Mortalidade de Vertebrados Terrestres no Canal do Vale da Ribeira de Seda
(Cabeção - Alto Alentejo - Portugal)
Introdução
A fragmentação dos habitats tem sido reconhecida como um dos factores mais
significativos para o declínio da biodiversidade na Europa (BEKKER, 2002;
SEILER e FOLKENSEN, 2006). As infra-estruturas lineares, como as estradas,
auto-estradas, caminhos-de-ferro e canais de rega, são actualmente consideradas
como uma das principais causas da fragmentação dos habitats (SEILER, 2001 e
2002; SEILER e FOLKENSEN, 2006).
Ao longo das últimas duas décadas têm sido publicados estudos sobre os efeitos
ecológicos que estas infra-estruturas causam nos demais ecossistemas que
atravessam (REIJNEN et al., 1996; FORMAN e ALEXANDER, 1998; CLEVENGER et al.,
2003; HASEN e CLEVENGER, 2005; PETRONILHO e DIAS, 2005; GARCÍA, 2009; GRILO et
al., 2009; SILVA et al., 2012). Dependendo de cada tipo de infra-estrutura
linear os efeitos ecológicos que se fazem sentir são sobretudo ao nível da
perda e transformação de habitat, da diminuição da conectividade, do efeito
barreira e da mortalidade não natural que causam a inúmeros indivíduos de
espécies de vertebrados selvagens (FORMAM e ALEXANDER, 1998; SEILER, 2001;
JAEGER et al., 2005; ROW et al., 2007). Como barreiras ao movimento das
espécies, estas infra-estruturas criam manchas de habitat mais pequenas e
incrementam o seu isolamento, conferindo a pequenas populações um risco elevado
de extinção devido ao facto da oportunidade demográfica e genética ser reduzida
(SPELLERBERG, 1998; ALEXANDER e WATERS, 2000; CARR e FAHRIG, 2001; JOLY et al.,
2003; DIXO et al., 2009). Por outro lado, a presença destas infra-estruturas é
um factor limitante para as espécies na medida em reduz a taxa de sobrevivência
dos indivíduos tanto na tentativa de cruzar a infra-estrutura como também em
redor desta. Contudo, a dimensão destes impactes na fauna silvestre está
dependente de factores relacionados com a variabilidade dos padrões
paisagísticos e dos aspectos inerentes às próprias espécies, como sejam a
densidade populacional, o tamanho da espécie, a maior sensibilidade às
alterações do meio e a própria biologia (SEILER, 2001).
A maioria dos estudos realizados sobre esta problemática incidem sobretudo nos
impactes causados por rodovias. Contudo existe já um número, embora muito
reduzido em comparação com as estradas e auto-estradas, de estudos sobre os
impactes dos canais de rega na fauna terrestre (CARVALHO e DIAMANTINO, 1996;
TRAVERSO e ALVAREZ, 2000; GODINHO e ONOFRE, 2003; PERIS e MORALES, 2004;
GARCÍA, 2009). Assim, o presente estudo tem como objectivo principal aumentar o
estado do conhecimento actual sobre o impacte que os canais de rega causam nas
populações de vertebrados selvagens que entram em contacto com estes.
Em concreto, pretende-se responder a dois objectivos centrais: (i) determinar
taxas de mortalidade verificadas nos diferentes grupos faunísticos, (ii)
avaliar padrões sazonais e espaciais nos índices de mortalidade num troço de
canal.
Métodos
Área de estudo e canal monitorizado
O presente trabalho foi levado a cabo na zona Sul do Sítio de Cabeção da Rede
Natura 2000, distrito de Évora, Alto Alentejo, Portugal (Figura_1). Trata-se de
um território marcado por um relevo suave, ligeiramente ondulado sob a
influência de um bioclima termomediterrânico sub-húmido (COSTA et al., 1998).
Os montados de sobro e azinho surgem como elementos dominantes nesta paisagem,
sendo que os segundos assumem um menor grau de representatividade.
