Uso de cenários estratégicos para planeamento de recursos humanos em saúde: o
caso dos farmacêuticos comunitários em Portugal 2010-2020
Introdução
O planeamento estratégico é basilar em saúde pública, revestindo-se de especial
importância para o planeamento de recursos humanos, a avaliação da eficiência,
a qualidade dos serviços e a pesquisa de soluções inovadoras para problemas de
saúde e do sistema de saúde1,2,3. O planeamento estratégico devidamente
utilizado é uma importante ferramenta de gestão4. É o processo que determina o
que uma organização quer ser no futuro, e como vai fazer para chegar lá. É por
isso muito mais determinista em comparação com o pensamento estratégico que, em
contraste com o planeamento, envolve intuição e criatividade5. Um plano
estratégico deve ajudar uma organização a lidar com as contingências que surgem
num ambiente dinâmico como o dos cuidados de saúde e ajudar a estabelecer um
posicionamento para o sucesso a longo prazo, sendo particularmente útil para as
organizações de saúde quando têm de lidar com as alterações no padrão de
prestação de cuidados1,6.
Os recursos humanos em saúde são um dos pilares essenciais de um sistema de
saúde, sendo neste momento o foco de atenção para o reforço desses mesmos
sistemas2,7. O planeamento de recursos humanos em saúde pretende assegurar que
o número e o tipo adequado de profissionais de saúde estão disponíveis para
prestar o tipo certo de serviços com a maior eficiência possível6. A crescente
importância dada ao papel desempenhado pelos profissionais de saúde coloca-os
numa posição de destaque na definição de políticas de saúde pelos diferentes
agentes de saúde pública a nível global2,8.
Uma das questões que deve ser tida em conta no planeamento dos recursos humanos
da saúde é o ambiente no qual têm de exercer. Estes profissionais enfrentam
hoje em dia um ambiente caracterizado por uma crescente inovação tecnológica,
com tendência em focar os cuidados de saúde no doente, e maior capacitação do
utente em questões de saúde. No caso particular dos farmacêuticos, a falta e o
custo mais elevado de profissionais médicos, o ambiente económico e político e
a presente reforma dos cuidados de saúde primários (CSP), contribui para neste
momento existir uma oportunidade para reflectir sobre o papel que o
farmacêutico comunitário pode ter no sistema de saúde. Vivendo-se um contexto
de incerteza, em que é difícil fazer previsões, é necessário analisar o
problema do futuro do farmacêutico comunitário português com base numa visão
estratégica, permitindo observar várias alternativas, mesmo as que à partida
pareçam menos prováveis. Em tais condições pode-se recorrer ao método de
«Análise de Cenários Prospetivos», uma das ferramentas ao dispor dos policy-
makers na fase de pensamento estratégico aquando da elaboração do planeamento a
longo-prazo. A análise de cenários é uma ferramenta de grande utilidade na
planificação de recursos humanos, utilizando um método misto, que enquadra
técnicas qualitativas e quantitativas.
O objetivo da análise de cenários não é prever ou escrever o futuro, mas sim
melhorar a compreensão do ambiente no qual a organização está inserida e usar
essa compreensão para apoiar a tomada de decisão, tanto no presente como no
futuro5,9,10. A organização pode determinar os objetivos que quer alcançar,
usando a combinação dos cenários para apoiar a realização do plano estratégico,
antecipando condicionantes e obtendo pistas sobre o seu posicionamento9. Esta
metodologia tem sido usada para a pesquisa de futuros de organizações e mesmo
de grupos profissionais como os farmacêuticos11,12.
Antes de iniciarmos a utilização deste método, recolhemos algumas questões
relevantes sobre a atividade destes profissionais, como o apoio ao
desenvolvimento dos cenários. Por exemplo, se nada se alterar, haverá ainda a
necessidade de um farmacêutico comunitário no futuro?; será possível encontrar
outro papel para o farmacêutico dentro do sistema de saúde?; de que forma pode
o farmacêutico ser integrado a participar mais na rede dos CSP?; o que pode
acontecer a um grande número de jovens profissionais qualificados, num mercado
cada vez mais saturado?
Para conferir maior objetividade a este processo, definimos como nossos
objetivos: analisar a evolução do futuro papel do farmacêutico comunitário em
Portugal, mediante a elaboração de 3 cenários alternativos, tendo em conta as
possibilidades de participação do futuro farmacêutico comunitário dentro do
sistema de saúde em Portugal, sobretudo dentro da rede de CSP; identificar as
forças motrizes de mudança e definir indicadores que assinalem as tendências
futuras, a fim de ajudar ao processo de tomada de decisão para o planeamento de
recursos humanos.
Evolução do papel do farmacêutico comunitário no sistema de saúde
No início do século xx, o farmacêutico comunitário ou de oficina, era
responsável pela disponibilização, preparação e avaliação de fármacos que eram
utilizados no tratamento de diversas enfermidades. A sua principal obrigação
era avaliar se os produtos que vendia eram puros e devidamente preparados,
embora o aconselhamento sobre medicamentos e questões de saúde já fosse uma
atividade expressiva. Este papel de preparador e avaliador de fármacos começou
a desaparecer, sobretudo nos países mais industrializados, entre 1930 e 197013,
com a diminuição da necessidade de preparação de medicamentos magistrais, à
medida que cada vez mais formas farmacêuticas iam sendo produzidas
industrialmente.
Para acompanhar a inovação e o desenvolvimento das novas tecnologias ocorreram,
nestas últimas 4 décadas, mudanças de práticas nas farmácias, afastando-se
estas gradualmente do seu objetivo original de apenas providenciar medicamentos
à população, passando também a estar mais atentas ao doente, com prestação de
cuidados especializados e com disponibilização de informação14. A atenção
centrada no doente resultou na promulgação dos princípios da prática clínica,
serviços de informação e dos serviços farmacêuticos enquanto novo paradigma da
prática farmacêutica14,15. Estes traduzem-se em valor para os profissionais mas
também para o sistema de saúde, não só pelas potenciais poupanças que geram mas
também pelo potencial que apresentam em termos de melhoria da eficiência do
sistema de saúde16,17. Para além da dispensa de produtos farmacêuticos, os
serviços farmacêuticos podem incluir a informação, a educação e a comunicação
para promover a saúde pública, a disponibilização de informação sobre
medicamentos e aconselhamento, os serviços regulamentares e educação e a
formação de equipas18. No contexto da farmácia comunitária, os serviços
farmacêuticos também passaram a incluir outro tipo de serviços, tais como as
medições de parâmetros bioquímicos (glicemia, uricemia, colesterolemia, etc.),
as medições de tensão arterial, a determinação de índice de massa corporal, os
programas de gestão de doença, entre outros13,19.
Na perspetiva de um sistema de saúde onde existe carência de médicos e
enfermeiros nos CSP, a utilização do farmacêutico comunitário para prestação de
cuidados, particularmente para a monitorização terapêutica de doentes crónicos,
pode ajudar a minimizar o impacto desta situação. Os farmacêuticos comunitários
têm uma posição privilegiada dentro do sistema de saúde, pela sua
acessibilidade à população20,21. A sua formação permite-lhe atuar ao nível da
prevenção da doença e na recomendação e monitorização da terapêutica para
alcançar os efeitos clínicos desejados e diminuir os efeitos adversos.
Atualmente, os farmacêuticos comunitários exercem a sua atividade num ambiente
onde não é fácil acompanhar os últimos desenvolvimentos tecnológicos, onde os
utentes estão cada vez mais e melhor informados, recorrendo com frequência à
Internet antes de irem ao médico ou consultarem um farmacêutico22. Ao mesmo
tempo, tanto a venda a retalho como a dispensa de medicamentos a nível
hospitalar começam já a procurar novas formas de dispensa que não necessitem do
envolvimento de um profissional caro como o farmacêutico14. Entre as inovações
que visam diminuir esse envolvimento surge a prescrição eletrónica, sistemas de
suporte à decisão clínica, certificação de técnicos, robotização e diversas
aplicações de telefarmácia, incluindo supervisão farmacêutica à distância15,23.
A evolução do papel do farmacêutico comunitário está a ocorrer a um ritmo
lento, influenciada por inúmeros fatores externos e por barreiras que os
próprios profissionais apresentam (Figura_1). Fatores como a pressão exercida
pelas alterações demográficas, a prevalência de doenças, as expectativas dos
doentes, os avanços tecnológicos e o aumento dos custos têm motivado uma
mudança para os cuidados preventivos, onde os medicamentos têm um papel
essencial, assim como conceitos como a qualidade, a segurança,a abordagem
multidisciplinar, e a relação custo-eficácia24.
