Efeito genotóxico do etanol em neuroblastos de Drosophila melanogaster
Introdução
A organização mundial de saúde estima que, em todo o mundo, existem cerca de 2
milhares de milhão de pessoas a consumir bebidas alcoólicas, 76,3 milhões com
diagnóstico de desordens associadas ao uso de álcool e ainda que o consumo de
álcool causa 1,8 milhões de mortes 1.
O consumo de álcool tem efeito deletério em vários órgãos, nomeadamente no
fígado e no Sistema Nervoso Central (SNC), originando efeitos adversos agudos e
crónicos 2-4, sendo o cérebro um importante alvo do etanol 5. O etanol actua no
SNC induzindo diversas respostas comportamentais 6-8. Em doses baixas induz
euforia e desinibição, mas em doses elevadas provoca perda do controlo motor,
sedação, podendo mesmo ser fatal 9. Adicionalmente, o consumo excessivo de
álcool tem sido associado a danos cerebrais 5. De facto, os produtos do
metabolismo do etanol promovem alterações no DNA 5, tendo sido demonstrado por
Blasiak e colaboradores 10, em 2000, que a genotoxicidade do etanol pode
contribuir para a morte celular.
Apesar de em Portugal se verificar uma diminuição no consumo de álcool 11,
existe a necessidade de pesquisas que visem a compreensão das doenças ligadas
ao uso excessivo de etanol com o intuito de desenvolver estratégias efectivas
para prevenir e tratar os diferentes tipos de doenças provocadas pelo álcool.
Os pacientes com doenças relacionadas com o álcool apresentam grande impacto na
medicina clínica, tendo sido reportado em artigo de revisão que cerca de 8 %
dos internamentos hospitalares em Portugal apresentam diagnóstico principal e/
ou secundário relacionados com o álcool 12. Deste modo, a investigação
científica, com recurso a organismos modelo, surge como uma mais-valia na
avaliação e compreensão dos mecanismos de acção dos compostos químicos sobre o
DNA. No caso do etanol, poderá ajudar a delinear estratégias que visem o
combate das diferentes doenças provocadas pelo etanol nos humanos. Entre estes
aD. melanogaster, como oferece uma grande variedade de mutantes disponíveis, um
leque de ensaios optimizados e acesso a bases de dados, torna-se, assim, um
excelente modelo para investigar mecanismos fisiológicos e genéticos
fundamentais e tem sido adoptada para estudar substâncias com efeito aditivo
como o álcool, cocaína e metanfetaminas 13-15. De facto, a drosófila é
considerada um excelente modelo para estudar a genotoxicidade e os seus
mecanismos moleculares, podendo fornecer respostas relevantes, que podem ser
extrapoladas para os humanos. Uma vez que a comparação dos dados obtidos
através do Projecto Genoma Humano com aqueles observados no programa
equivalente desenvolvido com aD. melanogaster demonstra a elevada conservação
de genes e funções bioquímicas entre estes dois organismos, caracterizada por
uma similaridade genética de 80 %. Embora os humanos apresentem maior número de
genes a maioria destes são duplicações dos seus equivalentes encontrados na
drosófila 16. Como consequência, existe uma elevada conservação de vias
bioquímicas e funções reguladoras entre as duas espécies 17. Todos os
organismos produzem etanol em pequenas quantidades nos seus tecidos 18. Este
aspecto explica a presença da enzima catabólica de degradação do etanol, álcool
desidrogenase (ADH), em todas as espécies animais. Portanto, não é de estranhar
que a principal via metabólica para o etanol seja conservada entre seres
humanos eD. melanogaster 18.
Desta forma, pelos potenciais efeitos deletérios que o consumo de álcool
apresenta a nível celular com consequente implicação no bem-estar físico e
psico-social do indivíduo achamos pertinente realizar este estudo, que tem por
objectivo a avaliação da toxicidade e do potencial efeito genotóxico do etanol
emD. melanogaster.
Materiais e métodos
Neste estudo em modelo animal, utilizou-se aD. melanogaster da linhaOregon K-
yellow (OK-y), eficiente para todo o tipo de mecanismos de reparação. As
culturas de drosófila foram mantidas em meio de cultura estandardizado;
contendo levedura de pão, açúcar branco, agar-agar, e ácido propiónico, a 24
ºC, em frascos de vidro. Todos os procedimentos foram efectuados de acordo com
as normas internacionais para experimentação animal.
