Gestão do risco em medicina transfusional: modelos e ferramentas
"Errare humanum est ... but it is also human to prevent errors"
Cummins, D., 2007
1
Introdução
As organizações compreendem um lado instrumental (hardware), que é representado
pelo planeamento e controlo, bem como um lado comportamental (software), que é
expresso pela comunicação e desenvolvimento. Avaliação, comunicação e gestão de
risco tornam possível a análise de quase acidentes (near misses) e da
trajectória do erro e o desenvolvimento de algumas acções preventivas e
correctivas (fig. 1) 2-4.
Figura_1
Abordagem global da gestão do risco
Fonte: Inspirada a partir de Kurz, 20084
O risco é definido como o efeito da incerteza decorrente de um conhecimento
incompleto, que é o possível, nos objectivos, contemplando a probabilidade de
um acontecimento esperado e receado bem como a intensidade das consequências
desse evento 5. As principais determinantes do risco e dos resultados são a
complexidade (constante) e o desempenho (variável), podendo o impacto ser
positivo e não apenas negativo. Para uma boa gestão do risco é fundamental
identificar e analisar a raiz e a trajectória do problema, bem como avaliar,
controlar e prevenir 2,3.
Podemos analisar a trajectória do risco por dois modelos principais: teórico e
prático (reactivo ou proactivo). Quanto ao modelo proactivo, temos dois grandes
tipos:Failure Mode and Effect Analysis; Fault Tree Analysis "pior cenário"
(tabela 1) 3,4. A análise da trajectória do erro é essencialmente retroactiva
(Análise da raiz do caso) 2,3.
Tabela_1
Ferramentas de gestão do risco e da qualidade
Para atingir padrões de excelência quanto à segurança do sangue é importante
considerar que os procedimentos e medidas devem ser tomados no contexto de
potenciais riscos graves.
Quando definimos os pontos mais importantes na gestão do erro, não devemos
ignorar a estratificação do risco (pontuações) e o controlo periódico dos
resultados através de auditorias, registo de não conformidades, notificação de
eventos adversos/near misses e, claro, uma redefinição de estratégias e
cumprimento de directrizes, uma documentação segura e alguns mecanismos de
recuperação 6.
Em Medicina Transfusional é primordial o enfoque nos seguintes itens:
a) Eventos adversos: ocorrências inesperadas e indesejáveis, antes, durante ou
após a transfusão, que podem causar reacções no dador ou receptor e podem ser o
resultado de erros ou incidentes:
Incidentes: compreendem erros transfusionais e desvios de procedimentos
operacionais padrão (POPs), os quais podem conduzir a reacções adversas;
Near misses: erros ou desvios, detectados antes do início da transfusão e que
poderiam ser a causa de uma transfusão errada ou reacção;
Reacções adversas: respostas indesejáveis no dador ou no receptor, no último
caso associadas à administração de sangue;
b) Erros e desvios dos POPs: podem produzir incidentes e os últimos podem
causar quase acidentes 7,8.
Os erros podem ser por comissão, omissão, falhas de desempenho e cometidos na
aplicação ou desrespeito das regras 3.
Algumas contribuições para os quase acidentes e erros são as seguintes:
Causas individuais ou humanas;
Factores técnicos (equipamento, software);
Razões organizacionais (políticas e procedimentos) 3.
No sistema de detecção e gestão de erros estão incluídas variáveis, efeitos de
compensação, análise dofeedbacke implementação de medidas preventivas e
correctivas (fig._1). É fundamental pensar nas múltiplas acções destes eventos
na dinâmica de trabalho: pequenas variações podem causar grandes efeitos 3.
O cumprimento das boas práticas, a actualização dos profissionais (médicos,
técnicos de laboratório, enfermeiros e outros) e a implementação de um sistema
de gestão da qualidade são marcos na garantia da qualidade 8.
Benchmarking, modelos e ferramentas: abordagem da qualidade
OBenchmarking pode ser definido como um processo contínuo e sistemático de
avaliação de produtos, serviços, metodologias de organização do trabalho, que
foi reconhecido como evidenciando as melhores práticas. O objectivo é comparar
desempenhos e identificar oportunidades de melhoria é como um atalho para a
excelência. Acções internas são comparadas e modificadas face a padrões
externos, para tentar melhorar e avançar ao longo do conhecimento e da
identificação das melhores práticas e projecção do desempenho futuro (fig. 2).
É uma forma eficaz de definir metas e motivar as equipas de trabalho. Alguns
tipos debenchmarking são: interno, competitivo, funcional e geral; podemos ver
onde estamos e para onde queremos ir através de uma comparação e partilha de
informação, para alcançar uma melhoria do desempenho e de progresso contínuo 9.