No entanto, existem resistências à intervenção do farmacêutico para lá da
dispensa de medicamentos. Um dos fatores que contribui para essa resistência é
o dilema em que o farmacêutico comunitário vive, entre o negócio e o
profissionalismo, entre os cuidados informais e profissionais13. O farmacêutico
comunitário é, aparentemente, o profissional de saúde cujo vencimento está mais
dependente da venda de um produto, o que leva a que os farmacêuticos
comunitários sejam vistos de forma ambígua pela população e por outros
profissionais de saúde, mantendo simultaneamente uma imagem de comerciante e
profissional de saúde25,26,27. Além disso, o facto de a aquisição das novas
competências ter sido feita de forma muito heterogénea, com a maioria dos
farmacêuticos comunitários ainda a limitar as suas atividades à dispensa de
medicamentos, não contribuiu para que esta imagem melhorasse15.
O farmacêutico comunitário português
Em Portugal, o farmacêutico comunitário é um membro da ordem dos farmacêuticos
(OF) que exerce a sua atividade profissional nas farmácias comunitárias, também
designadas de farmácias de oficina28.
Cerca de 2/3 dos farmacêuticos exercem a sua atividade no setor da farmácia
comunitária29. No final de 2009 existiam 7 178 farmacêuticos comunitários30.
Destes, cerca de 65% têm idade inferior a 45 anos, e 80% são do sexo
feminino31. O rácio de farmacêutico por farmácia é já superior a 2 desde
200530, tendo cada farmácia, em média, 6 trabalhadores31. O número de
farmacêuticos a exercer a sua atividade em farmácia comunitária aumentou 74%
entre 2000 e 200930,32, numa média de 340 novos profissionais por ano. Este
aumento pode ser explicado pelo aumento de novos diplomados na última década,
fruto da abertura de novos cursos de ciências farmacêuticas em diversas
universidades. Entre 2000 e 2007 houve um aumento de 43% no número de
diplomados33, numa média anual neste período de 702 novos diplomados.
Atualmente, 9 universidades oferecem o curso de mestrado integrado em ciências
farmacêuticas, essencial para o acesso à profissão. No total ingressaram neste
curso em 2010 cerca de 1 114 alunos, um aumento de 6,5% em relação aos
ingressos de 200834.
Uma das consequências do aumento de profissionais foi a maior distribuição
destes profissionais pelo território, tendo o número de farmacêuticos
comunitários por 100 000 habitantes aumentado 67%, existindo hoje
aproximadamente 68 farmacêuticos comunitários por 100 000 habitantes30,32,33.
Esta distribuição demonstra que a legislação relativa à instalação de farmácias
comunitárias proporcionou uma distribuição homogénea das farmácias pelo país, o
que obviamente levou a que exista também uma distribuição homogénea de
farmacêuticos comunitários35. Neste indicador, Portugal tem um melhor resultado
do que a média dos países da OCDE, estando acima de países como a Holanda, o
Reino Unido ou a Alemanha mas ainda distante de Espanha ou de França36.
A fonte principal de remuneração dos farmacêuticos comunitários faz-se a partir
das margens de lucro fixadas pelo governo para os medicamentos de prescrição
obrigatória. Após diversas alterações, as margens atualmente em vigor,
definidas no Decreto-Lei 112/2011, são calculadas com base no preço de venda ao
armazenista (PVA) acrescidos de uma taxa, podendo variar entre os 27,9% sem
sobretaxa para medicamentos com PVA inferior a 5 euros, até a uma taxa fixa de
10,35 euros para medicamentos de PVA superior a 50 euros. Estes medicamentos
representavam em 2009, 83% em volume e 93% em valor do mercado de medicamentos
no ambulatório37. A maioria dos medicamentos de prescrição é comparticipada
pelo Estado, tendo este sido responsável em média por cerca de 70% do PVP final
destes medicamentos até 200930,32.
Além das margens de lucro sobre os medicamentos e outros produtos, a
remuneração sobre serviços farmacêuticos constituiu-se recentemente como mais
uma fonte alternativa de remuneração para as farmácias e farmacêuticos. Na
ausência de regulação específica em Portugal, as farmácias foram implementando
serviços com o respetivo aconselhamento ao longo dos últimos 20 anos19. Foram
também desenhados programas para irem ao encontro de necessidades específicas
da comunidade, como a recolha de embalagens e de medicamentos usados, um
programa de troca de seringas, de toma direta observada de metadona, e
programas de cuidados farmacêuticos e de gestão de terapêutica, conseguindo a
sustentabilidade dessa política com o apoio da Associação Nacional das
Farmácias (ANF)19. Estes serviços prestados nas farmácias, são pagos pelos
utentes, com exceção dos serviços gratuitos (ex. toma observada de metadona) e
do programa de cuidados farmacêuticos na diabetes, que foi pago a 75% pelo
Estado português38. Em novembro de 2006, 262 farmácias tinham implementado este
programa, seguindo 1 941 doentes, em média cerca de 7 doentes por farmácia19.
Este programa já não se encontra em vigor, mas em outubro de 2009, 2 meses
antes de o programa terminar, 405 farmácias tinham implementado o programa da
diabetes seguindo em média 3 doentes39.
Em Portugal existiam em 2010, 2 803 farmácias distribuídas pelo território
segundo os critérios de capitação e de distância definidos em decreto-lei. O
número de farmácias aumentou desde o início da década passada, traduzindo-se
num aumento de 9,5% em 10 anos, ou 24 novas farmácias em média por ano33.
Verifica-se que o crescimento do número de farmácias não acompanhou o
crescimento do número de profissionais que se verifica desde os finais dos anos
90. Até agora, os novos farmacêuticos têm sido absorvidos pelas farmácias
existentes, com o número de farmacêuticos por farmácia a aumentar em 60% desde
200030. Com o número de farmacêuticos por farmácia a aproximar-se dos 3 e com
as dificuldades financeiras que algumas farmácias atravessam40,41, é natural
que se reduzam as contratações de novos farmacêuticos, o que poderá logicamente
levar a um aumento do desemprego entre os farmacêuticos.
Com todas as alterações que tem enfrentado ultimamente, e perante a atual
situação de saturação do mercado, o farmacêutico comunitário português
encontra-se num limbo onde começa a ver a sua função a perder importância,
sendo crucial que possa encontrar a melhor forma de fazer a transição para o
seu novo papel como prestador de cuidados de saúde.
Métodos
Para se construir os cenários para o futuro do farmacêutico comunitário
português, usou-se o método proposto por Lapão42, que condensa os 10 passos do
procedimento descrito por Schoemaker10 em 3 fases, nas quais o envolvimento de
uma equipa de cenarização é fundamental. As 2 primeiras fases decorreram em 2
workshops temáticos que decorreram em 2 dias diferentes, com uma duração máxima
de 3 h: o primeiro é um workshop de contextualização da análise de cenários
para o problema em estudo, seguindo de um segundo workshop para a seleção e
validação dos primeiros cenários, para na terceira fase se desenvolverem e
analisarem os cenários finais. Os critérios para a escolha da equipa foram
baseados na experiência profissional e académica, sendo o painel composto por 6
farmacêuticos (3 doutores em Farmácia com funções docentes e de investigação,
um mestre em Saúde Pública e coproprietário de farmácia, um especialista em
Farmácia Comunitária e um diretor executivo de agrupamento de centros de
saúde), um gestor especialista em avaliação de fármacos e um especialista de
cenarização, doutor em Engenharia de Sistemas e Informática Médica. Nenhum dos
farmacêuticos exerce atualmente funções em organizações representantes dos
profissionais, pelo que considerámos não haver conflitos de interesse
relevantes para este trabalho.
O procedimento inicia-se com a definição de um período de tempo para o qual se
querem imaginar os diversos cenários, e com a identificação das principais
forças de mudança que afetam o mundo e o país que terão impacto na questão em
estudo. A escolha do período de tempo mais adequado depende de diversos
fatores, tais como a evolução tecnológica ou o período político10. Escolheu-se
para este trabalho um período de 10 anos porque permite pensar em mais
alternativas para o futuro do farmacêutico comunitário, sendo suficientemente
curto para certos elementos predeterminados como os elementos demográficos,
conferindo alguma previsibilidade neste factor, enquanto incertezas críticas
como a evolução tecnológica ou o ambiente político tenderão a evoluir mais
rápida e imprevisivelmente durante este período.
Para preparar as sessões de cenarização, foi previamente efetuada uma revisão
da literatura, com o objetivo de identificar as principais incertezas críticas
e forças de mudança, que proporcionou mais de 100 artigos sobre o papel do
farmacêutico comunitário e as tendências futuras. As análises quantitativas dos
números de profissionais tiveram por base os relatórios «Estatística do
medicamento», disponibilizados regularmente pelo INFARMED30,32, assim como
dados consultados nos sítios da internet da OF e da ANF29,31.
Todos estes fatores foram explorados em equipa no decorrer dos workshops, de
modo a determinar quais serão as «forças motrizes», ou seja, quais os fatores
críticos que mais poderão moldar o futuro do farmacêutico comunitário. São as
diferentes combinações destas forças que originam diversas histórias do futuro.
