas, a costa portuguesa tem sofrido, nas últimas décadas,
importantes transformações (Dias et al., 2008), não só geofísicas (erosão,
recuo da linha de costa, desaparecimento da areia das praias), mas também
artificiais (construção de portos, esporões, paredões) e socioeconómicas
(aumento exponencial da população, substituição das atividades económicas
tradicionais, como a pesca, por novas atividades, como o turismo, o lazer, o
imobiliário). Os impactos das alterações climáticas vêm assim somar-se ao
processo já acelerado de erosão em que o litoral português se encontra.
Os pescadores artesanais são testemunhas privilegiadas destas mudanças. Em
resultado da sua experiência quotidiana, detêm conhecimento especializado,
ainda que não científico, do meio natural local. Têm sido, mais do que meros
espectadores, diretamente afetados por algumas das transformações, embora em
larga medida desprovidos do poder para intervir nelas.
Este artigo tem como objetivo principal compreender que conhecimento local
detêm os pescadores artesanais sobre as mudanças costeiras e sobre as
intervenções que, ao longo dos últimos anos, têm sido feitas na costa e em que
medida esse conhecimento tem sido (ou não) aproveitado na gestão da costa.
Baseia-se num estudo de caso exploratório, sustentado em entrevistas em
profundidade a pescadores de três locais na costa portuguesa.
O conhecimento local é um conceito que tem ganho um lugar crescentemente
relevante tanto nas políticas ambientais como na literatura científica (Nelson,
2005). Por um lado foi reconhecido pelas Nações Unidas como um contributo
importante para o desenvolvimento sustentável na Convenção para a Diversidade
Biológica em 1992, na Declaração do Rio e na Agenda 21 (Bourke, 1993; Griffin,
2009). Por outro lado, têm-se multiplicado os estudos sobre diversos aspetos
desta problemática, que abaixo se elencam.
Há no entanto que dar conta da pluralidade semântica desta área. Práticas e
representações bastante semelhantes são algumas vezes rotuladas como
conhecimento ecológico tradicional (Berkes et al., 2000; Usher, 2000; Nelson,
2005; Houde, 2007), outras como conhecimento indígena (Agrawal, 1995;
Aikenhead & Ogawa, 2007; Bohensky & Maru, 2011; Green &
Raygorodetsky, 2010), outras como conhecimento local (Clark & Murdoch,
1997; Davis & Wagner, 2003; Fortman & Ballard, 2009; Paton &
Fairbairn-Dunlop, 2010), como conhecimento dos stakeholders (Edelenbos et
al., 2011) ou ainda como conhecimento leigo (Cerezo & González García,
1996; Edelenbos et al., 2011; Brace & Geoghegan, 2010; Aitken, 2009). Em
qualquer dos casos, está-lhe subjacente uma relação dualista com o conhecimento
científico. Porém, as análises dicotómicas, que caracterizam estes dois tipos
de conhecimento como diametralmente opostos e de fronteiras rígidas entre si,
têm sido crescentemente questionadas (Agrawal, 1995; Clark & Murdoch, 1997;
Berkes et al., 2000; Fortmann & Ballard, 2007; Bohensky & Maru, 2011;
Aikenhead & Ogawa, 2007; Aitken 2009).
No entanto, a relação entre conhecimento local e conhecimento científico tem
sido objeto de múltiplos estudos: desde as clássicas investigações de M. Callon
(1986) sobre os pescadores da Bretanha e a tentativa de replicar em França uma
técnica observada no Japão, para resolver o problema da diminuição de vieiras,
e de B. Wynne (1992) sobre os pastores da Cumbria e contaminação radioativa de
Chernobyl, até ao trabalho de Fortmann & Ballard (2009) sobre a combinação
de conhecimento entre cientistas profissionais e peritos locais (cientistas
civis) na gestão de florestas, passando pelo estudo de Dewulf et al. (2004)
sobre a colaboração entre agricultores e académicos numa iniciativa de
conservação do solo no Equador ou de Aitken (2009) sobre os debates em torno da
localização de um parque eólico na Escócia. De uma natureza diferente é a
comparação de três sistemas de conhecimento diferentes, indígena da américa do
norte, neo-indígena no Japão e ciência eurocêntrica efetuada por Aikenhead
& Ogawa (2007) ou a revisão de literatura sobre a integração entre
conhecimento indígena e ciência e respetivas implicações sobre a criação ou
manutenção da resiliência dos sistemas socio-ecológicos de Bohensky & Maru
(2011).
Outra temática que também tem merecido uma atenção redobrada nesta área é a da
mobilização do conhecimento local nas práticas de gestão ambiental: vide as
sínteses de literatura efetuadas por Berkes et al. (2000), Davis & Wagner
(2003) e Conrad & Hilchey (2011).
Enquanto alguns trabalhos dão conta da obrigatoriedade de integração do
conhecimento ecológico tradicional na avaliação ambiental e gestão de
recursos no Canadá (Usher, 2000), outros salientam a continuada falta de
integração do conhecimento local nos processos de planeamento e decisão
política, aplicado aos casos de parques eólicos na Escócia (Aitken, 2009), de
gestão dos riscos de cheia (Brown & Damery, 2002), no ordenamento de zonas
costeiras no Reino Unido (O'Riordan, 2005), na gestão da água na Holanda
(Edelenbos et al., 2011) ou na compatibilização das actividades da pesca e
aquicultura na Noruega (Maurstad et al.., 2007)
Sobre a questão específica das alterações climáticas já existem múltiplos
estudos que dão conta da perspetiva leiga ou local deste problema global.
Ainda que alguns se baseiem em metodologias mais extensivas, como inquéritos à
população (Bulkeley, 2000), a maioria são estudos de caso locais: veja-se, por
exemplo, o número especial da revista Climatic Change exclusivamente dedicado
ao conhecimento indígena das alterações climáticas (Green & Raygorodetsky,
2010), o trabalho de Paton e Fairbairn-Dunlop (2010) sobre Tuvalu, de Sakurai
et al.. (2011) sobre os festivais de cerejeiras em flor no Japão ou a
investigação de Huntington et al.. (2004) sobre as mudanças ambientais
observadas no Ártico. Dolan & Walker (2004) apontam limitações à avaliação
de impactos das alterações climáticas nas zonas costeiras efetuadas pelo
Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) e salientam a necessidade de
uma abordagem de investigação com base na comunidade para identificar as
vulnerabilidades locais, mas também as capacidades de adaptação e resiliência.
Há ainda estudos dedicados ao conhecimento específico que detêm as comunidades
piscatórias na gestão de stocks pesqueiros marinhos (Johannes et al.., 2000;
Mackinson, 2001; Davis & Wagner, 2003; Silvano & Valbo-Jørgensen, 2008;
Griffin, 2009; Le Fur et al.., 2011) e em água doce (Eden & Bear, 2011) e
sobre a participação de comunidades costeiras na gestão dos riscos (Dolan &
Walker, 2004; O'Riordan, 2005; O'Connor et al., 2010; Soma & Vatn, 2009;
Barros et al., 2010).
Em Portugal este é um tema relativamente pouco explorado. Por um lado, as
comunidades piscatórias são as menos estudadas pelas ciências sociais, com
exceção de alguns trabalhos etnográficos (Meneses & Mendes, 1996; Nunes,
1999 e 2006; Martins, 1999), históricos (Garrido, 2010) ou de um inquérito
realizado nos Açores (Tomás & Medeiros, 2006). Sobre a questão específica
da inclusão dos pescadores nos processos de gestão dos recursos marinhos, há
trabalhos realizados sobre a participação de stakeholders na governança
coletiva de áreas protegidas marinhas da Arrábida (Vasconcelos et al.., no
prelo a; no prelo b) e das Berlengas (Santos et al.., no prelo).
Este artigo pretende ser um contributo para a literatura desta área, tendo como
objetivo principal compreender que conhecimento local detêm os pescadores
artesanais sobre as mudanças costeiras e as alterações climáticas, sobre as
intervenções que, ao longo dos últimos anos, têm sido feitas na costa e avaliar
em que medida esse conhecimento tem sido (ou não) aproveitado na gestão da
costa. Baseia-se num estudo de caso exploratório, sustentado em entrevistas em
profundidade a pescadores de três locais na costa portuguesa.
