Terapêutica antihipertensora como prevenção secundária de eventos
cardiovasculares: Também em não hipertensos?
CLUBE DE LEITURA
Terapêutica antihipertensora como prevenção secundária de eventos
cardiovasculares:Também em não hipertensos?
Rui Miguel Costa
Interno Formação Específica de Medicina Geral e Familiar
USF São Félix da Marinha ACES Grande Porto IX Espinho/Gaia
Thompson AM, Hu T, Eshelbrenner CL, Reynolds K, He J, Bazzano LA.
Antihypertensive treatment and secondary prevention of cardiovascular disease
events among persons without hypertension meta-analysis. JAMA 2011 Mar 2; 305
(9): 913-22.
As doenças cardiovasculares (DCV) são a principal causa de morte representando
cerca de 30% de todas as mortes a nível mundial. O risco de DCV começa a partir
de níveis de pressão arterial sistólica tão baixos como 115 mm Hg. Em
indivíduos com pré-hipertensão, 90% têm pelo menos um factor risco para DCV ou
acidente vascular cerebral (AVC) e 68% têm pelo menos um factor de alto risco
para DCV ou AVC. O uso de terapêutica antihipertensora em pacientes com
história de DCV ou diabetes e sem hipertensão tem sido debatido. O objectivo
desta meta-análise foi avaliar o efeito do tratamento antihipertensor (tx anti-
HT) na prevenção secundária de eventos de DCV e todas as causas de mortalidade
em indivíduos sem hipertensão clinicamente definida.
Métodos
Foi efectuada uma pesquisa sistemática na MEDLINE (de 1950 à 3.a semana de
Janeiro de 2011), EMBASE e Cochrane Collaboration Central Register of
Controlled Clinical Trials. Foram incluídos ensaios clínicos aleatorizados e
controlados de tx anti-HT em indivíduos com pressão arterial sistólica inferior
a 140 mm Hg ou pressão arterial diastólica inferior a 90 mm Hg para a prevenção
secundária de eventos de DCV. Os critérios de exclusão foram: eventos de DCV
não relatados; população de estudo não normo ou pré-hipertensa; população sem
eventos de DCV ou equivalente, como a diabetes mellitus; tx anti-HT não
efectuado; distribuição pelos grupos de tratamento e controlo não aleatorizada;
medida de variância não relatada; participantes com menos de 18 anos; ou
diferenças entre grupos estudo e controlo além do tx anti-HT.
Resultados
A partir de 874 publicações potencialmente relevantes foram seleccionados 25
ensaios que preenchiam os critérios de inclusão. Estes incorporam dados de
64162 participantes. A duração dos estudos variou em média de 1,5 a 63,6 meses.
A média de idades variou de 55 a 68 anos e 76% dos participantes eram homens.
Os resultados registados incluem: incidência de AVC; enfarte do miocárdio (EM);
insuficiência cardíaca congestiva (ICC); totalidade de eventos de DCV;
mortalidade por DCV; e, todas as causas de mortalidade. Comparando com os
grupos de controlo, os participantes que receberam terapêutica antihipertensora
tiveram uma redução absoluta de risco (RAR) de -7,7 no AVC (intervalo
confiança [IC] de 95% -15,2 a -0,3), -13,3 no EM (IC 95% -28,4 a 1,7), -43,6
na ICC (IC 95% -65,2 a -22,0), -27,1 na totalidade de eventos de DCV (IC 95% -
0,3 a -13,9), -15,4 na mortalidade por DCV (IC 95% -32,5 a 1,7) e -13,7 para
todas as causas de mortalidade (IC 95% -24,60 a -2,8).
Discussão
Esta meta-análise é a primeira a focar a associação entre terapêutica
antihipertensora e prevenção secundária de eventos de DCV e todas as causas de
mortalidade em indivíduos sem hipertensão clinicamente definida. Estes
resultados demonstram que indivíduos com antecedentes de DCV mas com pressão
arterial em níveis de normalidade ou pré-hipertensão podem beneficiar
significativamente com tx anti-HT.
O tx anti-HT demonstrou uma redução estatisticamente significativa do risco no
AVC fatal ou não fatal, ICC, totalidade de eventos de DCV e todas as causas de
mortalidade. No EM fatal e não fatal e na mortalidade por DCV, a redução do
risco relativo foi significativa mas a redução do risco absoluto não foi
estatisticamente significativa.
