O que ocupa os médicos de família?: Caracterização do trabalho médico para além
da consulta
INTRODUÇÃO
Sendo a consulta a pedra basilar do exercício da Medicina Geral e Familiar
(MGF), tem vindo a ser progressivamente assumido que as tarefas que competem
aos médicos de família (MF) se estendem muito para além do encontro entre
médico e paciente no consultório. Nestas tarefas para além da consulta incluem-
se as relativas a pacientes (quer decorrendo de uma consulta recente, quer sem
relação com esta) e as não relacionadas com pacientes específicos (ou não
clínicas).
As tarefas que decorrem da própria consulta (como é o caso de registos,
referenciações ou contactos com outros profissionais) podem ter de ser
diferidas da mesma pela pressão assistencial, por falhas no sistema informático
ou pela indisponibilidade no momento da consulta de outros profissionais com
quem seja necessário articular.
As tarefas relativas a pacientes previamente conhecidos mas não presentes para
consulta são múltiplas e incluem, entre outras, a renovação de medicação
crónica (da qual decorreu a criação, há uma década, do conceito de «contacto
não presencial»), a avaliação e comunicação de resultados de exames
complementares de diagnóstico, os contactos telefónicos e, mais recentemente,
as mensagens de correio electrónico.
Estes dois últimos meios têm sido expressamente recomendados para ampliar a
acessibilidade e continuidade de cuidados, quer internacionalmente,1,2,3 quer
na MGF portuguesa,4 quer mesmo na Unidade Local de Saúde de Matosinhos (ULSM).5
Quanto às tarefas designadas como não clínicas, algumas, como aquelas
relacionadas com a recolha e análise de indicadores, a participação nas
actividades de planeamento do serviço, a colaboração na formação e educação
médicas e, mesmo, a participação em projectos de investigação, possuem já
moldura legal enquanto competência dos médicos em geral.6,7
Outras tarefas que podemos designar como não clínicas incluem as que consistem
em suprir insuficiências do sistema e levam, não raro na experiência das
autoras, a que MF assumam competências que não as suas (como é o exemplo do
aprovisionamento de material clínico e de escritório ou da dispensa de
contraceptivos).
O interesse pela descrição e quantificação do tempo despendido nas tarefas para
além da consulta prende-se com três factores distintos, embora relacionados
entre si: a retribuição ligada ao desempenho que tem ganho terreno na MGF; a
dificuldade em registar parte destas tarefas; e a invisibilidade deste
trabalho, que põe em risco a existência de tempo protegido para a sua
realização e acarreta insatisfação profissional.
A remuneração ligada ao desempenho
Em Portugal, com a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, a metodologia de
contratualização em funcionamento desde 2006 já contempla incentivos
institucionais às Unidades de Saúde Familiares (USF) que cumpram indicadores de
desempenho pré-definidos.8,9
No entanto, os indicadores de desempenho apresentam limitações importantes como
o facto de serem medidas de proximidade, serem dependentes de registos (sem se
acompanharem de sistemas de informação adequados) e não representarem as
especificidades da MGF.10
A sua utilização exclusiva para avaliação do desempenho do MF leva a uma visão
reduzida das suas verdadeiras competências, sobrevalorizando aspectos de
registo em detrimento das qualidades primordiais da especialidade: abordagem
bio-psico-social da pessoa, gestão de problemas múltiplos, promoção de saúde e
coordenação e integração de cuidados.
A descrição da actividade do MF deve ser também ampla, para abranger todas as
facetas do seu desempenho. Existem, assim, inúmeras tarefas realizadas pelos MF
que, sendo essenciais para atingir o nível de qualidade desejada e garantir a
satisfação dos utentes, não são contabilizadas na sua produtividade e não se
reflectem na sua remuneração.
Os registos clínicos
A aplicação informática usada para registo electrónico pela maioria dos MF
portugueses, o SAM® (Sistema de Apoio ao Médico), só permite a inserção de
notas clínicas depois de um registo administrativo de contacto que só pode ser
efectuado pelos profissionais administrativos no programa SINUS®. Isto
inviabiliza que sejam registados telefonemas, e-mails e contactos através de
familiares ou cuidadores em que apenas se troquem informações, seja fornecido
aconselhamento ou dado retorno quanto a resultados complementares de
diagnóstico.