O sistema de canais de rega monitorizado pertence ao perímetro de rega do
Empreendimento Hidroagrícola da Albufeira do Maranhão (EHAM), construído na
década de 1950 (INAG). A rede de canais do EHAM dentro do Sítio de Cabeção
compreende cerca de 18 Km de extensão, variando ao longo do seu percurso a
largura, profundidade e a forma. Quanto à largura, existem secções de canal com
0,48m, 0,80m e 2m, tendo estas secções a profundidade de 0,60m, 1,24m e 1,60m,
respectivamente. A velocidade da corrente varia entre 1m/2,5s e 1m/3,5s
(dependendo do caudal). No que respeita à sua forma, estes canais apresentam
dois tipos de perfil: trapezoidal ou com paredes na vertical. O período
operacional dos canais (transporte de água para regadio) ocorre sensivelmente
entre Abril e Outubro.
Monitorização do canal
A extensão de canal monitorizado foi de cerca 4,29 km divididos em cinco
sectores em função dos sifões existentes (cf. Figura_1).
Para estudar a mortalidade de vertebrados terrestres nestes canais, efectuou-se
a monitorização dos sectores durante dez meses, desde Outubro de 2002 até Julho
de 2003, realizando-se uma visita por semana, perfazendo assim um total de 40
visitas neste período de estudo. Cada visita implicava um percurso de 4,29 km
metros ao longo dos referidos sectores, quantificando-se todos os indivíduos
encontrados mortos ou vivos, quer ao longo dos canais quer nas bocas dos
sifões. A maior parte dos indivíduos respeitantes aos micromamíferos,
recolhidos no decurso deste estudo, foram previamente preparados para a sua
posterior identificação no laboratório. Para efeito de comparações entre
sectores, devido aos comprimentos e perfis distintos, calculou-se um índice de
abundância relativa por km (IKA), ou seja, o número de indivíduos capturados
por cada 1 km de canal monitorizado e um outro relativo ao número de espécies
por km, designado por IKR. Adicionalmente foi feito um inquérito junto dos
funcionários do canal, que o percorrem diariamente, com a finalidade de obter
informação adicional e que eventualmente tenha escapado à metodologia
utilizada.
Elenco faunístico e padrões de mortalidade
Para além da recolha de dados relativos aos animais aprisionados no canal e
sobre as características específicas dos canais e do caudal nos seus diferentes
sectores, colheu-se também informação sobre a ocupação do solo, declives dos
terrenos e distâncias a massas de água num buffer de 250 metros em redor de
cada sector. Para além destas variáveis, foi também calculado a diversidade do
habitat. Para o cálculo desta variável foi usado o índice de diversidade de
Shannon (SDI) obtido através da extensão Patch Analyst 3.1 (ELKIE et al., 1999)
do software ArcView 3.2 (ESRI, 1999).
Com a finalidade de relacionar os valores dos índices IKA e IKR com alguns
parâmetros climáticos, correlacionaram-se aqueles com a pluviosidade total por
mês e temperatura média mensal obtida na estação meteorológica de Cabeção,
utilizando o coeficiente de Spearman. Para testar se existiam diferenças
significativas ao longo do período de amostragem e dos sectores monitorizados
no que respeita ao IKA e IKR, efectuou-se uma ANOVA One-Way e um conjunto de
testes de comparações múltiplas com a estatística de Tukey HSD. No sentido de
avaliar a relação entre os valores dos índices com as variáveis de uso e
ocupação do solo, declive, largura do canal e distâncias a massas de água
efectuou-se uma Análise de Componentes Principais (ACP). Para a análise
estatística foram utilizados os softwares SPSS 13.0 (SPSS Inc.), e o STATISTICA
7 (Statsoft® Inc.).
