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EuPTCVHe0870-90252010000200002

EuPTCVHe0870-90252010000200002

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0870-9025
ano2010
Issue0002
Article number00002

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Racionamento dos cuidados de saúde e a participação da sociedade: revisão do debate

Introdução A insuficiência de recursos que caracteriza os sistemas de saúde um pouco por todo o mundo está a condicionar o respeito de um dos direitos fundamentais que sustenta, grande parte das sociedades do mundo: o direito à saúde. Globalmente, é cada vez maior o hiato entre necessidades (e expectativas da população) e os recursos disponíveis para as satisfazer. Neste sentido, e à semelhança do que sucede noutros sectores, o conceito racionamento ou estabelecimento de prioridades (termos que usaremos como sinónimos ao longo do artigo) tem vindo a ganhar proeminência na área da saúde.

Racionar ou estabelecer prioridades nos cuidados de saúde envolve um processo de escolhas entre programas e serviços alternativos de cuidados de saúde e entre pacientes ou grupos de pacientes. Na ausência de mecanismo de preços, nos sistemas de saúde públicos, para desempenhar o seu papel regulador no "mercado" dos cuidados de saúde, o racionamento aparece como seu substituto no processo de afectação dos recursos limitados.

Não obstante o recente debate político e académico que tem realçado a preocupação com a escassez dos recursos, o acto de racionar serviços de saúde tem sido uma prática comum em todos os sistemas de saúde, na medida em que nunca nenhum país conseguiu afectar à saúde recursos em montante suficiente para suprir toda a procura. As medidas de racionamento têm sido, no entanto, vagas, implícitas e desenvolvidas de forma discricionária pelos prestadores de cuidados de saúde. Actualmente, na literatura, pondera-se a hipótese de substituir o tradicional método discricionário pela adopção de políticas explícitas e sistemáticas de racionar os cuidados de saúde. Na definição dos métodos e modelos a adoptar, discute-se, em particular, o papel da economia da saúde e da participação da população no debate e na tomada de decisões de priorização.

Este artigo revê o debate que se tem desenvolvido em torno da questão de conferir maior transparência ao processo de estabelecer prioridades em saúde com o alargamento do debate à população, em geral. O envolvimento da sociedade na priorização dos cuidados de saúde tem suscitado controvérsia, estendida a vários níveis. Ao nível metodológico discute-se a forma mais efectiva de obter as preferências dos membros da população 1. Ao nível ético não parece haver consenso sobre a participação da população no processo de priorização dos serviços de saúde 2.

O artigo começa com a apresentação da problemática subjacente ao processo de estabelecer prioridades em saúde. Segue-se a secção onde são descritas as limitações das técnicas de avaliação económica na formulação de soluções de priorização e o ímpeto económico para o envolvimento da população na tomada de decisões. Seguidamente, é apresentada uma envolvente mais abrangente da necessidade de dotar o racionamento de serviços de saúde de maior transparência. Aqui serão abordados os impulsos inerentes ao envolvimento de todos os actores sociais, em geral, e da população, em particular, no debate sobre a priorização dos cuidados de saúde assim como as dificuldades associadas à praticabilidade desse envolvimento. Uma revisão dos esforços internacionais de conferir ao racionamento um carácter mais legítimo e transparente é apresentada no ponto seguinte e que antecede o das considerações finais.

O problema: como estabelecer prioridades em saúde? A escassez de recursos enfrentada pelos países, requer que a distribuição dos cuidados seja prosseguida pela "capacidade de pagar" ou pela "necessidade".

Enquanto a "capacidade de pagar" é a forma privilegiada de racionamento nos Estados Unidos da América, os países com sistemas nacionais de saúde continuam a basear-se na "necessidade", um conceito frequentemente mal definido. Em consequência, o racionamento nos sistemas de saúde publicamente financiados tende a ser mais burocrático e a requerer maior cooperação dos diferentes agentes do sector da saúde.