Figura_2
Gestão do risco e da qualidade em organizações como Serviços de Sangue e de
Medicina Transfusional
Fonte: Adaptada das referências Kurz, 20084 ; Wilkinson, 20088 ; Dumont &
AuBuchon, 2002 11
A Gestão Proactiva do Risco (Proactive Risk Management) passo a passo
compreende a inovação e a mudança sob um ponto de vista funcional: preditivo,
mensurável e que controle o risco. Actua pela antecipação conceptual de
eventuais problemas, identificando as causas do risco e não apenas os seus
efeitos ou sintomas. É muito importante estabelecer prioridades acerca dos
riscos sem criar erros. É diferente dos modelos reactivos em que a acção ocorre
após o problema, podendo comprometer os resultados 2,3,10.
Nas organizações, é importante aplicar umtableau de bord e respeitar os factos,
tentando melhorar o desempenho através do conhecimento dos objectivos, agentes
e identificação dos factores chave. Recorrendo a esta ferramenta (uma
representação gráfica sintética de um conjunto de indicadores, que permite
tomar rapidamente decisões) é possível mostrar uma actividade anormal ou um
problema através de uma análise rápida. É também importante para descentralizar
e motivar a participação de todos os funcionários 10.
Numa avaliação global do risco, trabalhamos numa tríade de boas práticas: boas
práticas de fabrico, boas práticas de laboratório e boas práticas clínicas
(fig. 3). Um referencial comum sobre vários requisitos para um sistema de
gestão da qualidade numa organização é o NP EN ISO 9001:2000. Produtos e
serviços devem estar em conformidade com as especificações regulamentares (ou
reguladoras) e garantir a satisfação do cliente e a melhoria contínua. Alguns
pontos nevrálgicos são a documentação, a responsabilidade e a comunicação, os
princípios éticos, a política de qualidade, o planeamento, os recursos, o meio
ambiente e as infra-estruturas para a realização do produto 6,8.
Figura_3
Boas práticas, risco e qualidade
Fonte: Adaptada das referências Kurz, 2008 4,Wilkinson, 2008 8
O sistema de qualidade em Medicina Transfusional deve providenciar uma
quantidade suficiente de sangue com a máxima eficácia e risco mínimo para os
dadores e receptores, no estrito cumprimento dos requisitos das especificações
aplicáveis aos produtos e serviços (fig._2) 8.
O risco apenas residual de doenças infecciosas é proporcionado pela melhoria na
segurança (testes de ácidos nucleicos, redução de agentes patogénicos e
tecnologias de inactivação, desleucocitação e uma correcta selecção de
dadores), conjugado com as alternativas à transfusão e a optimização de
procedimentos, que podem facilitar as decisões a nível prático 11. A avaliação
dos vírus emergentes em Medicina Transfusional é crucial e o seu impacto tem
relação com a transmissibilidade pela transfusão sanguínea, a patogenicidade, a
prevalência nas populações de dadores e a disponibilidade de ensaios
laboratoriais (fig._2) 12.
Quando contextualizamos ferramentas na gestão do risco, podemos seleccionar
vários modelos (tabela_1), mas um tipo de abordagem simples é o HACCP (Análise
de Perigos e Pontos Críticos de Controlo), porque tem marcos sensíveis em todas
as etapas do sistema: análise de processos edesign de abordagens preventivas,
implantação e monitorização dos pontos críticos, desenvolvimento de correcções
quando os pontos fracos são graves e um suporte de registos.
Algumas ferramentas (no sentido prático da Medicina Transfusional) são
essenciais, como o consentimento informado, os registos de não conformidades e
acções preventivas ou correctivas, registos e avaliação das reacções
transfusionais, notificação de eventos graves em dadores e receptores,
avaliação da satisfação do cliente (médico, doente e dador), comissões
hospitalares, auditorias (internas e externas), cursos educacionais para todo o
pessoal, controlo de qualidade interno e avaliação externa da qualidade,
directrizes e protocolos 8.
O manual da qualidade, os planos mestre, os POPs, a validação, qualificação e
manutenção do equipamento, programa de resíduos e material de risco biológico,
uma revisão dos dados do controlo de qualidade consolidam objectivos e
actividades (fig._3) 6,8.
Relativamente à arquitectura da gestão do fluxo de trabalho, os processos têm
uma fase de modelação (build-time) ... modelos com o objectivo comum de
cumprimento e aperfeiçoamento e uma fase de implementação ou instância (run-
time) execução/realização 13.
