Perfil de prescrição antibiótica no tratamento das Infecções das Vias Aéreas
Superiores
INTRODUÇÃO
A resistência aos antibióticos constitui um problema sério tanto em países
desenvolvidos como em vias de desenvolvimento. Hoje em dia é geralmente aceite
a relação directa entre o uso de antibióticos e a prevalência de
microorganismos patogénicos resistentes entre as comunidades humanas, o que em
última análise será responsável por um agravamento da mortalidade, da
morbilidade, da qualidade de vida e dos custos associados à prestação de
cuidados de saúde.
Por outro lado, as Infecções das Vias Aéreas Superiores (IVAS) são uma causa
muito frequente de recurso aos Cuidados de Saúde Primários (CSP), sendo
reportada uma frequência de 11 a 33% de IVAS em todos os motivos de consulta de
Medicina Geral e Familiar (MGF).1-4
No que diz respeito ao problema das resistências, torna-se mais grave quando
consideramos o uso de antibióticos em situações para as quais não têm qualquer
eficácia, como o resfriado comum, em outros síndromes virais ou quando são
amplamente usados na profilaxia e não no tratamento de situações concretas.
Nos últimos anos têm-se assistido a várias acções com o intuito de sensibilizar
e aprofundar conhecimentos dos profissionais de saúde e da comunidade. A
avaliação recente do efeito de duas campanhas mediatizadas que decorreram nos
anos de 2004 e 2005 no Nordeste de Inglaterra, e que forneceram à comunidade
informação sobre o uso adequado de antibióticos, revelou um decréscimo
significativo do uso de antibióticos nos meses de Inverno (menos 21,7 eventos
por 1000 indivíduos, p < 0,0005).5 Também nos EUA foi avaliado o impacto de um
programa educacional em 21 médicos de CSP, mostrando um decréscimo de 24,6% nas
prescrições de antibióticos após o programa, reafirmando a sua importância.6
O projecto ESAC (European Surveilance of Antimicrobial Prescription), levado a
cabo na Europa entre 1997 e 2002, no âmbito dos CSP, mostrou que Portugal é o
4.o país com maior taxa de prescrição total de antibióticos em ambulatório, com
uma média de cerca de 38% superior à média comunitária.7 Por outro lado
verificou-se em Portugal um consumo crescente de antibióticos entre os anos de
1995 e 1999, com um acréscimo de cerca de 24% nesse período, segundo o
relatório da monitorização do consumo de antibióticos do INFARMED.8
No serviço de atendimento complementar na Unidade de Saúde de Vialonga, Lisboa,
foi encontrada no ano de 2000 uma elevada taxa de prescrição de antibióticos
(23% dos episódios de consulta), sendo a amigdalite aguda o diagnóstico que
motivou maior prescrição de antibióticos. Os macrólidos constituíram a classe
mais usada neste contexto (73 das amigdalites agudas em 93 casos).9
A rede de Médicos Sentinela estudou os actos de prescrição antibiótica
notificados durante o ano de 2001. Verificou-se uma frequência de 93,2
prescrições por 1000 indivíduos, por ano, sendo mais elevada no sexo feminino
(11.1 vs. 7.3%; p <0.001). Os episódios de doença do aparelho respiratório
foram os mais frequentes e em 54% foi prescrita uma penicilina, seguida dos
macrólidos (23,3%) e das cefalosporinas (13,0%). As quinolonas foram prescritas
em 5,9% dos episódios de doença do aparelho respiratório.4
Entre Dezembro de 2001 e Janeiro de 2002, o INFARMED avaliou a adequação da
prescrição de antibióticos para Infecções Respiratórias em Médicos
especialistas em MGF com resultados sobreponíveis ao estudo dos Médicos
Sentinela quanto às classes mais prescritas. Foi encontrada elevada prescrição
da associação amoxicilina com ácido clavulânico para cada uma das situações
clínicas estudadas, salientando uma larga e não justificada utilização desta
associação no tratamento da amigdalite e faringite.10 A inadequação da
terapêutica antibiótica foi também sugerida por estudos realizados noutros
países.11,12
A escassez de estudos que abordem este tema suscita a necessidade do
conhecimento da adequação da prescrição antibiótica no tratamento das IVAS em
CSP em Portugal.
Os objectivos deste estudo são: determinar a proporção de IVAS tratadas com
antibiótico numa Unidade de Saúde Familiar do Porto (USF); verificar quais as
classes fármaco-terapêuticas de antibióticos mais prescritas; avaliar se existe
relação entre a prescrição de antibióticos e a idade e o sexo do doente ou
entre a classe fármaco-terapêutica prescrita e a idade do doente.
MÉTODOS
Foi efectuado um estudo de tipo observacional, analítico e transversal, com a
observação de 12 meses, entre 1 de Julho de 2007 e 30 de Junho de 2008, na USF
Serpa Pinto, sobre a população de utentes inscritos com pelo menos um contacto
médico codificado como IVAS. Uma amostra foi seleccionada de forma não
aleatória consecutiva. A dimensão da amostra foi de 267 indivíduos, calculada
com base na fórmula de Lehr, a partir de um valor de alfa de 0,05, para uma
prevalência estimada de IVAS tratadas com antibióticos de 50% e erro de 0,06.