Adição de etanol ao meio de drosófila
Etanol absoluto (número CAS 64-17-5) foi adicionado ao meio deD. melanogaster
em quatro concentrações e controlo: 0 %; 0,625 %; 1,25 %; 2,5 % e 5 % (v/v).
Deste modo, a cada frasco de cultura com 30 mL de meio adicionou-se o
respectivo volume de etanol, agitou-se e taparam-se os frascos com algodão. Em
cada frasco colocaram-se 100 casais de drosófilas, todas com a mesma idade.
Após 6 dias em postura retiraram-se os progenitores deixando-se as larvas a
desenvolverem-se no mesmo meio de cultura, ou seja, um tratamento crónico,
durante todo o desenvolvimento da larva. O ensaio foi realizado em duplicado.
Contagem de adultos eclodidos após tratamento com etanol
O número de adultos eclodidos foi contado em cada frasco e em cada
concentração, de modo a fazer uma avaliação semi-quantitativa da toxicidade.
Ensaio do "Cometa"
Aquando da obtenção de larvas no 3º estádio de desenvolvimento, procedeu-se à
realização do ensaio do cometa (ensaio de electroforese de células isoladas).
Este, inicialmente descrito em 1988 por Singh e outros 19, foi realizado de
acordo com as modificações introduzidas por Collins e outros 20, em 2003 e,
adaptado para drosófila, em 2005 por Siddique e outros 21. Assim as larvas no
3º estádio de desenvolvimento foram dissecadas em solução de Ringer para
insectos (pH 7,2: NaCl 46 mM; KCl 182 mM; CaCl2 13 mM), à lupa e com iluminação
por transmissão, com ajuda de duas agulhas. Uma vez isolados os lóbulos
cerebrais foram colhidos com uma agulha e colocados num vidro de relógio até se
completar lóbulos de três larvas, seguindo-se a sua desagregação física, com as
agulhas e a precipitação das células por centrifugação (durante 10 minutos a
200 x g) descartando-se o sobrenadante. Durante este processo os tubos
deEppendorfforam mantidos em gelo, para evitar danos no DNA devido ao calor. Em
seguida, adicionou-se ao tubo do passo anterior, 140 μL de agarose 1 % LMP (low
melting point), previamente aquecida e mantida a 37 ºC. Recolheram-se os 140 μL
da mistura e transferiram-se como duas gotas aproximadamente iguais em cada
lâmina. Estas foram tapadas com uma lamela 18 x 18 mm e colocadas no
frigorífico durante 5 minutos. As lâminas solidificadas, sem as lamelas foram
imersas durante 1 hora na solução de lise, fria e feita recentemente: 89 % de
tampão de lise (pH 10,0: 2,5 mM NaCl, 100 mM Na2EDTA, 10 mM Tris, 0,25 M NaOH,
0,77 %N-laurylsarcosinato), 1 % TritonX-100 e 10 % dimetil sulfoxido (DMSO).
Após a lise, as lâminas foram colocadas numa tina de electroforese horizontal
evitando espaços vazios, e cobertas por tampão alcalino de electroforese, a 4
ºC e feito recentemente (75 mL de NaOH 10 M, 5 mL de EDTA 0,5 M), durante 20
minutos para permitir a desnaturação do DNA. Este processo decorreu a pH >
12,6. A desnaturação e electroforese foram processadas a 4 ºC. Após a
electroforese, realizada durante 20 minutos a 25 V e 300 mA, a qual corresponde
a um campo eléctrico de 1,04 V/cm, as lâminas foram neutralizadas durante 5
minutos numa solução de 0,4 M Tris-HCl, pH 7,5; seguiu-se mais 5 minutos em
água destilada, sendo depois colocadas a secar à temperatura ambiente numa
caixa de plástico. A coloração foi efectuada comSYBR Gold (Invitrogen, Paisley,
United Kingdom) e a visualização das lâminas foi realizada num microscópio de
fluorescência com uma ampliação de 400x com o programaComet Assay IV
(Perceptive instruments, Haverhill, United Kingdom).Foram avaliadas 50 células
por gel.
Análise estatística
A análise estatística deste trabalho foi realizada utilizando osoftware para
estatística SPSS versão 16,0. Fez-se uma análise exploratória para verificar a
presença deoutliers e a normalidade de distribuição dos dados (teste deShapiro-
Wilk). A descrição dos dados é efectuada através da média e do desvio padrão.