A negação de cuidados de saúde potencialmente benéficos desafia os alicerces do contrato social vigente nas sociedades, em particular nos países com sistemas nacionais de saúde. Nos sistemas de saúde publicamente financiados o desafio enfrentado pelos decisores políticos passa por conciliar a insuficiência de recursos com a manutenção de sistemas de saúde baseados nos princípios da universalidade na cobertura, equidade no acesso e solidariedade no financiamento, valores, hoje, fundamentais nas sociedades desenvolvidas e democráticas.

A reflexão académica poderá contribuir para a definição de um novo contrato social para a saúde que se coadune com as preferências sociais. A discussão é, porém, um debate em aberto, multidisciplinar e aceso. Com poucas excepções o debate assume o racionamento explícito como inevitável e centra a discussão em questões como: Quais os critérios de priorização? Quais as consequências distributivas e éticas da adopção desses critérios? Quem deve participar na fixação de prioridades? Qual o processo de racionamento a privilegiar: técnico ou político? Tradicionalmente, a discricionariedade caracterizou (e continua a caracterizar) a tomada de decisões de priorização baseadas em preceitos clínicos e julgamentos de valor definido de forma não sistemática pelos prestadores de cuidados de saúde. Porém, desde finais dos anos 80 a abordagem implícita de racionar serviços de saúde tem vindo a ser contestada. Na génese do movimento em prol da adopção de um racionamento com carácter mais explícito ou mais responsabilizável de estabelecer prioridade estão, entre outros factores 3: (i) a crescente preocupação partilhada e sentida pelas sociedades quanto ao futuro do Estado Providência, em geral, e ao papel dos serviços de saúde, publicamente financiados, em particular; (ii) a maior disponibilidade de informação aumenta as expectativas das sociedades que começam a reconhecer mais facilmente as deficiências dos sistemas de saúde e, inevitavelmente, a tolerar menos a falta de transparência das decisões de afectação emanadas e (iii) o papel desempenhado pelos meios de comunicação social que exaltam a emotividade ao divulgarem mortes de indivíduos decorrentes da negação de cuidados de saúde, por imperativos de contenção de recursos públicos contribuindo para a promoção de discussões políticas e públicas.

É frequente, encontrar-se na literatura alguma confusão em torno de conceitos como implícito e explícito. Alguns investigadores 4 interrogam-se quanto à interpretação a dar ao que vulgarmente se apelida de racionamento explícito.

Questionam se uma abordagem baseada em princípios bem conhecidos independentemente da sua exposição ao escrutínio público cabe na interpretação de "explícito". Num esforço para clarificar esta confusão, Obermann e Buck 4 alargam a dicotomia implícito/explícito a uma tipologia que separa o modo de racionamento (trata da forma como os responsáveis afectam os recursos da saúde) da transparência do debate (trata da forma como a sociedade intervém no processo). De acordo com esta classificação, importa separar a organização do racionamento do seu escrutínio público. Em termos de política da saúde, é preciso definir o modo de racionamento a adoptar e o quão transparente deve o debate sobre o racionamento ser apresentado à comunidade. O debate em torno da tipologia implícito versus explícito estende-se, assim, ao debate em torno de dois outros elementos: (i) definição (ou não) de critérios sistemáticos de estabelecer prioridades e (ii) participação (ou não) da população no debate sobre o racionamento (e na tomada de decisões).

A perspectiva económica do envolvimento da população na priorização dos cuidados de saúde A discussão em torno do racionamento tem registado ao longo das três últimas décadas uma evolução. Esta evolução ocorreu em duas fases marcadas por duas correntes diferentes de encarar o problema do estabelecimento de prioridades 5.