Perturbando a continuidade de cuidados e acarretando um risco clínico
apreciável, a falta de registo deste tipo de elementos clínicos é inclusive
proscrita pelo Conselho Médico-legal.11
A falta de registos torna também estas tarefas, de todas, as mais invisíveis,
e, como tal, muito difíceis de medir, avaliar e gerir.
A invisibilidade
Vários estudos sobre a adesão de médicos ao uso do correio electrónico apuraram
que um dos obstáculos ao seu uso era o facto de ser uma tarefa não
contabilizada em termos de produtividade.12-15 Mesmo na ausência de
remunerações dependentes da produtividade, o reconhecimento inter-pares e pelos
órgãos de gestão é um factor de satisfação profissional, a qual, por sua vez, é
uma das determinantes da qualidade dos cuidados prestados.16
Por outro lado, a recente reformulação das carreiras médicas e respectivas
condições contratuais dos MF portugueses,17,18 embora inclua no perfil do MF
uma multitude de atribuições muito além da mera realização de consultas, não
contempla tempo protegido nos horários médicos para a realização destas
tarefas. Este tempo protegido era contemplado na legislação que previamente
regulava as carreiras médicas (Lei 73/90), sendo designado como «horas
destinadas a funções não assistenciais», tendo sido, em 2000, tacitamente
estendido aos primeiros MF com contratos individuais de trabalho. No entanto,
no contexto actual de escassez de MF e controlo progressivamente mais apertado
dos horários e agendas médicas, torna-se cada vez mais difícil que órgãos de
gestão aloquem tempo protegido para a realização de tarefas que sejam
invisíveis (isto é, que não estejam descritas nem quantificadas em termos de
carga horária) e há já notícias de situações em que foram estabelecidos
horários integralmente preenchidos com consultas, sem que fosse alocado
qualquer tempo para a realização de tarefas para além da consulta.19
Não foram encontrados em Portugal dados estatísticos nem estudos publicados
sobre o tipo e quantidade de tarefas que os MF desempenham para além da
consulta. Da pesquisa bibliográfica efectuada, obtiveram-se apenas quatro
estudos (todos eles norte-americanos e realizados nos últimos 5 anos) avaliando
as tarefas além da consulta de médicos em contexto de cuidados primários. Todos
os estudos revelaram que estas tarefas constituem uma parte importante do
trabalho médico.20-23
Assim, realizou-se um estudo com os seguintes objectivos:
quantificar o tempo despendido pelos MF com consultas e com tarefas para além
da consulta;
determinar o número de consultas e de contactos não presenciais realizados
nos dias do estudo;
descrever as diferentes tarefas desempenhadas pelos MF para além da consulta.
MÉTODOS
Realizou-se um estudo exploratório, observacional, descritivo e transversal,
sobre uma amostra não aleatória de conveniência de MF de seis unidades de saúde
da ULSM, durante os meses de Junho e Julho. À data do início estudo, a ULSM
contava com 18 unidades de saúde (6 USF, 7 UCSP e 5 de outro tipo) onde estavam
colocados 103 MF (dados dos Recursos Humanos da ULSM), os quais constituíram a
população em estudo.1 Foram convidados a participar os 46 MF de quatro USF
(Horizonte, Lagoa, Maresia e Porta do Sol) e de 2 UCSP (Sra. da Hora e Leça da
Palmeira). O convite foi enviado por e-mail dirigido aos coordenadores das
respectivas unidades e a cada MF, tendo também sido posteriormente feitos pelas
investigadoras contactos pessoais e por telefone. Àqueles que se mostraram
interessados foi enviado o protocolo do estudo e, após confirmação da
participação, pedida a assinatura de um texto de consentimento informado. Após
a manifestação da vontade em participar, foram feitos contactos periódicos com
cada participante até à entrega de todos os dados necessários.
1 Optou-se por não incluir na amostra cinco unidades de saúde atípicas (duas
relacionadas com a assistência a grupos profissionais específicos e três
clínicas privadas que funcionam ao abrigo do projecto «Medicina em
Concorrência», criado pela portaria n.o 667/90 de 13 de Agosto). Das restantes
foram inicialmente escolhidas cinco unidades, das quais duas eram UCSP e três
eram USF. No entanto, já depois de iniciados os contactos, uma das UCSP
dividiu-se, originando uma UCSP e uma USF, totalizando seis unidades
participantes. As cinco unidades inicialmente escolhidas foram seleccionadas
por critérios de exequibilidade: três por maior proximidade física (importante
na fase de recrutamento) ao local de trabalho das duas investigadoras; uma por
ser à data a única USF modelo B da ULSM para além daquela onde trabalha uma das
investigadoras; e uma outra que, pela sua maior dimensão (posteriormente
dividida em duas unidades), rentabilizava melhor os contactos a maior
distância.
