Etiologia e sensibilidade bacteriana em infecções do tracto urinário
Introdução
Remonta ao ano 98 A.C. um poema de Lucretius que fazia referência a seres vivos
de tal forma pequenos que eram impossíveis de observar pelos Seres Humanos, mas
que lhe provocavam doenças1.
Contudo foi a partir do século XIX, nomeadamente por Koch, que se começou a
fazer uma associação directa entre bactérias e doenças2.
Ou seja, a presença destas seria a causa provável de muitas das patologias que
afectavam o Ser Humano. Depois desta descoberta surgiram os antibióticos, como
a forma de eliminar estes seres vivos e manter o Homem saudável3.
Verifica-se assim que a relação entre Seres Humanos e bactérias é muito antiga,
eventualmente desde o surgimento do Homem.
As infecções bacterianas ocupam um lugar de destaque nas patologias humanas,
nomeadamente as do tracto urinário, que surgem em segundo lugar, logo após as
infecções respiratórias4-6. A maioria destas infecções é debelada com
tratamento empírico. Podem, contudo, representar situações muito graves, que
colocam em perigo a vida do Ser Humano.
A resistência aos antibióticos pode ser natural, quando qualquer microrganismo
de determinada espécie é resistente ao antibiótico por razões fisiológicas ou
adquirida, quando alguns microrganismos da mesma espécie são resistentes e
outros são sensíveis. Esta situação levanta problemas graves, nomeadamente
quando são administrados antibióticos de forma empírica.
A infecção urinária
As infecções urinárias apresentam-se como uma das principais infecções
bacterianas que afectam o Ser Humano, ocupando o segundo lugar4-7. Considera-se
infecção urinária a presença de bactérias em qualquer parte do sistema urinário
(rins, ureteres, bexiga), com excepção da uretra, que poderá ser colonizada com
flora normal, como os lactobacilos e as neisserias não patogénicas. Consoante o
local anatómico atingido, a infecção recebe nomes diferentes. Assim a
colonização do rim designa-se de pielonefrite, da bexiga cistite e da uretra
denomina-se de uretrite.
Os microrganismos podem atingir o sistema urinário pela via ascendente, quando
o ponto de partida é a uretra ou pela via descendente, tendo proveniência de
outros locais e instalando-se a nível dos rins.
Existem diversos factores que se consideram predisponentes à ocorrência de
infecções urinárias, como sendo a estase urinária, a gravidez, a diabetes, a
obstrução urinária, os hábitos de higiene inadequados, a inserção de objectos
estranhos, o climatério, as doenças neurológicas e as doenças sexualmente
transmissíveis8.
As mulheres apresentam uma prevalência maior, principalmente devido a factores
fisiológicos, como a maior proximidade da uretra feminina com o ânus e o facto
de ser uma uretra muito mais curta do que a masculina6,9. As crianças,
designadamente as do sexo masculino até um ano de idade, também apresentam uma
elevada prevalência, nomeadamente de infecção a nível renal, devido ao refluxo
vesico uretral10,11. Quando os indivíduos possuem alguma anomalia no aparelho
urinário, sobretudo as mulheres, o risco de adquirirem uma infecção urinária
pode triplicar12. Os doentes institucionalizados podem apresentar prevalências
elevadas, especialmente associadas à falta de higiene e à algaliação13.
Os principais sintomas que a infecção urinária provoca são a disúria,
polaquiúria, ardor a urinar, urgência miccional, urina com cheiro fétido,
alterações na cor, dificuldade de iniciar a micção, eliminação de sangue na
urina, dor na parte inferior do abdómen, febre, calafrios, dor lombar, náuseas
e vómitos14. As crianças poderão apresentar sintomas menos específicos, como
falta de apetite, perda de peso e paragem de crescimento15. A intensidade e
prevalência de sintomas poderão variar entre os indivíduos14.
Etiologia da infecção urinária
Uma das formas de classificar as infecções urinárias é entre as adquiridas em
comunidade, associadas a Seres Humanos não institucionalizados e hospitalares,
que acometem doentes internados em instituições de saúde. A Escherichia coli é
a mais prevalente, contudo com percentagens bem diferentes. No caso das
infecções adquiridas em comunidade tem uma incidência de cerca de 80% e nas
infecções hospitalares a sua prevalência é mais baixa, situando-se nos 50 a
60%6.