Uma defendida, essencialmente por economistas, entende que os princípios devem ser definidos através da utilização de metodologias técnicas suportadas pelas áreas da economia, epidemiologia e da evidência clínica (medicina baseada na evidência). A outra apela a que os princípios sejam definidos numa base institucional, sustentados num debate pluralista. A diferença entre as duas abordagens reside, essencialmente, na importância relativa que cada uma confere à concepção do que deve ser o processo de estabelecer prioridades. As metodologias técnicas procuram desenvolver informações que permitem de forma clara e simples definir prioridades entre serviços e/ou doentes dando ênfase aos resultados. A abordagem institucional, por outro lado, encara o estabelecimento de prioridades como um processo contínuo que não tem uma resposta simples ou sequer única porque entende que racionar o acesso às intervenções de saúde é fundamentalmente um exercício político e social que envolve uma "negociação" entre todos os actores sociais interessados. Mais do que com resultados, a abordagem institucional preocupa-se com a justiça processual, isto é, com a forma como esses resultados foram alcançados.

A economia da saúde impulsionou e contribuiu significativamente para o debate em torno do racionamento sustentando-se em técnicas de avaliação económica enquanto instrumento sistemático de identificação, enumeração e valoração de custos e benefícios de programas ou intervenções de saúde alternativos(as). Uma corrente importante do pensamento económico defende que a afectação óptima dos recursos é aquela que maximiza a saúde esperada da população. De acordo com esta abordagem as considerações de eficiência são encaradas como um meio ético de proceder ao racionamento, ao garantir à população ganhos máximos de saúde dentro de determinadas restrições. A técnica de priorização advogada pela maioria dos economistas mede a saúde da população em termos de anos de vida ganhos com qualidade de vida (QALY), sendo as prioridades estabelecidas em função do número de QALYs gerados por unidade de custo. A construção deste indicador apresenta porém inúmeras desvantagens que têm sido amplamente debatidas na literatura [Pinho e Veiga 6 para uma revisão].

Ao longo dos últimos anos tem-se registado um considerável investimento na avaliação económica com resultados visíveis na proliferação de publicações metodológicas e/ou empíricas nesta área 7. A reforma prosseguida no estado norte-americano de Oregon constitui, provavelmente, o exemplo mais ambicioso e melhor documentado de utilização destas metodologias. Para alargar o número de beneficiários do sistema Medicaid a todos os cidadãos em condição económica elegível foi necessário restringir o número de serviços prestados. A filosofia seguida previa a ideia de "alguns cuidados de saúde para todos" em substituição da anterior que protagonizava "todos os cuidados para alguns". A definição dos serviços de saúde a financiar publicamente dependia da posição que ocupariam numa lista de ordenação que obedece à razão dos QALYs por unidade de custo e ao orçamento disponível. Esta experiência foi pioneira pelo mérito que teve ao revestir a primeira tentativa de utilizar critérios económicos para definir prioridades como também pelo facto de ter denunciado as limitações da abordagem económica.

O recurso à avaliação económica foi também opção de outras jurisdições. Na Austrália, por exemplo, a definição da lista positiva de medicamentos a financiar publicamente exigiu estudos de avaliação económica 7. No Reino Unido, Holanda e Israel as decisões relativas à adopção de novas tecnologias passaram por resultados obtidos por comparação entre custos e efectividade 7.

Ainda que estes países tenham sido pioneiros na promoção de reformas que visam dotar o racionamento dos cuidados de saúde de um carácter mais racional no que Obermann e Buck 4 descrevem como a passagem de um sistema "não sistemático e oculto" para um procedimento "sistemático e oculto" de estabelecer prioridades, os seus resultados práticos foram limitados. A aplicação de técnicas de avaliação económica tem sido obstaculizada por diversas razões. As limitações metodológicas associadas à falta de informação são um dos entraves à implementação das metodologias económicas 8,9. Ainda que, a medicina baseada na evidência revista um esforço para colmatar a falta de informação, os decisores enfrentam, adicionalmente, o desafio de conciliar dois objectivos potencialmente antagónicos: maximização dos ganhos de saúde (eficiência) e equidade. Uma vasta literatura empírica 10 mostra que, na hora de estabelecer prioridades na saúde, a sociedade valora para além da eficiência os aspectos distributivos da afectação. A operacionalização dotrade-off entre eficiência e equidade tem-se revelado complexa não por razões de ordem técnica como também por razões conceptuais, entre as quais se destaca a dificuldade em definir equidade em saúde. A literatura mostra que, não obstante, existirem muitos conceitos e princípios de equidade parece pouco provável que venha a ser desenvolvida uma teoria universal e consensual do que se entende por equidade em saúde. Adicionalmente, é expectável que as preferências distributivas mudem ao nível individual e contextual, o que por si justifica a pertinência de conhecer as preferências da comunidade pelas dimensões equitativas em saúde.

