Da Evidência ao Gut feelings
EDITORIAL
Da Evidência ao Gut feelings
From Evidence to Gut feelings
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Clínica Geral, director@rpcg.apmcg.pt
Muito se fala actualmente de Medicina Baseada na Evidência (MBE) e muitos são
os que procuram nas melhores fontes de informação as mais actualizadas e mais
credíveis provas científicas para apoiar a resposta clínica a dar ao paciente
em cada situação.
A necessidade de praticar uma MBE em vez daquilo que, com uma pontinha de
picardia, poderíamos denominar de MBO (Medicina baseada na opinião) já começou
há algum tempo, paulatinamente, a fazer parte do nosso dia-a-dia clínico e a
estar entranhada no nosso modus operandi. Já não é sem tempo, uma vez que a
génese filosófica desta corrente teve início em meados do século XIX...1
No entanto, no momento de interpretar as evidências ou de graduar as provas
científicas usando as escalas de evidências, muitas são as dúvidas e as
inseguranças.
Vejamos o que se passa na saudável e importante discussão levantada pela carta
ao Director2 e respectiva resposta3 publicadas nesta edição a propósito de um
artigo do Dossier «Adolescência» publicado num número anterior da Revista
Portuguesa de Clínica Geral.4
Um procedimento recomendado no artigo «Boletim de saúde Infantil e Juvenil - o
exame global de saúde dos 11 aos 13 anos (parte II)»4, a execução da manobra de
Adams na consulta do exame global de saúde dos 11-13 anos, foi posto em causa,
à luz do que é recomendado pela USPSTF (United States Preventive Services Task
Force), que analisa o rastreio da escoliose idiopática enquanto rastreio
comunitário.4 Segundo a USPSTF, a avaliação do custo-benefício do rastreio
comunitário da escoliose no adolescente não demonstra benefícios, porque mesmo
detectando casos de alterações, não resultam ganhos em saúde das intervenções
até aqui propostas como tratamento (exercícios ou uso de coletes). Estes
tratamentos médicos aparentemente não alteram o curso da maior parte das
escolioses idiopáticas detectadas no âmbito de rastreios comunitários
analisados pela USPSTF.5 A mesma recomendação estabelece que o médico deve
estar apto a diagnosticar os casos graves (passíveis de indicação cirúrgica) e
a tranquilizar os pais, nos casos que não devem merecer interferência. Infere-
se desta recomendação que, no contexto da consulta, é importante saber efectuar
o exame e executá-lo sempre que necessário para acautelar estas duas
situações.5
Devemos estar preparados para saber que as recomendações efectuadas pela USPSTF
devem ser lidas no contexto americano, um contexto diferente do nosso, em que o
rastreio da escoliose é analisado como rastreio comunitário e que a sua
aplicabilidade à nossa realidade pode não ser automática (ou, atrevo-me a
dizer, aplicável ao âmbito da nossa consulta). Devemos ter em conta que a
escala utilizada pela USPSTF não considera as preferências do paciente ou
determinados aspectos de custo-efectividade dos serviços.5,6
No seio das actividades preventivas há muitos procedimentos que, apesar de não
serem recomendados por rastreio, não perdem o valor de auxiliarem o diagnóstico
e muitos outros que, apesar de estarem instituídos pela prática clínica, têm
uma indicação duvidosa.
O nosso entusiasmo por querer usar a melhor evidência disponível não pode
descansar-nos de a saber ler, interpretar, criticar e aplicar devidamente.
David Sackett, pai da MBE (re)definiu-a na década de 90 como a «aplicação
cuidadosa, clara e criteriosa da melhor evidência disponível ao paciente
individual...»1
Quer isto dizer que, quando avaliamos um paciente e formulamos uma pergunta, na
devolução da resposta temos sempre de ter em conta não só a melhor evidência
encontrada (leia-se melhor prova científica), mas também a nossa experiência
clínica, os valores dos pacientes e as suas circunstâncias únicas.1 Todos os
lados deste quadrilátero interferem na resposta a dar ao doente.
Significa que, na sua génese e definição, a MBE não conta apenas com a melhor
prova científica para dar resposta ao doente. Conta com o médico e com toda a
sua experiência, sentido clínico e gut feelings. Conta com o doente, com os
seus valores, as suas expectativas, as suas crenças e o seu contexto
biopsicossocial.
Sabemos que, particularmente numa área tão generalista como a Medicina Geral e
Familiar, o domínio do conhecimento científico é determinante para a segurança,
solidez e actualização da resposta a dar.
A correcta interpretação do valor de determinada prova científica e da sua
aplicabilidade ao nosso doente faz toda a diferença na qualidade da clínica que
praticamos.
Sendo uma adepta da MBE, sou também uma adepta do enaltecimento do sentido
clínico, daquilo que não constituindo «prova científica» por ser experiência
pessoal, limitada no número e na variabilidade dos casos, nos vai marcando como
médicos e modelando as nossas repostas clínicas, favorecendo as nossas
respostas intuitivas.
Reconheço o valor da intuição que faz despertar campainhas de alarme perante um
paciente que, contra todas as probabilidades de uma história aparentemente
inofensiva, nos deixa reservas e preocupação, ou da intuição que nos
tranquiliza ao tomarmos decisões clínicas inesperadamente contemporizadoras em
doentes com histórias aparentemente complicadas.7
Sou portanto, uma crente da «Evidência Nível IV» apresentada por Alison M.
Stuebe no seu Perspective de Julho de 2011 no New England,8 o nível de
evidência que nasce do caso exemplar que nos marcou e que nos faz antecipar
futuras decisões clínicas. Sinto-me confortável, aplacada e curiosa pelas
correntes científicas que estudam o gut feelings...7
Torna-se relevante que o gut feelings (que podemos traduzir como intuição
clínica) seja introduzido no nosso pensamento, no nosso ensino e que seja mais
bem estudado e objectivado.
Aliás, como a interpretação das evidências, que tem de ser feita cuidadosamente
- sem radicalismos apressados e generalistas e já agora com bom senso...
clínico.