O primeiro workshop iniciou-se com um pequeno seminário de forma a introduzir
as ideias da análise prospetiva de cenários, tal como recomendado por Godet5,
permitindo aos participantes dos workshops tornarem-se mais familiarizados com
o conceito e as ferramentas deste tipo de análise. Ambos os workshops foram
gravados para permitir posterior análise de conteúdo, de modo a melhor detalhar
os resultados obtidos.
Aplicando este método conseguiu-se, na primeira fase, fazer um ponto da
situação do farmacêutico comunitário em Portugal, identificando as principais
tendências, os principais atores-chave (stakeholders) e as principais
incertezas, e fatores críticos com possível impacto no papel do farmacêutico
comunitário. Para iniciar essa definição, as principais incertezas e fatores
críticos são condensados em 2 incertezas críticas: as «forças motrizes» (ou
driving forces) dos cenários43. Estas forças motrizes representam os fatores
mais significativos que poderão influenciar o papel do farmacêutico comunitário
em Portugal, e é partir deles que se começam a desenhar os primeiros cenários.
Na segunda fase, concebeu-se um papel para o farmacêutico comunitário em cada
um dos cenários, construídos estrategicamente em torno das «forças motrizes»,
testando a consistência e a plausibilidade dos primeiros cenários.
Numa terceira fase, já só com a participação dos autores deste estudo,
trabalhou-se o material recolhido para caracterizar cada um dos cenários,
fazendo-se evoluir os cenários encontrados nas fases anteriores para possíveis
cenários de decisão, e identificando pontos-chave, mais sensíveis, que poderão
influenciar a tomada de decisão dos diferentes actores-chave envolvidos. Para
tal, construiu-se uma narrativa e definiram-se indicadores para fazer a
monitorização e, se necessário, a atualização dos cenários. É nesta fase que se
consegue determinar e identificar mais facilmente as necessidades de futuras
investigações para amenizar as incertezas encontradas10.
Este estudo foi efetuado de acordo com as normas e código de ética em
investigação de serviços de saúde do Instituto de Higiene e Medicina Tropical,
Universidade Nova de Lisboa. O protocolo do estudo foi aprovado pelo comité de
ética deste Instituto (Parecer n.°: 7-2012-PN). Parte deste estudo tem sido
financiando pelo projeto «ePharmaCare» da Fundação para a Ciência e Tecnologia
(PTDC/CCI-CIN/122690/2010).
Resultados
No decurso dos workshops de cenarização, foram abordados e debatidos temas que
poderão influenciar de forma significativa o papel do farmacêutico comunitário
no sistema de saúde português, com o objetivo de identificar incertezas
críticas e as respetivas «forças motrizes». No primeiro workshop foram
debatidos os fatores externos e internos bem como as tendências atuais
(mercado, número de farmacêuticos, etc.) levando os participantes a partilharem
as suas perceções sobre a posição do farmacêutico comunitário no sistema de
saúde em Portugal. Desta forma, encontrou-se o conjunto de fatores que mais
poderão contribuir para afetar a mudança do papel do farmacêutico comunitário
em Portugal e que de seguida se descrevem, tal como foram discutidos nos
workshops. Na Tabela_1, apresentamos, de forma sucinta, todos os fatores que
foram enunciados.
Serviços farmacêuticos
Os serviços farmacêuticos surgiram como tema central nos workshops de
cenarização, tendo mesmo sido considerados o motor do desenvolvimento e
satisfação profissional e do potencial de diferenciação entre farmácias.
Assumem assim uma importância crescente, especialmente, desde a publicação do
Decreto-Lei 307/2007. A constatação de que todas as farmácias têm os mesmos
produtos levou os especialistas a concluir que, no futuro, a diferenciação
entre farmácias poderá ser feita pelo tipo de serviços prestados. A tendência
poderá passar por serviços mais sofisticados e que sejam remunerados. Ao
valorizarem-se os serviços, pretende-se que estes sirvam de âncora, tendo como
objetivo a fidelização dos utentes, mas sobretudo acrescentar valor à prestação
do farmacêutico.
A ideia do «centro comercial da saúde» emergiu na discussão como um cenário
plausível, mas que poderá acentuar o dilema da inconsistência de serviços entre
farmácias, verificada entre as farmácias que preferem a diferenciação pelos
serviços em detrimento da prática de descontos. Dentro deste tema, discutiu-se
a possibilidade de outros profissionais de saúde prestarem os seus serviços nas
farmácias ao mesmo tempo que os próprios farmacêuticos prestam os seus serviços
inovadores (como a consulta farmacêutica).
Para que o alargamento dos serviços farmacêuticos a todas as farmácias seja
exequível, poderão ser necessários incentivos às farmácias. Na perceção dos
especialistas, as farmácias não vão oferecer serviços que não sejam
sustentáveis economicamente. No entanto, mesmo estes podem não ser disseminados
tão rapidamente. O exemplo do «Programa de Cuidados Farmacêuticos da Diabetes»,
com a diminuição do número médio de doentes seguidos por farmácia, demonstra
que pode não ser suficiente remunerar determinado serviço para que este seja
aceite pelas farmácias, além de que a predisposição dos utentes para o pagar
pode também ser um entrave à disseminação desse serviço.
Ambiente económico/situação financeira das farmácias
As farmácias são pequenas empresas privadas cuja atividade e rendimento estão
dependentes das margens estipuladas pelo governo para os medicamentos
comparticipados, da venda de medicamentos não sujeitos a receita médica (MNSRM)
e da venda de outros serviços. Para os especialistas, a situação financeira das
farmácias bem como o ambiente económico em Portugal terão impacto no papel que
o farmacêutico comunitário poderá desempenhar. Com a pressão que existe sobre o
preço dos medicamentos, fruto da conjuntura económica atual, é provável que se
continue a verificar a diminuição das margens de comercialização, asfixiando
financeiramente as farmácias.
No final da discussão deste tema, ficou a perceção de que quanto mais o negócio
for estrangulado, mais o ato clínico pode ter tendência a desaparecer, no que
será um balanço difícil de fazer, pelo que as farmácias devem procurar outras
fontes de financiamento. Estas passariam por vender mais produtos ou cobrar
mais serviços. Outra sugestão apresentada foi que a constante redução das
margens pode levar ao desaparecimento dos fornecedores grossistas, permitindo
que se reforcem as margens da indústria e das farmácias. No futuro poderão
ocorrer mudanças, potenciadas pelas sucessivas reduções de preços, o que poderá
trazer ao farmacêutico novos desafios a nível de gestão. Os especialistas
concordaram que os agrupamentos de farmácias que vêm surgindo já podem ser um
sinal dessa tendência de facilitação da gestão.
Vontade política
Em torno dos temas discutidos, surgiu recorrentemente o tema da vontade
política do governo em funções como um dos fatores com mais importância para o
papel que o farmacêutico comunitário pode desempenhar. A vontade política é
necessária à introdução de medidas que alterem a legislação vigente no setor da
farmácia, dependendo de inúmeros fatores, tais como as pressões de grupos
económicos, grupos profissionais ou a relação do partido de governo com os
principais atores-chave do setor, nomeadamente com a ANF. Além disso, a noção
de que pode começar a haver desemprego para os farmacêuticos dentro pouco
tempo, gerando mais instabilidade, levou os especialistas a considerar que uma
intervenção governamental neste setor será inevitável.
No entanto, o entendimento dos especialistas é que as recentes alterações
legislativas têm sido impulsionadas por pressões económicas, como se tem
verificado nos últimos anos em Portugal, com a liberalização da propriedade de
farmácia, a possibilidade de venda de medicamentos fora das farmácias e com as
sucessivas diminuições das margens de lucro, com o objetivo declarado pelos
vários governos de diminuir o peso do custo com medicamentos no orçamento de
Estado. Com as crescentes dificuldades orçamentais, é possível que ocorra uma
intervenção governativa no setor da saúde, não sendo as farmácias exceção. Pode
haver, nesta situação, uma tendência para a verticalização do setor tal como a
já verificada em alguns países, com propriedade e abertura liberalizada. As
crescentes dificuldades de financiamento do SNS podem também levar a alterações
mais ou menos profundas do sistema, não só na forma de financiamento, mas
também na forma de funcionamento e prestação de serviços.
Utentes
O comportamento dos utentes é um fator determinante pois as suas necessidades e
perceções podem influenciar a procura de serviços mais do que a procura de
medicamentos, dada esta ser uma procura que é induzida.
O entendimento dos especialistas é que os sucessivos aumentos do copagamento
dos medicamentos podem influenciar o público, levando-o a procurar as farmácias
com os preços mais baixos, independentemente dos serviços oferecidos, ou ainda
pressionando o governo para redução de margens de lucro e do preço dos
medicamentos nas farmácias. Na dimensão da participação dos utentes no processo
de tratamento, o entendimento é que a baixa literacia em saúde ainda é algo
prevalente em Portugal. A baixa literacia pode assim contribuir para travar a
extinção das farmácias no futuro mais próximo. Em relação à literacia
tecnológica, apesar de as primeiras experiências de venda de medicamentos pelas
farmácias na Internet não serem positivas, a perceção de que os portugueses
aderem com facilidade às novas tecnologias deixa no ar a possibilidade de no
futuro esta vir a ser uma área importante, com impacto na procura de
medicamentos e serviços.