Nas infecções adquiridas em comunidade, são ainda representativas o
Staphylococcus saprophyticus (maioritariamente em mulheres jovens e sexualmente
activas), Proteus spp e Klebsiella spp, embora com percentagens de infecções
urinárias muito mais baixas, na ordem dos 10 a 15%. Em relação aos
Staphylococcus aureus, estes representam cerca de 3,9% das infecções urinárias
extra-hospitalares6.
Nas infecções adquiridas em meio hospitalar, as estirpes com maior expressão
são a Escherichia coli, Pseudomonas aeruginosa, Enterococcus faecalis,
enterobactérias e fungos, nomeadamente cândida, entre outros microrganismos, a
maioria considerados oportunistas6,16.
Diagnóstico laboratorial
O diagnóstico laboratorial é dividido em várias etapas, desde a avaliação da
amostra, análise física, análise química, observação microscópica e urocultura,
seguida do teste de sensibilidade aos antibióticos (TSA) no caso de resultado
positivo15.
O processo começa com a colheita do produto biológico. A urina deve ser colhida
de forma asséptica, tendo especificidades consoante o tipo de doente. Assim em
mulheres e homens autónomos, deve ser realizada uma lavagem, com algodão e soro
fisiológico dos órgãos genitais, após a lavagem diária normal. O primeiro jacto
deverá ser desprezado e aproveitado o restante para um contentor estéril. No
caso de crianças até aos 2-3 anos, recorre-se a um saco colector esterilizado,
que é colado na pele, junto aos órgãos genitais, depois da lavagem e
desinfecção destes. Após a micção da criança, recolher a urina do saco colector
para um recipiente estéril. Nos doentes algaliados deve colher-se directamente
do tubo que sai da uretra e nunca do saco colector. Poderá ainda, em casos
especiais, recorrer-se à punção supra púbica. Em todos estes casos, e
imediatamente após a recolha do material biológico, o contentor deverá ser
correcta e inequivocamente identificado15.
Etapas de avaliação da urina
A análise física é composta pela avaliação do aspecto, da cor e da densidade. O
aspecto poderá ser límpido (o aspecto normal da urina de um indivíduo
saudável), ligeiramente turvo, turvo ou com depósito. Quanto à cor, esta poderá
variar desde o normal amarelo citrino até ao amarelo mais claro ou mais escuro
(associada quase sempre aos níveis de água no organismo). Pode ainda surgir a
cor avermelhada, pela presença de eritrócitos ou pela influência de
determinados medicamentos. Em relação à densidade, que permite avaliar a função
de filtração e concentração renal, deverá, em situações não patológicas,
situar-se entre 1.015 e 1.0307.
Na análise química avalia-se a cetona (sub-produto do metabolismo das
gorduras), a bilirrubina, a hemoglobina, a glicose, os nitritos, o pH, as
proteínas e o urobilinogénio7.
A observação microscópica é realizada com o intuito de pesquisar e avaliar a
morfologia das células epiteliais, a presença de eritrócitos e de leucócitos,
bem como de cristais, cilindros e muco. Faz-se ainda uma pesquisa da eventual
presença de bactérias7.
A urocultura é a sementeira do produto biológico, a fim de se pesquisar a
existência de bactérias e/ou fungos. Para as bactérias, recorre-se geralmente a
um meio selectivo, sendo mais utilizado o CLED (cistina, lactose e electrólitos
deficiente). Este meio possui ainda um indicador de pH (azul de bromotinol),
permitindo identificar as bactérias fermentadoras da lactose. Incuba 18 a
24 horas a 37Cº. No caso de uma ausência de crescimento considera-se a
urocultura negativa (ausência de bactérias no tracto urinário). Se ocorrer
crescimento, deverá identificar-se a bactéria e realizar-se o respectivo
antibiograma. Quando uma placa de cultura apresenta três ou mais estirpes, é
considerada contaminação, sendo recomendável realizar-se nova colheita de urina
e posterior sementeira. Se se identificarem duas estirpes numa mesma placa de
cultura, o resultado terá de ser integrado na situação clínica do doente,
podendo ser ou não valorizado7.
