Da utilização da investigação em saúde à criação de políticas e práticas de
empowerment dos cidadãos
EDITORIAL
Da utilização da investigação em saúde à criação de políticas e práticas de
empowerment dos cidadãos
How to translate health research into policy and practice for citizen
empowerment
Isabel Loureiroa
aDepartamento de Estratégias em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública,
Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal
A saúde é uma base fundamental para o funcionamento da sociedade, da economia e
do progresso de uma nação e aceite, cada vez mais, como responsabilidade de
todos. No entanto, no desenho e implementação de políticas de saúde alguns
continuam a adotar uma abordagem blaming the victim, colocando o ónus de
comportamentos menos saudáveis nos indivíduos ou, mais recentemente, uma visão
blaming the system, atribuindo a "culpa" ao poder central.
Certamente ainda marcada pelo obscurantismo do período da ditadura em Portugal,
a nossa cultura não tem valorizado suficientemente as potencialidades do poder
local para promover a saúde e tem tido dificuldade em funcionar com a confiança
que está na base da descentralização do poder e do trabalho em parceria,
essenciais para bem responder às necessidades locais. Impulsionar a
descentralização, a autonomia das organizações e a responsabilidade das
comunidades através de políticas que respeitem os cidadãos é fundamental para o
progresso da nossa sociedade.
As atuais crises - financeira, social e individual - tornam premente a
necessidade de criar políticas e competências para otimizar oportunidades de
saúde ao nível local, regional e nacional dirigidas, tanto quanto possível, às
causas dos problemas.
Intervir nos determinantes da saúde exige o estabelecimento de pontes de
diálogo que aproximem os diversos setores da sociedade, a criação de sinergias
entre saberes -do académico à experiência de vida- o desenho de políticas que
respondam às necessidades das populações e de mecanismos que garantam a sua
implementação. A ligação integrada entre a investigação, a política e a prática
constitui uma forma efetiva de translação do conhecimento, em que se valoriza
quer o conhecimento que vem da investigação fundamental e em saúde pública quer
o que vem da sua aplicação na prática. Esta estreita ligação é fundamental à
sua disseminação e um desafio à ciência da implementação. Tal como a evidência
científica deve mostrar relevância para dar resposta às necessidades de saúde
das pessoas, também o modo como ela é transferida e implementada pode
constituir um modelo de referência para boas práticas.
O poder local, através das suas instituições e formas organizativas nas
comunidades, tem inerentes potencialidades para transformar em orientações
práticas o que os resultados da investigação em saúde pública têm conseguido
evidenciar.
Há alguns anos, muitos municípios tinham dificuldade em assumir o seu papel na
promoção da saúde, ou porque não queriam implicar-se diretamente ou porque não
havia plena conscientização do processo. Hoje, alguns funcionam já segundo os
princípios das Cidades Saudáveis, movimento criado pela Organização Mundial de
Saúde (OMS). Por isso, celebramos nas secções "Notícias" e
"Nota Informativa" desta publicação, os dois municípios que marcam
a história deste movimento: o município de Lisboa, onde teve lugar a primeira
reunião da OMS no âmbito do projeto "Saúde em Lisboa", em 1986,
através do texto disponibilizado pela vereadora Helena Roseta, e o município do
Seixal, atual coordenador da Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis, pelo texto
escrito pela sua vereadora Corália Loureiro.
Por todo o país se assiste à preocupação de muitas autarquias em melhorar o
nível de educação, reforçar as redes sociais no sentido de uma mais eficiente
articulação entre setores e instituições, conseguir maior coesão social,
defender e promover a saúde dos munícipes. Com base no modelo da salutogénese
estimula-se a identificação dos recursos existentes, para os potenciar e
encontrar as alternativas que sirvam as populações, desenvolvendo, do nível
individual ao social, mecanismos de resiliência e de criatividade.
Os Planos de Desenvolvimento Social e os Planos Municipais de Saúde, em
crescente parceria com os vários setores sociais, da saúde, educação, ação
social e outros, têm constituído experiências promissoras em termos da
implementação do que é preconizado pela filosofia da saúde em todas as
políticas. Desde Virchow (1821-1902), que no século XIX defendeu esta visão,
até à aprovação do documento Health in All Policies, em Helsínquia, em 2006,
aquando da presidência finlandesa da União Europeia, tem sido difícil os vários
setores assumirem o papel que lhes cabe na defesa e promoção da saúde dos
cidadãos.
Os mecanismos de governança democrática, progressivamente a serem implementados
nos territórios, são, ainda, insuficientes e frágeis, muitas vezes distanciados
da maioria da população. É necessária vontade política e um forte investimento
em mecanismos estruturais conducentes a facilitar a participação, desenvolvendo
competências para o exercício de uma cidadania ativa.
Neste número da RPSP o espetro de publicações é vasto. Integra artigos que
abordam as estratégias de combate à pobreza e às iniquidades através de
políticas de âmbito internacional e nacional, e outros que se debruçam sobre
medidas para o desenvolvimento local. Foca-se, fundamentalmente, no papel que
as autarquias podem assumir na promoção da saúde e no apoio aos doentes, no seu
processo de tratamento e recuperação, sem ignorar a complementaridade e
necessidade de medidas ao mais alto nível. São apresentadas quer propostas
políticas gerais quer estratégias locais de saúde na abordagem de questões
ambientais, combate à pobreza e comportamentos ligados à saúde, como a
obesidade e o tabagismo. Incluem-se reflexões sobre a participação dos cidadãos
na saúde e no empreendedorismo social. Apresentam-se sugestões de metodologias
de investigação e de planeamento participado, que incorporam os princípios da
promoção da saúde.
Os trabalhos que se apresentam neste número da RPSP assentam nos princípios dos
direitos humanos e da proteção à saúde, consignados na Constituição da
República Portuguesa.
Espera-se que a publicação deste número, orientado para o tema "Poder
Local e Promoção da Saúde", contribua para uma melhor clarificação sobre
o modo como o poder local pode melhorar a qualidade de vida das pessoas e criar
mais justiça social, articulando a investigação, as políticas e as práticas.
Defende-se a permanente reflexão a nível dos municípios sobre os contextos e as
necessidades, bem como sobre as próprias capacidades para desenvolver
estratégias locais, com autonomia, estudando o impacte na saúde dos diferentes
modelos de governança e das iniciativas políticas das várias áreas, implicando
nos processos todos os atores-chave que forem relevantes. Alerta-se para a
necessidade de políticas, a todos os níveis e em todos os setores, que promovam
uma sociedade mais justa, saudável e feliz.
Espera-se, também, que este número da revista constitua um estímulo para o
exercício de uma cidadania ativa, de pleno direito, no processo de
corresponsabilidade e cocriação da saúde.
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