Para avaliar a viabilidade das concentrações de etanol utilizadas, calculou-se
a taxa de sobrevivência relativa daD. melanogaster, representando a razão entre
o número de indivíduos eclodidos em cada concentração de etanol e o controlo. A
comparação entre os danos no DNA observados em cada concentração de etanol foi
efectuada através da análise de variância a 1 factor. Para localizar as
diferenças utilizou-se comoPost Hoc Tests o teste deBonferroni.O nível de
significância foi estabelecido em 5 %.
Resultados
Toxicidade do etanol em D. melanogaster
Realizou-se um estudo de toxicidade, onde as concentrações de etanol utilizadas
(0,625 %; 1,25 %; 2,5 % e 5 %) não se apresentaram tóxicas. Como demonstrado na
figura 1, asD. melanogaster sobreviveram e originaram descendência em todas as
concentrações de etanol testadas permanecendo assim, vivas na sua totalidade.
Figura_1
Número de indivíduos eclodidos e taxa de sobrevivência relativa da D.
melanogaster nas diferentes concentrações de etanol.
Nota: A taxa de sobrevivência relativa representa a razão entre o número de
indivíduos eclodidos em cada concentração de etanol e o controlo.
Na figura 1 verifica-se que a taxa de sobrevivência relativa das drosófilas é
superior na concentração de etanol de 1,25 %, comparativamente às outras
concentrações testadas. Verificando-se igualmente que de todas as concentrações
de etanol testadas, aquela que apresenta menor benefício para as drosófilas é a
concentração mais elevada (5 %), e ainda que a menor taxa de sobrevivência
relativa encontra-se na ausência de etanol.
Genotoxicidade do etanol em D. melanogaster Ensaio do Cometa
Neuroblastos deD. melanogaster OK-y foram utilizados para realizar o ensaio do
cometa, de forma a avaliar o efeito das diferentes concentrações de etanol
testadas, ao nível do DNA. Pela análise dos resultados obtidos para as
diferentes concentrações de etanol de um modo geral verifica-se que o ensaio do
cometa permitiu determinar a existência de um aumento de danos no DNA induzidos
pelo etanol, que se verificou genotóxico nas três concentrações superiores
testadas (1,25 %; 2,5 % e 5 %). Estes resultados encontram-se bem patentes na
figura 2 para os três parâmetros avaliados com este teste: comprimento da
cauda, percentagem de DNA na cauda e momento de cauda.
Figura_2
Efeitos do etanol ao nível do cérebro de D. melanogaster, avaliados pelo
comprimento da cauda, percentagem de DNA na cauda e momento de cauda.
Discussão
Toxicidade do etanol em D. melanogaster
Após o estudo de toxicidade, e tendo em conta que as concentrações de etanol
utilizadas (0,625 %; 1,25 %; 2,5 % e 5 %) não se apresentaram tóxicas para aD.
melanogaster, foi possível prosseguir a experiência com estas concentrações de
etanol. Deste modo, após o desenvolvimento da prole efectuou-se o estudo dos
efeitos das concentrações de etanol testadas, ao nível do número de
descendentes gerados. Assim, para além de se verificar que as concentrações de
etanol testadas não são tóxicas para aD. melanogaster, podemos igualmente
inferir que a presença de etanol é benéfica, visto o número de indivíduos
eclodidos ser superior em todas as concentrações de etanol, comparativamente ao
controlo (fig._1). De todas as concentrações testadas, aquela que apresenta
maior benefício é a concentração de 1,25 % de etanol, pois é nesta concentração
que se encontram mais descendentes. Deste modo será legítimo afirmar que na
presença de concentrações moderadas de etanol as drosófilas aumentam o número
de descendentes e portanto a sua sobrevivência.
Estes resultados estão de acordo com o esperado, tendo em conta que, durante a
vida larvar aD. melanogaster está continuamente exposta a etanol exógeno 22 e
portanto a sobrevivência e o vigor das larvas depende em parte da sua
capacidade em utilizar o etanol como fonte de alimento. Normalmente, as
concentrações de etanol são bastante baixas e as concentrações superiores a 5 %
estão raramente presentes nohabitat natural 23. Os nossos resultados vão de
encontro ao reportado por Hoffmann e Parsons 24, que afirmaram que para as
drosófilas fêmeas baixas concentrações de etanol apresentam efeito benéfico
(0,1-5 %), enquanto elevadas concentrações (10 %) são prejudiciais.