Tratamento da infecção urinária
As principais orientações para a prevenção e tratamento das infecções urinárias
consistem no aumento da ingestão hídrica, cuidados gerais de higiene íntima,
correcções anatómicas e recurso a antibióticos.
Segundo as normas da Organização Mundial de Saúde (OMS), a toma de antibióticos
apenas deveria ser iniciada após a identificação da bactéria e do seu
respectivo antibiograma por parte do laboratório de Patologia Clínica. Na
prática clínica diária tal facto não se passa, iniciando o doente um
antibiótico empírico, com base na experiência adquirida acerca das infecções
urinárias. Os antibióticos mais comummente utilizados no tratamento
percepcionado são as fluorquinolonas (actuam pela inibição da síntese de ácidos
núcleicos), pela sua boa actuação em microrganismos Gram-negativos, os
principais causadores de infecções urinárias16.
É assim de extrema importância conhecer o padrão de resistência dos
microrganismos mais comuns que infectam o tracto genito-urinário dos Seres
Humanos, a fim de que o tratamento, mesmo que empírico, possa resultar na
eliminação do causador da infecção6. Só se poderá continuar a realizar
tratamentos empíricos, se os microrganismos forem, sistematicamente, analisados
e principalmente o seu padrão de comportamento face aos antibióticos for
sucessivamente monitorizado9.
Objectivos
O conhecimento do padrão de comportamento das estirpes face aos antibióticos,
em dois períodos temporais diferentes é de extrema importância, nomeadamente no
que diz respeito à administração empírica de antibióticos6.
Este trabalho tem como objectivos fundamentais:
Conhecer a prevalência das estirpes envolvidas nas infecções urinárias na
Unidade Local de Saúde da Guarda;
Caracterizar as estirpes mais prevalentes, segundo algumas características
sócio-demográficas dos doentes, como o sexo, o serviço de origem e a idade;
Avaliar o comportamento de cada estirpe face aos antibióticos testados;
Perceber o padrão de evolução da relação bactéria-antibiótico em dois
períodos temporais distintos, comparando-os entre si.
Material e métodos
A amostra foi constituída por 200 uroculturas positivas (> 100.000 unidades
formadores de colónias - UFC)15, metade realizadas no ano 2002 e as restantes
no ano 2007.
Todas as amostras de urina foram semeadas em gelose de CLED (bioMérieux) e
incubadas durante 24h a 37Cº. A identificação da estirpe e o seu respectivo
antibiograma foi realizado no sistema automatizado VITEK 2 (bioMérieux),
recorrendo-se a cartas GPI, GPN e Yeast, respectivamente para a identificação
de bactérias Gram positivas, Gram negativas e fungos, que contêm os nutrientes
necessários ao crescimento dos respectivos microrganismos, sendo depois
identificados por fluorometria. O antibiograma foi efectuado no mesmo sistema
automatizado, sendo os resultados classificados em sensível, intermédio e
resistente. Todas as amostras com resultado "intermédio" foram consideradas
como resistentes, de acordo com as recomendações do fabricante. O tratamento
estatístico dos dados foi efectuado através do programa Statistical Package for
the Social Sciences (SPSS), versão 16.0 para Windows, para determinação de
frequências e teste de x2 da independência, para avaliar a associação entre as
variáveis, considerando como significativo o valor de p <0,05.
Hipóteses
Para a realização deste trabalho sustentámo-nos em algumas hipóteses:
1. A E. coli é a estirpe mais prevalente nas infecções urinárias dos doentes
internados.
2. As estirpes que predominam nas infecções urinárias dos doentes oriundos do
internamento são diferentes das dos doentes provenientes da consulta externa.
3. As estirpes que imperam nas infecções urinárias dos doentes do sexo
masculino são diferentes das mais prevalentes nas infecções urinárias dos
indivíduos do sexo feminino.
4. As E. coli isoladas no ano de 2007 têm maior capacidade de resistência aos
antibióticos testados, quando comparadas com as E. coli isoladas no ano 2002.
5. As K. pneumoniaeisoladas no ano de 2007 têm maior capacidade de resistência
aos antibióticos testados, quando comparadas com as K. pneumoniaeisoladas no
ano 2002.
Resultados
Foram analisadas 200 uroculturas com resultado positivo, sendo 84% pertencentes
a indivíduos do sexo feminino e 16% a indivíduos do sexo masculino.
