Racionamento dos cuidados de saúde e a participação da sociedade: revisão do
debate
Introdução
A insuficiência de recursos que caracteriza os sistemas de saúde um pouco por
todo o mundo está a condicionar o respeito de um dos direitos fundamentais que
sustenta, grande parte das sociedades do mundo: o direito à saúde. Globalmente,
é cada vez maior o hiato entre necessidades (e expectativas da população) e os
recursos disponíveis para as satisfazer. Neste sentido, e à semelhança do que
sucede noutros sectores, o conceito racionamento ou estabelecimento de
prioridades (termos que usaremos como sinónimos ao longo do artigo) tem vindo a
ganhar proeminência na área da saúde.
Racionar ou estabelecer prioridades nos cuidados de saúde envolve um processo
de escolhas entre programas e serviços alternativos de cuidados de saúde e
entre pacientes ou grupos de pacientes. Na ausência de mecanismo de preços, nos
sistemas de saúde públicos, para desempenhar o seu papel regulador no "mercado"
dos cuidados de saúde, o racionamento aparece como seu substituto no processo
de afectação dos recursos limitados.
Não obstante o recente debate político e académico que tem realçado a
preocupação com a escassez dos recursos, o acto de racionar serviços de saúde
tem sido uma prática comum em todos os sistemas de saúde, na medida em que
nunca nenhum país conseguiu afectar à saúde recursos em montante suficiente
para suprir toda a procura. As medidas de racionamento têm sido, no entanto,
vagas, implícitas e desenvolvidas de forma discricionária pelos prestadores de
cuidados de saúde. Actualmente, na literatura, pondera-se a hipótese de
substituir o tradicional método discricionário pela adopção de políticas
explícitas e sistemáticas de racionar os cuidados de saúde. Na definição dos
métodos e modelos a adoptar, discute-se, em particular, o papel da economia da
saúde e da participação da população no debate e na tomada de decisões de
priorização.
Este artigo revê o debate que se tem desenvolvido em torno da questão de
conferir maior transparência ao processo de estabelecer prioridades em saúde
com o alargamento do debate à população, em geral. O envolvimento da sociedade
na priorização dos cuidados de saúde tem suscitado controvérsia, estendida a
vários níveis. Ao nível metodológico discute-se a forma mais efectiva de obter
as preferências dos membros da população 1. Ao nível ético não parece haver
consenso sobre a participação da população no processo de priorização dos
serviços de saúde 2.
O artigo começa com a apresentação da problemática subjacente ao processo de
estabelecer prioridades em saúde. Segue-se a secção onde são descritas as
limitações das técnicas de avaliação económica na formulação de soluções de
priorização e o ímpeto económico para o envolvimento da população na tomada de
decisões. Seguidamente, é apresentada uma envolvente mais abrangente da
necessidade de dotar o racionamento de serviços de saúde de maior
transparência. Aqui serão abordados os impulsos inerentes ao envolvimento de
todos os actores sociais, em geral, e da população, em particular, no debate
sobre a priorização dos cuidados de saúde assim como as dificuldades associadas
à praticabilidade desse envolvimento. Uma revisão dos esforços internacionais
de conferir ao racionamento um carácter mais legítimo e transparente é
apresentada no ponto seguinte e que antecede o das considerações finais.
O problema: como estabelecer prioridades em saúde?
A escassez de recursos enfrentada pelos países, requer que a distribuição dos
cuidados seja prosseguida pela "capacidade de pagar" ou pela "necessidade".
Enquanto a "capacidade de pagar" é a forma privilegiada de racionamento nos
Estados Unidos da América, os países com sistemas nacionais de saúde continuam
a basear-se na "necessidade", um conceito frequentemente mal definido. Em
consequência, o racionamento nos sistemas de saúde publicamente financiados
tende a ser mais burocrático e a requerer maior cooperação dos diferentes
agentes do sector da saúde.
