Intervenção breve no paciente fumador: Aplicação prática dos «5 As» e dos «5
Rs»
A clinician who motivates 10 smokers to stop smoking in a year will have
prevented 5 avoidable early deaths.1
INTRODUÇÃO
Para todos os médicos que seguem pacientes fumadores é de particular interesse
o conteúdo da Orientação Técnica de Fiori e colaboradores de título «Treating
Tobacco Use and Dependence: 2008 Update».2 A sua última revisão confirma os
avanços que têm ocorrido e o interesse dos profissionais por ela em todo o
mundo. A aplicação das suas recomendações supõe um ambiente clínico e, em
síntese, fica confirmado que é da maior importância a identificação e a
motivação dos fumadores para deixarem de fumar, que os tratamentos existem e
são eficazes, e que os benefícios de deixar de fumar são tangíveis e de elevado
impacto na saúde individual (Quadro I).
QUADRO I. Recomendações Fiori 2
O último Eurobarómetro (2010)3 dedicado ao tabaco faz o seguinte retrato dos
fumadores portugueses - entre os inquiridos 64% nunca fumou, 23% fumam e 13%
são ex-fumadores. A maioria fuma 15,5 cigarros por dia, da maioria que tentou
no último ano (17%) já tinham 1 a 5 tentativas anteriores e só 14% pediu ajuda
a um profissional, menos de 9% usou NTR e a maioria tentou deixar de fumar sem
o apoio de nenhum produto. A razão principal para deixar de fumar é a saúde e
para ter voltado a fumar a primeira razão foi o craving, depois o stress e por
fim a procura do prazer.
Portugal, pelas características do seu Serviço Nacional de Saúde - universal e
tendencialmente gratuito - e pela organização dos Cuidados de Saúde Primários,
em que uma rede de centros de saúde têm inscrita a quase totalidade da
população, com médicos de Medicina Geral e Familiar a trabalhar com listas de
utentes organizadas por famílias, apresenta especiais condições para que se
implemente com êxito um Programa Nacional de Prevenção e Controlo do
Tabagismo.4
O consumo do tabaco continua a ser considerado pela OMS a mais importante causa
de morbilidade prematura e de mortalidade mundiais.5 O tratamento da
dependência tabágica é considerado por muitos o gold standard da prevenção da
doença crónica,6,7 sendo ao mesmo tempo a intervenção que os clínicos têm
disponível com melhor relação de custo-efectividade.7
Em Portugal, a maioria da população consulta pelo menos uma vez no ano o seu
médico de família. É habitual existirem taxas de cobertura da ordem dos 60 a
70%. Sabemos que o aconselhamento pelo médico de família aumenta a motivação do
fumador para deixar de fumar2,8 e que a cessação tabágica ocorre mais quando os
médicos disponibilizam apoio e aconselhamento, por comparação quando não se
aconselha, havendo melhores resultados quando o aconselhamento é mais frequente
e mais intenso.2,8
Em síntese é possível afirmar que os fumadores tentam deixar de fumar,
valorizam o aconselhamento do seu médico e têm um contacto próximo com o centro
de saúde e o hospital e ainda que as propostas terapêuticas existentes são
bastante eficazes.
PROPOSTA DE OPERACIONALIZAÇÃO
Fiori e outros propõem a Intervenção Breve (IB) (menos de 10 minutos) e o
Modelo dos «5 As» (abordar, aconselhar, avaliar, ajudar e acompanhar) para
tratar os fumadores que querem deixar de fumar, especialmente quando aplicado
em ambiente de cuidados de saúde primários.2
Ainda são os mesmos autores que escrevem «a estratégia a seguir é simples - é
essencial que a todo o fumador, e em cada consulta, seja oferecida pelo menos
uma intervenção breve».
Se concordarmos com esta abordagem, e a evidência científica a impõe, é
necessário divulgar entre os profissionais dos Cuidados de Saúde Primários,
especialmente entre os internos e os médicos de Medicina Geral e Familiar, o
conceito e a operacionalização da Intervenção Breve quer quando o paciente
fumador quer deixar de fumar («5 As») ou ainda não está motivado e pronto para
o fazer («5Rs»).
Em ambos os casos os investigadores confirmam que se os médicos em geral, e em
especial os médicos de família, adoptarem os princípios inerentes ao conceito
da «Entrevista Motivacional»9,10,11 e da «Medicina Centrada no Paciente»12 a
sua acção será mais efectiva e os fumadores farão mais tentativas para deixar
de fumar e maior número ficará abstinente.