Em relação à faixa etária, a amostra foi dividida em idade pediátrica (< a
15 anos) e idade adulta (>16 anos), sendo que 22% dos indivíduos tinham idade
igual ou inferior a 15 anos e 78% tinham 16 ou mais anos.
O sexo masculino apresentou 25% de indivíduos com idade igual ou inferior a
15 anos e no sexo feminino 21,4% também têm idade igual ou inferior a 15 anos,
não se verificando a existência de diferenças estatisticamente significativas
no que concerne ao sexo por faixa etária.
O serviço de origem da amostra foi dividido em internamento, englobando todos
os doentes que no momento da colheita de urina estavam internados na Unidade
Local de Saúde da Guarda e serviço de consulta externa, englobando todos os
doentes oriundos do exterior. 63% da amostra provinha de indivíduos internados
e os restantes 37% eram oriundos de doentes da consulta.
A estirpe predominante foi a Escherichia coli, com 65%, seguida da Klebsiella
pneumoniae com 11%, da Serratia marcescens com 8%, da Pseudomonas aeruginosa
com 7%, da Providencia stuartii (P. stuartii) com 4%, do Proteus mirabilis (P.
mirabilis) com 3% e do Enterococcus faecalis (E. faecalis) e Proteus vulgaris
(P. vulgaris), cada um com 1%.
No ano de 2002 a estirpe que predominou foi a E. coli constituindo 64% das
estirpes identificadas, seguida da S. marcescens com 16%, da K. pneumoniae com
14%, do P. vulgaris e do E. faecalis com 2%. Já no ano 2007 continuou o domínio
da E. coli com 66% das infecções urinárias, seguida da P. aeruginosa com 14%,
da P. stuartii e K. pneumoniaecom 8% e do P. mirabilis com 4%
Em relação ao serviço de origem, verifica-se que de entre as amostras
provenientes do internamento 57,1% eram E. coli, 11,1% K. pneumoniaee P.
aeruginosa, 9,5% S. marcescens, 6,3% P. stuartii e 1,6% correspondiam a P.
vulgaris, a P. mirabilis e a E. faecalis. Em relação às amostras provenientes
da consulta externa, constata-se que 78,4% correspondiam à E. coli, 10,8% à K.
pneumoniae e 5,4% à S. marcescens e P. mirabilis não se verificando a
existência de diferenças estatisticamente significativas no que concerne à
estirpe por local de origem da amostra.
Na análise das estirpes envolvidas nas infecções urinárias por sexo,
verificamos que no sexo masculino predomina a infecção por E. coli, com 50%,
seguida da P. aeruginosa, com 43,8% e do P. mirabilis com 6,2%. No sexo
feminino existe uma prevalência de 67,9% de infecção pela E. coli, 13,1% por
K. pneumoniae, 9,4% pela S. marcescens, 4,8% pela P. stuartii, 2,4% pelo P.
mirabilis e 1,2% pelo E. faecalis e P. vulgaris, verificando-se a existência de
diferenças estatisticamente significativas, no que concerne à estirpe por sexo
(p = 0,000). De facto verifica-se que todas as infecções urinárias por
P. aeruginosa se verificaram nos elementos do sexo masculino, enquanto 100% das
infecções atribuídas à K. pneumoniae, S. marcescens, P. stuartii, E. faecalis e
P. vulgaris se verificaram nos indivíduos do sexo feminino.
Na análise das bactérias envolvidas na infecção urinária, por faixa etária
considerada, constata-se que nos elementos com idade igual ou inferior a
15 anos predominou a infecção por E. coli, com 86,4%, seguida da S. marcescens
com 13,6%. Já nos indivíduos com 16 ou mais anos predominou igualmente a E.