2. Metodologia
Este artigo é baseado em alguns resultados do projeto de investigação CHANGE -
Mudanças Climáticas, Costeiras e Sociais - erosões glocais, conceções de risco
e soluções sustentáveis em Portugal (PTDC/CS-SOC/100376/2008), financiado pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, em curso no Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa, com a participação de uma equipa da
Faculdade de Ciências da mesma universidade. Este projeto assume uma abordagem
marcadamente interdisciplinar, combinando metodologias das ciências sociais -
sociologia, história, antropologia - com abordagens das ciências naturais. O
projeto incide sobre três zonas do litoral Português: a Vagueira, na região de
Aveiro; a Costa da Caparica, na região de Lisboa; e Quarteira, na costa sul do
Algarve (ver figura_1)
2.1. As áreas de estudo
Estas três zonas têm semelhanças óbvias: são antigas vilas de pescadores (que
praticavam a técnica de pesca da arte xávega [2] e registam movimentos
migratórios entre si - Souto, 2003) transformadas nas últimas décadas em
destinos turísticos, consideradas extremamente vulneráveis à erosão costeira e
com elevadas taxas de recuo da linha de costa. Em todas elas, o turismo e a
pressão urbana trouxeram a necessidade de proteger a costa com estruturas de
defesa rígidas. Campos de esporões foram construídos durante os anos 60 e 70,
criando condições para uma pressão e ocupação humana ainda maior, enquanto
aumentava a jusante o recuo da costa. A afluência da população ao litoral
continuou a crescer a um ritmo incessante, bem como a construção na frente
urbana. Atualmente manter a linha de costa é considerado crucial para a
sobrevivência económica destas três zonas. Apesar de terem em comum dinâmicas
de crescimento recentes caracterizadas por uma forte pressão urbana, estas três
áreas sofreram diferentes processos de ocupação, têm dinâmicas sociais muito
diferentes e apresentam níveis de erosão costeira diferenciados, permitindo
assim importantes análises comparativas (Schmidt et al.., 2012).
A zona de estudo da Vagueira - desde a Praia da Barra até ao sul da praia da
Vagueira - está localizada na costa ocidental - a sul do Porto de Aveiro - na
que é considerada uma das zonas costeiras mais energéticas da Europa. O troço
Barra-Vagueira é fortemente condicionado pelas constantes obras de manutenção
do Porto de Aveiro. Esta é a secção atualmente em maior risco neste troço e
onde as intervenções de defesa costeira parecem surtir menores resultados. Nos
últimos Verões, a praia deixou de existir na maré alta, ficando a rebentação a
tocar o enrocamento recentemente construído, panorama agravado pela falta de
acessos à praia. A população desta zona aumentou 20% nos últimos 20 anos, a
construção aumentou 28% no mesmo período de tempo e a ocupação sazonal chega a
ser de 64% (Censos 2011). Ocupado maioritariamente por residências secundárias
(boa parte dos proprietários é oriunda do eixo Viseu-Guarda), a desvalorização
deste território é cada vez mais sentida, face ao avanço notório do mar nos
últimos anos.
O troço costeiro da Costa da Caparica - da Cova do Vapor até à Fonte da Telha -
está localizado a sul da embocadura do rio Tejo, a cerca de 10 km de Lisboa.
Ocupa a zona superior do arco Costa da Caparica - Cabo Espichel. Em tempos um
dos principais destinos turísticos da Área Metropolitana de Lisboa, tornou-se
mais recentemente num subúrbio de capital, com cerca de 13,5 mil habitantes (um
aumento de 15% entre 2001 e 2011), tendo a ocupação sazonal diminuído nos
últimos 20 anos, de 70% em 1991 para 53% nos Censos de 2011. Este troço
costeiro tem enfrentado sérios problemas de avanço do mar nos últimos invernos,
em particular desde 2006, chegando mesmo a ocorrer a destruição de bares de
praia e a inundação de parques de campismo, o que implicou intervenções por
parte das instituições responsáveis (no caso, o Ministério do Ambiente),
nomeadamente o reforço dos esporões e uma sucessão de enchimentos artificiais.
A zona de estudo de Quarteira - um troço costeiro de oito quilómetros que se
estende desde o empreendimento turístico de Vilamoura até ao resort de Vale do
Lobo, incluindo a zona urbana de Quarteira - está localizada na costa sul do
Algarve. Esta costa é abrigada da agitação com origem no Atlântico Norte, tendo
um regime de agitação menos energético que a costa ocidental. Quarteira é uma
zona marcadamente turística, atualmente com 21,8 mil habitantes, tendo a
população duplicado nos últimos anos, e com uma população sazonal que tem vindo
a aumentar, tendo atingido os 59% em 2011. Aqui, a construção da marina de
Vilamoura e do campo de esporões acelerou os processos de erosão a leste, em
particular no limite da zona urbana de Quarteira, depois do último esporão, e
na zona de Vale do Lobo, onde o areal recuou tanto que algumas habitações
daquele resort já tiveram de ser demolidas e outras deverão ser demolidas ou
recuadas em breve. Este troço costeiro foi alvo de três vastos enchimentos
artificiais entre 1998 e 2010.
2.2. Recolha e análise de dados
Este artigo sustenta-se em entrevistas realizadas a pescadores artesanais dos
três locais, integradas num conjunto mais vasto de entrevistas semi-
estruturadas a stakeholders, efetuadas entre Maio de 2011 e Janeiro de 2012
[3]. Com a exceção de um dos pescadores da Vagueira com 26 anos e pescador há
mais de 10, todos os outros tem mais de 50 anos de idade e mais 30 anos de
atividade pesqueira. Todos eles são das respetivas áreas em estudo, embora
nalguns casos (como a praia da Vagueira de origem mais recente) só mais tarde
se tenham fixado na zona costeira específica onde residem atualmente. O
objetivo era captar as perceções públicas dos riscos costeiros e alterações
climáticas, o conhecimento e avaliação tanto das intervenções costeiras como da
atuação das instituições responsáveis, o envolvimento e participação nos
processos de decisão e ainda as visões sobre o futuro da costa, nomeadamente
soluções de financiamento e formas alternativas de gestão do território. Os
tópicos abordados de forma sistemática em todas as entrevistas foram os
seguintes:
- Percepção do problema do avanço do mar e da erosão costeira (zonas
em risco, atividades e grupos sociais mais afetados);
- Politicas e poderes (eficácia das intervenções costeiras, efeitos
dessas intervenções nas pessoas, entidades com poder na costa,
confiança na gestão costeira)
- Participação (envolvimento e influência nas decisões, mecanismos
alternativos de participação)
- Futuro (impactos das alterações climáticas na zona costeira,
medidas de prevenção, financiamento das intervenções, relocalização
de pessoas e atividades).
Foram assim entrevistados nove pescadores artesanais nos três locais de estudo,
representando comunidades de poucas dezenas de indivíduos. Como recomendado por
Berkes et al. (2000) e Davis & Wagner (2003), a seleção dos peritos em
conhecimento local entrevistados obedeceu a critérios uniformes: foi
identificada em cada comunidade uma personagem-chave, pela sua posição
institucional (no sindicato dos pescadores na Costa da Caparica e na associação
Quarpesca em Quarteira) ou pela sua antiguidade (pescador mais antigo da
Vagueira, uma vez que não existe um sindicado ou associação de pesca na zona),
a quem foi pedido que sugerisse outros nomes para as entrevistas seguintes
(recomendação de pares). As entrevistas foram integralmente transcritas e foi
realizada uma análise de conteúdo através do software Maxqda.
3. Resultados
As entrevistas realizadas em profundidade permitem conhecer a extensão do
conhecimento local dos pescadores das três zonas de estudo sobre as
características da costa e dos ecossistemas, mas também sobre as causas e
consequências das mudanças costeiras e sobre as obras de intervenção feitas.