Pediu-se a cada MF que escolhesse para a colheita dos dados entre 2 a 5 dias
úteis de trabalho consecutivos dos meses de Junho e Julho, de modo a não
incluir duas vezes o mesmo dia da semana. Sempre que não foi possível a
inclusão de cinco dias úteis consecutivos de trabalho, foi pedido que o período
total de registo correspondesse a um mínimo de 14 horas de trabalho na unidade
de saúde.
Foi contabilizado o tempo despendido com todas as tarefas que foram
desempenhadas pelos MF participantes na unidade de saúde para além da consulta,
assinalando-se numa grelha a hora de início e de fim da tarefa em causa
(observada em relógio digital e com aproximação ao minuto). Foram também
determinadas quais as diferentes tarefas que os MF realizam para além da
consulta, discriminadas segundo uma taxonomia desenvolvida pelas autoras a
partir dos quatro estudos congéneres realizados e que, depois da realização de
um estudo piloto, foi adaptada à realidade dos locais de trabalho das
autoras.20-23 O estudo piloto foi realizado pelas autoras durante um dia típico
de trabalho. Os dados foram colhidos por cada um dos MF participantes,
registados em tempo real numa grelha desenvolvida para o efeito e de acordo com
um guião previamente distribuído, sendo posteriormente codificados e tratados
pelas autoras.
Para cada MF e em cada dia de trabalho estudado, foi ainda contabilizado: o
tempo total de permanência na unidade de saúde; os tempos de pausa e de
actividades pessoais; o número total de registos administrativos de contacto e,
destes, o número de não presenciais; a presença na consulta de internos ou de
estudantes; e o grau de tipicidade do dia de trabalho (usando uma escala de
Likert onde 1 será um dia totalmente típico e 5 um dia totalmente atípico).
Foram ainda recolhidas as seguintes variáveis de caracterização dos MF
participantes: sexo, idade, anos de actividade com especialista de MGF,
dimensão da lista de utentes, funções como orientador de formação do internato
da especialidade, local de trabalho e características contratuais.
Foi inicialmente prevista a recolha de dados sobre o tempo despendido com cada
tipo de tarefas, mas o estudo piloto realizado mostrou que não era viável a
colheita desses dados pelo próprio MF, sobretudo devido à frequente realização
de tarefas diferentes, quer em simultâneo, quer intercaladas em curtos espaços
de tempo, o que inviabilizava a colheita em tempo real.
As variáveis foram codificadas, registadas e tratadas em suporte informático
(Microsoft Excel®). Foram determinados os parâmetros para caracterização dos
MF, calculado o tempo despendido com tarefas realizadas para além da consulta e
descritas as diferentes tarefas realizadas. A amostra foi caracterizada e
comparada com os dados disponíveis relativos à população. Foram listadas as
diferentes tarefas realizadas pelos MF para além da consulta. As restantes
variáveis foram analisadas usando métodos de estatística descritiva. Todos os
valores relativos a tempos foram colhidos e contabilizados arredondados ao
minuto.
RESULTADOS
Dos 46 MF convidados a colaborar, 13 (incluindo as duas autoras) aceitaram
participar no estudo (taxa de resposta 28,3%), pertencentes a 4 (3 USF e 1
UCSP) das 6 unidades convidadas e representando 12,6% da população de MF da
ULSM.
Os MF participantes tinham em média 37 anos e apenas dois (15,4%) são do género
masculino. Em média, os MF participantes haviam terminado a sua especialidade
há 6,5 anos, sendo que apenas um era especialista há mais de 10 anos. Dos
treze, doze estão vinculados à ULSM por um contrato individual de trabalho,
onze trabalhavam em USF à data do estudo (oito dos quais em modelo B). Os MF
que não estavam em modelo B tinham horário semanal de 40 horas, acrescendo num
dos casos duas horas extra semanais numa base fixa.