O debate em torno da participação da comunidade na priorização dos cuidados de saúde O cepticismo que se foi desenvolvendo em trono da capacidade das abordagens técnicas desenvolverem critérios sistemáticos de priorização amplamente aceites, impulsionou uma viragem no modo de pensar o racionamento dos cuidados de saúde. Nos anos mais recentes começaram a ganhar destaque os processos políticos/institucionais de explicitação do racionamento, naquilo que Coulter e Ham 9 apelidam de "nova síntese" entre o racionamento implícito e as técnicas de avaliação económica. Segundo esta perspectiva o racionamento dos recursos da saúde passa por um processo político e um exercício social que envolve um consenso entre os diferentes actores sociais interessados (stakeholders).

A discussão internacional em torno de um debate mais alargado do racionamento tem-se intensificado, ganhando cada vez mais visibilidade a noção de envolvimento da população na tomada de decisões no sector da saúde. No contexto do estabelecimento de prioridades, a controvérsia começa desde logo com a definição de grupos sociais interessados (stakeholders). Para alguns 11, stakeholders devem ser os prestadores de cuidados médicos, os doentes e o público em geral. Outros 12,13 distinguem ainda o grupo dos políticos e administradores hospitalares. No trabalho de Wiseman et al. 14 os inquiridos nomearam, adicionalmente, enfermeiros, investigadores, organizações de caridade e terapeutas alternativos, como entidades a participar na tomada de decisões que envolvem o estabelecimento de prioridades em saúde. A principal razão parece ser a de introduzir uma face humana à tomada de decisões de racionamento. As organizações internacionais 15-17defendem uma perspectiva alargada destakeholders,incluindo membros da população em geral, médicos, provedores de cuidados de saúde, mas também grupos de consumidores e grupos de pressão. Mossialos e King 13, numa excelente revisão de literatura, apresentam os inconvenientes de o racionamento dos cuidados de saúde ficar sob responsabilidade de apenas um dos potenciais grupos de intervenientes.

As razões inerentes ao envolvimento da população O envolvimento dosstakeholders no estabelecimento de prioridades não é, porém, consensual, sobretudo, e em particular, no que respeita à participação da população em geral. A estratégia protagonizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no sentido de promover saúde para todos no ano 2000 enfatizava a importância da participação da comunidade na promoção da saúde 16.