A negação de cuidados de saúde potencialmente benéficos desafia os alicerces do
contrato social vigente nas sociedades, em particular nos países com sistemas
nacionais de saúde. Nos sistemas de saúde publicamente financiados o desafio
enfrentado pelos decisores políticos passa por conciliar a insuficiência de
recursos com a manutenção de sistemas de saúde baseados nos princípios da
universalidade na cobertura, equidade no acesso e solidariedade no
financiamento, valores, hoje, fundamentais nas sociedades desenvolvidas e
democráticas.
A reflexão académica poderá contribuir para a definição de um novo contrato
social para a saúde que se coadune com as preferências sociais. A discussão é,
porém, um debate em aberto, multidisciplinar e aceso. Com poucas excepções o
debate assume o racionamento explícito como inevitável e centra a discussão em
questões como: Quais os critérios de priorização? Quais as consequências
distributivas e éticas da adopção desses critérios? Quem deve participar na
fixação de prioridades? Qual o processo de racionamento a privilegiar: técnico
ou político?
Tradicionalmente, a discricionariedade caracterizou (e continua a caracterizar)
a tomada de decisões de priorização baseadas em preceitos clínicos e
julgamentos de valor definido de forma não sistemática pelos prestadores de
cuidados de saúde. Porém, desde finais dos anos 80 a abordagem implícita de
racionar serviços de saúde tem vindo a ser contestada. Na génese do movimento
em prol da adopção de um racionamento com carácter mais explícito ou mais
responsabilizável de estabelecer prioridade estão, entre outros factores 3: (i)
a crescente preocupação partilhada e sentida pelas sociedades quanto ao futuro
do Estado Providência, em geral, e ao papel dos serviços de saúde, publicamente
financiados, em particular; (ii) a maior disponibilidade de informação aumenta
as expectativas das sociedades que começam a reconhecer mais facilmente as
deficiências dos sistemas de saúde e, inevitavelmente, a tolerar menos a falta
de transparência das decisões de afectação emanadas e (iii) o papel
desempenhado pelos meios de comunicação social que exaltam a emotividade ao
divulgarem mortes de indivíduos decorrentes da negação de cuidados de saúde,
por imperativos de contenção de recursos públicos contribuindo para a promoção
de discussões políticas e públicas.
É frequente, encontrar-se na literatura alguma confusão em torno de conceitos
como implícito e explícito. Alguns investigadores 4 interrogam-se quanto à
interpretação a dar ao que vulgarmente se apelida de racionamento explícito.
Questionam se uma abordagem baseada em princípios bem conhecidos
independentemente da sua exposição ao escrutínio público cabe na interpretação
de "explícito". Num esforço para clarificar esta confusão, Obermann e Buck 4
alargam a dicotomia implícito/explícito a uma tipologia que separa o modo de
racionamento (trata da forma como os responsáveis afectam os recursos da saúde)
da transparência do debate (trata da forma como a sociedade intervém no
processo). De acordo com esta classificação, importa separar a organização do
racionamento do seu escrutínio público. Em termos de política da saúde, é
preciso definir o modo de racionamento a adoptar e o quão transparente deve o
debate sobre o racionamento ser apresentado à comunidade. O debate em torno da
tipologia implícito versus explícito estende-se, assim, ao debate em torno de
dois outros elementos: (i) definição (ou não) de critérios sistemáticos de
estabelecer prioridades e (ii) participação (ou não) da população no debate
sobre o racionamento (e na tomada de decisões).
A perspectiva económica do envolvimento da população na priorização dos
cuidados de saúde
A discussão em torno do racionamento tem registado ao longo das três últimas
décadas uma evolução. Esta evolução ocorreu em duas fases marcadas por duas
correntes diferentes de encarar o problema do estabelecimento de prioridades 5.