Papel das organizações profissionais
Na opinião dos especialistas no primeiro workshop, as farmácias e os
farmacêuticos comunitários, apesar de interligados, são entidades distintas e
podem naturalmente ser independentes. A carreira de farmacêutico não necessita
de estar ligada à sobrevivência das farmácias, mas sim ao desenvolvimento do
profissional. Este desenvolvimento tem sido fomentado pela formação contínua
obrigatória, instituída nos estatutos da Ordem dos Farmacêuticos. Foi
igualmente abordada a necessidade de uma carreira farmacêutica, dado que os
farmacêuticos comunitários não têm evolução na carreira, pelo que o sítio onde
trabalham (urbano vs. rural) é o que acaba por influenciar o desenvolvimento
das suas capacidades.
Para os especialistas, as 2 entidades mais representativas do setor (ANF e OF)
poderão desempenhar um papel fundamental na definição do farmacêutico futuro,
apesar do previsível crescente antagonismo, tendo em conta que a maioria dos
associados da Ordem já não é proprietária de farmácia. Os especialistas
consideram que deve ser a Ordem o principal parceiro para as futuras
negociações com o SNS e não a ANF. No entanto, a perceção de que «o poder
económico é que manda», em referência à ANF, levou a conjeturar que será este o
principal player a ter em conta dentro das associações profissionais. A ANF
defende os interesses das farmácias, tendo nas últimas décadas favorecido o
movimento de um serviço centrado no medicamento para um serviço centrado nos
utentes, isto é, a ANF tem prestado maior atenção aos aspetos relacionados com
a prestação dos serviços farmacêuticos cognitivos em detrimento da dispensa de
medicamentos. Os especialistas consideraram que este movimento foi positivo
para os profissionais, constatando-se que grande parte do que tem sido feito
pela profissão foi obra da ANF, desde o desenvolvimento de software e a ajuda à
informatização das farmácias, o desenvolvimento de serviços e a aposta em
programas como a troca de seringas, a terapêutica de substituição com metadona
e os programas de cuidados farmacêuticos.
Cuidados de saúde primários
O tema dos CSP emerge no contexto da presente reforma e no impacto que esta
terá no mercado das farmácias e no papel que o farmacêutico comunitário poderá
vir a desempenhar. Com a evolução dos CSP, existe uma tendência para a
harmonização dos procedimentos clínicos, o que pode ter impacto na gestão das
farmácias. Além disso, pode também haver uma maior influência da prescrição
hospitalar na prescrição dos CSP.
Durante o debate emergiram algumas ideias, dentro deste quadro, onde o
farmacêutico comunitário pudesse desempenhar um papel ativo dentro das unidades
de cuidados continuados (UCC). O farmacêutico poderia fazer uma gestão
integrada dos doentes, estando presente nas unidades de saúde familiar (USF),
havendo, ou não, ligação com as farmácias. Pode haver uma equipa de
farmacêuticos, que pode fazer a distribuição e entrega, com a intenção de
poupar custos. Para o farmacêutico comunitário poder integrar, de facto, a rede
dos CSP, além das alterações legislativas foi identificada a necessidade de
melhorar os hábitos de trabalho em equipa entre os profissionais de saúde
envolvidos, nomeadamente, com os médicos e os enfermeiros, sendo que esta
relação é influenciada por diversos fatores, como o lobbying, o ambiente de
confiança e os fatores culturais.
Desenvolvimento dos cenários
Decisão de incertezas críticas e escolha dos cenários
A identificação das incertezas críticas que serão as forças motrizes da mudança
passou por questionar os especialistas no primeiro workshop sobre quais os 2
fatores, entre os discutidos, que consideravam mais importantes para o futuro
do farmacêutico comunitário. Da votação emergiram como principais incertezas
críticas a organização/liberalização do SNS, a situação financeira das
farmácias, o tipo de utente, a vontade política e o desenvolvimento e inovação
tecnológica.
Considerámos que os fatores «vontade política» «organização/liberalização do
SNS», e «ambiente económico» iriam definir uma das forças motrizes que
designámos «Ambiente Legislativo». Este reflete a maior ou menor tendência para
a liberalização do sistema de saúde e mercado das farmácias. Este eixo reflete
também a situação económica do país, pois esta tem sido o motor para as
alterações legislativas que poderão alterar a forma de financiamento e de
funcionamento do SNS. A vontade política e as atitudes do governo então em
funções serão determinantes no modelo de financiamento que estará em vigor no
futuro. Assim, considerámos como extremos deste primeiro eixo um extremo onde o
ambiente macroeconómico está menos liberalizado, com poucas alterações
legislativas relativamente às atuais regras do setor; e um outro extremo em que
são introduzidas alterações no sentido de liberalizar a abertura e propriedade
das farmácias, e também o próprio SNS.
Esta decisão é suportada no facto de que a alteração legislativa que pode
produzir mais efeitos no mercado das farmácias é a liberalização de propriedade
e a instalação destes estabelecimentos, devido a uma diminuição da
regulamentação44,45,46. Em Portugal, a posição da Autoridade da Concorrência
sobre esta matéria, baseada no estudo efetuado por Rodrigues et al.44, tem sido
a base das justificações políticas para as recentes alterações na
regulamentação. Nesse estudo, considera-se que as restrições à propriedade de
farmácias estão a restringir a «bolsa de talento», condicionando a inovação, o
que cria entraves ao surgimento de novas soluções que pudessem ser do agrado
dos consumidores, gerando uma potencial perda de eficiência. No entanto,
relativamente à liberdade de instalação, as evidências apontam que a atual
legislação é a que melhor garante a equidade de acesso45,46. A escolha da
melhor solução para a instalação de farmácias parece residir num equilíbrio
entre assegurar a equidade de acesso e melhorar a eficiência enquanto mantêm um
elevado nível de serviços47.
Em Portugal, tanto a ANF como a OF, têm defendido o modelo atual, em defesa da
independência das farmácias e dos farmacêuticos. Advogam que só o modelo de
unicidade entre propriedade e direção-técnica permite que a dispensa de
medicamentos seja feita com independência, sem pressões externas e com
qualidade, apesar de não existirem evidências que suportem esse facto45,48.
Assegurando a presença de um farmacêutico na farmácia, assegura-se a qualidade
da dispensa e prestação de serviços, pois este está sujeito ao cumprimento de
um código deontológico que ajuda a proteger a sua atividade enquanto
profissional de saúde independente, tendo o doente como foco principal dos seus
cuidados49.
Para definir a segunda força motriz, considerámos os fatores «situação
financeira das farmácias», «tipo de utente» e «desenvolvimento tecnológico»
como os que terão maior impacto no papel dos farmacêuticos comunitários,
podendo potenciar diferenciação entre farmácias. Essa diferenciação poderá ser
concretizada pela criação de serviços farmacêuticos. Assim designámos a segunda
força motriz de «capacidade de inovação de serviços». Esta «capacidade»
dependerá simultaneamente, da situação financeira das farmácias, da contínua e
rápida evolução tecnológica e da maior ou menor procura desses serviços pelos
utentes, caracterizados por um crescente envelhecimento, com maior prevalência
de doenças crónicas, mas também com uma crescente capacitação a nível de
informação e tecnologias. Como extremos deste eixo definiu-se um estado de
pouco desenvolvimento e inovação de serviços, por ausência de incentivos, de
procura e de condições financeiras das farmácias e no outro extremo, uma maior
procura e aposta na inovação e no desenvolvimento da prestação de serviços,
devido à necessidade de as farmácias se diferenciarem para aumentarem a
captação de clientes e assim a sua faturação. É certo que a existência de
serviços farmacêuticos diferenciados só se justificará se houver procura. Esta
procura pode ser induzida, tal como o é a procura por medicamentos, mas no caso
dos serviços farmacêuticos diferenciados, a barreira constituída pela imagem
dupla do farmacêutico que existe na opinião pública será uma das que tem de ser
vencida14,27,50. Também a atitude dos farmacêuticos perante a mudança será um
fator a ter em conta. Roberts et al.51 constatam, num estudo efetuado com
farmacêuticos australianos, a importância da motivação para a mudança.
Reconhecer a existência destas motivações e valores pessoais dos farmacêuticos
poderá ser importante para o sucesso de uma farmácia na implementação de
serviços farmacêuticos diferenciados, de forma sustentada.
