Grau de conhecimento e consumo de psicofármacos dos alunos da Escola Superior
de Tecnologia da Saúde de Coimbra
Introdução
O aparecimento dos psicofármacos transformou totalmente a prática da
psiquiatria e da psicoterapia, diminuindo o sofrimento psicológico e limitando
a intensidade ou a duração das perturbações mentais. A introdução destes
medicamentos veio incentivar a investigação no campo da etiopatogenia dos
processos e das doenças mentais, despertando novo interesse por problemas que
pareciam reservados ao campo da especulação e do método psicanalítico, sem pos
sibilidade alguma de estudo científico exacto. Muitos progressos têm sido
verificados nesta área da investigação, embora se tenha de reconhecer que há
ainda largo desconhecimento dos mecanismos que presidem aos processos
mentais1,2.
Os psicofármacos são medicamentos com predomínio de acções sobre o psiquismo, o
raciocínio, as emoções, as atitudes mentais e o comportamento dos doentes, daí
resultando as suas potencialidades terapêuticas1.
A grande acessibilidade destes medicamentos, aliada a uma maior procura por
parte dos jovens, em situações de stress, ansiedade, problemas emocionais,
entre outros, pode fazer com que subsista uma não racionalidade no seu consumo,
e daí, um grave problema de saúde pública. Tal facto pode ser explicado pela
banalização da prescrição médica destes medicamentos, associado ao não
cumprimento escrupuloso da sua cedência só mediante receita médica, como
estipulado pela lei (Decreto-Lei 15/93). As consequências da sua utilização
incorrecta para o organismo prendem-se com a sua estreita janela terapêutica e
alta capacidade de habituação, o que pode produzir alterações cognitivas,
motoras e dependência dos consumidores.
Segundo a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, Instituto
Público (INFARMED, I.P.), no ano de 2007 os portugueses consumiram de um modo
excessivo este grupo de fármacos. Através do relatório de estatística do
medicamento, constata-se que foram consumidos 18.329.481 embalagens de
psicofármacos. Em média foram consumidas duas embalagens por cada habitante
(sendo estes medicamentos mais utilizados para o tratamento da ansiedade,
depressão e insónias), tornando assim Portugal o segundo país da Europa onde
mais se consome medicamentos do foro psiquiátrico e o primeiro da Europa com
maior consumo de Benzodiazepinas. Outro estudo, por sua vez realizado pelo
Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, constatou que 60% dos casos
clínicos analisados, que tinham por base uma terapêutica de curta duração,
apresentavam dependência3-5.
O presente estudo, pretendeu avaliar o conhecimento ou formação dos alunos de
cursos superiores na área de saúde, sobre psicofármacos e o reflexo disso no
seu consumo. Para tal, avaliou-se a influência de certos factores como género,
idade, tipo e ano do curso, no nível de conhecimentos do aluno sobre esta
matéria, bem como a sua influência no consumo destes medicamentos.
Material e métodos
Para a realização deste trabalho de investigação, começou por se fazer uma
pesquisa bibliográfica acerca da temática, o que permitiu a construção de um
questionário que viria, posteriormente, a ser aplicado de forma directa aos
alunos da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra (ESTESC), do ano
lectivo 2008/2009 (mais precisamente, de Outubro de 2008 a Junho de 2009). Na
base da construção do questionário, esteve a elaboração de perguntas
específicas, capazes de traduzir os objectivos do estudo6. Assim, foram usadas
apenas perguntas do tipo fechado, uma vez que o tamanho da amostra para esta
população era elevado. O questionário foi estruturado em três grupos que a
seguir se descrevem:
Grupo I: Perguntas do foro individual e pessoal para caracterização
demográfica da amostra;
Grupo II: Conjunto de perguntas que tinham como objectivo avaliar o
conhecimento acerca dos psicofármacos, no que diz respeito aos meios para a sua
aquisição, e se tratava de um conhecimento presumido e/ou efectivo;
Grupo III: Conjunto de perguntas para aferir quando, como e por quanto tempo
os indivíduos recorreram a esta terapêutica medicamentosa durante os últimos
seis meses.
Para mensurar a variável conhecimento efectivo foi utilizada uma escala ordinal
cumulativa. A cada uma das 16 perguntas foram atribuídas pontuações de 0 e 1
(0 corresponde a resposta errada e 1 a resposta certa). Os inquiridos foram
posteriormente posicionados em classes, de acordo com o somatório obtido às
16 questões, oscilando entre 0 pontos (corresponde à ausência de conhecimentos)
e 16 pontos (corresponde a ter respondido correctamente a todas as questões).