coli com 59%, seguida da K. pneumoniae com 14,1%, da P. aeruginosa com 9%, da
S. marcescens com 6,4%, P. stuartii com 5,1%, do P. mirabilis com 3,8% e do P.
vulgaris e E. faecalis com 1,3% cada, não se verificando a existência de
diferenças estatisticamente significativas no que concerne à estirpe envolvida
por faixa etária. Realizou-se ainda o estudo da sensibilidade face aos
antibióticos da E. coli e da K. pneumoniae, por ano. A E. coli apenas diminui a
sua sensibilidade à gentamicina (100% em 2002 para 93,9% em 2007), à
pefloxacina (90,6% em 2002 para 87,9% em 2007) e ao trimetoprim (81,3% em
2002 para 75,8% em 2007). Aumentou a sua sensibilidade a sete antibióticos
(amoxicilina, ampicilina, cefalotina, ácido nalidíxico, netilmicina,
ticarcilina e tobramicina). Já em relação à K. pneumoniae, esta apresentou
diminuição de sensibilidade em seis antibióticos (amoxicilina, ampicilina,
cefalotina, pefloxacina, ticarcilina e trimetoprim). Apenas aumentou a sua
sensibilidade à netilmicina e à tobramicina. Nestes dois anos estudados, ambas
as bactérias mantiveram resistência de 0% à ceftazidima, cefotaxima, imipenem e
nitrofurantoína.
Discussão
De entre as 200 uroculturas positivas analisadas, a maioria (84%) são
pertencentes a mulheres. Pelas características anatómicas do sexo feminino,
nomeadamente o menor tamanho da uretra e a localização desta mais próxima do
ânus, existe uma maior propensão ao surgimento de infecções urinárias
bacterianas, sendo este dado transversal à maioria dos estudos realizados no
mundo ao longo dos tempos17-20. No estudo das amostras por idade, após divisão
entre os indivíduos que possuíam idade igual ou inferior a 15 anos (considerada
a idade pediátrica)21,22 e os que tinham 16 ou mais anos (idade adulta),
constatou-se que a esmagadora maioria (78%) eram adultos. Este facto está
relacionado com um frágil desenvolvimento do serviço de Pediatria na Unidade
Local de Saúde da Guarda, sendo a maioria das crianças do distrito da Guarda
assistidas no Centro Hospitalar Cova da Beira. Analisando o sexo dos elementos
que constituem cada grupo etário, constata-se a existência de uma clara maioria
de mulheres, tanto nos indivíduos com idade pediátrica (81,8%) como nos que
possuíam idade superior a 16 anos (84,6%), não se verificando a existência de
diferenças estatisticamente significativas (p = 0,851). O sexo feminino
apresenta maior probabilidade de desenvolver infecções urinárias,
independentemente da idade20,23,24. A maioria dos doentes analisados neste
estudo provinham do internamento (63%), o que demonstra o grande peso que estes
doentes têm nas análises realizadas no laboratório de Patologia Clínica da
Unidade Local de Saúde da Guarda. Como apenas foram analisadas as uroculturas
positivas, poderá também demonstrar que há maior probabilidade de isolar
microrganismos a partir da urina de doentes internados do que dos doentes de
ambulatório. Tal facto poder-se-á ficar a dever a uma maior imunodepressão dos
doentes internados13,25, associada a outras patologias (e pelas quais possam
estar internados) ou mesmo a determinados procedimentos, comuns nos doentes de
internamento, como a algaliação, que aumenta o risco de infecção urinária26.
No nosso estudo predominou a estirpe E. coli, constituindo 65% das infecções
urinárias presentes. Esta bactéria é a mais descrita na maioria dos estudos
sobre infecções urinárias, independentemente das características das populações
em estudo6,16,20. Em segundo lugar de prevalência encontramos a K. pneumoniae,
tendo constituído 11% das infecções identificadas, resultado também de acordo
com a maioria dos estudos dentro da área9,20. A S. marcescens, com uma
prevalência de 11% apresentou-se como a terceira estirpe mais comum nas
infecções urinárias dos elementos da nossa amostra. Este resultado não é
corroborado pela maioria dos estudos dentro desta área9,20, sendo claramente
superior, embora existam alguns trabalhos que apontam esta bactéria como causa
principal de infecções urinárias complicadas27. Esta estirpe apenas foi
encontrada no ano 2002 e apenas nos elementos do sexo feminino, sendo que a
maioria (75%) foi isolada de doentes provenientes do internamento, à semelhança
dos dados fornecidos no estudo citado anteriormente27. A restante distribuição
das estirpes causadoras de infecção urinária é muito comparável às encontradas
em vários estudos semelhantes9,20. O aumento da prevalência de infecções
urinárias por parte da P. aeruginosa tem sido constatado por vários trabalhos
na área, em que se demonstra a sua crescente importância associada a este tipo
de infecções28,29.