Resultados
Elenco faunístico inventariado no canal
Durante o período em que decorreu este estudo, contabilizou-se um total de 401
indivíduos aprisionados pelo canal, dos quais 114 eram anfíbios, 108 répteis e
179 mamíferos, na sua maioria micromamíferos (Quadro_1). Do número total de
animais capturados, 73,8% encontravam-se já mortos, sendo que 59,8%, 28,4%e
11,8%destes se referem respectivamente a mamíferos, répteis e anfíbios (Quadro
1). No global do estudo foram inventariadas 34 espécies de vertebrados
terrestres, entre as quais 13 eram mamíferos, 11 anfíbios e 10 répteis (Quadro
1). Do número total de indivíduos encontrados no canal, o ratinho-ruivo (Mus
spretus), a cobra-rateira (Malpolon monspessulanus) e o sapo-de-unha-negra
(Pelobates cultripes), foram as espécies mais afectadas por esta infra-
estrutura, com valores de mortalidade de, respectivamente, 20,7%, 9,7% e 7,7%
relativamente ao total de indivíduos. No caso dos ofídios, verificou-se que
cerca de 75% dos indivíduos capturados no canal eram juvenis. No que respeita à
informação recolhida por inquérito, obteve-se um conjunto de resultados que
permitiu aferir sobre o impacte destes canais noutras espécies não detectadas
no decorrer dos trabalhos de campo. A incidência deste impacte foi confirmada
em coelho (Oryctolagus cuniculus), raposa (Vulpes vulpes), texugo (Meles meles)
e javali (Sus scrofa), este último também observado pelos autores em Abril de
2002, durante os trabalhos preliminares. Para além destas espécies foram ainda
referenciadas duas aves de rapina encontradas afogadas, uma confirmada pela
equipa - águia-calçada (Hieraaetus pennatus) -, e uma outra não identificada
pelo funcionário.
Padrões sazonais de mortalidade
Os testes de associação entre as abundâncias totais dos diferentes grupos de
animais e a precipitação, mostraram que existe uma correlação negativa
significativa entre a quantidade de precipitação e o número de répteis
encontrados no canal (Spearman: R = -0,816; p <0,01), e uma correlação,
positiva, significativa com os anfíbios (Spearman: R = 0,683; p <0,05), não
existindo relação significativa com os mamíferos (Spearman; R = 0,472, p =
0,179). Em relação à temperatura, apenas se verificou existir correlação
significativa com o total de répteis aprisionados no canal (Spearman; R =
0,877; p <0,01), não se tendo encontrado correlações significativas com
qualquer outro grupo. Note-se no entanto, que em relação ao número total de
indivíduos registados, os valores foram mais baixos ou mesmo quase nulos no
período mais seco e quente do ano - Julho-Agosto -, e no período mais frio -
Janeiro-Fevereiro (Figura_2).
No que respeita aos resultados da Análise de Variância, verificou-se que a
mortalidade nos três grupos faunísticos (anfíbios, répteis e mamíferos) não se
comportou do mesmo modo ao longo dos 10 meses de amostragem (Figura_3). As
diferenças de mortalidade ao longo do período de estudo registaram-se como
significativas apenas nos anfíbios e répteis, (anfíbios F= 2,571, p= 0,019, df
= 9; répteis F= 21,355, p <0,001, df = 9). No entanto os testes de Tukey HSD
apenas indicaram existirem diferenças significativas para os répteis,
nomeadamente diferenças entre os meses de Maio e Junho com os restantes meses
(p<0,001). Apesar dos resultados das comparações múltiplas para os anfíbios não
evidenciarem diferenças significativas no IKA neste grupo ao longo dos 10 meses
de amostragem, optou-se por considerar como válidos os resultados da ANOVA na
medida em que se trata de um teste mais potente. Na ANOVA a probabilidade de
rejeitar a hipótese nula correctamente é maior que nos testes de comparações
múltiplas que têm associado maiores probabilidades de erro do tipo II (MAROCO,
2002).
Padrões espaciais de mortalidade
As medições das diferentes manchas de uso/ocupação do solo nos buffers
mostraram que os sectores I, III e IV apresentavam uma maior diversidade
paisagística (SDI em bits, sectores: I = 1,69; II = 1,33; III = 1,87; IV = 1,73
e V = 1,39), bem como os valores mais altos em termos de IKA e IKR (Figura_4).
