(Des) centralização dos cuidados de saúde primários?
(Des) centralização dos cuidados de saúde primários?
Primary health care (de)centralization?
Patrícia Barbosaa
a Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa,
Portugal
O debate em torno da descentralização gestionária dos cuidados de saúde
primários não é recente. Em 1999, o Professor Sampaio Faria escreveu, neste
mesmo espaço, um comentário dedicado ao tema, onde sublinhava a
incompatibilidade entre os propósitos da saúde pública e a centralização
gestionária dos serviços e dos programas de prevenção da doença e promoção da
saúde.
Ao longo dos anos, vários autores têm sugerido que o desenvolvimento dos
cuidados de saúde primários (CSP) e das práticas efetivas de saúde pública
dependem da possibilidade e capacidade de muitas das decisões poderem ser
tomadas próximas dos cidadãos e das comunidades e não em sede de poder, isto é,
tomadas (ou influenciadas) por órgãos mais recuados e distantes e com menor
conhecimento dos problemas e necessidades em causa.
No caso concreto dos cuidados primários, o processo de descentralização,
naquilo que respeita [diz respeito a]aos conceitos de desconcentração e
delegação, deveria ter sido consolidado com a criação dos ACeS - Agrupamentos
de Centros de Saúde, uma vez que seriam extintas as sub-regiões de saúde, sendo
que as ARS [Administrações Regionais de Saúde] lhes sucederiam nas atribuições,
sem prejuízo das que fossem atribuídas aos ACes. Estes beneficiariam de
autonomia administrativa para proceder à decisão e implementação de soluções
adaptadas aos recursos disponíveis e às necessidades específicas das populações
que servem.
A finalidade dos ACeS é a de garantir a prestação de CSP à população de uma
área geográfica definida, procurando manter os princípios de equidade e
solidariedade, de modo a que todos os grupos populacionais partilhem igualmente
dos avanços científicos e tecnológicos, postos ao serviço da saúde e do bem-
estar da comunidade.
Todavia, a ausência de autonomia de gestão, pela não realização da
descentralização para o nível local, é a principal transformação estruturante
da reforma dos CSP que falta implementar. E não obstante, esta é fundamental
para dar estabilidade à organização da prestação de cuidados de saúde,
permitindo uma gestão rigorosa e equilibrada dos recursos existentes, o que se
torna imperativo no atual contexto de austeridade.
A descentralização para os ACeS foi um das medidas preconizadas nas "Linhas de
Ação Prioritária para o Desenvolvimento dos Cuidados de Saúde Primários", de
2006, que consistia na atribuição de autonomia aos AceS. Este processo deveria
ser gradual e estar concluído num prazo máximo de 3 anos. No entanto, no
segundo trimestre de 2012, a autonomia parece não ter sido ainda efetivamente
consolidada.
Existem exemplos de experiências internacionais e fundamentos legais para a
descentralização da gestão. Estão previstos e disponíveis os instrumentos de
monitorização e avaliação de resultados. A evidência internacional parece
demonstrar que os modelos de gestão dos CSP estão diretamente relacionados com
o cumprimento dos objetivos da prestação de cuidados de saúde de qualidade.
Os ACeS completam agora três anos de existência.
Qual foi o balanço desta experiência? Porque não foi possível realizar a
decentralização anunciada? Que alternativas realistas existem no atual contexto
português para a evolução dos ACeS? Para quando esta análise e o debate que
seguramente merecerá?
Estas questões são particularmente relevantes, tendo em conta o trajeto
histórico da reforma e a sua natureza, essencialmente no que diz respeito a
dois aspetos.
O primeiro tem a ver com o facto de a principal força propulsora desta reforma
terem sido as lideranças profissionais no terreno (esta é talvez a sua
principal originalidade) ' afastar as decisões sobre a gestão das organizações
dos CSP dessas lideranças não será certamente uma das melhores formas de dar
continuidade a esta reforma.
O segundo aspeto a considerar é o que se relaciona com a importância de um
consenso alargado na sociedade portuguesa sobre a evolução da reforma dos CSP '
foi possivelmente a existência dessa base social de apoio que permitiu ter-se
chegado até aqui.
Qualquer alteração organizacional a implementar não poderá verificar-se se não
existir consenso e se não se concretizar em melhorias relativamente à situação
que lhe deu origem e sempre sem colocar em causa aqueles que foram os objetivos
da reforma iniciada em 2005 e que se baseiam, essencialmente, na (i)
necessidade da existência de cuidados de saúde de qualidade para todos os
cidadãos, na (ii) recompensa pelas boas práticas profissionais e na (iii)
eficiência e sustentabilidade do sistema de saúde.
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