Na análise do tipo de estirpe envolvida nas infecções urinárias por ano,
verificamos que, uma vez mais, se mantêm a E. coli como a bactéria dominante
nas infecções ocorridas tanto no ano 2002 como 2007. No ano 2002 a prevalência
de 16% verificada pela bactéria S. marcescens é o valor que menos se aproxima
da maioria dos estudos análogos, embora se aproxime de alguns outros estudos,
nomeadamente os que abordam apenas as infecções urinárias complicadas27.
Constata-se ainda que esta bactéria não foi identificada em nenhuma das
uroculturas estudadas no ano 2007. As principais diferenças entre o ano 2002 e
o ano 2007 prendem-se com um aumento do número de infecções atribuídas à P.
aeruginosa (0% em 2002 e 14% em 2007) e à P. stuartii (0% em 2002 e 8% em
2007). As restantes estirpes mantêm os seus níveis de prevalência sensivelmente
semelhantes ao longo dos tempos9,16,20. Quanto ao local de origem, que foi
dividido em internamento e consulta externa, verificamos que, independentemente
do local de onde provêm a amostra, se encontra sempre a E. coli como estirpe
mais prevalente. Verifica-se que o predomínio da E. coli nos doentes oriundos
da consulta externa é mais elevada do que nos doentes internados na Unidade
Local de Saúde da Guarda. Este resultado é coincidente com os obtidos em alguns
estudos internacionais5,6,16, que apontam sempre incidências maiores de E. coli
em doentes de ambulatório. Apesar de não se verificar a existência de
diferenças estatisticamente significativas no que concerne ao tipo de bactéria
identificada por local de proveniência da amostra, observa-se que as estirpes
P. aeruginosa, P. vulgaris, P. stuartii e E. faecalis apenas são isoladas em
uroculturas que provêm de doentes internados. Chama-se ainda à atenção para o
facto de que nas amostras que advêm dos doentes da consulta externa, apenas
terem sido isoladas quatro estirpes diferentes, enquanto nas uroculturas
positivas de doentes provenientes do internamento foram isoladas oito estirpes
diferentes. Este facto poder-se-á ficar a dever à maior existência de estirpes
potencialmente causadoras de infecções em ambiente hospitalar e à maior
probabilidade que os doentes internados têm de ser infectados (pela associação
com outras doenças, imunossupressões e manipulações como algaliação)30,6,16,25.
Analisando a prevalência das espécies encontradas nas infecções urinárias
estudadas neste trabalho, por sexo, constatamos que nas infecções urinárias dos
doentes do sexo masculino se encontram envolvidas apenas três estirpes,
enquanto as infecções urinárias dos elementos do sexo feminino são devidas a
sete estirpes diferentes. De facto, relacionando com outros estudos
semelhantes, constatamos que há sempre uma maior diversidade de microrganismos
que podem infectar as mulheres, em relação aos homens9. Pensamos, contudo, que
aumentando o número de elementos que constituem a amostra esta diferença
pudesse, tendencialmente, esbater-se, até porque de entre os elementos que são
do sexo masculino, 81,3% provinham do internamento, ao passo que apenas 59,5%
das mulheres eram oriundas do serviço de internamento da Unidade Local de Saúde
da Guarda. Esta maior prevalência, dentro do sexo masculino, poderia levar a um
aumento do número de estirpes envolvidas nas infecções urinárias dos homens,
pela maior diversidade de bactérias diferentes que existem em ambiente
hospitalar, assim como por algumas práticas terapêuticas e/ou de diagnóstico, a
que os doentes internados são submetidos26, como já foi referido anteriormente.