Considerou-se neste estudo, três classes possíveis:
Insuficiente (0 a 7 pontos) - foram posicionados os estudantes com
conhecimentos insuficientes sobre psicofármacos, ou seja, aqueles que acertaram
em menos de metade das 16 questões colocadas;
Suficiente (8 a 12 pontos) - todos aqueles que acertaram entre 50% e 75% das
16 questões;
Bom (13 a 16 pontos) - inclui todos os estudantes com pelo menos 80% de
respostas certas.
Após autorização da Direcção da ESTESC, realizou-se um pré-teste com a
finalidade de avaliar a compreensão e a clareza do questionário e corrigir
eventuais inconsistências, após o que se procedeu à recolha da amostra. A
participação foi voluntária, após ser obtido consentimento informado e
garantida a confidencialidade dos resultados.
O tipo de amostra foi probabilístico, pois cada elemento da população teve a
mesma probabilidade de ser escolhido para fazer parte da amostra. Quanto à
técnica de amostragem foi aleatória estratificada, pelo facto de em cada ano/
curso se seleccionarem aleatoriamente os indivíduos da amostra e não o total
existente em cada ano/curso, para responder ao inquérito.
Foram alvo deste estudo 417 alunos, dos 880 inscritos nos 7 cursos ministrados
pela ESTESC, no ano lectivo de 2008/2009, distribuídos conforme a tabela 1.
Tabela_1 - Características demográficas da população
Este estudo foi qualificado como de nível II, do tipo descritivo-correlacional,
uma vez que explorou e determinou a existência de relações entre variáveis, com
vista a descrever essas relações e de conhecer as que estão associadas ao
fenómeno em estudo.
Após a recolha dos dados, estes foram analisados e tratados através do
Statistical Software Packages (SPSS v.16).
Sendo um estudo de estatística descritiva e inferencial utilizou-se
distribuições de frequência e tabulações cruzadas, usando o teste Qui-Quadrado.
Estabeleceu-se que existia significância estatística quando o p <0,05 e o
intervalo de confiança era de 95%.
Resultados
Caracterização da amostra
Foram alvo deste estudo 417 alunos, dos 880 inscritos nos 7 cursos ministrados
pela ESTESC, no ano lectivo de 2008/2009, sendo o género feminino predominante,
com 344 indivíduos (82,5%). Quanto à idade, registaram-se valores entre os
18 anos e os 29 anos e uma média de 20,15 ± 1,715 anos (média ± desvio padrão).
Em relação às zonas de residência, constatou-se que a zona centro é
predominante, com 339 indivíduos (82,1%). Os cursos de Cardiopneumologia (CPL),
Farmácia (FAM), Radiologia (RAD) e Saúde Ambiental (SA), participaram, cada um
deles, com 60 indivíduos (14,4%) e os de Análises Clínicas e Saúde Pública
(ACSP), de Audiologia (AUD) e Fisioterapia (FISIO), com, cada um deles,
59 indivíduos (14,1%). Relativamente aos anos de curso, observou-se que o 1º e
4º ano continham, cada um deles, 105 indivíduos (25,2%), que o 2º ano registou
um total de 104 indivíduos (24,9%) e que o 3º ano apresentou um total de
103 indivíduos (24,7%) (tabela_1).
Nível de conhecimento de psicofármacos
Relativamente ao nível de conhecimento de psicofármacos da população em estudo,
verificou-se, pela análise da figura 1, que dos 417 estudantes, apenas 43
(10,30%) possuíam conhecimentos insuficientes sobre psicof ármacos. Dos
374 indivíduos (89,70%) que possuíam conhecimentos, 245 (65,5%) apresentaram um
conhecimento suficiente, e 129 (34,5%) apresentaram um conhecimento bom.
Figura 1 - Nível de conhecimento entre os estudantes.