Vejamos o que nos apresenta a norma de orientação técnica americana2 e que
aplicação pode ser feita dela no contexto da prática clínica da Medicina Geral
e Familiar portuguesa.
A - Quando o paciente fumador quer deixar de fumar
ABORDAR
Abordar e identificar sistematicamente todos os fumadores, registando a
informação no processo clínico
Estratégia e Acção - hoje em dia na maioria dos centros de saúde existe e
funciona um processo clínico electrónico e os médicos registam os dados da
consulta usando um software clínico (SAM, Medicine One, VitaCare, etc.). Estas
aplicações devem permitir registar as respostas a perguntas simples,
identificando os pacientes que fumam e que podem vir a desenvolver dependência
ou uma doença relacionada com o tabagismo.
O paciente que temos em consulta consome produtos de tabaco - cigarros,
cigarrilhas, charutos, cachimbo, tabaco de enrolar, mascar ou outro? Se for o
caso, esta informação deve entrar como problema de saúde na lista de problemas
activos e também no campo correspondente aos «hábitos».
O paciente que temos em consulta nunca fumou? Registar a informação no campo
correspondente aos «hábitos» com o registo de «zero» cigarros.
O paciente que temos em consulta já fumou, mas deixou de fumar há mais ou há
menos de um ano? Se for o caso, esta informação deve ser registada como um
problema de saúde na lista de problemas passivos e nos «hábitos» com o período
respectivo do consumo de tabaco.
O paciente que temos em consulta, se fuma, quantos cigarros fuma em média num
dia típico, recordando os 30 dias anteriores?
O paciente que temos em consulta apresenta sinais e sintomas de consumo de
tabaco? Cheira a tabaco? Pele, unhas e dentes com cor sugestiva? Sinais e
sintomas respiratórios ou cardíacos sugestivos?
O paciente que temos em consulta é fumador passivo? Na residência, no local
de trabalho, no carro?
As questões sobre o consumo de tabaco podem ser mais facilmente respondidas
quando integradas na avaliação do estilo de vida (no jovem) ou de outros
factores de risco cardiovasculares (no adulto) ou no momento de um diagnóstico
de uma patologia relacionada com o tabaco (qualquer idade).
A questão deve ser colocada a todo o paciente com idade igual ou superior a
15 anos. Se num adulto está documentado que nunca existiu consumo de tabaco não
vale apena repetir a inquirição a não ser que informação contrária o
justifique.
Os sistemas electrónicos podem incluir sistemas de «alerta» ou outros que
sinalizem o registo do estado do paciente e integrem a informação nos programas
de planeamento familiar, saúde materna, rastreio oncológico, diabetes mellitus
e doenças cardiovasculares.
ACONSELHAR
Aconselhar todos os fumadores a parar de um modo claro, firme e personalizado
Estratégia e Acção - os médicos de família têm bastante treino e experiência no
relacionamento com os pacientes e suas famílias e para eles a relação médico-
doente é algo que valorizam e usam no seu dia a dia clínico. Estão habituados a
realizar e a registar o aconselhamento e a educação de saúde nos seus planos de
acção.
Ao aconselhar o paciente a deixar de fumar, deve fazê-lo de um modo claro,
que não deixe dúvidas. Estamos a falar de «zero cigarros» para sempre. A
redução não é suficiente. Não se trata de um julgamento ou apuramento de culpa.
Pode contar com o apoio do médico e eventualmente da enfermeira para o fazer.
Ao aconselhar o paciente a deixar de fumar deve fazê-lo de um modo firme
demonstrando segurança. Estamos a propor uma mudança de comportamento que é
difícil mas que terá grande impacto no estado de saúde do paciente. A
consciência dos benefícios ocorrerá rapidamente.
Ao aconselhar o paciente a deixar de fumar, deve fazê-lo de um modo
personalizado e empático. Recorde a sua história clínica e valorize o que pode
melhorar no curto e médio prazo após cessação tabágica. Pode ser útil lembrar
os custos financeiros do consumo e os ganhos em saúde da família, especialmente
se existirem crianças, jovens, grávidas ou idosos. Propor concentração no
objectivo, evitar dispersão nos múltiplos afazeres da vida quotidiana.
AVALIAR
Avaliar se há ou não interesse em parar de fumar
Estratégia e Acção - de acordo com o grau de motivação e as características do
paciente fumador assim o médico deve adaptar-se e propor certo tipo de
seguimento.
Perguntar se quer deixar de fumar e se o quer fazer a curto prazo (menos de 1
mês), avaliar a motivação e a prontidão para mudar.
Se o fumador tiver critérios para ser referenciado para uma consulta
intensiva de cessação tabágica será encaminhado ou a mesma será realizada, se
oportuno.