Em relação à análise das uroculturas tendo em conta a faixa etária, constata-se
que a E. coli foi a bactéria que dominou, apresentando uma prevalência de 86,4%
nos doentes em idade pediátrica e de 59% nos doentes com mais de 16 anos, o
que, novamente, corrobora os dados conhecidos da literatura11,18,20,30-32. Nos
doentes com idade igual ou inferior a 15 anos apenas foram identificados dois
tipos de bactérias diferentes (E. coli e a S. marcescens), enquanto nos adultos
foram encontradas as oito bactérias presentes neste estudo. Uma das
justificações para este acontecimento, prende-se com o facto de 88,9% dos
doentes internados terem 16 ou mais anos e, como verificámos, estes doentes
apresentam, tendencialmente, uma maior variedade de estirpes isoladas, pelas
razões referidas anteriormente. A presença da S. marcescens nos doentes com
idade igual ou inferior a 15 anos, perfazendo 13,6% das bactérias isoladas, é
um valor elevado, quando comparado com outros estudos realizados em crianças,
que apontam o P. mirabilis como a segunda bactéria mais prevalente nesta faixa
etária33. A S. marcescens é uma importante bactéria oportunista, referida como
causadora de infecções, nomeadamente pneumonias, septicemias, feridas e do
tracto urinário34,35. Mais raramente poderá provocar meningite36, não sendo uma
bactéria habitual nas infecções adquiridas na comunidade, muito menos em
crianças. No caso do nosso estudo, surgem três crianças com infecção urinária
devido à S. marcescens, uma proveniente do internamento e duas da consulta
externa. Sendo uma bactéria associada a infecção adquirida em ambiente
hospitalar, a criança proveniente do serviço de internamento poderá ter aí
contraído a bactéria. As crianças que provêm da consulta externa poderiam estar
em convalescença de um internamento, onde se contaminaram por S. marcescens.
De entre as principais causas evitáveis que podem conduzir um paciente com
infecção urinária à morte, a medicação errada ou ineficaz apresenta-se como a
principal37. No que concerne à sensibilidade apresentada pelas bactérias em
relação aos antibióticos testados, verificamos que todas as E. coli, K.
pneumoniae e S. marcescens, que constituem 84% das infecções urinárias deste
estudo, são sensíveis ao imipenem e ceftazidima. Esta constatação é semelhante
a outros estudos, realizados em amostras semelhantes18,38. Sem dúvida que estes
dois antibióticos poderão apresentar-se como uma primeira linha na actuação
deste tipo de bactérias, avaliando não só o nosso estudo, mas outros realizados
e cujos resultados foram sempre semelhantes. Constata-se que os antibióticos a
que estas mesmas bactérias são mais resistentes são a ampicilina (33,8%, 90,9%
e 100%, respectivamente), o trimetoprim (21,5%, 45,5% e 62,5%,
respectivamente), a ticarcilina (30,8%, 90,9% e 100%, respectivamente) e a
pefloxacina (10,8%, 27,3% e 62,5%). A resistência à ampicilina tem sido
descrita em vários trabalhos semelhantes já realizados9,6,20.
Ainda dentro do universo destas três bactérias, constata-se que a S. marcescens
é a que apresenta maiores resistências, provavelmente devido a ser uma bactéria
eminentemente associada a infecções hospitalares34,35. A P. aeruginosa,
bactéria com tendência a níveis elevados de resistências5, apresenta uma
sensibilidade de 100% à gentamicina, à netilmicina, à tobramicina, à amicacina
e à ciprofloxacina. Pelo lado oposto, apresenta uma resistência de 100% à
ticarcilina, ao trimetoprim e ao aztreonam.
Um antibiótico apenas deve ser usado empiricamente quando a sensibilidade da
bactéria face a ele é superior a 80%38,39. Sendo assim, e com base neste
pressuposto, poderemos, à partida, eliminar alguns antibióticos da
possibilidade de serem utilizados empiricamente para qualquer uma destas quatro
bactérias, que, relembramos, constituem, em conjunto, cerca de 91% das
infecções urinárias estudadas neste trabalho. A ampicilina, o trimetoprim e a
ticarcilina apresentam sempre percentagens de sensibilidade, por parte da E.
coli, da S. marcescens, da K. pneumoniae e da P. aeruginosa inferiores a 80%, à
semelhança de outros estudos, sendo, por isso, antibióticos a evitar na
prescrição empírica40.