Na ótica dos proprietários de farmácia, o interesse nos serviços farmacêuticos
só será aprofundado se estes se revelarem uma mais-valia em termos económicos
para a farmácia. Uma remuneração adequada pelos serviços farmacêuticos
prestados será essencial para assegurar que mais profissionais adotem esta nova
filosofia de trabalho45,51. Contudo, a falta de rigor da larga maioria dos
estudos já efetuados, sobretudo no que concerne à avaliação económica,
constitui um sério obstáculo para que estes sejam remunerados pelos
financiadores dos diferentes sistemas de saúde52. Havendo demonstração das
mais-valias económicas que os serviços farmacêuticos diferenciados trazem, cabe
aos farmacêuticos assegurar que o nível de desenvolvimento e inovação é
uniforme, precisando igualmente de mostrar aos consumidores o valor desses
serviços, contribuindo assim para a equidade do sistema de saúde. Com esta
base, será natural que os proprietários de farmácias antevejam nos serviços
farmacêuticos uma fonte de receitas a não menosprezar, principalmente num
contexto de dificuldades económicas53.
Com as forças motrizes dos cenários definidas, podem construir-se os cenários
finais (Figura_2), que de seguida se descrevem. Estas descrições constituem
histórias do futuro, hipóteses para o futuro da farmácia e do farmacêutico
comunitário, discutindo-se posteriormente as implicações nos profissionais e no
sistema de saúde. A escolha dos nomes para os cenários finais reveste-se de
especial importância, sendo crucial serem nomes marcantes para serem mais
fáceis de recordar. A escolha do inglês para nomear os cenários prende-se com o
facto de a tradução certa para alguns dos termos utilizados retirar impacto ao
nome do cenário.
Cenário I ' «Pharmacy-mall»
Neste cenário, considera-se como premissa que na sequência de alterações
económicas e legislativas ocorreu a liberalização total da propriedade e
instalação de farmácias. As alterações legislativas não abrangem a remuneração
das farmácias, continuando estas a ter como principal fonte de receitas as
margens de comercialização dos medicamentos. Não foram acionadas medidas para
incentivar o desenvolvimento de serviços, nem estes são remunerados pelo
Estado. Além disso, a procura de serviços farmacêuticos pelos utentes é baixa.
Como também melhoraram as margens de comercialização (com concentração
horizontal e vertical no setor), os proprietários das farmácias também não
sentem a necessidade de inovar, não apostando no desenvolvimento dos serviços,
mantendo-se um nível baixo de inovação de serviços farmacêuticos. Neste
cenário, há uma pressão maior na componente do produto e uma dependência grande
da política do proprietário. Poderão ainda surgir farmácias na Internet, não
necessitando nesse caso o utente de se deslocar à farmácia. Todo o processo de
dispensa está automatizado desde a prescrição ' o médico envia a prescrição
para um servidor e o utente decide depois onde quer receber os medicamentos
dessa prescrição, se numa farmácia tradicional se em casa por correio ou
estafeta.
Neste cenário, a acentuada redução da necessidade de farmacêuticos
comunitários, as dificuldades económicas e a introdução de farmácias online
teria como consequência uma diminuição das necessidades de farmacêuticos
comunitários, o que poderia conduzir a um aumento de desemprego entre
farmacêuticos. Outra consequência do excesso de farmacêuticos, poderá ser que
muitos irão escolher emigrar em busca de melhores oportunidades laborais,
melhores condições económicas e melhor satisfação profissional54.
O número de farmácias nas zonas urbanas de maior densidade populacional tenderá
a aumentar ligeiramente, mas a viabilidade das farmácias mais pequenas e
independentes e das farmácias das zonas rurais pode estar ameaçada. Como
consequência, o número total de farmácias tenderá a diminuir ao longo da década
(Figura_3). Para melhorar a compreensão do que poderão ser os impactos dos
vários cenários foram incluídas (de acordo com a metodologia dos cenários) as
tendências associadas a cada cenário em 3 indicadores (Figura_4, Figura_5),
tendo por base a informação recolhida durante os workshops de cenarização.
A presença de um farmacêutico comunitário nas farmácias continuará a ser
obrigatória mas o trabalho de aconselhamento e dispensa iria ser realizado
sobretudo por técnicos de farmácia, ficando apenas reservado ao farmacêutico
aspetos de controlo e garantia de qualidade da dispensa. O número de
farmacêuticos por farmácia tenderá a diminuir (Figura_4), e aumentar o número
de técnicos e auxiliares, devido à necessidade de conter custos.
Com o farmacêutico a ver desvalorizada a sua posição social, remuneração e com
o trabalho de aconselhamento e dispensa a ser realizado por técnicos de
farmácia, os farmacêuticos recém-diplomados deixariam de seguir esta via
profissional. As remunerações tendem a ser mais baixas e o facto de não exercer
a fundo a sua função clínica torna a opção por farmácia comunitária pouco
aliciante. Esta situação teria reflexos no número de farmacêuticos e na procura
dos cursos de ciências farmacêuticas (Figura_5).
As competências necessárias ao desempenho do farmacêutico comunitário neste
cenário são relativas à supervisão da dispensa e à gestão de processos na
farmácia. Assim estes profissionais teriam de adquirir mais competências nos
aspetos de liderança, da gestão do espaço da farmácia, gestão de colaboradores,
aspetos regulamentares e farmacovigilância. Para os farmacêuticos que fossem
contratados por farmácias de venda online seria indispensável o domínio das
novas tecnologias de dispensa e das tecnologias de informação, pelo que também
seria necessário reforçar o ensino destas competências. Aspectos relacionados
com a prestação de serviços farmacêuticos não seriam tão valorizados como hoje
em dia, sendo mais valorizada a capacidade de gestão. Na perspetiva da formação
de novos profissionais seria necessária a adaptação do 2.° ciclo de estudos do
curso de Ciências Farmacêuticas com mais componentes de gestão e menos
investimento na diferenciação do farmacêutico, pois podem surgir cursos de
Gestão que concorram com o farmacêutico para a área da gestão dos processos da
farmácia, o que poderá limitar ainda mais a ação do farmacêutico comunitário à
supervisão dos aspetos técnicos da dispensa de medicamentos.
Para os farmacêuticos, o cenário «pharmacy-mall» é aquele que menos hipótese
oferece de desenvolvimento profissional, além de representar uma contração
clara das necessidades dos farmacêuticos comunitários. Além disso, num cenário
onde surgem cadeias de farmácia mais orientadas para o lucro, emergem conflitos
entre o aconselhamento e os objetivos de negócio27,55, que teriam também
consequências a nível da satisfação profissional e condições laborais para os
farmacêuticos, sendo previsível uma degradação destes parâmetros.
Para os utentes, o maior benefício deste cenário é a maior equidade vertical,
com os preços dos medicamentos a diminuírem devido à maior competição46. Para o
sistema de saúde, este cenário pode trazer poupanças em gastos com
medicamentos, tal como observado nos países com um modelo semelhante, tendo no
entanto consequências a nível da acessibilidade ao medicamento, sobretudo em
meios rurais45,46. Acautelando este pormenor, este é um cenário favorável para
este ator-chave.
Cenário II ' «e-Pharmacist»
Neste cenário, as alterações legislativas são ainda mais profundas. O ambiente
mais liberalizado, por pressão das instituições europeias e dos mercados e pela
necessidade premente de conter os custos com os medicamentos, irá reflectir-se
não só na instalação e propriedade de farmácias mas também numa reforma do SNS,
sendo este agora um sistema repartido em diferentes subsistemas dependente da
utilização de seguros, tanto públicos como privados. Essa alteração permite a
entrada de prestadores privados que operam num mercado mais aberto, onde a
prestação de serviços dos profissionais de saúde é convenientemente remunerada
pelas diferentes entidades financiadoras. Os farmacêuticos comunitários
estariam entre os profissionais mais requisitados pelos diferentes subsistemas,
pois a mais-valia dos serviços farmacêuticos diferenciados teria sido
demonstrada, não só a nível dos ganhos em qualidade de vida, mas também a nível
da segurança na utilização de medicamentos e na poupança de recursos económicos
com medicamentos e outras tecnologias de saúde. Devido a esse reconhecimento,
as terapêuticas mais avançadas que anteriormente eram apenas dispensadas nas
farmácias hospitalares, são agora dispensadas por farmacêuticos comunitários. O
desenvolvimento de mais serviços diferenciados é incentivado, tornando-se o
farmacêutico reconhecido como um profissional de saúde essencial à boa gestão
da saúde.
Com o Estado e as diferentes entidades financiadoras a remunerar os serviços, o
farmacêutico veria valorizada a sua prestação profissional, podendo até exercer
fora da farmácia pois teria condições para fazer uma gestão integrada dos
doentes sem estar dependente da fonte de receitas que são os medicamentos. No
entanto, muitos farmacêuticos comunitários continuariam a exercer dentro do
espaço da farmácia, dependendo a diversidade dos serviços existentes da
política de desenvolvimento e a prestação dos respetivos proprietários.