Em suma, as concentrações de etanol (0,625 %; 1,25 %; 2,5 % e 5 %), não se
mostraram tóxicas para aD. melanogaster, visto estas terem sobrevivido e
originado descendência, na sua presença.
Genotoxicidade do etanol em D. melanogaster Ensaio do Cometa
A genotoxicidade manifesta-se em doses sub-tóxicas, sobretudo num ensaio muito
sensível como é o cometa, o que reforça a necessidade de avaliar o efeito
genotóxico, pois os danos no DNA se não forem reparados, podem dar origem a
mutações que podem ser responsáveis por várias doenças. O ensaio do cometa
permitiu avaliar o efeito das diferentes concentrações de etanol testadas, ao
nível do DNA, verificando-se de uma forma genérica que quanto maior a
concentração de etanol maior é a genotoxicidade expressa pelos danos infligidos
ao DNA.
A concentração de etanol de 0,625 % não se mostrou genotóxica, uma vez que os
danos no DNA observados nesta concentração não são estatisticamente diferentes
dos observados no grupo controlo. Os danos obtidos no controlo podem ser
atribuídos a uma combinação de danos endógenos, gerados pelostress oxidativo e
de rupturas induzidas no processo de reparação destes danos endógenos. Do mesmo
modo o isolamento dos lóbulos cerebrais e a sua desagregação requereu
manipulação, o que poderá também ter infligido danos. As concentrações de 1,25
%, 2,5 % e também 5 % de etanol produziram danos significativos no DNA. Para o
comprimento da cauda, percentagem de DNA na cauda e momento de cauda (fig._2)
observou-se nitidamente uma relação dose-resposta, isto é, um aumento dos
valores relativos a estes parâmetros com o aumento da concentração do etanol,
ocorrendo, portanto, rupturas na cadeia e, assim, migração do DNA com o aumento
da concentração.
Os nossos resultados vão de encontro aos descritos na literatura. Estudos
experimentais mostraram uma ampla gama de alterações estruturais e funcionais
em neurónios 25. Estes efeitos deletérios podem resultar de um efeito tóxico
directo do álcool ou de um efeito indirecto envolvendo um dos seus metabolitos.
Em 1995, Singh, Lai e Khan 25, num estudoin vivo em ratos demonstraram, que
ocorriam quebras na cadeia de DNA em células cerebrais 4 horas após a
administração de etanol. Lamarche e colaboradores 5, em 2003, confirmaram a
genotoxicidade do etanol em cultura de células cerebrais. Os autores avaliaram
as alterações no DNA pelo ensaio do cometa e demonstraram que quando a
intoxicação aguda ocorre por um período curto/moderado, o aumento de lesões do
DNA não excede a capacidade dos sistemas de reparação celular, e as
consequências para a célula permaneceram mínimas. Assim, estes autores
constataram que os neurónios são mais sensíveis a uma baixa exposição crónica
de etanol do que a uma grande exposição aguda. Embora, em ambas, tenha sido
observada uma redução significativa da viabilidade celular e alterações no DNA.
O potencial genotóxico do etanol foi demonstrado em diferentes células 26 ou em
neurónios em diferentes condições de exposição 27, e quantificados pela
determinação da percentagem de DNA na cauda, que é directamente relacionada com
a frequência de quebra de DNA. Ao nível hepático, por exemplo, tem sido
demonstrada a formação de quebras na cadeia de DNA nuclear e mitocondrial e de
aductos de DNA 26.
Os neurónios são sensíveis ao excesso de etanol, o que leva a neuropatologias
progressivas e alterações funcionais. Contudo, na prática, é difícil
especificar os níveis de consumo de bebidas alcoólicas que são susceptíveis de
conduzir à morte neuronal induzida por etanol, sendo necessários futuros
estudos para elucidar este aspecto.
Conclusões
Com este trabalho experimental foi possível concluir que aD.
melanogasterexposta a diferentes concentrações de etanol, manifestou um aumento
significativo de danos no DNA, ao nível dos neuroblastos, verificando-se um
aumento dose-dependente, nos parâmetros do ensaio do cometa avaliados
(comprimento da cauda, percentagem de DNA na cauda e momento de cauda). Foi,
portanto possível demonstrar que o etanol provoca rupturas no DNA, avaliadas
pelo ensaio do cometa; sendo estes danos superiores para a concentração de 5 %
de etanol.
Conflito de interesse
Os autores declaram não haver conflito de interesse.