Dos MF participantes, cinco eram orientadores de formação do internato de
Medicina Geral e Familiar (21,7% dos OF da ULSM) e, destes, três estavam a
trabalhar com internos em nove dos 52 dias de trabalho estudados. Um outro MF
teve consigo um estudante em três dos 52 dias do estudo.
A dimensão média das listas dos MF participantes era de 1710 utentes. Nos
quadros I e II são representadas as características demográficas e
profissionais dos MF participantes, assim como as dos não respondentes.
Quadro I. Características demográficas e profissionais dos médicos de família
participantes (n=13) e dos não respondentes(n=33) - parte 1
Quadro II. Características demográficas e profissionais dos médicos de família
participantes (n=13) e dos não respondentes(n=33) - parte 2
Os MF da amostra que não aceitaram participar no estudo (não respondentes)
eram, em média, mais velhos (44.1 vs 36.6 anos), trabalhavam como MF há mais
tempo (14.2 vs 6.5 anos), eram mais frequentemente do género feminino (90.9 vs
84.6%) e contavam com uma menor proporção de orientadores de formação do
internato de MGF (26 vs 38,5%). Aplicando os testes χ2 e t de Student, estas
diferenças entre os dois grupos (respondentes e não respondentes) obtiveram
significância estatística (p<0,05). A proporção de MF a trabalhar em USF foi
maior no grupo dos respondentes (72,7 vs 84,6%), diferença também
estatisticamente significativa. Não foi encontrada diferença estatisticamente
significativa entre respondentes e não respondentes apenas quanto à dimensão
média da lista de utentes.
Tempo despendido com tarefas para além da consulta
Os treze MF participantes registaram as actividades de um total de 52 dias de
trabalho (média de quatro dias por participante, mínimo 2, máximo 5),
correspondendo a mais de 455 horas, que incluíram 986 consultas, 514 contactos
não presenciais e 101 horas dedicadas às tarefas para além da consulta.
Foi ocupado na realização de tarefas para além da consulta 23% do tempo de
trabalho efectivo diário, correspondendo a uma média de 1 hora e 57 minutos. Em
média, cada MF permaneceu diariamente na sua unidade de saúde 8 horas e 46
minutos, das quais, 8 horas e 25 minutos foram reportadas como de trabalho
efectivo. Seis horas e 31 minutos de trabalho diário foram dedicadas à
realização de uma média de 19 consultas por MF, calculando-se, para cada
consulta, uma média de 22 minutos. Os resultados sobre o tempo de trabalho
estão representados no quadro III.
Quadro III. Tempo de trabalho dos médicos de família nos dias do estudo e sua
distribuição pela consulta e tarefas par além da consulta
Nos cinquenta e dois dias estudados, além das consultas realizadas, foram ainda
registados administrativamente uma média de 10 contactos não presenciais
diários por MF participante, resultando numa proporção de contactos
presenciais/não presenciais de cerca de 2:1. Dividindo o número de contactos
não presenciais registados administrativamente pelo total de tempo despendido
com tarefas para além da consulta, a cada contacto não presencial corresponde
uma média de 13 minutos (quadro IV).
Quadro IV. Contactos diários por médico de família participante e classificação
quanto à tipicidade de cada dia estudado
Numa escala (de Likert) de 1 a 5, em que 1 significava muito típico e 5
significava pouco típico, os dias estudados foram classificados pelos MF quanto
à sua tipicidade, em média, como 2,2 (quadro IV).
Tipo de tarefas realizadas para além da consulta
Os vários tipos de tarefas assinalados pelos MF participantes foram
sistematizados pelas autoras em dois grandes grupos: as directamente
relacionadas com pacientes específicos (designadas como tarefas clínicas) e as
não directamente relacionadas com pacientes (designadas como não clínicas). Nos
quadros V e VI são discriminadas as diferentes tarefas assinaladas.
Quadro V. Tarefas directamente relacionadas com utentes realizadas para além da
consulta
Quadro VI. Tarefas sem relação directa com utentes realizadas para além da
consulta
A maioria das tarefas foi reportada pela generalidade dos MF participantes no
estudo: telefonemas, registos, avaliação de resultados de exames
complementares, renovação de prescrições, emissão de relatórios e declarações,
interacção com outros profissionais, referenciações e reuniões de serviço.