O pessoal é um aspecto basilar na estrutura organizacional e algumas premissas
devem ser asseguradas tal como um número correcto de colaboradores, a
qualificação, a formação e a descrição de funções, as responsabilidades e a
posição no organigrama do serviço 8. Estas premissas estão em estreita relação
com os POPs para um trabalho eficaz e seguro e a protecção de doentes e dadores
8. Uma forma comum e fácil de apresentação de informação geral é através de
fluxogramas com uma interpretação rápida e correcta, contendo as actividades
operacionais 6,8.
A existência de uma documentação concreta é útil para um bom trabalho e
gratificante para a detecção de erros, rastreabilidade dos produtos sanguíneos,
acções preventivas ou correctivas e monitorização de todas as actividades 8.
Nesta abordagem de segurança e qualidade, é importante mudar o conceito de
culpa para o conceito de risco. Um diálogo (multilateral e cooperante),
associado ao respeito pelas boas práticas, gera eficiência operacional e
satisfação de clientes e pessoal 3.
Desafios em medicina transfusional
Pretendemos abordar a importância da implementação, manutenção, comunicação de
projectos, sistemas, métodos, investigação, programas de ensino e de
aprendizagem e avanços significativos em Medicina Transfusional. Desse modo,
material educativo,task forces, conferências e congressos, relatórios e
orientações de comissões, auditorias e regulação de actividades são segmentos
de um sistema baseado no conhecimento 8.
A implementação de planos, projectos e programas é difícil, mas a sua
manutenção é também um trabalho duro, que requer muitos reajustes e a
redefinição de objectivos e métodos (fig. 4). Os contributos dos peritos criam
desafios, mas também a sustentabilidade destas questões pelo seu patrocínio
científico, responsabilidades de liderança e conservação de registos, que
incluem a actualização, a revisão e a disseminação de informação a outros
profissionais e à população em geral.
Figura_4
Gestão global da qualidade
Fonte: Adaptada das referências Kurz, 2008 4,Wilkinson, 2008 8
Alguns recursos são úteis para partilhar conhecimento e competências devido ao
seu potencial para um acesso fácil e rápido. Exemplos são as plataformas da
Internet como "BioMedExperts", "ResearchGATE", "SciLink", "Research ID",
"BloodMed.com" e "Labmeeting", que analisam e apresentam perfis de peritos e
conectam cientificamente as pessoas (pesquisadores, autores e outros
profissionais). Estas são boas ferramentas para atingir o estado da arte
emblogs, fóruns e grupos, em conjunção com reuniões, publicações e mesas-
redondas de opinião, programadas anualmente em todo o mundo.
É impossível rever todas as actividades em Medicina Transfusional, que diferem
entre os países e mesmo no interior de um país, porque as realidades e as
etapas do progresso são específicas. No entanto, alguns pontos relevantes dizem
respeito à segurança e à gestão destocks em transfusão, ao cumprimento de
procedimentos e recomendações baseadas na evidência, no âmbito dos aspectos
legais relacionados 8.
Os seguintes agrupamentos temáticos ilustram algumas áreas de mudança e de
progressos reconhecidos:
Uma rede eficiente de hemovigilância tem dois pilares: a rastreabilidade
(rotulagem e manutenção da documentação por um período mínimo de trinta anos) e
a notificação de eventos adversos graves. Vários modelos e relatórios práticos
existem em muitos países do mundo, com diferenças e aspectos em comum, todos
com o mesmo objectivo: avaliar a trajectória das unidades de sangue (desde o
dador até ao receptor, inutilização ou fraccionamento industrial), detectar e
notificar reacções e incidentes ocorridos em dadores e receptores, avaliar os
dados e melhorar as medidas para prevenir ou corrigir os eventos adversos e não
conformidades 7,14.
Sistemas e políticas de qualidade, acções preventivas e correctivas,
acreditação e/ou certificação de centros e serviços são objecto de regulação e
inspecção 2,15.
A auto-exclusão efectuada pelo dador e o seu consentimento assinado para a
dádiva de sangue são fundamentais para a segurança do sangue que compreende
várias etapas entre a selecção para a dádiva e a distribuição final 8,16.
Acerca do consentimento informado para transfusão pelo doente, este deve ser
capaz de compreender a informação adequada sem coerção 8. Estes assuntos éticos
envolvem informação científica expressa por palavras claras e acessíveis e uma
relação de confiança e confidencialidade entre médicos e dadores ou doentes, de
acordo com o contexto. A regulação epidemiológica e a vigilância no domínio da
Saúde Pública envolvem a protecção de dados dos dadores e doentes, custos,
aprovação de natureza ética e governamental, bem como estudos multicêntricos
científica e legalmente suportados 17.