O sector I tinha nas suas imediações como usos/ocupações dominantes áreas de
culturas de regadio abandonadas (CA2) (40,8%), montados de azinho com matos
(AZ) (28,8%) e culturas de sequeiro (CA1) (22,0%). Os sectores III e IV
partilham o mesmo uso embora em proporções distintas, 49,3% e 17,0% de culturas
de sequeiro, 15,0% e 34,0% de regadio abandonado, 6,3% e 24,6% de montado de
azinho, para o sector III e IV, respectivamente (Figura_5). Em relação aos
parâmetros declive e distância a massas de água, verificou-se também uma
ligeira diferença entre sectores. No que respeita ao declive, o sector IV
representa um terreno bastante mais enrugado onde ocorrem vertentes com
declives acentuados. Relativamente à distância a massas de água, os sectores I
e III são os que apresentam a menor distância.
Pelos resultados da ANOVA One-Way e pelos testes de comparações múltiplas,
verificou-se que as diferenças entre o IKA total por sector são significativas
(F = 6,007; p <0,001, df = 4), tendo-se verificado uma maior abundância total
de vertebrados aprisionados no sector IV (IKA = 238 animais por km) (Figura_4).
Pelos testes de Tukey HSD observa-se que o sector IV se destaca
substancialmente dos outros (p<0,001), seguido pelo sector III onde se registou
também uma mortalidade significativa (p<0,007). São igualmente significativas
as diferenças no IKR por sector, i.e. no número de espécies por sector (F =
5,640; p <0,001), tendo-se detectado um maior número de espécies no sector III
(Figura_4).
Os resultados da ACP permitem explicar, apenas com as duas primeiras
componentes, 73,52% da variabilidade total dos dados (Figura_6, Quadro_2). Pela
análise do Quadro_2, verifica-se que a largura do canal (Larg) é a variável que
mais influencia os valores de IKA e o IKR, revelando que quanto maior a largura
dos sectores maior serão os valores de IKA e IKR. De facto, os valores mais
altos de IKA e IKR foram registados nos sectores de maior largura, III e IV
(Figura_4). Para além desta variável, a distância às massas de água (Dist_H2O),
a presença de olivais (OLI) e terrenos agrícolas (sequeiro) em pousio (CA3) nas
imediações do canal também mostraram uma relação forte com o IKA e o IKR.
Relativamente à variável Dist_H2O, o gradiente evidenciado pela componente 2
(Factor 2, Quadro_2) revela que quanto maior for distância às massas de água
menor será o valor de IKA e IKR. Este resultado poderá explicar a importância
das massas de água localizadas perto dos canais para o aumento da mortalidade
dos anfíbios. Pelo contrário, à medida que aumenta a área de ocupação de
olivais (maioritariamente olivais antigos e abandonados) e terrenos em pousio
há um aumento nos valores de IKA e IKR.
Relativamente ao impacte dos canais em comunidades de pequenos vertebrados
terrestres verificou-se que no caso dos répteis e mais em particular os
ofídios, os sectores III e IV foram os locais onde se registaram os maiores
valores de IKA deste grupo (Figura_7). No que respeita aos anuros e urodelos os
valores mais altos de IKA foram registados no sector IV, embora no sector III
também se tenha observado um valor semelhante no caso dos anuros. Em relação
aos micromamíferos verificou-se uma elevada mortalidade no sector IV e III,
tendo-se registado cerca de 192 e 36 indivíduos/km, respectivamente.
Discussão
Como se pode constatar pelos resultados obtidos, o efeito barreira/armadilha
provocado por este tipo de infra-estrutura parece exercer-se de uma forma pouco
selectiva, sobretudo no que se refere a animais não-alados de pequenas
dimensões, sejam répteis, anfíbios e pequenos mamíferos. Não obstante, e
principalmente segundo as informações recolhidas por inquérito aos funcionários
do canal, ocasionalmente caem e morrem animais de maiores dimensões nestes
canais, como javalis, raposas e, até mesmo algumas aves de rapina. Tal como nas
estradas, suspeitamos que este facto poderá dever-se a situações de predação,
ou seja, o canal ao reter um conjunto de indivíduos-presa está a induzir a
entrada de predadores que vêm nestes locais uma oportunidade fácil de obter
alimento (JACQUES e GARNIER, 1982). Contudo, esta aparente facilidade poderá
traduzir-se num factor acrescido de mortalidade, visto a probabilidade de
escaparem dentro do canal ser bastante diminuta, devido por um lado ao caudal
quando transporta água, e por outro, à sua profundidade e forma das paredes
(vertical). Assim, a mortalidade de mamíferos de médio porte e algumas rapinas
em canais deste tipo, não terá tanto a ver com o efeito directo da infra-
estrutura (e.g. barreira ao livre movimento), mas sim com a elevada
disponibilidade de alimento que proporcionam, imprimindo um efeito de
mortalidade em cadeia noutros grupos de vertebrados terrestres (JACQUES e
GARNIER, 1982; BENNETT, 1991; JONES, 2000; SEILER, 2001; LITTLE et al., 2002).