Muitas razões foram avançadas em defesa do envolvimento da população no estabelecimento de prioridades em saúde. Para muitos autores 18, a participação da comunidade é considerada um fim em si mesmo. Outros 19referem mesmo ser difícil estar em desacordo com esta ideia. O apelo à participação da população sugere uma mudança na filosofia política a propósito do direito democrático de tomar decisões no âmbito dos cuidados de saúde 20-22. Segundo Adams 23, a participação popular é importante por ser essencial e central à teoria democrática e revestir uma forma de a comunidade questionar abertamente o direito e a competência dos políticos, profissionais de saúde e burocratas na tomada de decisões em seu nome. A Organização Mundial de Saúde (Alma-Ata Declaration 24) também recorreu à terminologia do direito ao referir que "as pessoas têm o direito e o dever de participar individualmente e colectivamente na planificação e implementação dos seus serviços de saúde". Outros autores 25 reforçam ainda que a participação da população na tomada de decisões pode contribuir para a união de indivíduos e grupos, instigar um sentido de competência e responsabilidade e ajudar a expressar uma identidade cívica ou política. Alguns investigadores referem que um racionamento aberto, alargado à participação social, constitui uma oportunidade para informar e instruir as pessoas sobre a necessidade de fixar limites à provisão de serviços de saúde 26,27, conferindo-lhes maior legitimidade 28,29. Fleck 29 defende um modelo democrático consensual e informado que permita através de mecanismos de deliberação pública fomentar o debate sobre como os limitados recursos da saúde podem ser distribuídos de forma justa e, simultaneamente, custo-efectiva. Um modelo desta natureza é, segundo Fleck 26, preferível ao racionamento feito pelo mercado, pelos médicos e/ou pelos burocratas. Uma das principais razões porque muitas jurisdições (por exemplo, Noruega e Oregon) se afastaram da adopção de metodologias técnicas foi pela percepção de que essas abordagens não estabeleciam um compromisso com os actores sociais interessados, privilegiando antes a perspectiva de um reduzido número de decisores.

Para alguns autores, um processo de tomada de decisões mais participativo que se afaste do domínio dos prestadores de cuidados de saúde permite que os cidadãos contribuam com novos conhecimentos para o processo de tomada de decisões, igualmente válidas ainda que eventualmente diferentes 20. Estudos empíricos 30,31, mostram que as preferências dos cidadãos e/ou doentes diferem significativamente das dos profissionais de saúde. Uma ideia que parece consensual entre aqueles que defendem um debate mais participativo é a de que o envolvimento da comunidade no processo de racionamento promove uma maior responsabilização por parte dos prestadores de cuidados de saúde 20,32. A comunidade não contribui para o processo da tomada de decisões apenas com a sua experiência e/ou com novas ideias mas também encoraja os prestadores a encararem com mais responsabilidade os objectivos do serviço de saúde e a serem mais abertos e explícitos nas escolhas que fazem 21.

O envolvimento da população na tomada de decisões de priorização pode, ainda, justificar-se por razões relacionadas com o escalonar dos custos da saúde e da performance dos sistemas de saúde. A evidência de grandes variações nas práticas clínicas 33assim como crescentes preocupações com o envolvimento da indústria farmacêutica na tomada de decisões clínicas 34, 2001) estimularam o escrutínio público dos serviços de saúde.

Objecções ao envolvimento da população Ainda que, existam muitos motivos que parecem justificar o alargamento da tomada de decisões de priorização à população em geral, têm sido avançados muitos argumentos contra a transparência do debate e a favor da manutenção de um racionamento "oculto". As maiores objecções apontadas à participação da população identificam a dificuldade em ouvir um grupo que seja representativo da população; a falta de conhecimentos técnicos especializados e o risco de se cair num processo populista de estabelecer prioridades 1,5. Alguns autores receiam que o reconhecimento público do racionamento possa delapidar a confiança que a população deposita nos profissionais de saúde 35. A transparência das decisões de priorização pode ameaçar a credibilidade dos indivíduos nos sistemas de saúde, particularmente se casos ou formas individuais de tratamento forem financeiramente excluídos com base em princípios "abstractos" 36. Para Calabresi e Bobbitt 37 preservar o racionamento incógnito permite manter a necessária coesão social, a noção pública de equidade, a crença em importantes valores simbólicos como a santificação da vida e a sensação de segurança, sustentada na ideia de que tudo será feito para tratar um doente. Também Grimley 38 refere que uma abordagem que coloca os direitos dos cidadãos individuais nas mãos de outros cidadãos é falaciosa uma vez que, na maioria dos estados democráticos, os cidadãos são considerados iguais perante a lei e com direitos iguais de acesso à saúde. A transparência pode ainda ser conotada com a dificuldade em alcançar um consenso sobre que abordagem distributiva seguir 27,39. As múltiplas teorias de justiça existentes reflectem o pluralismo moral das sociedades. Segundo Jacobson e Bowling 39, as pessoas vivendo numa sociedade que tem o indivíduo como foco apresentam grandes dificuldades em construir ou detectar valores de natureza comunitária e, consequentemente, em elaborar critérios baseados em valores que não cultuam quando têm de proceder a escolhas sobre o estabelecimento de prioridades em saúde para a sua comunidade e não para si próprias. Destacam que fortes indícios de que tendem a valorizar as crenças em detrimento dos valores, a negligenciar os cuidados de determinados grupos populacionais e a priorizar intervenções relacionadas com serviços de urgência e emergência em detrimento dos cuidados preventivos.