Certas organizações colaboram na educação e formação dos profissionais como a
European School of Transfusion Medicine (ESTM), a International Society of
Blood Transfusion (ISBT), a British Blood Transfusion Society (BBTS), a
American Association of Blood Banks (AABB), a Societé Française de Transfusion
Sanguine (SFTS), a German Society for Transfusion Medicine and Immunohematology
(DGTI), a African Society for Blood Transfusion (AfSBT), a Australian and New
Zealand Society of Blood Transfusion (ANZSBT), a International Federation of
Red Cross Crescent Societies, a Asia-Pacific Blood Network e a European Network
of Transfusion Medicine Societies (Euronet-TMS).
A regulação, a documentação e a vigilância emanadas pelo Conselho da Europa e
Comissão da União Europeia, bem com a Autoridade Nacional para a Saúde, em cada
estado-membro, contribuem para o sistema de gestão de serviços de sangue e
serviços de transfusão 14,18.
Discussão e conclusões
Os modelos teóricos podem tornar fácil o trabalho prático através do
estabelecimento de prioridades, da partilha de competências e da apresentação
de ferramentas. Cada situação exige uma abordagem específica, mas as regras
gerais e os projectos de programas ajudam em planos estratégicos e tácticos
(fig._4) 2,10.
A linha de base e a arquitectura alvo de um sistema de gestão da qualidade têm
como etapas originais: planos tácticos e estratégicos. Depois destes, métodos,
processos e gestão de competências são os eventos sequenciais. A implementação
e manutenção de sistemas deriva de processos de conformidade e desempenho,
planos, actividades e dirige-se para os resultados (fig._2). A avaliação do
cliente gera umfeedback para todos os processosbuild-time erun-time 13. O
financiamento dos recursos (humanos e materiais - equipamento de laboratório e
clínico, tecnologia da informação registos e responsabilidades) e serviços é
fundamental 8,10.
O pessoal e a análise dos testes de proficiência, o equipamento, a validação e
manutenção de materiais e reagentes, o cumprimento dos POPs e orientações sobre
os critérios de transfusão, os mecanismos de redundância e sistemas de barreira
mecânica tais como a identificação com código de barras 19 ou a identificação
por radiofrequência 20 para a segurança transfusional, a documentação e
manutenção de registos, obenchmarking e revisão dos processos são objectos de
monitorização e ferramentas práticas para reduzir "transfusões erradas" e criar
um trabalho de qualidade 1,6,8.
O principal foco em Medicina Transfusional refere-se às estratégias de redução
dos riscos (figs. 1 e 2) 6,21. Um ponto básico e fundamental é a correcta
identificação do doente para a colheita de amostras de sangue e quando da
administração de produtos sanguíneos 1,21.
A gestão de serviços ou produtos não conformes é importante em função da sua
natureza, gravidade e probabilidade de recorrência, devendo as medidas de
prevenção e correcção ser definidas e aplicadas 8. Sinais de alerta podem
derivar de desvios (absolutos ou relativos) e da tendência ou situação pontual
desses efeitos 2,10.
O polimorfismo entre diferentes países pode explicar uma educação e formação
heterogéneas em Medicina Transfusional. Esta situação deve ser resolvida,
destacando-se a contribuição das sociedades científicas e órgãos da União
Europeia, dos Estados Unidos da América, Canadá, Austrália, América Latina,
Região do Pacífico Ocidental, África, que apresentam uma vasta distribuição
mundial e podem agilizar a prossecução de iniciativas para oportunidades de
melhoria da segurança transfusional.
O conteúdo desta revisão é apenas um fragmento do estado da arte acerca da
Gestão do Risco. Sistemas e políticas de qualidade, acções preventivas e
correctivas, orientações e certificação/ acreditação dos serviços, redes de
hemovigilância, regulamentação europeia em associação com o desenvolvimento
socio-económico, biotecnologias, bioterapias, suporte de informação, programas
de formação e investigação e outras actividades são marcos na Garantia e
Cultura da Qualidade (fig._4) 21.
Uma palavra especial para os quase acidentes, um tipo de eventos que não
resulta num erro ou acidente, mas que poderia resultar noutras circunstâncias
7,8,18.
A gravidade e a frequência do erro devem constituir um conceito prioritário na
abordagem dedicada à avaliação dinâmica do risco e a uma gestão baseada na
predição 2,10,11.
O sistema de transfusão é vulnerável a erros, pelo que um plano redesenhado de
actividades pode agir proactivamente para evitar "transfusões erradas"
relativamente ao produto sanguíneo e ao receptor, melhorando a segurança da
terapêutica transfusional 21.
A jornada do trabalho com uma série de decisões e procedimentos, erros e acções
preventivas/ correctivas, apoiada em recursos humanos e materiais, é muito mais
do que fica escrito nestas páginas. Devemos enfatizar este aspecto¿