Uma defendida, essencialmente por economistas, entende que os princípios devem
ser definidos através da utilização de metodologias técnicas suportadas pelas
áreas da economia, epidemiologia e da evidência clínica (medicina baseada na
evidência). A outra apela a que os princípios sejam definidos numa base
institucional, sustentados num debate pluralista. A diferença entre as duas
abordagens reside, essencialmente, na importância relativa que cada uma confere
à concepção do que deve ser o processo de estabelecer prioridades. As
metodologias técnicas procuram desenvolver informações que permitem de forma
clara e simples definir prioridades entre serviços e/ou doentes dando ênfase
aos resultados. A abordagem institucional, por outro lado, encara o
estabelecimento de prioridades como um processo contínuo que não tem uma
resposta simples ou sequer única porque entende que racionar o acesso às
intervenções de saúde é fundamentalmente um exercício político e social que
envolve uma "negociação" entre todos os actores sociais interessados. Mais do
que com resultados, a abordagem institucional preocupa-se com a justiça
processual, isto é, com a forma como esses resultados foram alcançados.
A economia da saúde impulsionou e contribuiu significativamente para o debate
em torno do racionamento sustentando-se em técnicas de avaliação económica
enquanto instrumento sistemático de identificação, enumeração e valoração de
custos e benefícios de programas ou intervenções de saúde alternativos(as). Uma
corrente importante do pensamento económico defende que a afectação óptima dos
recursos é aquela que maximiza a saúde esperada da população. De acordo com
esta abordagem as considerações de eficiência são encaradas como um meio ético
de proceder ao racionamento, ao garantir à população ganhos máximos de saúde
dentro de determinadas restrições. A técnica de priorização advogada pela
maioria dos economistas mede a saúde da população em termos de anos de vida
ganhos com qualidade de vida (QALY), sendo as prioridades estabelecidas em
função do número de QALYs gerados por unidade de custo. A construção deste
indicador apresenta porém inúmeras desvantagens que têm sido amplamente
debatidas na literatura [Pinho e Veiga 6 para uma revisão].
Ao longo dos últimos anos tem-se registado um considerável investimento na
avaliação económica com resultados visíveis na proliferação de publicações
metodológicas e/ou empíricas nesta área 7. A reforma prosseguida no estado
norte-americano de Oregon constitui, provavelmente, o exemplo mais ambicioso e
melhor documentado de utilização destas metodologias. Para alargar o número de
beneficiários do sistema Medicaid a todos os cidadãos em condição económica
elegível foi necessário restringir o número de serviços prestados. A filosofia
seguida previa a ideia de "alguns cuidados de saúde para todos" em substituição
da anterior que protagonizava "todos os cuidados para alguns". A definição dos
serviços de saúde a financiar publicamente dependia da posição que ocupariam
numa lista de ordenação que obedece à razão dos QALYs por unidade de custo e ao
orçamento disponível. Esta experiência foi pioneira pelo mérito que teve ao
revestir a primeira tentativa de utilizar critérios económicos para definir
prioridades como também pelo facto de ter denunciado as limitações da abordagem
económica.
O recurso à avaliação económica foi também opção de outras jurisdições. Na
Austrália, por exemplo, a definição da lista positiva de medicamentos a
financiar publicamente exigiu estudos de avaliação económica 7. No Reino Unido,
Holanda e Israel as decisões relativas à adopção de novas tecnologias passaram
por resultados obtidos por comparação entre custos e efectividade 7.
Ainda que estes países tenham sido pioneiros na promoção de reformas que visam
dotar o racionamento dos cuidados de saúde de um carácter mais racional no que
Obermann e Buck 4 descrevem como a passagem de um sistema "não sistemático e
oculto" para um procedimento "sistemático e oculto" de estabelecer prioridades,
os seus resultados práticos foram limitados. A aplicação de técnicas de
avaliação económica tem sido obstaculizada por diversas razões. As limitações
metodológicas associadas à falta de informação são um dos entraves à
implementação das metodologias económicas 8,9. Ainda que, a medicina baseada na
evidência revista um esforço para colmatar a falta de informação, os decisores
enfrentam, adicionalmente, o desafio de conciliar dois objectivos
potencialmente antagónicos: maximização dos ganhos de saúde (eficiência) e
equidade. Uma vasta literatura empírica 10 mostra que, na hora de estabelecer
prioridades na saúde, a sociedade valora para além da eficiência os aspectos
distributivos da afectação. A operacionalização dotrade-off entre eficiência e
equidade tem-se revelado complexa não só por razões de ordem técnica como
também por razões conceptuais, entre as quais se destaca a dificuldade em
definir equidade em saúde. A literatura mostra que, não obstante, existirem
muitos conceitos e princípios de equidade parece pouco provável que venha a ser
desenvolvida uma teoria universal e consensual do que se entende por equidade
em saúde. Adicionalmente, é expectável que as preferências distributivas mudem
ao nível individual e contextual, o que por si só justifica a pertinência de
conhecer as preferências da comunidade pelas dimensões equitativas em saúde.