Estender o estabelecimento de prioridades à participação da população requer também alguma transferência de poder e autoridade para este grupo o que pode vir a colidir com interesses de outros grupos, nomeadamente, médicos 5,39.

Jacobson e Bowling 39 salientam que debater publicamente o racionamento é dificultado pela existência de conflitos entre as visões da população, em geral, e a dos profissionais de saúde ou de grupos de pacientes. Coast, Donovan e Frankel 5 identificam este conflito como umtrade-off entre "paternalismo médico" e "participação de leigos". A evidência de divergências na definição das prioridades entre prestadores de cuidados de saúde e a população alerta alguns autores para o risco de este processo poder vir a ser dominado pelos desinformados 3,5.

Paradoxalmente, parece que a oposição mais interessante ao envolvimento da população no debate sobre o racionamento advém da própria sociedade. Em termos económicos, parece que a população experimenta uma certa desutilidade quando toma conhecimento de, ou é chamada a pronunciar-se sobre, decisões que envolvem a negação de tratamentos a outros membros da sociedade 40 por recear o arrependimento se for tomada uma decisão errada 41. A evidência sugere que o arrependimento é um elemento importante na valoração individual e na tomada de decisões respeitantes a cuidados de saúde 42. Esta ideia é reforçada com o parecer de que os cidadãos derivam utilidade por não saberem como os recursos da saúde são efectivamente racionalizados argumento da "utilidade da ignorância" 35,43. Estudos empíricos mostram que, não obstante, os cidadãos desejarem ser consultados sobre a planificação dos recursos da saúde não querem tomar directamente decisões de racionamento 22,43-45. As pessoas parecem considerar que os médicos são o melhor grupo para tomar essas decisões em nome da sociedade 22,31. Isto parece sugerir que por questões de "paz de espírito", as decisões de racionamento devem ser mantidas com os médicos como quer que estes as tomem 4.

As dificuldades inerentes ao envolvimento da população A participação da comunidade na tomada de decisões de priorização é um assunto complexo tanto em termos teóricos como empíricos e a sua complexidade é exposta pela forma como foi aplicada no sector dos serviços de saúde. Em termos práticos, o nível de participação da população depende de muitos factores. O papel conferido às preferências sociais depende das necessidades da situação concreta de priorização; da ênfase/importância que os governos atribuem ao parecer da população 5; dos objectivos do exercício e até da tipologia das prioridades estabelecidas 1.

Muitas jurisdições têm vindo a defender, ainda que apenas teoricamente, uma maior participação dos seus cidadãos 46-51 pese embora na prática o nível de influência da população seja variável e indefinido. De facto, parece não existir um entendimento generalizado do que é ou como deve ser a participação da sociedade. Arnstein 52 representou um modelo em escada com diferentes níveis de envolvimento da população, que descende em oito degraus, desde um papel de controlo dos cidadãos até ao papel de manipulação. Charles e DeMaio 20 reduzem a participação da população a três níveis: consultivo, em parceria e dominante.

A influência da população pode também ser variável porque o contexto em que as decisões de priorização são tomadas é diferente. A literatura 8,53 mostra que as decisões de racionamento podem ocorrer sobretudo ao nível macro (ou político), meso (entre serviços) e micro (entre tratamentos ou doentes). O grau de participação da população pode variar entre estes diferentes níveis de tomada de decisões. As pessoas parecem manifestar grande vontade em ser envolvidas na tomada de decisões ao nível macro e meso mas menor vontade ao nível individual 53.