Algumas tarefas foram assinaladas por cerca de metade dos MF: e-mails, estudo
de lista e de indicadores, paragens devidas a falhas informáticas e reposição
ou procura de material de apoio à consulta. Outras ainda foram assinaladas por
uma minoria de MF: resolução de conflitos entre profissionais e utentes, espera
por doentes atrasados, marcações de consultas, investigação, atendimento de
delegados de informação médica, gestão, coordenação e integração de grupos de
trabalho, estudo e pesquisa de fontes bibliográficas e organização do
consultório e arquivo.
DISCUSSÃO
O tempo despendido pelos MF em tarefas para além da consulta foi neste estudo
estimado em cerca de 2 horas diárias, correspondendo a quase um quarto da sua
carga horária. O tipo de tarefas desempenhadas foi muito variado, desde as
directamente relacionadas com pacientes e transversais a todos os MF do estudo
(como a renovação de receituário crónico, a observação e comunicação de
resultados de exames complementares de diagnóstico, o contacto directo não
presencial por telefone ou e-mail e a referenciação hospitalar), às que cabem
pontualmente a apenas alguns dos MF estudados (como a gestão e coordenação, a
investigação e o ensino ou formação).
Um estudo realizado em 2005 numa unidade de saúde norte-americana, no qual onze
MF foram observados durante dois dias por estudantes de medicina treinados,
encontrou valores um pouco superiores aos do presente estudo: 30,5% do tempo
efectivo de trabalho era ocupado em tarefas para além da consulta e, deste, 23%
era para tarefas clínicas e 7,5% para tarefas não clínicas.21 Noutro estudo
semelhante, realizado também em 2005, em unidades de saúde norte-americanas e
em que estudantes de Medicina observaram 27 MF durante um dia de consulta, a
proporção de tempo de trabalho alocado às tarefas para além da consulta foi
também de 23%, mas não incluiu nestas algumas tarefas tais como contactos com
pacientes por e-mail ou telefone ou actividades de ensino e formação.20 Apesar
de o contexto da prática da MGF norte-americana ser bastante diversa da
portuguesa (com os pacientes a serem observados numa sala diferente daquela
onde posteriormente o MF faz os registos, emite as credenciais para exames ou
prescreve a medicação), ambos os estudos encontraram valores semelhantes aos do
presente estudo relativamente ao tempo total de permanência na unidade de saúde
e à proporção deste tempo despendido com tarefas para além da consulta.20,21
Um outro estudo, realizado em 2007, estimou que cada médico gastava
semanalmente em actividades para além da consulta o mesmo que no presente
estudo se apurou gastar diariamente, mas, apesar de realizado em ambiente de
cuidados primários e assentar sobre registos em tempo real pelo próprio médico,
o facto de incidir sobre geriatras de uma unidade de saúde norte-americana não
permite comparação directa entre resultados.22
Este mesmo estudo sobre geriatras comunitários estimou uma duração de cerca de
6 minutos por cada contacto não presencial,22 enquanto que, no presente estudo,
se obteve uma correspondência de 13 minutos por cada contacto não presencial
registado administrativamente. Considerando que há tarefas não relacionadas com
contactos com pacientes (investigação, reuniões, coordenação, etc.) e que há
contactos não presenciais (telefonemas e e-mails, por exemplo) que não são
registados administrativamente, o tempo real por cada contacto não presencial
será seguramente inferior. O não registo de todas as tarefas para além da
consulta é um dos determinantes da invisibilidade de componentes essenciais do
perfil e da prática do MF nos quais se despende tempo considerável.
As tarefas para além da consulta descritas no estudos disponíveis não diferem
substancialmente das encontradas neste estudo, à excepção de: interacções com
companhias de seguros (frequentes nos estudos norte-americanos e ausentes neste
estudo) e presença nos hospitais e em actividades hospitalares (referidas nos
estudos norte-americanos e não indagadas neste por se ter pedido o registo
apenas das tarefas realizadas dentro da unidade de saúde).20-23 Por outro lado,
não há referência nos estudos acedidos a tarefas identificadas neste, como:
falhas informáticas, reposição e procura de material de apoio à consulta ou
resolução de conflitos.