À semelhança do verificado noutros estudos (CARVALHO e DIAMANTINO 1996;
TRAVERSO e ALVAREZ, 2000; GARCÍA, 2009), os valores de IKA e IKR aqui
apresentados vêm confirmar que os canais de rega a céu aberto influenciam de
modo negativo e significativo no livre movimento das espécies que habitam os
habitats circundantes e são causadores de elevada mortalidade. Tal é apenas
diminuído quando as temperaturas extremas (demasiado baixas ou altas) fazem com
que as espécies reduzam os seus movimentos, condições não favoráveis aos seus
modos de vida (FERRAND DE ALMEIDA et al., 2001; PLEGUEZUELOS et al., 2002). O
efeito deste tipo de infra-estrutura linear efectua-se de modo contínuo, e o
impacte ocorre sempre que existe actividade por parte deste ou daquele grupo
animal e o canal esteja plenamente operacional.
O número de espécies e indivíduos capturados no canal parece reflectir um
padrão sazonal, facto que também foi observado noutros estudos sobre
mortalidade em infra-estruturas lineares (ASHLEY e ROBINSON, 1996; CLARKE et
al., 1998; CLEVENGER et al., 2003; GIBBS e SHRIVER, 2005; GARCÍA, 2009). Esta
sazonalidade nos valores poderá representar a resposta aos diferentes ciclos de
vida dos três taxa inventariados neste estudo, nomeadamente em função dos
períodos de reprodução e de dispersão. Contudo, no caso dos mamíferos (94.9%
micromamíferos) não se registou uma significativa variação ao longo dos meses,
tendo-se verificado no entanto que os meses de Novembro e Dezembro foram os
picos de maior mortalidade. Este resultado poderá estar relacionado com um
período de maior actividade de várias espécies de micromamíferos logo após um
período de escassez de alimento (verão). Com as primeiras chuvas de Outono
(sobretudo Outubro) surge também uma maior disponibilidade de alimento que vai
determinar as dinâmicas espaciais de muitas destas espécies na procura das suas
necessidades alimentares e até reprodutivas. Com o aumento do rigor do inverno
(Janeiro e Fevereiro) estas espécies reduzem ao máximo os seus movimentos,
reflectindo-se este aspecto numa menor captura de indivíduos dentro dos canais.
No caso dos anfíbios os valores foram mais elevados durante os meses de maior
precipitação, entre Outubro e Dezembro, mas também em Março e Abril, que
constituíram meses de alguma pluviosidade. Estes picos pronunciados vêm mostrar
que os níveis de maior captura de anfíbios nos canais estão associados aos
períodos de maior pluviosidade, o que corresponde nos seus ciclos de vida aos
movimentos para os locais de reprodução (FERRAND DE ALMEIDA et al., 2001; GIBBS
e SHRIVER, 2005). Devido ao facto dos canais reterem sempre água ao longo do
ano (variando a altura da coluna de água em função dos períodos de
operacionalidade do canal) os anfíbios são atraídos para o seu interior. Ao
ficarem aprisionados no canal, alguns indivíduos de espécies como Hyla arborea
e Bufo calamita emitem chamamentos (S. Godinho, obs. pers.), os quais poderão
atrair outros e levá-los a entrar. Este facto poderá contribuir para o aumento
do número de indivíduos aprisionados no canal e assim para uma maior taxa de
mortalidade em indivíduos reprodutores, reflectindo-se posteriormente numa
redução do potencial reprodutor da população local.