3.1. Conhecimento local dos pescadores
Os pescadores, por inerência da sua atividade profissional, por residirem
geralmente em grande proximidade ao mar e por com frequência se verificar a
reprodução profissional intergeracional (herdarem o ofício dos pais e serem por
eles socializados na profissão), detêm conhecimento específico sobre o mar e a
costa. Marés, ventos, correntes, fauna marinha são fenómenos rotineiramente
observados e sobre os quais desenvolvem capacidades de previsão. Houde (2007)
caracteriza isto como a primeira face do conhecimento ecológico tradicional,
o corpo de observações factuais e específicas, conduzidas ao longo do tempo,
que os habitantes locais são capazes de gerar.
As entrevistas são ilustrativas desse conhecimento local resultante de
observações acumuladas ao longo do tempo:
Aqui a ondulação vem quase sempre pelo Noroeste, mas os ventos são
quase sempre de Oeste, Sul e Sudoeste. Aqui é uma costa muito
amarada, a Costa da Caparica é uma das costas mais ao mar da
plataforma continental e então está muito exposta aos ventos sul e
sudoeste. (Entrevista nº 5, Costa da Caparica)
Esta praia aqui tem uma coisa muito boa, a gente aqui não apanha
correntes de rio, é uma praia suave que não faz aqueles agueiros
grandes; o mar ali mais para baixo é muito fundo, mas não sendo tão
fundo quando é Inverno também faz aqueles redemoinhos muito grandes;
mas é uma zona boa, a esse respeito. (Entrevista nº 6, Costa da
Caparica)
O conhecimento local tem muitas vezes profundidade histórica (a terceira face
do conhecimento ecológico local, segundo Houde, 2007), sobretudo nos pescadores
mais velhos, com várias décadas de experiência profissional. Nos três locais em
estudo o recuo da linha de costa é um fenómeno observado ao longo dos anos,
medido muitas vezes não em metros mas em pontos de referência.
Quando era menino trabalhava já aqui e tinha de andar meia hora para
chegar ao mar da Vagueira e agora não tenho praia para trabalhar.
Agora está o mar aqui nos cabeços. Havia dunas que você ia para lá e
se se escondesse eu tinha de andar meio-dia à sua procura que não a
encontrava. ( ) quando eu era miúdo havia uma bomba de água para dar
comer aos bois e primeiro que os bois chegassem à praia, à beira da
água, demoravam mais de 20 minutos. (Entrevista nº 4, Vagueira)
Quem conheceu a praia da Trafaria como eu a conheci com uns centos de
metros de areias, hoje a água bate contra a muralha. (Entrevista nº
5, Costa da Caparica)
O mar tem sempre tendência a crescer, lembro-me quando era miúdo onde
estava o mar e onde está agora, não é? (...) o meu ponto de
referência era lá em baixo no Cavalo Preto, lá no forte, e vê-se
agora onde estão as pedras do forte, estão dentro de água, portanto o
mar tem vindo a comer, tem vindo galgando, tem vindo a crescer, e se
não fosse por estes molhes já não tínhamos praia.(Entrevista nº 9,
Quarteira)
Outro fenómeno associado também observado pelos pescadores é o desaparecimento
da areia das praias, principalmente na Costa da Caparica e na Vagueira onde os
processos de erosão costeira têm sido mais acentuados do que em Quarteira.
Aqui na frente urbana e não só, portanto desde a Cova Vapor até à
Lagoa de Albufeira, desde os anos 60 para cá o fenómeno tem-se
sentido de forma drástica, tudo o que é areia tem desaparecido.Nós
aqui que trabalhamos com a arte xávega, que é feita no mar e em
terra, nós temos verificado ao longo dos anos que a erosão se tem
feito sentir e cada vez mais. (Entrevista nº 5, Costa da Caparica)
As areias começaram aqui a fugir a fugir, e fugiu. Agora, (...) a uma
milha para lá de distância, acho que se tem agarrado areia, ( ) o mar
não está tão fundo, porque quanto mais fundo o mar mais vem bater à
terra (Entrevista nº 3, Vagueira)
A memória histórica do local abrange também as tempestades e a vulnerabilidade
das populações a estes episódios extremos, hoje mais matizada graças às obras
de defesa costeira entretanto construídas a partir dos anos 60 e sobretudo 70.
Ultimamente tem havido muito mais ondulação, tem sido muito mais
forte; as tempestades tem havido, aqui na Costa também caíam muitas
tempestades e eu ainda me lembro quando era jovem, eu recordo-me
muito bem (...) do mar numa noite levar 16 estabelecimentos de
banhos. Lembro-me muito bem de o mar vir até à linha do comboio
Transpraia e danificá-la.(Entrevista nº 5, Costa da Caparica)
Há uns trinta anos, veio o mar duas vagas, nas suas costas acolá,
àquele café ( ), rebentou tudo, veio, tinha lá o barco da banda de
lá, o barco veio, veio ali para a estrada também. ( ) ficou afetado
ali naquela casa e na outra que está ali, que era o palheirão, o mar
botou para dentro, partiu as portas, partiu tudo, entrou por aí
adentro e foi ter acolá abaixo onde está a rotunda, foi até lá.
(Entrevista nº 3, Vagueira)
Há muitos anos atrás havia temporais que nós muitas vezes, comentando
com algumas pessoas de mais idade diziam mesmo agora, já não há
temporais. Eu acho que agora o problema é que quando ele vem é vento
com força, pode rebentar com tudo e depois desaparece. Antigamente
não, eram 15 dias, 20 dias sempre com mau tempo, mau tempo, mau
tempo.(Entrevista nº 8, Quarteira)
No que respeita às causas das mudanças costeiras, nomeadamente a erosão e recuo
da linha de costa, os pescadores locais identificam tanto causas naturais como
antrópicas, com mais frequência apresentadas em conjunto que isoladas
(multicausalidade). Entre as causas mais referidas estão os fenómenos naturais,
como ventos, marés e correntes.
Se os ventos forem de Norte, Leste ou Nordeste a areia vem sempre
para terra; se os ventos forem contrários, amarados, a areia
desaparece, vai para o rio. (Entrevista nº 5, Costa da Caparica)
Se o vento está norte a areia puxa para cima, se fizer outros ventos
puxa para o mar; mas mexe-se nas areias no mar e também se nota a
diferença cá em terra, como andaram a mexer na Costa? se faltar
areia, se a areia não estiver lá tem mais tendência o mar a avançar
( ). (Entrevista nº 6, Costa da Caparica)
Mas também as dragagens de areia, fenómeno antrópico criticado pelos
pescadores:
Nós tínhamos uma defesa muito grande no rio Tejo que era entre a Cova
do Vapor e a cova do Bugio, nós tínhamos ali uma ilha de areia, uma
coisa enorme, e com as obras da Expo e com as obras do Isaltino
Morais em Oeiras, em que nos garantiram a nós que a areia ia ser
tirada de dentro da barra de Lisboa, e resolviam dois casos: tiravam
alguma areia e desassoreavam a barra. Nós pescadores constatámos
muitas vezes que a areia estava a ser retirada num sítio que não era
o sítio que tinha sido destinado. (Entrevista nº 5, Costa da
Caparica)
Tem muito a ver com as areias na barra. Muito. Agora eles já deixaram
porque, sabe que aqui há dez, quinze anos atrás andavam - ainda aqui
há coisa de cinco/seis anos - andavam a vender areia para a Espanha e
a gente a precisar dela! ( ) É a pesca da areia!(Entrevista nº 3,
Vagueira)
O que eu digo é que ao tirar a areia, com as dragas, vai ficar um
buraco e eu quando vou no meu barco eu passo em sítios onde há um
buraco enorme onde a draga dragou. Ao tirar essa areia a água recuou
e vai ficar outro buraco ( ). O que é que acontece? Ao levar as
areias o mar avança, porque a parte onde está o areal é mais baixa.
(Entrevista nº 8, Quarteira)
Como se constata em alguns destes extratos, este conhecimento dos pescadores
sobre a extração de areias é um saber incómodo, que põe em causa importantes
interesses económicos (Schmidt, 2008; Dias, 2005). Um dos entrevistados chega a
narrar um episódio de denúncia à capitania:
Eu telefonei para a Capitania, porque andavam aqui em obras ( ) eles
ligaram para o comandante e eu disse: Oh meu comandante, eu sou
proprietário da arte xávega, e estou a ver aqui, um construtor aqui -
o engenheiro M, fui lá falar a dizer Então, vocês andam aqui a tirar
a areia para onde? Isto não pode ser. E eles falaram, Quem é você?