Foram incluídos os utentes que recorreram a consulta, no período em estudo, com
o diagnóstico de IVAS, classificados segundo a International Classification in
Primary Care ' segunda edição (ICPC-2), como: sinais e sintomas da garganta
(R21); infecção estreptocócica da orofaringe (R72); infecção aguda do aparelho
respiratório superior (R74); sinusite (R75); amigdalite aguda (R76). As
variáveis estudadas foram o sexo e a idade dos utentes, a classificação do
episódio segundo ICPC-2, o tratamento farmacológico com antibiótico ou outro
fármaco e a classe de antibióticos prescrita.
A informação foi recolhida pelos médicos internos autores do estudo, em folha
de registo de dados, a partir da listagem das consultas registadas em suporte
informático ' MedicineOne® ' com os diagnósticos de IVAS, segundo o ICPC-2:
R21; R72; R74; R75; R76. Procedeu-se posteriormente à consulta individual da
folha de prescrição associada a cada episódio, caso existisse, em suporte
informático Sistema Apoio Médico (SAM®), para identificação de fármacos
prescritos.
Os dados recolhidos foram codificados e registados em base de dados informática
' software SPSS® 11.5 ' com determinação dos resultados referentes à
estatística descritiva e à estatística inferencial. Foram utilizados os testes
Qui-quadrado e T-student para comparação de proporções e para comparação de
médias, respectivamente, com um nível de significância adoptado de 0,05.
RESULTADOS
Foram analisados 299 contactos médicos classificados como IVAS, com uma média
de idades dos utentes de 26,4 (±22,3) anos, sendo 61,2% do sexo feminino. Não
foram documentadas alergias à penicilina.
Os episódios mais frequentemente classificados (48,2%) foram os de R76 (quadro
I). Em 5,4% dos casos não foi prescrito qualquer fármaco antibiótico ou outro,
incluindo analgésicos, antipiréticos ou anti-histamínicos. Foram prescritos
antibióticos em 68,2% dos casos (IC a 95%, 62,9 - 73,5%), seja isoladamente
como em associação a outros fármacos (quadro_II). A classe de antibióticos mais
utilizada foi a dos beta-lactâmicos (91,7% quadro_III).
Não se verificou relação estatisticamente significativa entre a prescrição de
antibióticos e o sexo (p=0,176) e a idade (p=0,331). Verificou-se existir
relação entre a idade e a classe terapêutica de antibióticos prescrita (quadro
IV).
DISCUSSÃO
Da análise dos resultados deste estudo, verificamos que foram prescritos
antibióticos na maioria dos episódios de IVAS que constituíram na sua maioria
casos de amigdalite aguda. Na comunidade estas são habitualmente provocadas por
agentes virais e estaria preconizado apenas o tratamento sintomático,
farmacológico ou não, que foi aqui utilizado em menos casos. Tendo
provavelmente sido utilizados em excesso, a classe de antibióticos mais usada
foi a dos beta-lactâmicos. Verificou-se que a prescrição de antibióticos foi
independente da idade e do sexo dos utentes.
O facto de a amostra ser constituída por todos os episódios de IVAS codificados
naquela instituição durante um ano permitiu obviar um viés de selecção
correndo, contudo, o risco de não terem sido incluídos episódios sub-
codificados (viés de informação). Merece referência o facto do processo de
codificação se ter iniciado na USF Serpa Pinto no ano correspondente ao período
de estudo, reconhecendo-se, como tal, as dificuldades iniciais desse processo.
Por outro lado, por ser um estudo baseado na consulta da folha de receita
(SAM), posteriormente ao episódio, não condicionou o perfil de prescrição
médica.
Consideramos que a exclusão do diagnóstico otite média aguda constitui uma
limitação ao estudo.
Comparativamente aos estudos existentes na população portuguesa verificou-se
uma maior percentagem de beta-lactâmicos prescritos, em relação a outras
classes de antibióticos, que são terapêutica de 1.a linha nestas situações10
(50,6% vs 90,6%). Os resultados obtidos traduzem-se numa mais-valia para a
instituição, estímulo para a boa prática, formação contínua e satisfação para
os profissionais de saúde.
As características do estudo não permitem a sua generalização a outras
instituições, pelo que seriam interessantes estudos idênticos em outras
unidades prestadoras de cuidados de saúde primários e mesmo em contexto
hospitalar. O conhecimento do perfil de prescrição de antibióticos permitiria a
identificação de lacunas/erros bem como a criação de protocolos de actuação/
actualização e, com isso, um maior investimento na qualidade dos cuidados
prestados.
Portanto, a classe dos beta-lactâmicos foi a mais usada para o tratamento de
IVAS, com uma maior proporção de penicilinas prescritas em relação a outros
estudos. Por outro lado, verificou-se existir relação entre a idade e a classe
terapêutica de antibióticos prescrita.