Uma terceira dificuldade inerente à participação da população prende-se com a escolha do método de eliciação das preferências. Ainda que, como vimos, a evidência empírica mostre que a população delega nos médicos a tomada de decisões de priorização, estes resultados estão condicionados pelo método de eliciação usado. Trabalhos conduzidos no Reino Unido, que conferiram aos inquiridos a oportunidade de reflectir, deliberar e discutir em grupo as sua ideias mostram que a maioria defende uma maior envolvimento da população na tomada de decisões enquanto apenas uma minoria delega esse papel aos peritos 21. Isto corrobora a ideia de que as preferências da população são vulneráveis à discussão e deliberação 54. Uma vasta literatura psicológica e sociológica demonstra que os valores sociais se alteram significativamente de acordo com os processos usados na sua eliciação dos valores [Lloyd 55para uma revisão].

Existem na literatura muitos métodos de eliciar as preferências da população [Mullen 1 para uma revisão]. A escolha do método mais adequado de obter preferências sociais é determinante nos resultados 1.

Experiências internacionais de envolvimento da população no processo de racionar os cuidados de saúde As iniciativas internacionais que começaram por encarar o racionamento como um problema público, nomeadamente, o estado norte-americano de Oregon 46; Reino Unido 48; Holanda 47; Nova Zelândia 51; países escandinavos 49 e Israel 50 e cujas experiências se encontram amplamente retratadas na literatura 56,57, assumiram o compromisso de envolver a população nas decisões de priorização, embora pareçam longe de alcançar os propósitos de tornar o processo aberto e transparente. Foram usados, não , vários métodos para auscultar os valores da sociedade entre os quais merecem destaque os questionários, grupos focais, encontros públicos e, mais recentemente,citizens juries' 21 como o nível de intervenção da população foi diferente entre os países.

Todos os países incluíram nas suas Comissões ou Conselhos, profissionais de saúde mas distinguem-se no que respeita ao envolvimento de responsáveis políticos e população assim como ao papel que lhes coube. Na Holanda, por exemplo, o propósito de envolver a população foi meramente educativo. Procurou- se consciencializar a sociedade para a necessidade de estabelecer prioridades e, simultaneamente, incentivar as pessoas a fazerem as suas próprias escolhas pelas opções de saúde 57. As recomendações na Noruega foram no sentido de que o processo de priorização deveria ser conduzido por especialistas sem muito escrutínio público. A Comissão Parlamentar sobre Prioridades Sueca desenvolveu um trabalho activo de discussão pública sobre o racionamento que passou por clarificar as razões e os métodos em que se deveriam basear as decisões de priorização 49. Mais recentemente (2001) foi instituído na Suécia o "Centro Nacional Para o Estabelecimento de Prioridades na Saúde" cuja função básica é recolher, analisar e difundir informação sobre as prioridades nos serviços de saúde. O modelo de envolvimento público seguido pelo Instituto Nacional de Excelência Clínica (NICE) no Reino Unido constitui provavelmente o avanço mais significativo nesta matéria na medida em que conta com a participação da sociedade em todos os níveis do racionamento. Membros da população com experiência relevante são chamados a discutir questões como a definição e avaliação clínica de necessidades de tratamentos ou o papel que atributos como a idade devem desempenhar na formulação de decisões 58. Um quarto do Comité Israelita responsável por emanar recomendações quanto aos cuidados de saúde a incluir num pacote básico é constituído por membros da população 50. A Comissão de Oregon responsável pela definição da lista positiva de serviços ao abrigo do programa Medicaid contou desde o seu início com o envolvimento da população.

Mais recentemente, porém, a Comissão tem reconhecido a necessidade de prestar maior importância à efectividade das intervenções e à relação custo- efectividade e como tal o seu trabalho tem sido conduzido sem muito debate público 57.