[ ]. Já há uns 15 anos. Não são sempre os mesmos, depois disse quem
era, identifiquei-me e disse: Isto necessita muito cuidado, com a
praia, porque estão a desaparecer aqui as areias.. Então ele mandou
um cabo passar aqui. Esteve ali na sala comigo e perguntou-me quantas
carradas tinham saído.(Entrevista nº 2, Vagueira)
Outro entrevistado referiu como causa da erosão costeira a construção de
paredões e esporões:
Esta construção pesada junto à frente urbana, mais toda a pedra que
meteram nos esporões, na própria muralha - há pedras daquelas que têm
toneladas - deu origem a que de facto estas areias foram levadas pelo
mar ( ) dá-nos a crer que a obra, que a construção pesada dá origem à
erosão, porque nós aqui no Sul da Costa da Caparica temos as praias
praticamente intactas, ainda temos os mecos, as dunas, aí não houve
construção pesada, é o que nos leva a pensar. (Entrevista nº 5, Costa
da Caparica)
e outro a remoção de vegetação nas dunas (neste caso as acácias, uma espécie
infestante):
Cavar oposto ao mar é a maior asneira que pode haver, porque quando o
mar ameaça como ameaçou, enquanto as raízes, das árvores, são muito
importantes, oposto ao mar, não é? Agora cavaram, libertaram aquilo,
agora quando o mar ali rebentar, claro não tem salvação. ( ) As
acácias todas ali, andaram com as máquinas a varrer as árvores, sabe?
Eu nem acredito que aquilo foi uma sugestão do [Ministério do]
Ambiente. ( ) Então o Ambiente, a gente corta uma árvore cai em cima
da gente, eu não acredito que aquilo tenha sido uma sugestão do
Ambiente. Eu não quero crer como é que não houve fiscalização do
Ambiente ( ) Agora eles arrancaram as acácias, que até na minha
maneira de ver ajudam a segurar [a areia], não é?(Entrevista nº 2,
Vagueira)
Dois entrevistados mencionaram a regulação do curso dos rios, nomeadamente
através do encanamento e da construção de barragens:
Temos a experiência, que julgo que de alguma forma também influencia
é os rios. Como é o caso ali do rio junto a Loulé Velho, o rio
Almargem. O que é que acontece, o mar entrava pelo rio e tínhamos o
rio que vai dar não sei onde e outro em Vilamoura e aliás temos ali
ao lado uma ribeira ( ) e o mar quando sobe entra por aí adentro,
hoje já não acontece e tínhamos três rios aqui. De Inverno já não
acontece, agora fecharam completamente, puseram um tubo para que o
mar possa entrar e ir ter com o rio. (Entrevista nº 8, Quarteira)
Tenho ouvido dizer que também a construção de barragens também tem
influência direta sobre isso, porque não trazem os sedimentos que
antes vinham quando os rios estavam abertos, não é? (Entrevista nº 7,
Quarteira)
Foi ainda referido, por alguns entrevistados, o papel desempenhado pelas
alterações climáticas na subida do nível do mar, um tema que outros
stakeholders locais não referiram espontaneamente nas entrevistas realizadas.
Normalmente a malta fala, e eu também não sou habilitado para
responder a esse tipo de perguntas, mas o aquecimento global, não sei
se tem alguma coisa a ver, penso que sim, como uma pessoa vê nas
notícias. Por o mar crescer, parece ser essa a maior causa. O gelo
derreter na Antártida e nessas coisas(Entrevista nº 1, Vagueira)
Se continuar assim vai ser muito mau, com o degelo das calotes
polares a informação é de que o nível do mar vai aumentar, as
catástrofes naturais vão aumentar, se nada for feito daqui por 20
anos não vamos ter aqui na frente urbana praticamente areia nenhuma
(Entrevista nº 5, Costa da Caparica).
Neste tema, na maior parte dos casos, o conhecimento provém não da experiência
local, mas sim da informação veiculada por especialistas, através dos mass
media (que vários estudos demonstraram ter um papel crucial na perceção pública
das alterações climáticas - Stamm et al. 2000; Corbett e Durfee 2004; Sampei
2009):
Eu às vezes ouço na televisão eles dizerem que é o gelo que está a
derreter na Antártida e no polo norte e que está a derreter e
prontos. ( ) Acho que vai ter a importância toda, porque se for
conforme eles dizem e o que passa na televisão ( ) não quer dizer que
seja para o ano ou aqui por 2 anos, mas a longo prazo isto vai-se
refletir. Aqui?o mar cresce, não tem nada para guardar, portanto é
subir, tem água por demais, o gelo derretendo vai subir (Entrevista
nº 4, Vagueira)
As depressões, as altas pressões. Lá por causa do polo norte, por
causa do gelo do glaciar, os cientistas lá fazem esses estudos.
(Entrevista nº 9, Quarteira)
No entanto, na Vagueira, atendendo ao papel que a pesca do bacalhau desempenhou
na economia local (Garrido, 2010), há alguns casos de experiência direta ou
indireta do degelo no Ártico (através de informantes privilegiados como o caso
de um dos pescadores entrevistados que no passado trabalhou na pesca do
bacalhau no Atlântico norte).
O polo norte está-se a desfazer; como o polo norte se desfaz a água
cresce. Ora, quanto mais a água cresce para cima ( ) Porque ela
aumenta cá e eu escuto, também ouvi falar, o polo norte estar a
derreter. ( ) Escuto as pessoas que trabalham, lá onde andam ao
bacalhau. Pescadores mesmo. Tenho ouvido falar capitães de navio. Às
vezes aparecem para falar comigo. Eles dizem que o Pólo Norte está-se
a desfazer no dia-a-dia. (Entrevista nº 3, Vagueira)
Quando eu tinha 18 anos eu estive lá metido no gelo, ( ) parámos uns
três dias no gelo lá no canal de São Lourenço, agora ninguém se mete,
porque o gelo desfez-se e, claro, aumentou o nível da água. ( ) Eles
falam do iceberg, não é? Eu tenho experiência disso, porque a gente
navegávamos muito, aí entre ilhotas de gelo, aí é que recolhe as
águas. ( ) (Entrevista nº 2, Vagueira)
Tendo-se estabelecido que os pescadores artesanais detêm um conhecimento
empírico aprofundado do ambiente local, convém examinar agora a sua
participação e envolvimento nos processos de gestão costeira.
3.2. Conhecimento local e planeamento e gestão da costa
Quando interrogados sobre as obras costeiras que têm sido feitas nos três
locais com o objetivo de travar a erosão, os pescadores frequentemente
manifestam o seu desacordo, sustentando-se no conhecimento que detêm das
especificidades locais.
Por um lado, verificam que muitas das obras costeiras, nomeadamente as
dragagens de areia, prejudicam a sua atividade profissional, sobretudo as
condições necessárias à arte xávega e a disponibilidade de peixe.
Nós somos prejudicados também porque as condições neste momento junto
à orla costeira, nós para varar as embarcações temos de as meter num
sítio seguro, esse sítio seguro foi agora a construção de mais uma
rampa para podermos varar as embarcações, porque se as pusermos
debaixo da muralha é uma vez chegarmos e não estarem lá... Tem
prejudicado as pessoas, tem prejudicado aqui a pesca, a arte xávega,
que se pratica na Costa da Caparica e que queremos continuar ( )
precisamos de areia para trabalhar. (Entrevista nº 5, Costa da
Caparica)
Eu já não tenho condições para trabalhar derivado ao cabeço de areia
que se formou ali, pelo mar dentro, rebenta por todo o lado. Às vezes
com o mar manso ali em Mira conseguem trabalhar e nós não conseguimos
derivado à rebentação ( ) Não conseguimos sair com os barcos. Quanto
mais baixo é o mar, mais rebentação faz.(Entrevista nº 4, Vagueira)
Porque as dragas têm reposto as areias na praia mas também destrói
habitats (na minha opinião). Não sou biólogo mas na minha opinião
destrói habitats. E o peixe anda onde sente comedores, onde não
sente, desaparece! É a minha opinião. ( ) Desde a primeira vez que
puseram areia nas praias, retirada do mar - aqui em frente da nossa
costa - houve certas espécies migratórias que deixaram de aparecer na
nossa costa. (Entrevista nº 7, Quarteira)
Por outro lado, a opinião que os pescadores da Vagueira e da Costa da Caparica
têm sobre a eficácia das intervenções é genericamente negativa, quer a
construção de esporões e defesas duras:
O que eu acho é que se construírem aquelas paredes de rocha o mar tem
tendência, quando bate lá, a levar as areias; quanto a mim isso só
deve ser feito em último caso. ( ) O mar quando bate lá tem tendência
a levar as areias, é o caso daquela parede que fizeram na Costa, o
mar bate e por vezes quando bate leva a areia, vai batendo e vai
levando a areia, acho que quanto mais se encher mais o mar puxa.