O debate em torno da participação da comunidade na priorização dos cuidados de
saúde
O cepticismo que se foi desenvolvendo em trono da capacidade das abordagens
técnicas desenvolverem critérios sistemáticos de priorização amplamente
aceites, impulsionou uma viragem no modo de pensar o racionamento dos cuidados
de saúde. Nos anos mais recentes começaram a ganhar destaque os processos
políticos/institucionais de explicitação do racionamento, naquilo que Coulter e
Ham 9 apelidam de "nova síntese" entre o racionamento implícito e as técnicas
de avaliação económica. Segundo esta perspectiva o racionamento dos recursos da
saúde passa por um processo político e um exercício social que envolve um
consenso entre os diferentes actores sociais interessados (stakeholders).
A discussão internacional em torno de um debate mais alargado do racionamento
tem-se intensificado, ganhando cada vez mais visibilidade a noção de
envolvimento da população na tomada de decisões no sector da saúde. No contexto
do estabelecimento de prioridades, a controvérsia começa desde logo com a
definição de grupos sociais interessados (stakeholders). Para alguns 11,
stakeholders devem ser os prestadores de cuidados médicos, os doentes e o
público em geral. Outros 12,13 distinguem ainda o grupo dos políticos e
administradores hospitalares. No trabalho de Wiseman et al. 14 os inquiridos
nomearam, adicionalmente, enfermeiros, investigadores, organizações de caridade
e terapeutas alternativos, como entidades a participar na tomada de decisões
que envolvem o estabelecimento de prioridades em saúde. A principal razão
parece ser a de introduzir uma face humana à tomada de decisões de
racionamento. As organizações internacionais 15-17defendem uma perspectiva
alargada destakeholders,incluindo membros da população em geral, médicos,
provedores de cuidados de saúde, mas também grupos de consumidores e grupos de
pressão. Mossialos e King 13, numa excelente revisão de literatura, apresentam
os inconvenientes de o racionamento dos cuidados de saúde ficar sob
responsabilidade de apenas um dos potenciais grupos de intervenientes.
As razões inerentes ao envolvimento da população
O envolvimento dosstakeholders no estabelecimento de prioridades não é, porém,
consensual, sobretudo, e em particular, no que respeita à participação da
população em geral. A estratégia protagonizada pela Organização Mundial de
Saúde (OMS) no sentido de promover saúde para todos no ano 2000 enfatizava já a
importância da participação da comunidade na promoção da saúde 16.
