Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde: notas em torno do Despacho n.º
14 223/2009, de 24 de Junho de 2009 da Ministra da Saúde
Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde : notas em torno do Despacho n.o
14 223/2009, de 24 de Junho de 2009 da Ministra da Saúde
Paula Lobato de Faria1; Pedro Sá Moreira2
1Professora Associada de Direito da Saúde e Biodireito da Escola Nacional de
Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.
2Mestre pela Universidade de Alicante em Qualidade em Saúde, Doutorando da
Universidade de Alicante e da ENSP-UNL (Doutoramento Europeu).
Introdução - 10 anos depois "To Err is Human"
Os resultados ameaçadores de diversos estudos norte-americanos, sobretudo do
relatório "To err is human"(2000), do Institute of
Medicine,apontaram para a existência de 44 mil - 90 mil mortes/ano,
devido a eventos adversos (erros) evitáveis em unidades prestadoras de cuidados
de saúde nos EUA, identificando-os como a 8.a causa de morte e como um dos
problemas actuais mais graves de saúde pública (Kohn, Corrigan e Donaldson,
2000).
A partir deste marco histórico para o Movimento da Segurança do Doente (WHO,
2004) a gestão da qualidade (quality management)aliada à gestão do risco
clínico (clinical risk management)passaram a ter nos EUA como objectivo
essencial, a segurança do doente (patient safety)e a prevenção do chamado
"erro médico", o qual é, também, gerador de acções em tribunal
contra as instituições e os profissionais de saúde, podendo culminar na
condenação ao pagamento de avultadas quantias por parte daqueles em
indemnizações aos lesados.
Se 5 anos após o relatório "To err is human" as perspectivas nos
EUA pareciam ser optimistas quanto à disseminação de uma cultura de qualidade e
prevenção de erros no meio clínico (Watcher, 2004), 10 anos depois é dada uma
nota negativa aos progressos obtidos em segurança do doente no mesmo país
(Consumers Union, 2009) e considera-se que o sector da saúde deveria realizar
parcerias nomeadamente com sectores como o da aviação onde se tem evoluído mais
eficazmente em termos de segurança (Pronovost et al., 2009).
De facto, tratar a questão da gestão do risco clínico/medicamentoso ou a gestão
da qualidade em unidades de saúde é falar de direitos fundamentais da pessoa
humana enquanto doente ou utente de unidades de saúde, isto é, dos direitos
mais importantes: o direito à vida e o direito à integridade física e mental.
Sabemos, porém, que este direito não está ainda acautelado nas unidades de
saúde em Portugal e que a prevenção do erro e a implementação de medidas
eficazes de promoção da qualidade se encontram em fase embrionária no panorama
dos serviços de saúde do nosso país.
Daí que nesta rubrica de Direito da Saúde da Revista Portuguesa de Saúde
Pública tenhamos escolhido destacar o Despacho n.o 14 223/2009 da Ministra da
Saúde, publicado a 24 de Junho, no Diário da República (DR) n.o 120, Série II,
o qual procede à aprovação e descrição da Estratégia Nacional para a Qualidade
na Saúde.
Do Plano Nacional de Saúde para a Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde
Para garantir os direitos dos cidadãos na sua relação com o sistema de saúde, o
Ministério da Saúde tem como uma das suas missões potenciar a sua coesão e a
qualidade da prestação de cuidados de saúde (cfr. Preâmbulo do Despacho
citado). Nesse sentido e de encontro ao Plano Nacional de Saúde, alinhado para
o período 2004-2010, aponta como orientação estratégica a melhoria da qualidade
organizacional dos serviços de saúde.
Como ponto de partida, que serviu de fundamento a esta estratégia, o Plano
Nacional de Saúde identificou alguns elementos, que necessitam de melhoria como
factores principais e contributos para a Qualidade na Saúde: escassa cultura da
qualidade; défice organizacional dos serviços de saúde; falta de indicadores de
desempenho e de apoio à decisão; insuficiente apoio estruturado às áreas de
diagnóstico e decisão estratégica (Portugal. Ministério da Saúde. DGS, 2004.
172-173). Também no mesmo documento encontramos as orientações estratégicas e
intervençõesnecessárias para ultrapassar esta situação, as quais seriam (em
colaboração com a Ordem dos Médicos): aumentar a investigação e reflexão nesta
área; incentivar ao relato sistemático de erros e o desenvolvimento de um
sistema de segurança dentro das organizações de saúde (ibid.,174).
De forma a planear e programar a política nacional para a qualidade do sistema
de saúde foi criado o Departamento da Qualidade na Saúde em 16 de Fevereiro de
2009 (Portaria n.o 155/2009, de 10 de Fevereiro), integrado na Direcção-Geral
da Saúde (DGS). Aprovado pela Ministra da Saúde através do Despacho n.o 13793/
2009 publicado em DR n.o 114 de 16 de Junho e sucedendo ao Instituto da
Qualidade em Saúde e à Agência da Qualidade na Saúde, o Departamento da
Qualidade na Saúde tem o papel de coordenador da Estratégia Nacional para a
Qualidade na Saúde, apoiado pelo Conselho para a Qualidade na Saúde, órgão
consultivo igualmente criado por aquele Despacho.
A Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde (ENQS)
O já citado Despacho n.o 14223/2009 da Ministra da Saúde (de ora em diante
citado abreviadamente como "Despacho") aprova a Estratégia Nacional
para a Qualidade na Saúde (ENQS) e incumbe o Departamento da Qualidade na Saúde
de criar um programa nacional de acreditação em saúde, em relação ao qual a
adesão das instituições prestadoras de cuidados será voluntária (cfr. n.o 3 do
Preâmbulo do Despacho). Este programa deverá basear-se num modelo de
acreditação sustentável e adaptável às características do sistema de saúde
português, tendo por objectivo garantir a qualidade das instituições e
consolidar a cultura da qualidade integral (ibid.,n.o 2). Fica a cargo da DGS
promover as formas de reconhecimento público da qualidade e das melhorias
alcançadas pelas unidades prestadoras de cuidados de saúde voluntariamente
acreditadas (ibid.,n.o 4).