(Entrevista nº 6, Costa da Caparica)
Esta situação tem-se agravado derivado aos paredões que têm feito, os
paredões que fizeram, vieram beneficiar de um lado, mas vieram
prejudicar noutro, por exemplo onde eu estou a trabalhar o paredão
que lá fizeram no Areão veio agarrar areia do norte, aí 200, 300
metros de areia para o mar. Em contrapartida para o sul do paredão
comeu os mesmos 200 metros para dentro. (Entrevista nº 4, Vagueira)
quer o enchimento das praias com areia.
Esta areia tem sido uma medida eficaz para mandarmos vir para
Portugal o Fundo Monetário Internacional, porque aquilo que estão a
fazer com a reposição de areias para já estão a tirar areia de onde
ela se calhar faz falta, estão a metê-la aqui e isto é a mesma coisa
que meter um pacote de açúcar dentro de uma chávena de café ( ). Têm
gasto milhares e milhares de contos e a areia é aquilo que se vê,
fica lá alguma, ( ) mas muito pouca; estou a pensar que, se fizerem
reposição de areias, metê-la num lado e tirar do outro, em princípio,
se metessem areia no mês de Maio, era possível que até finais da
época balnear as praias tivessem areia, só que eu não garanto é que
depois da época balnear terminar até novamente a Maio essa areia se
consiga suster, não, não consegue, esta não é a solução. (Entrevista
nº 5, Costa da Caparica)
Põem a areia ali ao sopé do mar. Vão lá buscar a areia ao mar para
pôr ali e o mar leva tudo, é como manteiga, vem e leva aquilo tudo
outra vez. ( ) Vão buscar ao mar para pôr nos cabeços, muito próximo.
Ora aquela areia é balofa e o mar quando vem acima, leva-a a toda
outra vez.(Entrevista nº 4, Vagueira)
É interessante notar, nos extratos acima apresentados, as analogias e metáforas
usadas pelos pescadores para fazerem sentido e transmitirem fenómenos complexos
como o impacto das estruturas físicas e o desaparecimento de sedimentos.
Se na Vagueira e na Costa da Caparica a eficácia das obras de defesa é muito
criticada pelos pescadores, já em Quarteira a posição dos entrevistados é
distinta, no sentido de ser bastante mais favorável quanto ao sucesso das obras
costeiras. Tal deve-se também ao facto de o porto de pesca ter sido construído
em resposta às reivindicações dos pescadores.
Em Quarteira deixámos de ter problemas desde que se fez o porto de
pesca de Quarteira e quando se fez os esporões em 72 deixou de haver
problemas, porque o mar avançava ali pelas casas na avenida. ( )
Mesmo com muito mau tempo, chega ali a maresia, um vento que traz
algumas areias, mas que eu tenha conhecimento nunca mais aconteceu.
( ) Com essa proteção a praia de Quarteira ficou defendida ( ) O mar
leva e sobe sempre cá para cima, mas aqui em Quarteira deixámos de
ter esse problema. Por causa dos molhes, sem dúvida nenhuma.
(Entrevista nº 8, Quarteira)
Se a areia da praia não fosse reposta ela já não existia, a praia
aqui em Quarteira, não é? ( ) Alguma eficácia têm, não é? É como lhe
digo, o que conheço aqui a nossa costa, se elas não fossem feitas se
calhar já não tínhamos praia. Temos os esporões, mas os esporões só
por si - alguma coisa protegem a costa mas não são eficazes ao ponto
de a manter. (Entrevista nº 7, Quarteira)
No entanto, com base no seu conhecimento específico dos locais em causa, quase
todos os entrevistados exprimiram opiniões sobre como poderia ser melhorada a
eficácia das intervenções na costa, fundamentalmente apresentando soluções
técnicas alternativas.
Acho que devia haver esporões mas não os que existem. Estes esporões
( ), como estão muito perto uns dos outros, o mar ao entrar pelo meio
faz ricochete, e automaticamente toda a areia que é concentrada entre
os esporões o mar leva. Estes estão feitos a caminho do oeste, nós
achávamos que os esporões deviam ser feitos oeste-sudoeste, para
suster mais o temporal e a ondulação. Achamos que uns deviam ser mais
curtos outros mais compridos, mas construir esporões só de três em
três quilómetros. (Entrevista nº 5, Costa da Caparica)
A única alternativa que eu via nisto, e que eles devem ver até, mas
se calhar ninguém está interessado em fazer ( ) seria pôr uma draga
com uns tubos a baldear a areia do mar para fora, para os cabeços, e
não como eles fazem, que põem a areia ali ao sopé do mar. ( ) Segundo
eu sei na Holanda fizeram conforme eu estou a falar, dragaram do mar
e puseram para a terra, afundaram o mar e puseram para a terra.
(Entrevista nº 4, Vagueira)
Botar na encosta da duna. Nada de passar para trás da duna, tudo
atrás da duna, sempre em correnteza, depois começava a criar o junco
- a gente chama-lhe o feno - e começava a agarrar, eu penso assim.
Bom, vamos lá a ver, eu penso que se encostasse às dunas, que era
capaz de segurar as praias mais um bocado. E sem pedra! ( ) Era tudo
novamente uma duna feita por trás, uma duna nova a segurar a velha,
porque o novo assegura sempre o mais velho. (Entrevista nº 3,
Vagueira)
O que eles tinham que fazer era um paredão lá ao fundo, sobre aquelas
pedras, com um banquinho ao lado, com passadiços, ( ) isso é um
projeto que eu tive na Junta. Eu disse vocês podiam pôr ali um
paredão com meio metro, um metro de altura que não deforma nada, mas
ficamos aqui defendidos das areias e dos ventos e era com um
retorno, quer dizer, o paredão era feito e depois na parte sul à
beira das pedras tinha um retrocesso, e quando o vento viesse com a
areia era lançada outra vez na praia.(Entrevista nº 8, Quarteira)
Ainda que possa ser considerado que os pescadores não dispõem de conhecimentos
técnicos para, em rigor, fazer este tipo de avaliação, seria útil e pertinente
que os peritos e decisores responsáveis por estas intervenções na costa
auscultassem e aproveitassem a experiência acumulada e o conhecimento empírico
dos pescadores de cada local. De facto, tal como refere Beirle (2002), a
qualidade das decisões ambientais melhora quando todos os stakeholders
relevantes são envolvidos nos processos de decisão. No entanto, tal não tem
acontecido:
Eu também acho que, quem dá essas ordens para fazer esse tipo de
obras, não está tão dentro do assunto como, por exemplo um pescador,
está. Porque eu acho que tem de ser feito, por exemplo, outras obras,
mas porque cada praia é diferente. Aqui a praia da Vagueira é uma
coisa, a praia de Mira, é outra coisa, cada praia devia ter uma
maneira diferente de ser estudada. Não é fazer, olha vou fazer tudo
igual para as praias todas, não! O mar não é igual aqui. Por exemplo
o mar aqui está manso, na praia de Mira amanhã está, por exemplo com
vagas de dois metros, aqui só tem vagas de um metro. (Entrevista nº
1, Vagueira)
Sabe que os pequeninos nunca são ouvidos em lado nenhum. ( ) os
pescadores nunca foram ouvidos. ( ) nós trabalhávamos na praia de
Mira quando fizeram lá o molhe e ninguém nos disse nada que iam fazer
esse tipo de obras. ( ) Nunca ouvi nenhum pescador, nunca ouvi
nenhuma pessoa, a vir pedir uma opinião ao pescador, para ser feita
aqui alguma obra. ( ) entre os pescadores e outras pessoas quaisquer,
não há muito diálogo (Entrevista nº 4, Vagueira)
Nós temos bons engenheiros que haviam de tirar às vezes confrontações
é com as pessoas que vivem todos todos os dias nela; isso é que é o
principal. ( ) nós, os pescadores da arte xávega somos pouco ouvidos,
sabe. São uns homens que não têm valor nenhum. ( ) Os outros são
mais. ( ) Todos esses armadores dos barcos grandes, têm outros
poderes. Nós como somos os pescadores de terra, quase nunca somos
ouvidos para nada; que na questão da arte xávega, sobre as praias, há
poucos que saibam tanto como estes pescadores. Não digo como eu, há
outros que ainda sabem melhor que eu.(Entrevista nº 3, Vagueira)
Quanto à recetividade das autoridades ao envolvimento dos pescadores e dos seus
saberes nos processos de tomada de decisão, apesar de não terem sido formuladas
perguntas especificamente sobre o envolvimento dos pescadores, foi identificada
uma atitude genericamente negativa e de menosprezo quanto à participação das
comunidades (Schmidt et al., no prelo).