Muitas razões foram avançadas em defesa do envolvimento da população no
estabelecimento de prioridades em saúde. Para muitos autores 18, a participação
da comunidade é considerada um fim em si mesmo. Outros 19referem mesmo ser
difícil estar em desacordo com esta ideia. O apelo à participação da população
sugere uma mudança na filosofia política a propósito do direito democrático de
tomar decisões no âmbito dos cuidados de saúde 20-22. Segundo Adams 23, a
participação popular é importante por ser essencial e central à teoria
democrática e revestir uma forma de a comunidade questionar abertamente o
direito e a competência dos políticos, profissionais de saúde e burocratas na
tomada de decisões em seu nome. A Organização Mundial de Saúde (Alma-Ata
Declaration 24) também recorreu à terminologia do direito ao referir que "as
pessoas têm o direito e o dever de participar individualmente e colectivamente
na planificação e implementação dos seus serviços de saúde". Outros autores 25
reforçam ainda que a participação da população na tomada de decisões pode
contribuir para a união de indivíduos e grupos, instigar um sentido de
competência e responsabilidade e ajudar a expressar uma identidade cívica ou
política. Alguns investigadores referem que um racionamento aberto, alargado à
participação social, constitui uma oportunidade para informar e instruir as
pessoas sobre a necessidade de fixar limites à provisão de serviços de saúde
26,27, conferindo-lhes maior legitimidade 28,29. Fleck 29 defende um modelo
democrático consensual e informado que permita através de mecanismos de
deliberação pública fomentar o debate sobre como os limitados recursos da saúde
podem ser distribuídos de forma justa e, simultaneamente, custo-efectiva. Um
modelo desta natureza é, segundo Fleck 26, preferível ao racionamento feito
pelo mercado, pelos médicos e/ou pelos burocratas. Uma das principais razões
porque muitas jurisdições (por exemplo, Noruega e Oregon) se afastaram da
adopção de metodologias técnicas foi pela percepção de que essas abordagens não
estabeleciam um compromisso com os actores sociais interessados, privilegiando
antes a perspectiva de um reduzido número de decisores.
Para alguns autores, um processo de tomada de decisões mais participativo que
se afaste do domínio dos prestadores de cuidados de saúde permite que os
cidadãos contribuam com novos conhecimentos para o processo de tomada de
decisões, igualmente válidas ainda que eventualmente diferentes 20. Estudos
empíricos 30,31, mostram que as preferências dos cidadãos e/ou doentes diferem
significativamente das dos profissionais de saúde. Uma ideia que parece
consensual entre aqueles que defendem um debate mais participativo é a de que o
envolvimento da comunidade no processo de racionamento promove uma maior
responsabilização por parte dos prestadores de cuidados de saúde 20,32. A
comunidade não contribui para o processo da tomada de decisões apenas com a sua
experiência e/ou com novas ideias mas também encoraja os prestadores a
encararem com mais responsabilidade os objectivos do serviço de saúde e a serem
mais abertos e explícitos nas escolhas que fazem 21.
O envolvimento da população na tomada de decisões de priorização pode, ainda,
justificar-se por razões relacionadas com o escalonar dos custos da saúde e da
performance dos sistemas de saúde. A evidência de grandes variações nas
práticas clínicas 33assim como crescentes preocupações com o envolvimento da
indústria farmacêutica na tomada de decisões clínicas 34, 2001) estimularam o
escrutínio público dos serviços de saúde.
Objecções ao envolvimento da população
Ainda que, existam muitos motivos que parecem justificar o alargamento da
tomada de decisões de priorização à população em geral, têm sido avançados
muitos argumentos contra a transparência do debate e a favor da manutenção de
um racionamento "oculto". As maiores objecções apontadas à participação da
população identificam a dificuldade em ouvir um grupo que seja representativo
da população; a falta de conhecimentos técnicos especializados e o risco de se
cair num processo populista de estabelecer prioridades 1,5. Alguns autores
receiam que o reconhecimento público do racionamento possa delapidar a
confiança que a população deposita nos profissionais de saúde 35. A
transparência das decisões de priorização pode ameaçar a credibilidade dos
indivíduos nos sistemas de saúde, particularmente se casos ou formas
individuais de tratamento forem financeiramente excluídos com base em
princípios "abstractos" 36. Para Calabresi e Bobbitt 37 preservar o
racionamento incógnito permite manter a necessária coesão social, a noção
pública de equidade, a crença em importantes valores simbólicos como a
santificação da vida e a sensação de segurança, sustentada na ideia de que tudo
será feito para tratar um doente. Também Grimley 38 refere que uma abordagem
que coloca os direitos dos cidadãos individuais nas mãos de outros cidadãos é
falaciosa uma vez que, na maioria dos estados democráticos, os cidadãos são
considerados iguais perante a lei e com direitos iguais de acesso à saúde. A
transparência pode ainda ser conotada com a dificuldade em alcançar um consenso
sobre que abordagem distributiva seguir 27,39. As múltiplas teorias de justiça
existentes reflectem o pluralismo moral das sociedades. Segundo Jacobson e
Bowling 39, as pessoas vivendo numa sociedade que tem o indivíduo como foco
apresentam grandes dificuldades em construir ou detectar valores de natureza
comunitária e, consequentemente, em elaborar critérios baseados em valores que
não cultuam quando têm de proceder a escolhas sobre o estabelecimento de
prioridades em saúde para a sua comunidade e não para si próprias. Destacam que
há fortes indícios de que tendem a valorizar as crenças em detrimento dos
valores, a negligenciar os cuidados de determinados grupos populacionais e a
priorizar intervenções relacionadas com serviços de urgência e emergência em
detrimento dos cuidados preventivos.