Pela análise da tabela 2, pode-se observar a existência de uma associação
estatisticamente significativa entre o nível de conhecimento efectivo e o curso
frequentado (p = 0,000), bem como, com a percepção do nível de conhecimento
(p = 0,000). Relativamente à influência do curso frequentado, verificou-se que
o curso de SA foi o que teve maior nível de conhecimento insuficiente (15,0%),
ao mesmo tempo, que o curso de FAM foi o que teve maior nível de conhecimento
Bom (68,3%), face aos outros cursos. Constatou-se ainda, que os indivíduos que
consideravam apresentar um conhecimento reduzido sobre este tema, apresentaram,
de facto, um predomínio do nível de conhecimento suficiente (66,8%) e que, os
que consideravam ter um conhecimento elevado, obtiveram maior percentagem de
nível de conhecimento bom (54,9%). Por outro lado, na amostra em estudo, o
nível de conhecimento efectivo não se revelou significativamente associado às
variáveis género, idade e ano do curso.
Tabela 2 - Distribuição do nível de conhecimento
Relativamente aos meios de obtenção do conhecimento de psicofármacos,
analisando a figura 2, observa-se que o meio mais frequente para obter
informação foi os folhetos informativos, tendo 229 (54,9%) indivíduos referido
obter informação através deste meio, sendo o recurso aos Farmacêuticos o meio
menos usado (1,7%).
Figura 2 - Meios de obtenção do conhecimento sobre psicofármacos.
Prevalência de consumo de psicofármacos nos últimos 6 meses
Quanto à prevalência de consumo de psicofármacos, observa-se, pela figura 3,
que dos 417 estudantes inquiridos no estudo, 53 (12,7%) mencionaram recorrer ao
consumo destes medicamentos nos últimos 6 meses.
Figura 3 - Prevalência do consumo de psicofármacos nos últimos 6 meses.
Pela análise da tabela 3, relativamente à distribuição do consumo de
psicofármacos nos últimos 6 meses, verificou-se que a idade e o ano de curso
não influenciavam significativamente a prevalência de consumo. Por outro lado,
a prevalência de consumo foi significativamente influenciada pelo género
(p = 0,041), pelo curso frequentado (p = 0,016) e pelo nível de conhecimento
(p = 0,000). Verificou-se que os que mais recorreram à terapêutica
medicamentosa, foram as estudantes (14,2%), os indivíduos do curso de FAM
(25,0%) e os indivíduos com o melhor nível de conhecimento (22,5%).
Tabela 3 - Distribuição do consumo de psicofámacos nos últimos 6 meses (n=53)
Dos 53 alunos que consumiram psicofármacos, 48 foram capazes de identificar o
fármaco consumido. Destes, 47,9% consumiram ansiolíticos, com predomínio do
alprazolam, seguido de sedantes e hipnóticos (29,2%), com o predomínio da
valeriana, sendo este o fármaco mais consumido pela amostra em estudo
(tabela 4).
Tabela 4 - Distribuição dos medicamentos consumidos
Quanto ao tipo de consumo de psicofármacos, pela figura 4 verifica-se que o
consumo destes medicamentos foi realizado, na maioria das vezes, com base
apenas na prescrição médica, tendo 38 indivíduos (71,7%) referido consumir
estes medicamentos só após receita médica.
Figura 4 - Tipo de consumo de medicamentos psicofármacos.
Quanto à duração do consumo de psicofármacos, verifica-se, pela figura 5, que
22 indivíduos (41,5%) referiram consumir estes medicamentos há mais de 6 meses.
Figura 5 - Tempo de duração do consumo de psicofármacos.
Quanto à altura de maior consumo de psicofármacos, analisando a
figura 6 observa-se que este foi mais frequente na altura de Exames/
Frequências. Dos 53 indivíduos que recorreram à terapêutica com base em
psicofármacos, 32 (60,4%) confirmaram consumi-los nesta altura.
Figura 6 - Altura de maior consumo de psicofármacos.
Discussão
Neste estudo, verificou-se que a larga maioria dos alunos inquiridos da ESTESC
possuíam um nível de conhecimento sobre psicofármacos pelo menos suficiente.
Verificou-se também, que os indivíduos pertencentes ao curso de Farmácia
apresentaram maior nível de conhecimento sobre psicofármacos, face aos outros
cursos. Tal facto, poderá ser explicado pelo maior acesso à informação destes
alunos relativamente a estes medicamentos. De facto, o estudo dos psicofármacos
está presente no plano curricular dos alunos de Farmácia, o que não acontece
nos restantes cursos da ESTESC.