Em relação à mortalidade de répteis, em particular às serpentes, verificou-se
também uma nítida sazonalidade, pois as primeiras observações destes animais
dentro dos canais ocorreu sensivelmente a meio de Março, atingindo picos de
maior mortalidade nos meses de Maio e Junho. Neste ultimo período, salienta-se
a elevada percentagem de indivíduos juvenis aprisionados dentro do canal (cerca
de 75% do total das serpentes). Note-se que no caso dos juvenis trata-se de
indivíduos do ano anterior, ocorrendo a eclosão da maior parte dos ofídios aqui
inventariados em meados de Agosto até finais de Setembro (SALVADOR e
PLEGUEZUELOS, 2002). Assim, verificando-se a frequência das capturas de juvenis
sobretudo em Maio e Junho, tal poderá significar que estes mesmos indivíduos,
que pertencem à postura anterior, estão nessa altura na sua fase de dispersão.
À semelhança do verificado nos anfíbios, também aqui os resultados evidenciam
que os répteis são afectados pelo canal quer no período dispersivo de
reprodução (indivíduos adultos capturados em Março e Abril) quer no momento da
dispersão juvenil (elevada captura de juvenis entre Maio e Junho). Em relação à
maior parte dos lacertídeos, apesar de serem muito abundantes quer nas
imediações dos canais quer noutros locais da área de estudo, o número de
indivíduos contabilizados durante a monitorização foi muito reduzido (Quadro
1). O mesmo acontece com o sapo-comum (Bufo bufo) que é uma espécie considerada
comum na região (LOUREIRO et al., 2008) e que foi pouco capturada no canal. As
observações deste sapo dentro do canal bem como nas estradas existentes na área
de estudo têm sido nos últimos anos relativamente diminutas. Este facto é
indicativo de baixas densidades populacionais desta espécie na zona, as quais
poderão ser resultado de uma de duas hipóteses: a) os longos anos de operação
do canal (cerca de 50 anos) contribuíram para a diminuição significativa das
populações de sapo-comum nas imediações e eventualmente de outras espécies
supostamente comuns (veja-se também TRAVERSO e ALVAREZ, 2000); b) o declínio
desta espécie a nível local como consequência de um conjunto de situações, tais
como alterações climáticas, práticas agrícolas, alterações do uso/ocupação do
solo e mortalidade por atropelamento (FAHRIG et al., 1995; HELS e BUCHWALD,
2001; CARRIER e BEEBEE, 2003; GIBBS e SHRIVER, 2005). Contudo, ambas as
hipóteses carecem de comprovação.
Os valores de IKA e IKR observados por sector parecem reflectir, por um lado,
as características do canal (largura) e a qualidade e a diversidade dos
habitats. No entanto esta evidência poderá ser também explicada segundo alguns
aspectos inerentes às próprias espécies, como sejam a sua distribuição e
abundância nas imediações do canal e também a sua dispersão (CLEVENGER et al.,
2003). Como se pode constatar no gráfico da Figura_4, os sectores III e IV
foram os que apresentaram os valores mais altos de IKA e IKR, resultado que
poderá estar associado à maior largura do canal. De facto, os dados referentes
aos ofídios em que cerca de 75% das capturas foram juvenis faz pressupor que a
dimensão destes é incompatível com a tentativa de atravessar os canais. Também
esta hipótese é fundamentada com observações in locu de indivíduos adultos de
cobra-rateira e cobra-de-escada (Rhinechis scalaris) que atravessaram com
sucesso canais com larguras de 80cm e 48cm, respectivamente (S. Godinho, obs.
pers.). Para além da influência da largura do canal no número de animais
contabilizados, verificou-se também, sobretudo no sector III, que a presença de
arrozais abandonados nas imediações estava associada a um maior número de
anuros aprisionados no canal, à semelhança do observado por CLEVENGER et al.