Estender o estabelecimento de prioridades à participação da população requer
também alguma transferência de poder e autoridade para este grupo o que pode
vir a colidir com interesses de outros grupos, nomeadamente, médicos 5,39.
Jacobson e Bowling 39 salientam que debater publicamente o racionamento é
dificultado pela existência de conflitos entre as visões da população, em
geral, e a dos profissionais de saúde ou de grupos de pacientes. Coast, Donovan
e Frankel 5 identificam este conflito como umtrade-off entre "paternalismo
médico" e "participação de leigos". A evidência de divergências na definição
das prioridades entre prestadores de cuidados de saúde e a população alerta
alguns autores para o risco de este processo poder vir a ser dominado pelos
desinformados 3,5.
Paradoxalmente, parece que a oposição mais interessante ao envolvimento da
população no debate sobre o racionamento advém da própria sociedade. Em termos
económicos, parece que a população experimenta uma certa desutilidade quando
toma conhecimento de, ou é chamada a pronunciar-se sobre, decisões que envolvem
a negação de tratamentos a outros membros da sociedade 40 por recear o
arrependimento se for tomada uma decisão errada 41. A evidência sugere que o
arrependimento é um elemento importante na valoração individual e na tomada de
decisões respeitantes a cuidados de saúde 42. Esta ideia é reforçada com o
parecer de que os cidadãos derivam utilidade por não saberem como os recursos
da saúde são efectivamente racionalizados argumento da "utilidade da
ignorância" 35,43. Estudos empíricos mostram que, não obstante, os cidadãos
desejarem ser consultados sobre a planificação dos recursos da saúde não querem
tomar directamente decisões de racionamento 22,43-45. As pessoas parecem
considerar que os médicos são o melhor grupo para tomar essas decisões em nome
da sociedade 22,31. Isto parece sugerir que por questões de "paz de espírito",
as decisões de racionamento devem ser mantidas com os médicos como quer que
estes as tomem 4.
As dificuldades inerentes ao envolvimento da população
A participação da comunidade na tomada de decisões de priorização é um assunto
complexo tanto em termos teóricos como empíricos e a sua complexidade é exposta
pela forma como foi aplicada no sector dos serviços de saúde. Em termos
práticos, o nível de participação da população depende de muitos factores. O
papel conferido às preferências sociais depende das necessidades da situação
concreta de priorização; da ênfase/importância que os governos atribuem ao
parecer da população 5; dos objectivos do exercício e até da tipologia das
prioridades estabelecidas 1.
Muitas jurisdições têm vindo a defender, ainda que apenas teoricamente, uma
maior participação dos seus cidadãos 46-51 pese embora na prática o nível de
influência da população seja variável e indefinido. De facto, parece não
existir um entendimento generalizado do que é ou como deve ser a participação
da sociedade. Arnstein 52 representou um modelo em escada com diferentes níveis
de envolvimento da população, que descende em oito degraus, desde um papel de
controlo dos cidadãos até ao papel de manipulação. Charles e DeMaio 20 reduzem
a participação da população a três níveis: consultivo, em parceria e dominante.
A influência da população pode também ser variável porque o contexto em que as
decisões de priorização são tomadas é diferente. A literatura 8,53 mostra que
as decisões de racionamento podem ocorrer sobretudo ao nível macro (ou
político), meso (entre serviços) e micro (entre tratamentos ou doentes). O grau
de participação da população pode variar entre estes diferentes níveis de
tomada de decisões. As pessoas parecem manifestar grande vontade em ser
envolvidas na tomada de decisões ao nível macro e meso mas menor vontade ao
nível individual 53.