Resultado acessório deste estudo mas que se salienta por si, é o facto de o
tempo médio de trabalho efectivo na unidade de saúde reportado pelos MF ser
superior a 8 horas diárias. Considerando que a este tempo de trabalho efectivo
na unidade de saúde se somam ainda as consultas ao domicílio, tempos de
trabalho para além da consulta na unidade de saúde ao sábado e domingo
(referidas por alguns participantes no período do estudo mas não
contabilizadas) e várias outras actividades passíveis de serem realizadas fora
da unidade de saúde (como as actividades decorrentes da OF), fica claro que as
cargas horárias semanais clássicas de 40 horas parecem ser largamente
ultrapassadas.
Outro resultado acessório do estudo diz respeito ao número médio de consultas e
ao tempo médio gasto por consulta. De referir que, apesar de os MF
participantes trabalharem em três modelos diferentes de organização
assistencial, com diferentes regras de agendamento, não parece haver grande
variação no tempo despendido por consulta (quer programada quer não
programada), já que, para um média de 22 minutos, o DP foi de apenas 7 minutos.
Na interpretação dos resultados é necessário considerar ainda que os MF
orientadores de formação com internos presentes na consulta nos dias do estudo
podem ver o seu tempo de consulta incrementado (no caso do interno partilhar a
consulta com orientador, pela necessidade de interacção formativa entre ambos),
ou artificialmente reduzido (caso o interno faça consulta aos utentes do
orientador de forma autónoma mas sendo as consultas contabilizadas como
consultas do orientador).
Metodologicamente há a considerar que a técnica de amostragem de conveniência
utilizada aportou aos resultados um viés de selecção. A opção por esta técnica
de amostragem, considerada aceitável pelas autoras visto tratar-se de um estudo
exploratório, foi condicionada pela dispersão física e pela heterogeneidade
funcional das 18 unidades de saúde da ULSM, a qual inviabilizaria que as duas
autoras pudessem coordenar eficazmente o estudo em todas as unidades.
De igual forma, a taxa de resposta ao convite para participação no estudo,
muito inferior à desejável, além de condicionar uma amostra reduzida (13 MF,
12,6% da população), pode ter aportado um viés de selecção, aceitável pelas
características exploratórias do estudo. De facto, a comparação das
características profissionais dos MF participantes e dos não respondentes
revelou diferenças estatisticamente significativas, sendo os MF estudados mais
jovens e mais frequentemente do género masculino, com menos experiência na MGF,
contando entre si com mais orientadores de formação e trabalhando mais
frequentemente em USF modelo B. No entanto, se, por um lado, os MF que mais
tempo despendem neste tipo de actividades poderiam ser os mais motivados à
participação; por outro, os MF mais ocupados na generalidade das suas tarefas
poderiam ter menos disponibilidade para participar num estudo em que a recolha
de dados era mais uma tarefa a acrescer ao seu trabalho diário.
Ainda, sendo a colheita de dados efectuada por cada um dos participantes, são
inevitáveis os vieses de informação (pois o registo em tempo real acarreta
sempre algum risco de perda de informação) e inter-observador. Este viés poderá
atingir com mais importância as variáveis correspondentes à distribuição do
tempo de trabalho e ao tipo de tarefas realizado. Pelo contrário, variáveis
como o tempo total de permanência na unidade de saúde e o número de contactos
presenciais e não presenciais deverão acarretar enviesamento de informação
mínimo visto basearem-se em registos informáticos.
A importância principal deste estudo prende-se com o facto de ser um trabalho
pioneiro em Portugal, num tema sobre o qual nada existe ainda publicado. Os
seus resultados permitiram tornar visível uma multiplicidade de tarefas que os
MF realizam para além da consulta e o tempo com elas despendido. Esta
visibilidade poderá ser um factor de reconhecimento e satisfação profissional.
Poderá também constituir uma oportunidade para que esta significativa parte do
trabalho médico possa ser tida em conta pelos responsáveis, quer na
planificação da actividade das unidades de saúde, quer na respectiva avaliação
de desempenho. Poderá, ainda, alertar para a necessidade de reformular o SAM®
de forma a possibilitar o registo sistemático de tarefas para além da consulta.
As autoras têm em curso um projecto para replicar este estudo de forma
multicêntrica, recorrendo a estudantes de Medicina como observadores externos,
permitindo incluir como objectivos a discriminação do tempo despendido com cada
tipo de tarefas e a quantificação das mesmas.