Também neste cenário tenderão a existir farmácias na Internet e a possibilidade
da dispensa de medicamentos ocorrer à distância, sob a responsabilidade de um
farmacêutico ou de outro profissional de saúde. A inovação de serviços leva à
entrada das novas tecnologias em força no mercado dos cuidados de saúde. Os
farmacêuticos comunitários continuarão na linha da frente e agora gerem um
espaço virtual, o gabinete electrónico, onde é possível a interacção com o
médico e com o utente, o acesso a alguma informação do registo do doente e onde
se faz a gestão da doença e da terapêutica. O farmacêutico será o responsável
por manter este gabinete a funcionar, pela informação de saúde publicada e por
estabelecer a comunicação entre o utente e o médico. Também foi já implementado
um sistema que permite ao farmacêutico fazer a gestão da doença à distância,
recolhendo a informação necessária (parâmetros bioquímicos, efeitos adversos e
adesão à terapêutica) sem o doente ter de deslocar-se à farmácia.
A necessidade de farmácias comunitárias diminui. O número de farmácias, após um
ligeiro aumento inicial, poderá sofrer um decréscimo (Figura_3), por
dificuldades económicas das farmácias mais pequenas e das que não conseguirem
adaptar-se ao novo paradigma. Apesar da diminuição do número de farmácias, a
necessidade de prestar serviços farmacêuticos diferenciados leva a que as
farmácias recrutem mais farmacêuticos. Iria assistir-se de início a uma maior
procura de farmacêuticos comunitários (Figura_4), com formação adequada à
prestação de serviços. O número de outros profissionais estabilizaria, sendo
que a sua principal atividade seria a dispensa de medicamentos, assistida pelas
novas tecnologias de robotização e informação, de forma a deixar mais tempo
livre para o farmacêutico. No entanto, com a possibilidade de o farmacêutico
ser remunerado sem necessitar de vender medicamentos, haverá muitos
profissionais que optariam por exercer de forma independente.
Este ambiente seria favorável para o desenvolvimento profissional dos
farmacêuticos comunitários. É natural que com as novas responsabilidades e as
possibilidades de participação no sistema de saúde, o farmacêutico comunitário
se torne numa profissão com maior procura (Figura_5) reflectindo-se no número
de diplomados que iriam optar por esta via profissional.
Desenvolvendo-se os CSP numa lógica de serviços, a necessidade de conter os
custos com os medicamentos pode impulsionar a integração deste novo
farmacêutico nos CSP. Este farmacêutico pode integrar a equipa do Agrupamento
de Centros de Saúde (ACES), de uma farmácia da zona, ou ser um profissional
independente, mantendo uma interligação com os outros profissionais,
nomeadamente médicos e enfermeiros, com os quais partilharia responsabilidades
na gestão da doença.
No cenário «e-Pharmacist», as questões de empregabilidade que surgem com a
liberalização da propriedade de farmácia serão compensadas pela possibilidade
de o farmacêutico poder exercer de forma independente, com a remuneração
assegurada pelos serviços farmacêuticos. O desenvolvimento deste novo papel
traria a necessidade de adquirir novas competências. Para tal, além dos aspetos
técnicos relacionados com o uso de medicamentos, o farmacêutico comunitário
terá de dominar também outros aspectos da prestação de serviços nomeadamente,
uma forte formação em farmacoterapia, farmácia clínica e em gestão de programas
de cuidados farmacêuticos. Terá de ser um utilizador de tecnologias de
informação, como a Web 2.0, usada no auxílio à prestação dos serviços e na
comunicação com os utentes e com os outros profissionais de saúde envolvidos na
gestão doença. Seria fundamental promover-se uma maior cultura de trabalho em
equipa entre o farmacêutico e os restantes profissionais de saúde, dando apoio
ao farmacêutico comunitário para que este se integre nos CSP: terá de existir
uma maior ligação com o médico de família e colaboração na gestão do
medicamento e da doença.
Para os utentes, este cenário pode revelar-se valioso. A gestão da doença e da
terapêutica, podendo ser efetuada à distância, pode implicar diminuição dos
custos associados à gestão da doença e redução de idas ao médico. A
conveniência da proximidade dos farmacêuticos é um dos fatores que atualmente
influi na satisfação com os seus serviços38, sendo provável que a melhoria da
acessibilidade, característica deste cenário, possa aumentar ainda mais a
satisfação dos utentes.
Para os sistemas de saúde, a integração dos farmacêuticos na rede de CSP iria
fazer entrar os custos dos cuidados farmacêuticos no orçamento. Mas a
diversidade de financiadores característica deste cenário, iria reconhecer os
ganhos em saúde e eficiência desta nova forma de atuação, sendo os custos com
os cuidados farmacêuticos compensados com reduções em outros custos relevantes
para o financiador. Além disso, um compromisso entre a contenção de custos com
os medicamentos e a qualidade é possível, e estes novos serviços em muito podem
contribuir para a qualidade dos cuidados de saúde16.
Cenário III ' «Reorganize or die»
Neste cenário considera-se que o ambiente legislativo mantém-se pouco alterado
não existindo alterações na lei da propriedade de farmácia, na forma de
financiamento do SNS nem na forma de remuneração das farmácias. Assim, as
farmácias teriam de procurar outras fontes de financiamento para sobreviverem e
manterem lucros, ou constituir agrupamentos de farmácias para tentar diminuir
os custos. O desenvolvimento de serviços acontecerá apoiado na necessidade das
farmácias se diferenciarem umas das outras de modo a aumentarem a procura dos
seus serviços e produtos, fazendo assim face à redução das margens. Nem todas
as farmácias evoluirão no mesmo sentido, dependendo da vontade dos
proprietários em continuar independentes ou unirem-se a grupos já existentes. É
provável que surjam franchises de farmácias.
Algumas farmácias iriam apostar em serviços farmacêuticos, dando ênfase à
inovação e à introdução de soluções tecnológicas. Iriam recorrer a outros
profissionais para serviços que não sejam do âmbito do farmacêutico, como por
exemplo, nutricionistas para consultas de nutrição, enfermeiros para
tratamentos mais específicos (pé diabético, pensos, etc.) e outros
profissionais (psicólogos, podologistas, medicinas alternativas, etc.).
Poderiam ser estabelecidas parcerias com estes profissionais, dependendo o mix
de serviços da política que o proprietário quer para o seu espaço.
O número de farmácias tende a estabilizar (Figura_3) pois a abertura de
farmácias iria continuar condicionada ao concurso público com os critérios
agora em vigor. A maioria das farmácias terá sítios na Internet mas, como não
houve alteração da legislação e a venda de medicamentos sujeitos a receita
médica só pode ser feita individualmente após o envio pelo utente da prescrição
médica, será um serviço pouco requisitado. Os sítios ficam vocacionados para a
comunicação com o utente e a venda de MNSRM e outros produtos de saúde e bem-
estar. Os farmacêuticos serão responsáveis pela produção de conteúdos para
esses sítios, adaptados à realidade socioeconómica de cada farmácia. Não sendo
necessários muitos farmacêuticos por farmácia, este cenário leva a uma
diminuição do ratio de farmacêuticos por farmácia (Figura_4), sobretudo devido
aos constrangimentos económicos. O número de técnicos nas farmácias tenderá a
aumentar, sobretudo para a função de dispensa de medicamentos e de venda de
outros produtos. A procura do curso de ciências farmacêuticas pode diminuir
(Figura_5), em parte devido à menor necessidade de farmacêuticos e em parte
devido à redução do apelo pela profissão, pois nem todos os diplomados têm
apetência para ser vendedores.
Uma outra tendência será o aumento a nível nacional de casos de integração dos
ACES em hospitais, criando unidades locais de saúde (ULS), com o intuito de
otimizar a gestão clínica e os custos. Esta situação pode promover a integração
dos serviços farmacêuticos dos hospitais com os comunitários, potenciando mais-
valias relativas à compra e distribuição de medicamentos com benefício para o
utilizador e para o financiador, mas com impacto a nível das farmácias da
região. Seria mais um fator a contribuir para o estrangulamento financeiro das
farmácias, mas que abriria mais oportunidades para os farmacêuticos
desenvolverem a sua atividade integrados nas ULS, com funções de gestão de
informação relativa ao uso dos medicamentos prescritos na ULS, controlando
ainda os custos das prescrições e podendo também proceder à dispensa de alguns
medicamentos. Esta situação traria a possibilidade de melhorar a relação com os
médicos.