Uma terceira dificuldade inerente à participação da população prende-se com a
escolha do método de eliciação das preferências. Ainda que, como vimos, a
evidência empírica mostre que a população delega nos médicos a tomada de
decisões de priorização, estes resultados estão condicionados pelo método de
eliciação usado. Trabalhos conduzidos no Reino Unido, que conferiram aos
inquiridos a oportunidade de reflectir, deliberar e discutir em grupo as sua
ideias mostram que a maioria defende uma maior envolvimento da população na
tomada de decisões enquanto apenas uma minoria delega esse papel aos peritos
21. Isto corrobora a ideia de que as preferências da população são vulneráveis
à discussão e deliberação 54. Uma vasta literatura psicológica e sociológica
demonstra que os valores sociais se alteram significativamente de acordo com os
processos usados na sua eliciação dos valores [Lloyd 55para uma revisão].
Existem na literatura muitos métodos de eliciar as preferências da população
[Mullen 1 para uma revisão]. A escolha do método mais adequado de obter
preferências sociais é determinante nos resultados 1.
Experiências internacionais de envolvimento da população no processo de
racionar os cuidados de saúde
As iniciativas internacionais que começaram por encarar o racionamento como um
problema público, nomeadamente, o estado norte-americano de Oregon 46; Reino
Unido 48; Holanda 47; Nova Zelândia 51; países escandinavos 49 e Israel 50 e
cujas experiências se encontram amplamente retratadas na literatura 56,57,
assumiram o compromisso de envolver a população nas decisões de priorização,
embora pareçam longe de alcançar os propósitos de tornar o processo aberto e
transparente. Foram usados, não só, vários métodos para auscultar os valores da
sociedade entre os quais merecem destaque os questionários, grupos focais,
encontros públicos e, mais recentemente,citizens juries' 21 como o nível de
intervenção da população foi diferente entre os países.
Todos os países incluíram nas suas Comissões ou Conselhos, profissionais de
saúde mas distinguem-se no que respeita ao envolvimento de responsáveis
políticos e população assim como ao papel que lhes coube. Na Holanda, por
exemplo, o propósito de envolver a população foi meramente educativo. Procurou-
se consciencializar a sociedade para a necessidade de estabelecer prioridades
e, simultaneamente, incentivar as pessoas a fazerem as suas próprias escolhas
pelas opções de saúde 57. As recomendações na Noruega foram no sentido de que o
processo de priorização deveria ser conduzido por especialistas sem muito
escrutínio público. A Comissão Parlamentar sobre Prioridades Sueca desenvolveu
um trabalho activo de discussão pública sobre o racionamento que passou por
clarificar as razões e os métodos em que se deveriam basear as decisões de
priorização 49. Mais recentemente (2001) foi instituído na Suécia o "Centro
Nacional Para o Estabelecimento de Prioridades na Saúde" cuja função básica é
recolher, analisar e difundir informação sobre as prioridades nos serviços de
saúde. O modelo de envolvimento público seguido pelo Instituto Nacional de
Excelência Clínica (NICE) no Reino Unido constitui provavelmente o avanço mais
significativo nesta matéria na medida em que conta com a participação da
sociedade em todos os níveis do racionamento. Membros da população com
experiência relevante são chamados a discutir questões como a definição e
avaliação clínica de necessidades de tratamentos ou o papel que atributos como
a idade devem desempenhar na formulação de decisões 58. Um quarto do Comité
Israelita responsável por emanar recomendações quanto aos cuidados de saúde a
incluir num pacote básico é constituído por membros da população 50. A Comissão
de Oregon responsável pela definição da lista positiva de serviços ao abrigo do
programa Medicaid contou desde o seu início com o envolvimento da população.
Mais recentemente, porém, a Comissão tem reconhecido a necessidade de prestar
maior importância à efectividade das intervenções e à relação custo-
efectividade e como tal o seu trabalho tem sido conduzido sem muito debate
público 57.