Quanto à relação entre o nível de conhecimento efectivo e a autoavaliação do
conhecimento, verificou-se que os indivíduos mostraram ter consciência do que
sabem acerca dos psicofármacos. Os indivíduos que apresentaram uma auto-
avaliação de conhecimento elevado, maioritariamente, tiveram um nível de
conhecimento efectivo bom. Em relação aos meios de informação utilizados na
aquisição de conhecimentos acerca destes medicamentos, foram os folhetos
informativos os mais usados, revelando uma grande autonomia e confiança na toma
dos psicofármacos por parte dos inquiridos.
A prevalência de consumo de psicofármacos foi elevada (12,7%), considerando a
idade dos indivíduos deste estudo. Comparando o presente estudo a outro
congénere, realizado por Cabrita et al.7, este apresentou um nível de consumo
ainda mais elevado face aos 7,9% de estudantes universitários de Lisboa que
consumiram psicofármacos. Este estudo confirma, de alguma forma, a realidade do
consumo de psicotrópicos em Portugal. Efectivamente, Portugal apresenta uma
grande prevalência de consumo face a outros países europeus, sendo um dos
países da Europa que mais consome psicofármacos4,5,7-10. A prevalência de
consumo de psicofármacos revelou-se dependente do género, do curso frequentado
e do nível de conhecimento. Verificou-se um predomínio do consumo no género
feminino, nos alunos do curso de FAM e nos indivíduos com nível de conhecimento
bom.
Parece não haver discordância, na literatura, quanto à preponderância do
consumo de psicofármacos pelas mulheres11-17. Diversos autores referem que as
mulheres são mais perceptivas em relação à sintomatologia das doenças,
procurando precocemente ajuda, e são menos resistentes ao uso de medicamentos
prescritos relativamente aos homens, o que poderá conduzir a uma maior
probabilidade de consumo de medicamentos, entre os quais os
psicofármacos14,13,18. Por outro lado, entre as mulheres é maior a frequência
de perturbações men tais e doenças músculo-esqueléticas para as quais é comum a
prescrição de psicofármacos, sobretudo benzodiazepinas. Outro factor que poderá
estar correlacionado com o género feminino é o maior comparecimento das
mulheres às unidades de saúde, sobretudo em idade fértil19. O ciclo hormonal da
mulher, considerando as elevações do nível de estrogénio no cérebro e
consequente interacção desta hormona com os receptores da serotonina e outros,
modulando-lhe e inibindo a acção dos agonistas destes, torna o género feminino
muito mais vulnerável a perturbações de ansiedade e depressão, sendo outra
justificação apresentada por alguns autores16,17. A elevada prevalência de
consumo de psicofármacos nos estudantes de Farmácia inquiridos no nosso estudo
(25%) foi igualmente observada no estudo efectuado na Universidade de Lisboa
(26,8%)7 e na Universidade de Granada (64,2%)20, sugerindo-nos a realização de
um estudo posterior para investigar os seus determinantes. Verificou-se que os
psicofármacos mais consumidos foram os pertencentes à classe dos ansiolíticos
(47,9%), com predomínio do alprazolam, e em seguida, sedativos e hipnóticos
(29,2%), com predomínio da valeriana. Outros estudos realizados na Europa e
Estados Unidos da América, com valores respectivamente de 3,2% e 4,3%,
demonstraram que, as benzodiazepinas são a classe de psicofármacos mais
consumida por todas as populações incluídas em estudos7-10.
Em suma, o consumo excessivo de psicofármacos é um problema de saúde pública no
nosso País. Torna-se assim necessário, identificar os casos e melhorar o
acompanhamento destes doentes pelo médico assistente. Os resultados mostram
que, apesar de possuírem algum conhecimento sobre estes medicamentos, a maioria
dos inquiridos - adquiriu os apenas mediante prescrição médica. Por outro lado,
observou-se que a grande percentagem dos alunos consumia estes medicamentos há
mais de 6 meses. Tal indica que estes indivíduos podem estar a utilizar
psicofármacos de uma forma crónica o que, devido às consequências deste tipo de
terapêutica associado ao tipo de população em estudo, pode acarretar problemas
de saúde pública, nomeadamente a habituação e a dependência a estes fármacos.
Os estudos populacionais sobre consumo de psicofármacos nos estudantes do
ensino superior são relativamente escassos no nosso país, dificultando a
comparação dos resultados. No entanto, estes estudos podem permitir a
implementação de medidas e programas de saúde direccionadas para os estudantes
do ensino superior, para que estes adquiram hábitos saudáveis, melhorando a sua
qualidade de vida.