Em pacientes com diabetes o algoritmo de tratamento de hipertensão recomenda
tratamento farmacológico quando não se consegue obter valores inferiores a 130/
80 mm Hg apenas com modificações do estilo de vida. Dados recentes do estudo
ACCORD BP (Action to Control Cardiovascular Risk in Diabetes Blood Pressure)
não demonstraram redução na taxa de eventos de DCV fatal ou não fatal, quando a
pressão arterial sistólica foi controlada para valores inferiores a 120 mm Hg
em comparação com valores inferiores a 140 mm Hg. Os resultados desta meta-
análise também demonstraram que em pacientes com diabetes e sem hipertensão não
existe um benefício no uso de tx anti-HT para prevenção de eventos de DCV e
todas as causas de mortalidade. Contudo, estes dados devem ser interpretados
cautelosamente dada a pequena quantidade de estudos nestes pacientes.
As limitações apontadas na meta-análise são: escassez de estudos relatando
resultados de interesse para normotensos e pré-hipertensos; poucos estudos que
incluam as minorias raciais e étnicas; ser impossível determinar uma relação
dose-resposta entre pressão sanguínea basal e risco de ocorrência ou
recorrência de eventos de DCV em indivíduos com pressão arterial inferior a
140/90 mm Hg; não se poder determinar se os benefícios com o tratamento foram
atribuídos a redução da pressão arterial ou a outros mecanismos teciduais ou
neuro-hormonais; e, o número total de eventos estar indisponível em alguns
estudos.
Conclusão
A pré-hipertensão afecta cerca de 30% da população adulta e acarreta um elevado
risco de incidência e mortalidade por eventos de DCV. Esta meta-análise avalia
a associação entre terapêutica antihipertensora e a morbimortalidade por DCV e
todas as causas de mortalidade em indivíduos sem hipertensão. Em pacientes com
história clínica de DCV e sem hipertensão, o tx anti-HT foi associado a
diminuição do risco de AVC, ICC, totalidade de eventos de DCV e todas as causas
de mortalidade. Contudo, são necessários mais ensaios clínicos aleatorizados e
controlados para avaliar os efeitos em pacientes sem DCV.
Comentário
Tal como referido no editorial que acompanha o artigo, o tratamento da
hipertensão evoluiu consideravelmente ao longo dos anos.¹ No início do século
XX, discutia-se se o acto de baixar a pressão arterial era sequer benéfico.
O número necessário a tratar (NNT) tornou-se uma medida de eficácia de
intervenções muito popular e útil na prática clínica. Os autores desta meta-
análise demonstraram que o número de indivíduos necessário tratar com
antihipertensores para que um deles beneficie é de 130 para o AVC, 75 para o
EM, 23 para a ICC, 37 para a totalidade de eventos de DCV, 65 para a
mortalidade por DCV e 73 para todas as causas de mortalidade. Fazendo uma
extrapolação e aplicando a duração média dos estudos incluídos para cada
resultado, o número de indivíduos necessário tratar durante um período de 5
anos para que um deles beneficie é de 94 para o AVC, 8 para a ICC, 25 para a
totalidade de eventos de DCV e 30 para todas as causas de mortalidade.²
Estes valores são comparáveis aos apresentados noutros estudos de tx anti-HT,
bem como de outras medidas de prevenção de eventos de DCV.³·⁴ Por exemplo, no
estudo de Ridker et al, o uso de uma estatina (rosuvastatina) na prevenção de
EM, AVC ou qualquer outra causa de morte está associado a um NNT a 5 anos de
29. Menos comparável é o uso de aspirina, na prevenção de eventos similares
apresentando valores de NNT a 5 anos de 346 no homem e 426 na mulher.³ No
estudo de Smeeth et al, o NNT a 5 anos com o uso de terapêutica antiplaquetária
na prevenção secundária de mortalidade por eventos de DCV é de 50. No mesmo
estudo, encontramos um NNT de 20 para o uso de estatinas na prevenção da
totalidade de eventos de DCV.⁴ De referir que todos estes estudos têm por base
uma população hipertensa, não existindo especificamente estudos com população
não hipertensa. Apenas no estudo de Ridker et al existe uma menção a doentes
não hipertensos. Nestes, o uso de uma estatina na prevenção de EM, AVC e
qualquer tipo de mortalidade apresenta um NNT de 32.³ Portanto, a terapêutica
antihipertensora como prevenção secundária em pacientes com história clínica de
DCV mas sem hipertensão parece ser pelo menos sobreponível a outros tipos de
prevenção.
No entanto, muito tem ainda de ser investigado em doentes não hipertensos.
Existem poucos dados relatando medidas de prevenção secundária em doentes não
hipertensos. Esta meta-análise forneceu-nos dados relativamente a terapêutica
antihipertensora. Novos estudos utilizando terapêuticas antidislipidémicas ou
drogas antiplaquetárias terão de ser efectuados nesta população para comprovar
que tratamento terá o maior benefício e se este será de valorizar para a
prática clínica.