Sabik e Lie 57 num balanço do esforço destes países em termos do contributo da comunidade para o exercício da definição de prioridades concluíram que o objectivo inicial de implementar processos deliberativos transparentes e abertos contando com discussões públicas não foi, de facto, conseguido ou pelo menos não o foi nos termos defendidos na literatura. Aquilo que de melhor alguns países (estado norte americano de Oregon, Reino Unido, Nova Zelândia e Israel) parecem ter conseguido foi uma aceitação, por parte da população, da necessidade de haver racionamento.

Considerações finais Em termos gerais, os decisores políticos enfrentam o desafio de decidir quem acede aos cuidados de saúde, disponíveis em quantidades cada vez mais limitadas. Na actualidade, a literatura não debate a questão da necessidade de haver racionamento, assunto amplamente aceite, mas antes como proceder a esse racionamento 5. O estabelecimento de prioridades continua a ser um tópico eminentemente político, ainda que, a sua pertinência tenha vindo a ser cada vez mais reconhecida. A forma como os responsáveis procedem à afectação dos escassos recursos da saúde pode situar-se entre a discricionariedade dos prestadores de cuidados médicos e a adopção de algoritmos definidos a partir da evidência científica. As metodologias económicas ao incidirem na eficiência de afectações alternativas de recursos contribuem significativamente para a tomada de decisões em contexto de escassez. A definição de critérios sistemáticos não parece ser aceite pela sociedade, sobretudo em países com sistemas de saúde publicamente financiados, por receio de que uma abordagem que incide unicamente na ponderação de custos e benefícios possa violar os termos de um contrato invisível existente entre o Estado Providência e os seus cidadãos. Esta resistência não invalida o desenvolvimento de critérios técnicos de proceder ao racionamento tendo impulsionado os economistas da saúde a pensarem em funções bem-estar sociais mais flexíveis, em substituição da tradicional função bem- estar utilitarista, capazes de incorporar para além da eficiência, preocupações sociais pelas questões distributivas dos ganhos de saúde [por exemplo, Wagstaff 59. Isto passa por conhecer as preferências da sociedade pela afectação dos cuidados de saúde e incorporar as eventuais preocupações equitativas nas análises económicas, procurando alcançar um consenso entre a prossecução da eficiência e da equidade.

A par destes esforços tem-se desenvolvido o interesse em conferir à comunidade um papel mais interventivo na discussão do tema do racionamento dos serviços médicos. Dotar o racionamento de maior transparência tem-se revelado, porém um exercício complexo e controverso. Em termos práticos, são muitos os factos que dificultam uma maior participação da sociedade na priorização dos cuidados de saúde. Reformas audazes foram conduzidas por um grupo restrito de países (estado norte-americano de Oregon, Holanda, Nova Zelândia; Noruega, Suécia, Reino Unido e Israel) que procuraram dotar o processo de estabelecer prioridades de um carácter mais transparente e sistemático. Os esforços encetados mostram que, o envolvimento da população decorreu de forma diferente entre os países e com intensidades também distintas. Adicionalmente, estas experiências revelam que as tentativas prosseguidas para envolver a população nas decisões de priorização ficaram aquém dos objectivos delineados. Ham 56descreveu estas experiências internacionais não como soluções acabadas mas antes como um esforço constante que vem sendo feito para desenvolver um modo de distribuição dos recursos mais transparente, justo e eficiente.

A eficácia de qualquer reforma que venha a ser delineada na saúde requer a concordância de todos as partes envolvidas e não apenas de quem toma as decisões. Dotar o racionamento de um carácter explícito, transparente e legítimo é, no entanto, um objectivo ambicioso, controverso e complexo para o qual não parecem haver soluções certas ou sequer únicas. As soluções dependem da vontade política e do contexto cultural e real de cada país.

Conflito de interesse Os autores declaram não haver conflito de interesse.


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