(2001). Estes arrozais abandonados funcionam como charcos ou pequenas lagoas no
período das chuvas, albergando elevadas concentrações de indivíduos
pertencentes a várias espécies de anfíbios (S. Godinho, obs. pers). Nestas
circunstâncias, supõe-se que os indivíduos no decurso das suas migrações para
estes arrozais abandonados encontrem uma barreira física que os impede de
alcançar estas massas de água - o canal que os intersecta. Por fim, o elevado
valor de IKA e IKR verificado no sector IV poderá estar associado também à
topografia do terreno (veja-se ainda CLEVENGER et al., 2003). Nas imediações
deste sector existem de facto vertentes com declives bastante acentuados
permitindo que a vegetação se desenvolva naturalmente sem a intervenção humana
dada a impossibilidade de utilização de máquinas agrícolas nestas zonas. A
falta de intervenção nestas manchas de vegetação cria um refúgio para um vasto
leque de vertebrados terrestres numa paisagem marcadamente agrícola (FORMAN,
1995). Este tipo de paisagem vai variando ao longo dos sectores, sendo no
entanto mais expressiva no sector IV, embora ocorra também no sector I e III,
locais onde se registaram também IKAs e IKRs elevados.
Conclusão
Baseado nos resultados deste estudo é possível ter uma noção mais alargada dos
diferentes taxa afectados por esta infra-estrutura linear, como também pôr em
foco o impacto que esta barreira poderá operar nos ecossistemas e na fauna que
intercepta. As implicações destes impactes dependerão, entre outros, do
processo ecológico afectado, ou seja, das causas que incitam os animais a
atravessar para o outro lado da barreira, que pode ser a procura de alimento, a
reprodução, a migração ou a dispersão juvenil (RODRIGUEZ e CREMA, 2000).
Segundo a literatura existente, os factores mais importantes que determinam a
mortalidade dos indivíduos nas estradas, são o tráfego e a velocidade dos
veículos (FAHRIG et al., 1995; TROMBULAK e FRISSELL, 2000; GIBBS e SHRIVER,
2005). Pensamos que nestas infra-estruturas rodoviárias ainda poderá existir
apesar de tudo uma relativa permeabilidade visto que a intensidade do tráfego
não se processa de forma constante. Pelo contrário, nos canais, o tráfego é
substituído pelo caudal de água que transportam de forma contínua, conferindo a
esta infra-estrutura uma elevada impermeabilidade à passagem dos animais. Tal
como o verificado nas estradas (CARR e FAHRIG, 2001; JOLY et al., 2003; HELS e
BUCHWALD, 2001), também os canais parecem exercer um efeito negativo nestes
grupos de vertebrados terrestres, na medida em que reduzem o potencial
reprodutor nos períodos de reprodução e influenciam, negativamente, a taxa de
sobrevivência no decurso da dispersão juvenil. Assim, os resultados deste
estudo, embora com algumas limitações sobretudo devido ao número reduzido de
sectores amostrados, poderá ajudar a conhecer e compreender melhor a realidade
destes impactes e poderá ainda servir de base para uma melhor estruturação de
estudos a realizar no futuro, neste tipo de infra-estruturas. Como desafio de
investigação, surge como prioritário delinear um projecto experimental que
permita obter dados demográficos das espécies nas áreas circundantes a estas
infra-estruturas, para assim se poder avaliar os verdadeiros impactes dos
canais nos vertebrados terrestres.
Como medidas mitigadoras que fomentem a conectividade das populações, sugere-se
a implementação nos canais de um conjunto de estruturas que minimizem tais
impactes, estruturas já aplicadas e testadas com êxito por diversos autores
(RODRIGUEZ et al., 1996; CLEVENGER e WALTHO, 2000 e 2005; MORALES et al., 2000;
BOHEMEN, 2002; CLEVENGER et al., 2002; DODD et al., 2004; PERIS e MORALES,
2004; MATA et al.,2005). De entre as soluções possíveis destaca-se, nos locais
mais problemáticos, a vedação longitudinal dos canais com redes de malha
bastante fina e/ou a construção de uma estrutura do tipo pala semicircular
côncava para o lado exterior, bem como a adopção simultânea de passagens
superiores sobre os canais (abertos ou em conduta fechada), especificas para a
fauna selvagem de menores dimensões (Figura_8). No que respeita às passagens
hidráulicas, pensamos que umas ligeiras alterações na sua configuração,
nomeadamente a construção de rampas, poderão aumentar significativamente a
conectividade entre as partes isoladas (ver YANES et al., 1995).