Neste cenário o farmacêutico comunitário assume um papel mais comercial. Seria
o profissional responsável pela dispensa dos medicamentos mas otimizou essa
dispensa e deixou-a para os técnicos. Poderia ainda desenvolver e inovar a
prestação de serviços. Dado que muitos desses serviços não seriam da sua
responsabilidade, o farmacêutico comunitário (não proprietário) será apenas
mais um profissional dentro de um espaço de saúde. Será natural que venha a
especializar-se na venda de outros produtos (suplementos alimentares, produtos
de óptica, produtos de ortopedia, produtos de dermocosmética), necessitando de
adquirir mais competências nestas áreas, para assim ver reforçada a sua faceta
de vendedor. Simultaneamente, terá de cuidar dos aspectos relacionados com os
serviços farmacêuticos, procurando desenvolvê-los, continuando a assumir a
direção técnica e a responsabilidade pela dispensa de medicamentos. Num
ambiente em que a eficiência tem de ser máxima, situações como o stress
relacionado com o trabalho e «burn-out» podem começar a ocorrer entre os
farmacêuticos, podendo-os levar a abandonar a profissão27.
Mais do que a competência técnica, será a relação com o cliente que terá um
maior peso neste cenário, pois a remuneração dos serviços é assegurada em
exclusivo pelos utentes, pelo que o marketing de serviços assumirá um papel
decisivo para se aumentar a procura. Deverá dedicar grande atenção a aspetos
relacionados com a venda de produtos de saúde e com aspetos relacionados com a
qualidade da dispensa dos medicamentos. As técnicas de venda ou de marketing de
produtos, e as técnicas comunicacionais serão importantes para fidelizar
clientes.
Para os utentes, este cenário não é muito vantajoso, pois começariam a ser mais
encarados como consumidores de produtos e serviços em detrimento de serem
encarados como utentes de um serviço de saúde. Nem todos teriam acesso aos
serviços farmacêuticos pois continuariam a depender da localização da farmácia
mais próxima, da política adotada pelos proprietários e da capacidade
individual para pagar pelos serviços farmacêuticos propostos em cada farmácia.
Para o sistema de saúde, a não integração deste farmacêutico comunitário na
rede de CSP limitaria os ganhos de eficiência associados aos cuidados
farmacêuticos. O facto de o financiamento destes serviços ser da exclusiva
responsabilidade do utente leva a que a equidade do sistema saia prejudicada.
Nem todos os cidadãos que realmente necessitariam destes serviços teriam
disponibilidade financeira para os adquirir. A disponibilidade de mais
farmacêuticos pode levar à sua integração em serviços de saúde da ULS mas com
funções distintas dos farmacêuticos comunitários. Passariam a ter funções de
controlo de prescrições, definição de guidelines terapêuticas e
disponibilização de informação junto dos restantes profissionais de saúde, para
obter poupanças económicas no uso dos medicamentos e melhorar a eficiência do
sistema de saúde.
Desenvolvimento de indicadores para os cenários
A mais-valia da análise de cenários é estimular novas formas de pensar e de
debater o futuro. É importante deixar para trás velhos hábitos se realmente a
profissão quiser mudar, abordando o futuro com uma mente aberta. Os resultados
dos workshops de cenarização permitiram construir 3 cenários diferentes,
representando futuros plausíveis, baseados nas evidências observadas em vários
estudos nacionais e internacionais. Nenhum deles pretende representar o «futuro
real». A antecipação destes cenários permitirá preparar estratégias e estimular
a criação de novas formas de prática, numa sociedade em mudança.
Todos os cenários elaborados têm aspectos comuns que se prendem com a evolução
das competências dos técnicos de farmácia e com a evolução tecnológica, que
levam a uma diminuição da necessidade de farmacêuticos comunitários no
aconselhamento e dispensa. Na Tabela_2 resume-se as principais características
e implicações dos cenários, de forma a realçar os aspetos mais importantes a
ter em consideração para a elaboração de estratégias.
A importância de dados empíricos sólidos para a elaboração de políticas,
decisão e monitorização do progresso dos recursos humanos de saúde rumo ao
desenvolvimento e reforço dos sistemas de saúde, está já amplamente
reconhecida2. Tendo em conta os fatores de mudança, as barreiras e as
tendências de evolução já identificadas, Zellmer15 sugere indicadores para que
os líderes e os estrategas dentro da profissão e sistema de saúde possam
monitorizar a situação de implementação dos serviços farmacêuticos, como nova
pedra basilar da prática farmacêutica. Com base nestes indicadores, definiu-se
um conjunto de indicadores adaptados à realidade portuguesa atual e futura, de
modo a acompanhar a evolução do papel do farmacêutico comunitário em Portugal
(Tabela_3). A informação recolhida nestes indicadores permitirá elaborar as
melhores estratégias para a profissão, encontrar o caminho para as suas novas
funções, levando em conta os fatores e as tendências externas, identificando os
principais stakeholders com quem terá de se relacionar e de negociar para os
fazer aceitar o farmacêutico comunitário como peça essencial numa equipa de
CSP.
Discussão de algumas implicações dos cenários
Da análise destes cenários, pode-se deduzir que no futuro, só haverá maior
necessidade de farmacêuticos comunitários se a prática de serviços
farmacêuticos for adotada. Como a dispensa de medicamentos é também um serviço
farmacêutico, esta continuará a ser uma responsabilidade do farmacêutico em
todos os cenários, mesmo que sejam outros profissionais a executar essa
dispensa. Isto significa que para o farmacêutico comunitário será essencial
dominar vários aspetos relacionados com os medicamentos, desde a molécula até
às consequências da sua aplicação.
Apesar de no imediato não ser crível que a profissão esteja ameaçada, parece
haver consenso, tanto nacional como internacionalmente, de que para o
farmacêutico comunitário continuar a justificar a sua existência terá de
encontrar um novo papel no futuro, provavelmente ligado à prestação de serviços
e aos cuidados farmacêuticos24. Outros autores15,56 apontam no entanto, a falta
de consenso dentro da profissão, como um dos principais fatores impeditivos
para a mudança de prática desejada por muitos. Rosenthal et al.57 sugerem que,
«estando os factores já identificados, e havendo diversos estudos que abordam
formas de os remover, estes fatores não serão barreiras mas apenas desculpas»,
deixando em aberto a hipótese de ser o excesso de inércia dentro da profissão
uma das barreiras mais difíceis de ultrapassar. A discussão envolve todos os
farmacêuticos, desde as faculdades até às farmácias. Se no momento atual, os
farmacêuticos comunitários que já exercem a sua atividade têm um papel
importante com as suas atitudes e com a realização de mais investigação em
contexto de prática, para o futuro a preparação curricular será a que assumirá
importância maior. Isto leva a um debate entre as 2 correntes a nível
académico, que ainda decorre24,58.
As organizações representativas do setor, enquanto interlocutores da profissão
junto dos policy-makers, podem ter um papel essencial na elaboração de
estratégias que vão ao encontro dos desejos dos profissionais59,60. Mas,
sobretudo, é importante que estes líderes baseiem as suas estratégias em factos
do mercado português. É necessário mais conhecimento para que estratégias mais
sólidas possam ser apresentadas aos policy-makers. Há aqui também um papel para
outras organizações, tais como as ligadas à investigação e ao ensino da
profissão51,61. As faculdades, além de contribuírem para o desenho das melhores
estratégias,também terão a responsabilidade de dar formação a estes novos
profissionais. Para que uma prática centrada no doente se torne possível é
essencial orientar os currículos dos cursos para a prática clínica24,61,62,
havendo, no entanto, a necessidade de equilibrar os conteúdos clínicos e os
conteúdos relacionados com os aspetos tecnológicos do medicamento, de forma que
o farmacêutico conheça o melhor possível as novas terapêuticas com que terá de
lidar para continuar a ser o especialista do medicamento, único papel que de
facto justifica a sua existência.
A inclusão do farmacêutico comunitário na equipa de saúde depende da aceitação
dos outros profissionais de saúde envolvidos, sobretudo dos médicos de família.
A relação com os médicos surge frequentemente como uma barreira à mudança de
práticas63,64. Se o farmacêutico detetar problemas relacionados com os
medicamentos, necessitará de intervir, o que pode gerar conflitos com o
médico64. Para melhorar esta relação, é sugerido, por vários autores,
concentrar esforços na mudança estratégica de práticas, acordadas entre as 2
profissões, assim como em aspetos educativos relacionados com os cuidados
farmacêuticos65. Igualmente, a evolução de competências dos enfermeiros,
tomando por vezes o lugar que o farmacêutico ocuparia na equipa de saúde, é uma
ameaça que deve ser tida em conta66. Se o farmacêutico quiser assumir a
responsabilidade pela gestão da doença terá também de adquirir novas
competências, sem no entanto se sobrepor às competências dos enfermeiros. Será
necessário um maior diálogo entre as 2 profissões e provavelmente uma maior
partilha de conhecimentos desde a faculdade, aproveitando a sinergia entre
enfermeiros, farmacêuticos e farmácias na prestação de serviços de saúde à
comunidade.