Num outro estudo realizado, a E. coli mostrou uma sensibilidade de 39,6% à
ampicilina, mesmo assim muito inferior ao encontrado no nosso estudo, em que
66,2% das E. coli se demonstraram sensíveis face a este antibiótico5. A
principal justificação poderá residir no facto de que no referido estudo, as E.
coli isoladas serem todas provenientes de doentes com infecção urinária que
estavam internados, enquanto no nosso estudo 44,6% das bactérias isoladas terem
sido adquiridas em comunidade. Consolidando esta afirmação, encontram-se
valores muito semelhantes aos do nosso estudo num outro trabalho realizado em
doentes que contraíram a infecção urinária na comunidade38. A E. coli
apresentou uma sensibilidade de 100% à nitrofurantoína, contudo deve ser tido
em conta que este antibiótico pressupõe um tratamento muito prolongado e
intenso (quatro tomas diárias, durante sete dias), o que acarreta níveis
elevados de toxicidade, devendo assim, ser um antibiótico a evitar (quando
possível), apesar da excelente susceptibilidade que a bactéria em questão
apresenta28.
Em relação à K. pneumoniae, num estudo realizado no ano 20055 foram encontrados
valores de sensibilidade da bactéria face à cefalotina de 60,8%, muito
semelhantes aos obtidos no nosso trabalho que se cifraram nos 63,6%. Chama-se
contudo à atenção para o facto de os autores do referido estudo terem
trabalhado não a K. pneumoniae especificamente mas sim o género Klebsiella,
apesar de, nesse estudo, 84% das bactérias classificadas como Klebsiella serem,
efectivamente, K. pneumoniae.
Na análise da evolução da sensibilidade das duas bactérias mais prevalentes
neste estudo (E. coli e K. pneumoniae) face aos antibióticos, verificamos que
no caso da E. coli apenas surgem três diminuições da sua sensibilidade face aos
antibióticos e todas elas são muito pequenas, sendo a maior diminuição de
sensibilidade de apenas 7%, dados corroborados com outros estudos idênticos já
realizados16,41,42.
Não obstante estas diminuições, verifica-se que a E. coli aumentou a sua
susceptibilidade a sete antibióticos e manteve uma resistência de 0% a outros
quatro fármacos.
Já no caso da K. pneumoniae a situação não é tão animadora. Esta bactéria
aumentou a sua resistência a seis antibióticos, existindo mesmo casos de uma
diminuição de 75% na sensibilidade da bactéria. Manteve, contudo, uma
sensibilidade total a cinco antibióticos e diminuiu para zero a sua capacidade
de resistir à tobramicina e à netilmicina. O aumento de resistências desta
bactéria face a alguns antibióticos é uma situação que se tem vindo a verificar
em alguns estudos já efectuados9, sendo que no trabalho presente não foi
excepção. De referir ainda que 63,6% das K. pneumoniae isoladas neste estudo
provinham de doentes internados, o que, à partida, poderá aumentar a capacidade
de resistência por parte das bactérias. Estas duas bactérias mantiveram uma
sensibilidade total à ceftazidima, à cefotaxima, ao imipenem e à
nitrofurantoína. Estes quatro antibióticos poderão surgir, assim, como boas
hipóteses de tratamento empírico.
Conclusão
As infecções urinárias podem dividir-se entre as não complicadas,
predominantemente associadas à E. coli, com boa resposta terapêutica, e as
complicadas, associadas a várias estirpes, que, em comum, apresentam algumas
resistências aos antibióticos42.
É de extrema importância o conhecimento das resistências aos antibióticos que
cada espécie apresenta nesse momento6.
A aplicação de um tratamento empírico deve estar sempre associado com as
estirpes mais prevalentes nessa região, com o local de origem do doente, assim
como com a sua susceptibilidade aos vários antimicrobianos38,42,43. O mesmo se
aplica às instituições hospitalares, que devem ter um conhecimento profundo e
actualizado das principais estirpes prevalentes, bem como dos antibióticos mais
adequados a utilizar nos seus doentes institucionalizados20. Torna-se assim
indispensável conhecer esta realidade em cada região, a fim de poderem ser
aplicados antibióticos que, à partida, irão conseguir resolver as infecções
urinárias, nunca sendo descurado o exame laboratorial, nomeadamente a
urocultura e o eventual teste de sensibilidade aos antimicrobianos. Para além
da importância referida, as análises laboratoriais permitem que, em caso de
insucesso da terapêutica empírica, que se situa nos 11% segundo alguns
trabalhos realizados39, o clínico disponha de alternativas eficazes.