Esta questão põe em realce a praticamente nula relação dos pescadores com os
peritos e com as autoridades que têm o efetivo poder de tomar decisões sobre a
costa.
Com os peritos científicos, a relação é algumas vezes de distanciamento e
desconfiança.
Os da Universidade já têm vindo aqui muitas pessoas. ( ) Eles às
vezes ficam assim a pensar, vêm, tiram fotografias e tal e vão-se
embora, porque eu também não pergunto nada.(Entrevista nº 3,
Vagueira)
Tive várias reuniões com o IPIMAR [Instituto de Investigação das
Pescas e do Mar] alertando para a situação [desaparecimento de
bivalves devido ao excesso de captura] e o que eles disseram é que
havia bancos de amêijoa para apanhar. E eu fiquei descansado na
altura e esperei, mas em poucos anos desapareceu a amêijoa
completamente. Entretanto os barcos já foram abatidos, já nem fazem
pesca aqui porque acabaram com o recurso que tínhamos aqui ( ) eu
confrontei o Dr. do IPIMAR ainda há pouco tempo sobre isso e a
resposta que ele me deu é que desconhecem totalmente e que foram
surpreendidos com águas ruins que apareceram na costa e que matou os
bivalves, isso é o que eles me disseram. Mas eu não acredito nisso
porque ( ) eu lutei para que se fizesse um defeso nem que fosse 2 ou
3 meses, mas não, foi uma pesca brutal em que só nos deixaram a
areia.(Entrevista nº 8, Quarteira)
São absolutamente esporádicos os casos de colaboração efetiva
Nós, sindicato, fizemos aqui há dois ou três anos um trabalho
envolvendo as pessoas ligadas ao sector do desaparecimento das
areias, geólogos, pessoas que trabalham com a praia, para ver qual a
melhor forma, a Costa Polis nunca ouviu os pescadores, nunca ouviu o
sindicato, nunca ouviu ninguém. (Entrevista nº 5, Costa da Caparica)
ainda que alguns entrevistados exprimam o desejo que ela ocorresse:
Era o que eu estava a dizer, era um estudo bem feito, não só aqueles,
os entendidos, mas alguém que viva isto e que saiba como é que isto
funciona também e cada um dar a sua opinião, fazer um apanhado e ver
qual é a solução. ( ) os cientistas é que têm explicação para isto.
(Entrevista nº 3, Vagueira)
Um dos entrevistados em Quarteira narra um episódio em que é nítido o traçar
de fronteiras (Gyerin, 1995) entre especialistas e leigos:
Numa reunião com IPTM em Lisboa levei um projeto [de um molhe para o
porto de pesca] que fizemos aqui no computador e houve um senhor que
me disse logo: reivindique mas não faça riscos, isso é connosco, não
é com vocês. Reivindique, peça, faça lá o que for preciso, mas nós é
que desenhamos e fazemos as coisas. Foi há sete anos atrás. Quando
se fez o molhe levei tudo aqui feito no computador, que aquele avanço
dos 120 metros resolvia o problema do porto de pesca de Quarteira e
já não havia problema com a ondulação ( ). Eles diziam assim chega
[100 metros]. Eles chegaram lá, olharam para o desenho e um começou
a rir para o outro. E sabe o que é que aconteceu? Eu disse vocês
estão a rir, mas eu não sei quem é que é parvo aqui ( ) sabe quem é
parvo? quem fez aquele desenho daquele porto não percebe nada de
portos ( ). Os engenheiros foram contar a quem fez o desenho ( ) e
ele disse com uma grande calma: olhe, eu quero saber quem foi o
senhor que disse que eu não percebia nada de portos. ( ) eu assumo
aquilo que digo fui eu, Sr. Arquiteto e ele então o senhor não se
vai embora que eu depois quero falar consigo, mas assim com uma
arrogância. Estivemos ali e ele começou-se a explicar, lá as técnicas
dele. Quando acabou a reunião eu levantei-me e ele apressa-se e vem
direito a mim e disse: o senhor falou a verdade, porque o senhor
teve toda a razão quando disse que quem fez isto não percebe nada de
portos; quem fez fui eu. Só que, quando fiz eles meteram na gaveta
porque o Ambiente não autorizava. Então o que é que eles fizeram?
Cortaram o molhe e fizeram o porto de pesca assim porque só assim é
que o Ambiente autorizou. (Entrevista nº 8, Quarteira).
Este episódio permite destacar o papel que as autoridades têm mesmo na relação
entre pescadores e peritos. Apesar da tecnocracia prevalecente tender a
fundamentar as decisões nos pareceres técnicos, a interpretação destes e as
escolhas recaem nos decisores políticos. As obras de defesa costeira são disso
um exemplo paradigmático: apesar da indefinição de políticas de gestão
costeira, da sobreposição de competências, da escassez de estudos de avaliação
de risco, a defesa de linha de costa a qualquer custo tem sido sistematicamente
promovida através da construção de dispendiosas defesas duras (Schmidt et al.,
no prelo).
No caso da administração central, os pescadores contestam sobretudo a falta de
diálogo e de resposta às suas reivindicações, que são sobretudo relacionadas
com a defesa da sua atividade profissional ou do local de residência, mais que
com o propósito de promover a proteção da linha da costa ou combate à erosão.
Quanto a nós o INAG [Instituto Nacional da Água] podia ter feito as
coisas de uma melhor forma, ouvindo as pessoas, portanto acho que fez
como pensaram em fazer, em Portugal as coisas muitas vezes funcionam
assim, ( ) não ouvem as pessoas. ( ) O INAG chegou à conclusão que
uns esporões deviam ser diminuídos e outros deviam ser aumentados. O
INAG devia agora vir dizer às pessoas quais foram os resultados,
porque não há resultados nenhuns, os esporões foram modificados mas a
areia foi levada na mesma (Entrevista nº 5, Costa da Caparica)
Já fui duas vezes ao Ministério do Ambiente porque eu já não tenho condições
para trabalhar derivado ao cabeço de areia que se formou ali (?) Já fui 2 vezes
ao Ministério do Ambiente para me deixarem passar para o sul do paredão mas não
consentem. (?) Porque andaram lá a pôr a areia e pensam que os tratores que
andam lá prejudicam. Faz tanto prejuízo uma pessoa passar de uma duna para
outra como faz um trator a passar, ou se calhar menos. (Entrevista nº 4,
Vagueira)
Os pescadores criticam também a indefinição e/ou sobreposição de competências
entre diferentes órgãos de poder central e local, claramente diagnosticada no
âmbito deste projeto (Schmidt et al.., no prelo) que torna ainda mais difícil a
expressão dos seus interesses e reivindicações.