Sabik e Lie 57 num balanço do esforço destes países em termos do contributo da
comunidade para o exercício da definição de prioridades concluíram que o
objectivo inicial de implementar processos deliberativos transparentes e
abertos contando com discussões públicas não foi, de facto, conseguido ou pelo
menos não o foi nos termos defendidos na literatura. Aquilo que de melhor
alguns países (estado norte americano de Oregon, Reino Unido, Nova Zelândia e
Israel) parecem ter conseguido foi uma aceitação, por parte da população, da
necessidade de haver racionamento.
Considerações finais
Em termos gerais, os decisores políticos enfrentam o desafio de decidir quem
acede aos cuidados de saúde, disponíveis em quantidades cada vez mais
limitadas. Na actualidade, a literatura não debate a questão da necessidade de
haver racionamento, assunto amplamente aceite, mas antes como proceder a esse
racionamento 5. O estabelecimento de prioridades continua a ser um tópico
eminentemente político, ainda que, a sua pertinência tenha vindo a ser cada vez
mais reconhecida. A forma como os responsáveis procedem à afectação dos
escassos recursos da saúde pode situar-se entre a discricionariedade dos
prestadores de cuidados médicos e a adopção de algoritmos definidos a partir da
evidência científica. As metodologias económicas ao incidirem na eficiência de
afectações alternativas de recursos contribuem significativamente para a tomada
de decisões em contexto de escassez. A definição de critérios sistemáticos não
parece ser aceite pela sociedade, sobretudo em países com sistemas de saúde
publicamente financiados, por receio de que uma abordagem que incide unicamente
na ponderação de custos e benefícios possa violar os termos de um contrato
invisível existente entre o Estado Providência e os seus cidadãos. Esta
resistência não invalida o desenvolvimento de critérios técnicos de proceder ao
racionamento tendo impulsionado os economistas da saúde a pensarem em funções
bem-estar sociais mais flexíveis, em substituição da tradicional função bem-
estar utilitarista, capazes de incorporar para além da eficiência, preocupações
sociais pelas questões distributivas dos ganhos de saúde [por exemplo, Wagstaff
59. Isto passa por conhecer as preferências da sociedade pela afectação dos
cuidados de saúde e incorporar as eventuais preocupações equitativas nas
análises económicas, procurando alcançar um consenso entre a prossecução da
eficiência e da equidade.
A par destes esforços tem-se desenvolvido o interesse em conferir à comunidade
um papel mais interventivo na discussão do tema do racionamento dos serviços
médicos. Dotar o racionamento de maior transparência tem-se revelado, porém um
exercício complexo e controverso. Em termos práticos, são muitos os factos que
dificultam uma maior participação da sociedade na priorização dos cuidados de
saúde. Reformas audazes foram conduzidas por um grupo restrito de países
(estado norte-americano de Oregon, Holanda, Nova Zelândia; Noruega, Suécia,
Reino Unido e Israel) que procuraram dotar o processo de estabelecer
prioridades de um carácter mais transparente e sistemático. Os esforços
encetados mostram que, o envolvimento da população decorreu de forma diferente
entre os países e com intensidades também distintas. Adicionalmente, estas
experiências revelam que as tentativas prosseguidas para envolver a população
nas decisões de priorização ficaram aquém dos objectivos delineados. Ham
56descreveu estas experiências internacionais não como soluções acabadas mas
antes como um esforço constante que vem sendo feito para desenvolver um modo de
distribuição dos recursos mais transparente, justo e eficiente.
A eficácia de qualquer reforma que venha a ser delineada na saúde requer a
concordância de todos as partes envolvidas e não apenas de quem toma as
decisões. Dotar o racionamento de um carácter explícito, transparente e
legítimo é, no entanto, um objectivo ambicioso, controverso e complexo para o
qual não parecem haver soluções certas ou sequer únicas. As soluções dependem
da vontade política e do contexto cultural e real de cada país.
Conflito de interesse
Os autores declaram não haver conflito de interesse.