O corpo do Despacho insere (para além do enquadramento legal) 6 eixos
essenciais (ver Figura anexa): Missão; Prioridades estratégicas; Destinatários;
Valores e Acções a desenvolver.
Figura
Eixos fundamentais do Despacho n.o 14223/2009, de 24.06
Estes eixos baseiam-se num contexto fundamental em que se considera que a
cobertura territorial e a universalidade da prestação de cuidados de saúde
estão consolidadas, permitindo que os desafios da qualidade e da segurança
surjam agora como uma das principais prioridades do sistema de saúde português
(v. Corpo do Despacho, I). A Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde
deverá ser implementada e consolidada num prazo de cinco anos.
Missão
No que respeita a missão da ENQS, o Despacho (ibid., II) considera que a
evolução recente da prática clínica em Portugal, influenciada pelo modelo
anglo-saxónico, conduziu a uma maior autonomia do utente face ao
"poder" do profissional de saúde, sendo o cidadão protagonista dos
serviços de saúde que integra como cliente, utilizador e como proprietário
desses serviços. Assim sendo, o utente tem o direito reconhecido de:
- Participar nas decisões que lhe dizem respeito;
- Ser informado sobre os riscos e benefícios potenciais de cada
procedimento;
- Aceitar ou recusar esses riscos e benefícios depois de convenientemente
informado.
Menciona-se a OMS enquanto esta organização aconselha cada país a possuir uma
estratégia nacional para a qualidade e segurança em saúde, que essa estratégia
tenha em atenção a necessidade de tomada de medidas sustentáveis a longo prazo
e que seja implementada, de forma sistemática, de acordo com as realidades
regionais e locais (ibid.).
Citam-se ainda no Despacho os códigos deontológicos, na medida em que estes
defendem a qualidade dos cuidados prestados e impõem aos profissionais de saúde
uma permanente actualização da cultura científica e da preparação técnica, com
vista a prestarem os melhores cuidados de saúde ao seu alcance, considerando
que os cuidados de saúde são hoje prestados num contexto diversificado de
interesses em conflito, perante uma mudança tecnológica permanente e sob um
escrutínio público sem precedentes (ibid.).Considera-se que o nível de
exigência dos utentes é cada vez maior, assim como a sua expectativa face a
bons resultados terapêuticos (ibid.).
Prioridades estratégicas de actuação
O trabalho do Departamento da Qualidade na Saúde (DQS) reveste-se assim da
maior importância para a implementação de uma verdadeira cultura de qualidade e
segurança no sector da saúde, adoptando as seguintes prioridades estratégicas
de actuação (ibid. III):
1) Qualidade clínica e organizacional;
2) Informação transparente ao cidadão;
3) Segurança do doente;
4) Qualificação e acreditação nacional de unidades de saúde;
5) Gestão integrada da doença e inovação;
6) Gestão da mobilidade internacional de doentes;
7) Avaliação e orientação das reclamações e sugestões dos cidadãos utilizadores
do Serviço Nacional da Saúde.
Para a implementação destas prioridades estratégicas, o DQS é apoiado
cientificamente por um conselho consultivo (ibid.). Caberá assim ao DQS
promover no nosso país uma nova dinâmica no conceito de cliente em saúde, uma
melhor orientação e visão estratégia do cuidador, a definiçãode um modelo de
acreditação único a nível nacional e a sua implementação voluntária pelas
organizações, assim como a reflexão sobre a análise critica dos resultados,
baseados nos objectivos, comportamentos, procedimentos e metodologias clínicas
utilizadas. A evolução progressiva que acompanha esta estratégia reveste-se de
um vasto conjunto de transformações, aliado a uma intrínseca inovação e
empreendorismo em saúde.
Advertência final
Portugal carece de sistemas de prevenção de erros nas unidades de saúde e para
os construir beneficiará largamente se beber informação e know-how de países e
organizações onde esta área está mais estudada e testada, tal como nos EUA,
pelo que propomos às nossas entidades responsáveis estudar bem o que tem ou não
funcionado noutros países com sistemas de gestão do risco em unidades de saúde
mais enraizados na tomada de decisões estratégicas nesta área. De qualquer modo
e apesar deste alerta, é de louvar a iniciativa de documentos como a Estratégia
Nacional que aqui comentámos, pois o facto do Despacho ora analisado dar à DQS
da Direcção-Geral da Saúde uma responsabilidade inequívoca na promoção de uma
estratégia pública de qualidade, acreditação e melhoria da segurança nas
unidades prestadoras de cuidados de saúde, é um factor optimista na realização
do desígnio de dar aos cidadãos e aos profissionais de saúde maior confiança no
acesso aos cuidados. Acresce dizer, como nota final, que a Estratégia Nacional
para a Qualidade em Saúde só será concretizável se à mesma for dada verdadeira
prioridade, quer em recursos humanos quer financeiros, por parte do Estado.
Infelizmente, não é excepção em Portugal, delinearem-se no Diário da República
estratégias conceptualmente perfeitas que depois vêm a ficar sem efeito devido
a asfixia por carência de meios no terreno. A Saúde Pública tem padecido
bastante deste sintoma, o que prejudica todos os cidadãos portugueses, pelo que
esperamos que desta vez se possam prevenir milhares de mortes evitáveis nas
unidades de saúde nacionais, bastando para tal apoiar com recursos e cumprir
com rigor a estratégia ora apresentada.