Se pertencer a um grupo de fumadores especiais - jovens, grávidas, etc., deve
ser dada informação adicional.
Se não estiver motivado a parar ou não se sentir capaz de o fazer, terminar-
se-á a intervenção aguardando-se nova oportunidade.
Ajudar
Ajudar aqueles que se sentem preparados a parar de fumar
Estratégia e Acção - a actuação do médico de MGF na área do tabagismo é quase
sempre oportunista. Aproveita os motivos de consulta para intervir nos
pacientes fumadores. As oportunidades são inúmeras. Aconselhar e medicar eis o
que há a fazer. Deve fazê-lo sistematicamente pois o resultado é positivo,
embora por vezes não tenha consciência disso.
Para aqueles que estão determinados a deixar de fumar, a curto prazo ou mesmo
no momento da consulta, então é necessário marcar uma data, o Dia D, o dia
igual a «zero cigarros». O fumador deve marcar o Dia D nos próximos 15 dias. O
compromisso é necessário. Registe a data no processo clínico e entregue-lhe um
documento escrito, «tipo contrato», para que não esqueça.
Proponha a divulgação da intenção de deixar de fumar entre a família e os
amigos. Deve apoiar-se especialmente num elemento que lhe seja próximo e que
não fume. Pode ser determinante.
Informe da ocorrência e da frequência dos sintomas de privação da nicotina
sobretudo nas primeiras semanas. Atenção à ansiedade. Contraponha os benefícios
progressivos.
Proponha que o fumador evite as pessoas, os locais ou as ocasiões onde se
fuma. Torne a sua casa, o seu local de trabalho e o seu carro «livres de
tabaco». Quanto menos exposição melhor.
Proponha ao fumador que «ocupe as mãos, a boca e a cabeça». Dê exemplos -
comer uma maçã, lavar os dentes, fazer exercício, etc. Apele à sua
criatividade.
Se o fumador quiser e não tiver indicação para ser referenciado a uma
consulta intensiva de cessação tabágica prescreva um substituto de nicotina. A
combinação de um adesivo transdérmico diário de 14 mg (confirmar esquema
posológico) e de uma pastilha ou goma de nicotina de 2 mg logo pela manhã
(substituindo o 1.o cigarro) é suficiente, para a maioria dos fumadores que têm
indicação para intervenção breve. São necessárias quatro a oito semanas de
tratamento, dependendo do caso. A medicação aumenta as taxas de sucesso,
diminuindo os sintomas de privação.
Entregar um folheto com informação prática sobre o processo de cessação
tabágica com estratégias para ultrapassar problemas e informação sobre os
ganhos a obter.
ACOMPANHAR
Programar o seguimento marcando nova consulta ou contacto telefónico
Estratégia e Acção - no contexto clínico português é possível ao médico gerir a
sua agenda, marcando consulta ou contactando telefonicamente ou por email os
pacientes. Por vezes pode ter o apoio de outros elementos da equipa. No caso do
fumador em processo de deixar de fumar é importante um ou mais contactos
precoces após o Dia D.
Sempre que possível deve ser agendada uma consulta 8 a 15 dias depois do Dia
D e uma outra consulta cerca de um mês após o Dia D.
Avaliar abstinência, sintomas de privação, efeitos secundários da
terapêutica, identificar problemas ocorridos e antecipar soluções.
Se entretanto o paciente voltou a fumar são de rever as circunstâncias em que
tal ocorreu e deve ser proposta nova data para parar de fumar retomando o
processo de cessação tabágica ou se necessário referenciar para uma consulta
específica intensiva.
Se existir linha telefónica dedicada ou endereço electrónico de apoio
divulgue-os entre os pacientes fumadores que recebe na sua consulta.
B - Quando o paciente fumador não quer deixar de fumar ou quando teve
tentativas anteriores falhadas RELEVÂNCIA
Estratégia e Acção - é necessário que o médico forneça a informação de saúde
suficiente e necessária para que o paciente fumador aumente o conhecimento
sobre o seu caso específico e fique mais relevante a necessidade que tem de
parar de fumar.
Pode ser eficaz que o paciente liste o que ganha e o que perde por deixar de
fumar. Discutir mais profundamente os benefícios para si e para terceiros.
Discutir com detalhe a última tentativa de parar valorizando as
circunstâncias em que voltou a fumar.
Testemunhar o êxito de outros pacientes difíceis e os ganhos que tiveram no
seu estado de saúde.
Dar informação sobre o método actual de apoio aos fumadores, incluindo a
existência de medicamentos, e as taxas de êxito que se obtêm.
