Carta aberta a um jovem investigador clínico
EDITORIAL
Carta aberta a um jovem investigador clínico
Rosalvo Almeida*
*Presidente cessante da Comissão de Ética para a Saúde da ARS Norte (2009-
2011), neurologista aposentado.
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Caro colega,
Não sei se já se apercebeu disso mas julgo que muitos médicos de família já se
deram conta de que, nos tempos que correm, é cada vez mais frequente a
realização de estudos de investigação clínica nas unidades de saúde da área dos
cuidados primários.
Quase todos esses estudos são de tipo observacional, quantitativos,
transversais. São questionários que se aplicam a utentes, familiares e
cuidadores ou a profissionais de saúde. A grande maioria insere-se no contexto
de graduações académicas ' mestrados ou doutoramentos.
A realização destes estudos depende naturalmente da autorização dos dirigentes
das unidades onde se concretizam, cabendo aos Conselhos Clínicos do ACES
especiais competências na matéria.1 Em algumas ARS foram criadas Comissões de
Ética para Saúde (CES) tendo em vista emitirem pareceres que ajudem os
dirigentes nas suas decisões.
Há quem pense que os estudos observacionais ou, por outras palavras, aqueles em
que não há intervenção sobre os participantes não carecem de parecer ético.
Todavia, esta opinião assenta em alguns equívocos que importa resolver.
Em primeiro lugar, convém clarificar que os pareceres das CES não são
vinculativos nem obrigatórios ' os dirigentes são livres de deferir ou
indeferir os pedidos de autorização qualquer que seja o sentido dos pareceres
da CES e, por outro lado, podem decidir sem pedir parecer. Por sua vez, aos
investigadores também interessa terem um parecer de uma CES pois algumas
revistas, como esta, o exigem.
Em segundo lugar, o papel das CES é zelar pelos direitos e interesses dos
participantes. Deste modo as comissões apreciam os projetos, verificam os
conteúdos dos inquéritos e as metodologias (nomeadamente quanto à forma como os
participantes são convidados e recrutados), confirmam os compromissos de
confidencialidade e anonimato, reconhecem a pertinência e relevância dos
objetivos. Ora, estas finalidades da apreciação de projetos são independentes
do tipo de estudo e são manifestamente importantes, sejam os estudos
observacionais, experimentais ou outros.2
Também corre a opinião de que em estudos observacionais não há necessidade de
obter, por assinatura de documento, o consentimento informado dos
participantes. Aparentemente este outro equívoco resulta de um entendimento
desfocado do que é o consentimento informado ' é afinal olhar só para a palavra
«consentimento» e menorizar a palavra «informado».
A utilização para fins de investigação de dados pessoais e de depoimentos dos
participantes, sejam utentes ou profissionais de saúde, implica que os
investigadores se comprometam a não os utilizar para outros fins, garantam não
identificar os participantes na publicação dos resultados, expliquem em que
consiste o estudo, não escondam os eventuais incómodos causados pelo estudo,
etc. É por isso que um documento formal para dar informações e obter
consentimento se torna necessário. Ele representa uma forma de «contrato» entre
investigador e participante, feito em duplicado, em que cada parte fica com uma
via assinada por ambos ' o primeiro «outorgante» guarda-o para provar que pediu
e obteve consentimento perante eventuais auditorias; o segundo «outorgante»
guarda-o para reler, revogar se assim o entender ou reclamar se verificar
eventual incumprimento do garantido. É óbvio que a linguagem deverá ser tão
simples quanto possível, livre de termos técnicos (exceto quando os
participantes forem profissionais de saúde) e globalmente adequada à literacia
dos participantes a recrutar.3
Existe um outro ponto que dá origem a mal-entendidos ' trata-se do anonimato
dos dados tratados neste tipo de estudos. Quando os investigadores contactam
diretamente com os participantes, não podem ignorar a identidade destes, mas o
que se lhes pede é que mantenham o anonimato (nunca revelem a sua identidade).
Esta garantia não se deve confundir com a anonimização de dados de saúde que
consiste na entrega, por parte das instituições, normalmente a partir de fontes
informáticas, de dados expurgados de elementos de identificação. Outra situação
diferente será a dos inquéritos de autopreenchimento voluntário e anónimo com
devolução indireta (por exemplo, devolução por correio ou introdução em caixa
fechada), pois neste caso não há lugar a assinatura de documento de
consentimento.
Assim, note-se que a utilização de dados de saúde para fins de investigação, no
respeito pela lei e pelos princípios da confidencialidade e privacidade, só é
possível quando os respetivos titulares informada e expressamente o consintam
ou quando os dados são fornecidos aos investigadores de modo anonimizado. Na
impossibilidade de se conseguir qualquer das condições aqui referidas, um
estudo pode ainda ser autorizado, se for efetuado por profissionais da própria
instituição (com natural e habitual acesso aos dados), quando se revista de
excecional interesse público e receba parecer favorável da Comissão de Ética
local.4
Já quando os estudos são realizados por médicos do internato (colocados em fase
de formação nas unidades de saúde onde decorram os estudos) e consistem em
revisões casuísticas amplas, desde que garantam, nos respetivos protocolos de
estudo, preservar o anonimato dos titulares e não pretendam criar uma base de
dados com elementos de identificação pessoal dos utentes, cremos que poderão
ser autorizados pelos Conselhos Clínicos, mediante o parecer dos respetivos
Orientadores de Formação (a quem aliás cabe também a supervisão do estudo e da
sua integridade ética).
Espero bem que estas linhas o possam ajudar caso esteja a pensar em realizar
alguma investigação. Elas representam as opções que têm sido seguidas pela
Comissão de Ética da ARS Norte nos três anos de funcionamento desde que foi
criada. O número de processos cresce todos os anos (em 2010 e 2011 dobrámos e
triplicámos os números de 2009). Penso que poderá encontrar informações úteis
nas páginas da CES do portal http://www.arsnorte.min-saude.pt , embora não
esteja aí patente a parte do nosso trabalho que consistiu em «negociar« com os
investigadores alterações aos projetos que os tornaram mais interessantes.5 Tem
sido intelectualmente muito gratificante ver esse trabalho reconhecido por
muitos dos próprios investigadores.
Desejo-lhe as maiores felicidades profissionais e pessoais.