Relativamente às necessidades de saúde, sabe-se que a prevalência de doenças
crónicas irá aumentar, e que estas são condições de saúde onde a prestação do
farmacêutico comunitário fora do âmbito da dispensa de medicamentos já
demonstrou ser uma mais-valia67,68,69. O futuro será caracterizado por utentes
melhor informados, que recorrerão mais vezes à automedicação tendo como fonte
de informação principal a Internet. Se o farmacêutico não se adaptar a este
novo ambiente, será considerado uma peça dispensável na equipa de saúde. É
importante que o farmacêutico comunitário tente alterar a sua imagem de
vendedor de produtos de saúde, se quiser ser considerado um profissional de
saúde e assim ganhar definitivamente a confiança dos utentes e tornar-se
indispensável na equipa que faz a gestão da terapêutica e da doença.
A evolução das tecnologias de informação está a ter um impacto muito
acentuado14,70,71,72,73. A utilização de soluções tecnológicas para o processo
de dispensa de medicamentos irá aliviar ainda mais o farmacêutico para que
possa assumir totalmente outras funções. É provável que a introdução destas
tecnologias enfrente algumas resistências, sobretudo pelos profissionais mais
antigos. Mas a mais-valia que apresentam em termos de relacionamento com o
sistema de saúde, médicos e utentes, leva a crer que esta área pode ser muito
importante para o farmacêutico comunitário do futuro, quer como utilizador
destas tecnologias quer ajudando ao seu desenvolvimento.
Na sequência da identificação das várias barreiras que limitam a mudança de
práticas, podem-se identificar facilitadores de mudança, elementos que
contribuem para ultrapassar essas barreiras e a agirem como agentes indutores
da mudança51,74. Entre os fatores promotores da mudança das práticas podem-se
encontrar a remuneração, a comunicação, a liderança e a educação e a
formação51. Destes fatores, aquele que previsivelmente terá mais importância no
futuro será a forma de remuneração dos serviços farmacêuticos, sobretudo se
considerarmos a situação atual, com farmácias a operarem com margens
negativas41. A forma de remuneração que neste momento vigora, com base em
margens e taxas fixas sobre a venda de medicamentos, poderá dar lugar a uma
remuneração por serviço, seguindo o exemplo de países como o Reino Unido45,
passando provavelmente por um momento intermédio de remuneração mista,
semelhante à que já vigora na Bélgica75. No entanto, esta é uma alteração que
carece de óbvias alterações legislativas. Cabe aos farmacêuticos a iniciativa
de separar a remuneração da dispensa de medicamentos da remuneração dos
serviços farmacêuticos diferenciados, a fim de que os financiadores não
percecionem nenhum conflito de interesses entre a prestação dos 2 serviços.
Contudo, os farmacêuticos também devem reconhecer diferentes formas de
remuneração pelos serviços, desde o pagamento direto pelo utente até às
diferentes formas de pagamento dos financiadores, desde o SNS até às
seguradoras da área da saúde76.
Limitações do estudo e novas questões de investigação
A construção de cenários permite uma reflexão conjunta para apoiar o
desenvolvimento estratégico, a aprendizagem em equipa e o processo de tomada de
decisão. O mais importante não é prever o futuro mas sim construir cenários que
delimitem os futuros possíveis de forma apropriada e nos ajudem a decidir as
melhores estratégias77.
Apesar das limitações, este tipo de estudo reveste-se de grande utilidade para
gerar novas questões de investigação, que ajudam a elaborar estratégias mais
adequadas para uma mudança efetiva de práticas dos farmacêuticos comunitários
portugueses. Assim, após a elaboração destes cenários, surgem algumas novas
questões de investigação que poderão ser estudadas nos tempos mais próximos, de
forma a elaborar estratégias e a definir qual o papel que o farmacêutico
comunitário poderá ter no futuro:
quais os serviços que os utentes esperam das farmácias;
estão os currículos atuais adaptados à prática futura;
quais as necessidades atuais e futuras dos farmacêuticos comunitários em
Portugal;
qual a eficiência económica dos programas de cuidados farmacêuticos em
Portugal;
qual o impacto da reorganização do setor das farmácias no mercado e no papel
do farmacêutico em Portugal;
qual o impacto das medidas do memorando de entendimento no mercado das
farmácias;
que expectativas têm os atuais farmacêuticos comunitários para o seu futuro;
que impacto terá a remuneração por serviços em vez de produtos;
que impacto terá um farmacêutico a exercer numa ULS, no âmbito dos CSP e
que novas tecnologias de informação poderão ser utilizadas e qual o seu
impacto.
Conclusão
A utilização da análise de cenários na fase de pensamento estratégico de uma
organização pode ser de grande utilidade para o planeamento dos recursos
humanos. Conseguem-se antever tendências futuras da necessidade de
farmacêuticos comunitários em 3 cenários distintos. Estes cenários podem
contribuir para melhor adequar estratégias, tanto na formação como na
utilização deste profissional no sistema de saúde e no mercado.
A mudança gradual da prática farmacéutica levanta a hipótese de os
farmacêuticos comunitários poderem vir a assumir um novo papel dentro do
sistema de saúde. Idealmente, as 2 atividades, de dispensa e partilha de
responsabilidades pelos resultados da terapêutica, podem ser compatíveis e o
desenvolvimento deste novo papel pode ser equilibrado entre as 2 atividades. No
entanto, parece claro que não há futuro a longo-prazo na atividade de dispensa
para os farmacêuticos comunitários. Mesmo a atividade de aconselhamento que
acompanha a dispensa, com o recurso às tecnologias de informação está ameaçada.
O único futuro que aparenta ser sustentável a longo prazo é a prestação de
cuidados ao doente. A prestação de serviços farmacêuticos enquanto principal
atividade do farmacêutico dependerá da demonstração da real mais-valia para o
sistema de saúde e para os utentes mas está fortemente dependente de
significativas alterações legislativas, sobretudo no que concerne ao
financiamento destes serviços. Este novo paradigma de atuação do farmacêutico
poderá levá-lo a ser finalmente integrado no sistema de saúde em equipas
multidisciplinares de gestão de doença ou como gestor de informação nas ULS.
Com a crescente saída de novos profissionais das universidades, é muito
provável que, se nada se alterar, se esteja a formar profissionais em excesso
para o mercado nacional. Estes jovens, não encontrando saídas nas tradicionais
áreas de atividade do farmacêutico, serão forçados a emigrar em busca de novas
oportunidades, requerendo por vezes uma adaptação das competências adquiridas
ao longo da sua formação.
A mudança será mais efetiva se houver envolvimento dos profissionais. Os
farmacêuticos comunitários portugueses já demonstraram terem abraçado os
princípios deste seu novo papel, sendo provável que a mudança seja implementada
com o apoio da generalidade dos profissionais. O papel das organizações
profissionais mas também das faculdades será fundamental, enquanto
representantes dos profissionais junto do governo e policy-makers, fazendo uso
do conhecimento que possuem do mercado e da profissão para que com um adequado
planeamento estratégico se faça a transição para o modelo clínico. Será preciso
ainda uma liderança forte, com uma visão do futuro e uma capacidade de
planeamento estratégico, para influenciar tanto os policy-makers como os
profissionais na comunidade.
A curto prazo, as alterações propostas pelo memorando do acordo de
financiamento externo terão um impacto que importa conhecer na estabilidade e
situação financeira das farmácias, o que certamente terá implicações no emprego
de farmacêuticos e no seu desenvolvimento profissional. Mas também exigirá dos
profissionais que desempenham funções de gestão a aquisição de competências
nessa área. Com as alterações que se prevêem, surge uma oportunidade que pode
ser aproveitada para que este movimento de transformação das práticas
farmacêuticas na comunidade se concretize.
A mudança da profissão para o foco no doente, para a sua faceta mais clínica,
implica novas formas de trabalhar, de interagir com o doente e com os restantes
prestadores de cuidados. Nesta interação, as novas tecnologias de informação
poderão desempenhar um papel fundamental, abrindo a possibilidade ao
farmacêutico de ser o principal responsável pelo contacto com o utente. Além
disso, para que a filosofia dos serviços farmacêuticos seja sustentável é
necessário assegurar o financiamento dos serviços de acordo com as necessidades
dos utentes. De qualquer forma, a aquisição de competências comportamentais e
comunicacionais será fundamental para a melhoria contínua dos serviços
prestados.
A integração no sistema de saúde, nomeadamente nos CSP, é uma ambição dos
farmacêuticos comunitários que já implementaram os cuidados farmacêuticos em
ambulatório e que perceberam o seu potencial. A posição que os farmacêuticos
comunitários ocupam no sistema de saúde seria a ideal para funcionar como
principal ponto de acesso aos CSP. No entanto, a função desempenhada, com a
imagem de vendedor a estar muito presente, leva a que os outros profissionais
não valorizem a prestação do farmacêutico como profissional de saúde. Para que
isto se altere, é necessária uma nova aproximação aos restantes profissionais
envolvidos na gestão da doença, de modo a que todos em conjunto elaborem as
melhores estratégias que contribuam para a melhoria da eficiência do sistema
como um todo e para a melhoria dos cuidados ao doente.