RISCOS
Estratégia e Acção - existem muitos mitos quanto ao risco de se fumar. O médico
deve esclarecer alguns deles - o impacto para a saúde de se fumar um número
limitado de cigarros, de se fumar cigarros de «baixo» teor de nicotina, de se
fumar 3 a 5 cigarros quando se está grávida, de se mascar tabaco ou ainda de
ser impossível que um fumador de alta carga tabágica reduza e se mantenha a
fumar 2 ou 3 cigarros por dia.
O paciente deve ser estimulado a verbalizar com detalhe as queixas que
relaciona com o consumo do tabaco e as doenças que a curto e médio prazo pode
vir a ter.
O paciente deve ser estimulado a tomar posição sobre o potencial risco
ambiental do consumo do tabaco. Ainda sobre o risco aumentado de ocorrência de
cancro do pulmão e de doença coronária nos cônjuges dos fumadores e de
infecções respiratórias e de otorrinolaringologia nas crianças, filhos de pais
fumadores.
RECOMPENSAS
Estratégia e Acção - a sensação de prazer e a dependência à nicotina que a
maioria dos fumadores apresenta impedem ou ofuscam a grande recompensa que
podem vir a ter por deixarem de fumar. De um modo empático é necessário que o
médico valorize o que de bom pode acontecer.
Tem mais valor que seja o paciente a apresentá-las do que o médico a sugeri-
las.
Recompensas de curto prazo - melhor paladar, olfacto e hálito, maior
capacidade respiratória e muscular, sono de melhor qualidade, poupança
financeira, etc.
Recompensas de médio prazo - melhoria ou estabilização das patologias
respiratórias e cardiovasculares que eventualmente apresenta, etc.
Recompensas a longo prazo - melhor estado geral de saúde, diminuição de risco
de diagnóstico de doenças graves e mortais como o cancro do pulmão, etc.
RESISTÊNCIAS
Estratégia e Acção - as barreiras e os obstáculos que limitam a motivação do
paciente a parar são diversos e muitas vezes múltiplos. O ambiente social e
familiar que o rodeia e a norma vigente ainda prejudicam quem necessita de
deixar de fumar. Também certas características de personalidade ou a existência
de co-morbilidades, sobretudo psiquiátricas, ajudam a criar resistências. O
papel do médico deve ser de ouvir o paciente sobre as suas barreiras e
esclarecê-lo, motivando-o a ultrapassá-las.
Tipo de resistências frequentemente apresentadas - medo de não conseguir, não
querer sofrer os sintomas de privação, não querer aumentar de peso, sentir-se
só e triste, medo de se deprimir, não querer deixar de ter o prazer de fumar,
não estar na boa altura da sua vida para o fazer, toda a gente fuma à sua
volta, etc.
Quando não é possível remover as dúvidas e as resistências deve aguardar-se
melhor oportunidade mantendo disponibilidade para o efeito.
REPETIÇÃO
Estratégia e Acção - sabe-se que o processo de mudança comportamental não é
linear e mesmo as etapas, que classicamente estão descritas, não funcionam para
todos os pacientes do mesmo modo. Se entre os fumadores existe uma percentagem
importante que não quer parar de fumar e assim se mantêm durante muitos anos ou
mesmo para sempre, outros há que «inesperadamente» deixam de fumar sem ajuda.
Repetir o processo dos «5Rs» pode ser útil em certos fumadores, mas o médico
deve ter a sensibilidade de perceber se é bem vinda a repetição para que se não
quebre a relação médico-doente e o paciente não desapareça pondo em causa o seu
seguimento médico.
O fumador deve ser informado que a maioria dos fumadores que deixaram de fumar
só o conseguiram depois de terem realizado várias tentativas.
CONCLUSÕES
Existem diferentes níveis de intervenção do médico na prevenção e controlo do
tabagismo.11 Propõe-se que, quanto mais complexos e difíceis forem os pacientes
fumadores, maiores competências formativas e experiência sejam requeridas ao
profissional. Contudo, a maioria dos fumadores não carece de referência para
consultas intensivas de cessação tabágica. Estima-se que somente 10% dos
fumadores o necessitem.10
Assim, a maioria dos médicos de família deve ter adquirido um nível de
intervenção que lhes permita avaliar sistematicamente o hábito tabágico dos
pacientes, aplicar a intervenção breve dos «5 As» e dos «5 Rs», em geral de um
modo oportunista na consulta, dominar e realizar o aconselhamento motivacional
nos fumadores ambivalentes e desenvolver acções preventivas adaptadas às
diferentes populações de risco da sua lista de utentes e do centro de saúde.