A gente vai falar com a Câmara, a Câmara diz que é o INAG,
antigamente era a Hidráulica ( ) A Câmara de Almada também a esse
respeito não intervém. Às vezes precisamos de arranjar o telhado da
casa. No tempo da Hidráulica a gente não podia mexer num tijolo, não
podia mexer em nada. (Entrevista nº 6, Costa da Caparica)
Tanto que a Câmara ainda agora quando eu lá fui, vai lá fazer o
armazém e vai fazer na orla marítima e disse o presidente da Câmara
que estavam à espera de um parecer do Ministério do Ambiente. ( ) Há
2 anos tinham um parecer do tenente da capitania que pela parte dele
eu podia passar para o fundo do molhe, passou-me um papel para eu
levar a essa doutora [do Ministério do Ambiente] que para eles estava
tudo bem. E ela ficou cá de vir e nunca veio. (Entrevista nº 4,
Vagueira)
É, a câmara é quem manda aqui, mais o Ministério do Ambiente. ( )
Aqui os maiores que mandam aqui nisto é o Ministério do Ambiente.
Qualquer coisa que queiramos fazer, mesmo nós, temos de ir a Coimbra
ao Ministério do Ambiente. E depois está a Capitania.(Entrevista nº
3, Vagueira)
Quem é que manda mais aqui é o [Ministério do] Ambiente. Para se
fazer alguma atividade, sem o aval do Ministério do Ambiente a
capitania não dá as autorizações. A capitania está ligada ao
Ministério do Ambiente, se ele não der parecer a capitania não dá
(Entrevista nº 9, Quarteira)
A capacidade de reivindicação dos pescadores está fortemente dependente da
mobilização coletiva. Enquanto na Costa da Caparica e em Quarteira há
associações fortes, capazes de reivindicar e, pelo menos, procurarem fazer-se
ouvir pelas autoridades
Nós temos o sindicato e temos uma associação que foi constituída há
muito pouco tempo, que é a Amar a Costa, portanto eu sou vice-
presidente dessa associação e essa associação quer, como associação
para o desenvolvimento da terra, quer ser ouvida, tem lá pessoas, que
podem dar um testemunho ( ) o Sindicato participou nas discussões
públicas, mas nas reuniões em que o sindicato participou tudo aquilo
que nós dissemos acho que não valeu de nada, participámos mas não
fomos ouvidos.(Entrevista nº 5, Costa da Caparica)
A doca de Quarteira, neste momento temos uma doca mais ou menos
devido à nossa associação. O H. empenhou-se mesmo a 100% nisto,
perdeu muitos dias de trabalho em relação a isto, à associação. Isto
ajudou os pescadores todos. (Entrevista nº 9, Quarteira)
E tenho perdido muito tempo da minha vida com isto, muitas vezes
saído do mar, de direta vou para Lisboa ter reuniões. Quando eu vejo
que as reuniões são produtivas e em benefício da nossa comunidade, eu
vou, não tenho perdido nenhuma.(Entrevista nº 8, Quarteira)
O mesmo já não acontece na Vagueira:
Você não sabe que os pescadores nunca foram unidos, têm-se uma raiva
uns aos outros terrível. ( ) não temos cultura nenhuma e isso é o
principal. Não sabemos onde nos havemos de dirigir, antes ainda havia
o Tozé que fazia parte da associação de pescadores do norte,
pertencia ao partido comunista e esse rapaz é que andava à frente
desta porcaria toda quando eles queriam. (Entrevista nº 4, Vagueira)
Em suma, de acordo com o ponto de vista dos pescadores, as autoridades com
poder de decisão sobre a costa são pouco sensíveis aos seus saberes e às suas
reivindicações e tão pouco estão dispostas a acolher o contributo de quem tem
experiência direta dos problemas costeiros e a integrá-lo no processo de tomada
de decisão.
4. Discussão
A análise das entrevistas permitiu retirar algumas conclusões importantes. A
primeira é que os pescadores, devido à atividade que desenvolvem, à sua
proximidade do mar e ao facto de existir uma grande reprodução inter-geracional
da profissão (passada de pais para filhos) possuem um conhecimento muito rico e
multifacetado sobre o mar e sobre a costa. Têm uma noção clara da evolução da
costa, uma memória precisa de fenómenos passados e compreendem perfeitamente as
mudanças costeiras e a sua multicausalidade. Admitem que, apesar das defesas
construídas nas últimas décadas terem solucionado o problema do avanço do mar
em determinados locais, são também um problema e a causa da erosão noutros
troços de costa adjacentes.
Se por um lado, na Vagueira e na Costa da Caparica os pescadores são críticos
das estruturas de defesa duras utilizadas, em Quarteira, por outro lado, estes
parecem estar relativamente satisfeitos com os efeitos produzidos pelos
esporões e pelas recargas de areia. De qualquer forma, em todos os locais, os
pescadores apresentam soluções alternativas às existentes, fundamentadas no seu
conhecimento prático e específico dos locais em causa. Reconhecem que o seu
conhecimento não é científico (Não sou biólogo mas na minha opinião destrói
habitats, como afirmava um pescador de Quarteira), admitindo, de certa forma,
que não tem o mesmo valor, mas que ainda assim é um saber válido. Realçam
sobretudo o cariz prático e localizado do seu saber, que tem mais-valias em
relação ao conhecimento mais genérico dos peritos, e que portanto deveria ser
tido em conta. Mas, de acordo com estes pescadores, não tem sido. E não só o
seu conhecimento não é incorporado nas soluções técnicas, como não são
consultados aquando da tomada de decisões sobre a gestão da costa que os afetam
diretamente, como de resto acontece com outros atores locais.
Tal demonstra que, num momento em que se assiste às duas tendências paralelas
de, por um lado, conferir maior importância ao conhecimento local sobre
fenómenos naturais, integrando-o tanto nas démarches da investigação científica
como nos processos de gestão dos recursos e ecossistemas, e por outro lado,
estimular a inclusão das populações nos processos de decisão política, numa
efetiva democracia participativa (Berkes et al., 2000; Usher, 2000; Davis &
Wagner, 2003; Conrad & Hilchey, 2011), isto não parece estar a suceder nos
nossos casos de estudo. O conhecimento de quem vive na e da costa, nomeadamente
os pescadores, não é tido em consideração no planeamento das intervenções
costeiras e muito menos estes são chamados a participar nos processos
deliberativos.
O nosso argumento é que dois fatores principais explicam este estado de coisas.
Em primeiro lugar, tal como os pastores da Cumbria no caso estudado por B.
Wynne (1992), os pescadores têm uma posição social desfavorecida e uma
identidade social que tem sofrido uma substancial erosão nas últimas décadas.
Os pescadores caracterizam-se por baixas taxas de educação formal (60% não
ultrapassa o primeiro ciclo do ensino básico - INE, 2011: 48) e baixos
rendimentos (a remuneração base média mensal dos trabalhadores do sector da
agricultura e pescas é 24% inferior à média total - MSSS, 2012: 13). As pescas,
que foram um setor económico relevante em meados do século XX, atualmente
representam apenas 0,29% do Valor Acrescentado Bruto nacional (DGPA, 2007: 4).
Os pescadores representavam em 2001 apenas 3,5 da população ativa em Portugal
(quando em 1960 este valor era 14,) (INE, 2011: 47). A frota pesqueira
diminuiu 27% entre 1995 e 2009 (Eurostat, 2011). Este decréscimo deve-se
sobretudo às políticas comunitárias de pesca, que forçaram o desmantelamento de
barcos e proibiram algumas práticas tradicionais, levando ao abandono da
profissão de milhares de pescadores (Oliveira, 2011). As obras da costa e a
concorrência com outros usos (marinas, praias balneares) têm também prejudicado
os pescadores, sobretudo da arte xávega. De acordo com um dos especialistas em
gestão costeira entrevistado no âmbito deste projeto, o realojamento dos
pescadores é uma solução a que se recorre cada vez com maior frequência e está
previsto em diversos Planos de Ordenamento da Orla Costeira pelo país.
A desvalorização social da atividade parece ter sido interiorizada pelos
pescadores, refletindo-se numa auto-avaliação negativa do seu valor social
(não temos cultura nenhuma e isso é o principal..., como referia um pescador
na Vagueira). Assim, apesar de terem consciência da importância do saber que
detêm, não se veem capazes de fazer valer este conhecimento aos peritos e
decisores e só revelam alguma capacidade de reivindicação quando representados
em associações ou sindicatos. Isto reforça a importância da ação coletiva e
marca uma diferença importante entre os nossos casos de estudo, podendo
explicar o estado de maior fragilidade que a pesca tem na zona da Vagueira, em
comparação com as outras zonas de estudo onde os pescadores têm formas de
representação coletiva.
As barreiras ao reconhecimento como interlocutores válidos por parte dos
peritos e decisores políticos provêm não só desta posição ou desqualificação
social mas também de uma incompatibilidade cultural (Wynne, 1992: 297) ou de
uma diferença de cosmologias (Berkes et al., 2000; Houde, 2007). Uma
estrutura de poder administrativo que valoriza o conhecimento credenciado,
legitimado por graus académicos, recusa reconhecer a validade do conhecimento
empírico dos pescadores, que não está registado por escrito e é transmitido
oralmente, em aprendizagens intergeracionais (Wynne, 1992; Berkes et al.,
2000). Assim, verifica-se que os interlocutores operam segundo diferentes
enquadramentos das questões (Dewulf et al., 2004), parecendo quase que não
falam a mesma língua.
Enquanto o conhecimento perito é estandardizado, as condições locais são
variáveis: quem dá essas ordens para fazer esse tipo de obras, não está tão
dentro do assunto como, por exemplo um pescador, está. Porque eu acho que têm
de ser feitas outras obras porque cada praia é diferente (Entrevista nº 1,
Vagueira). Enquanto o ethos tecnocientífico privilegia a previsão e controlo, o
ethos local baseia-se na adaptação e aceitação do que é incerto (Wynne, 1992).
Os pescadores concebem a costa como mutável, pelo que têm uma maior resiliência
ao risco.
O mar é um mistério. E tem um poder que ninguém tem. Ele pode
destruir como pode não destruir. De um dia para o outro ele pode
destruir tudo. É no sítio que calha, onde a gente não sabe.
(Entrevista nº 3, Vagueira)
O mar é uma força da natureza que ninguém pode subestimar ( ) O mar é
terrível, põe-se lá uma pedra quadrada e passado uns tempos a gente
encontra-a fora e está redonda, rejeita tudo, não há hipótese, não se
brinca com ele. (Entrevista nº 9, Quarteira)
É a natureza que vai ganhar. Porque depois a malhar daqui a água, a
malhar daqui e dali, tudo pode se fazer. (Entrevista nº 2, Vagueira)
Em segundo lugar, é a própria relação dos decisores políticos com os cidadãos
em Portugal que funciona como barreira à participação. As barreiras à
participação pública têm sido abundantemente documentadas na literatura e
muitos autores demonstram que, por um lado, existe um grande interesse por
parte do público em participar, e por outro, um grande insucesso em termos do
impacto social dos processos participativos (Buchecker, Hunziker & Kienast,
2002). Este fenómeno parece estar particularmente enraizado na sociedade
portuguesa. Por parte da administração, persiste uma tradição que é
centralizada, hierárquica e secretiva (Gonçalves, 2002: 250), favorecendo
mais o exercício da autoridade baseada em crenças de ordem geral do que o
aprofundamento das bases científicas das decisões ou o diálogo aberto e
pluralista com grupos de interesse e movimentos sociais (Gonçalves, 2000:
201). Se a consulta a peritos científicos se tem vindo a rotinizar, muito em
resultado de imposições europeias mas também da crescente pressão pública para
legitimar decisões em contexto de controvérsias (Gonçalves & Delicado,
2009), já a abertura à participação das populações nas decisões continua a ser
incipiente. Mesmo quando esta é obrigatória, como nos Estudos de Impacto
Ambiental (EIA), estratégias várias são mobilizadas para restringir a
participação: escassa divulgação, difícil acesso à documentação, não
apresentação de alternativas de projeto, discussão pública de obras já em fase
de construção (Chito & Caixinhas, 1993). Vários estudos de caso demonstram
a pouca eficácia das audições públicas dos EIA (Nunes & Matias, 2003;
Gonçalves, 2002). Para Lima (2004: 154), estas audições servem mais para
informar o público que para debater com ele. Por outro lado, Crespo (2004)
salienta as mudanças no sistema de gestão territorial das últimas décadas que
alargaram as oportunidades de participação pública, atribuindo a sua pouca
eficácia (níveis de participação fracos) à ausência de uma cultura técnica que
veja o planeamento sobretudo como uma atividade comunicacional e menos como uma
tradução prática do modelo racionalista dominante na teoria do planeamento até
à década de 70 e, por outro lado, ao défice de cidadania existente na população
portuguesa, designadamente o seu baixo nível de exigência em relação à
administração pública (Crespo, 2004: 12). Predomina ainda na administração
portuguesa uma conceção do público como ignorante, emocional, egoísta ou
parcial (Lima, 2004, Gonçalves et al., 2007). Como tal, os processos de
participação pública são frequentemente uma mera reação às imposições legais da
União Europeia, o que por sua vez faz com que sejam ainda mais
descredibilizados pelo público.
No entanto, quando há conflito aberto, as autoridades são por vezes forçadas a
abrir o debate. Foi a resistência e boicote dos pescadores aos planos de
ordenamento da Parque Marinho da Arrábida que desencadeou o projeto MARGov,
destinado a promover o diálogo entre atores-chave e promover a participação
ativa das comunidades locais (Vasconcelos et al., no prelo a; no prelo b).
O alcance deste estudo é necessariamente limitado. Integrado num projeto
bastante mais vasto e com objetivos mais alargados, baseia-se numa amostra de
reduzida dimensão que não permite generalizar os resultados ao universo dos
pescadores artesanais. Também não inclui as perspetivas dos cientistas e dos
responsáveis pela gestão da costa sobre o conhecimento e a participação dos
pescadores porque, apesar de estes intervenientes terem sido entrevistados,
este tema surge apenas de forma assistemática e casuística nos seus discursos.
O trabalho realizado não permite igualmente contrastar os conteúdos dos
conhecimentos leigos e peritos sobre fauna, ecologia ou hidrografia das áreas
de estudo, mas essa nunca foi a intenção deste estudo e transcende largamente
as competências dos autores.
No entanto, é importante referir que o que se pretendia com este artigo era
principalmente dar a conhecer a ótica dos pescadores e demonstrar a existência
de um saber local válido baseado na experiência quotidiana, que deverá ser
aproveitado e integrado na tomada de decisões sobre gestão costeira.
5. Conclusão
Este artigo tinha como objetivo investigar que conhecimento local detêm os
pescadores artesanais sobre as mudanças costeiras e sobre as intervenções na
costa e de que forma esse conhecimento tem sido, ou não, aproveitado na gestão
costeira.
As conclusões aqui apresentadas baseiam-se num conjunto de entrevistas em
profundidade a pescadores de três zonas costeiras em Portugal que, pelas suas
características, permitem ilustrar as diferentes formas de conhecimento que se
podem encontrar na costa portuguesa onde ainda se pratica pesca artesanal.
Este trabalho pretendeu sobretudo alertar para a importância de se auscultar o
conhecimento local e integrá-lo nos procedimentos de investigação e gestão
costeira. Neste sentido, este artigo é um contributo para este corpo de
literatura e faz parte de um esforço para desenvolver investigação baseada na
comunidade, centrada nos aspetos sociais da vulnerabilidade às alterações
climáticas e às mudanças costeiras, permitindo fornecer pistas sobre a
capacidade de adaptação e resiliência à escala local, como defendido por Dolan
& Walker (2004).
A informação obtida permite, por um lado, reiterar o diagnóstico de deficit de
participação das comunidades e a falta de diálogo entre decisores, peritos e
populações. Por outro lado, possibilita retirar importantes lições acerca da
validade do conhecimento local dos pescadores e para a forma como este
conhecimento pode ser incorporado nos processos de gestão costeira em Portugal.
Caberá agora aos atores políticos criar os mecanismos para essa incorporação
efetiva.