Nanomateriais manufaturados: novos desafios para a saúde pública
Introdução
A exposição da população humana a partículas exógenas de dimensões da ordem dos
nanómetros, os nanomateriais, pode ser considerada ubiquitária: tais partículas
encontram-se no ar que respiramos e também nos produtos de consumo que usamos
diariamente. Os nanomateriais podem ter origem natural ou antropogénica, sendo
que o primeiro grupo engloba, por exemplo, nanomateriais produzidos e
libertados nas emissões vulcânicas, nos fogos florestais e alguns vírus,
enquanto o segundo inclui os que são produzidos em consequência de atividades
humanas, tais como nos processos de refinação, soldadura, confeção de alimentos
ou combustão automóvel1. Presentemente, as atenções focam-se preferencialmente
nos nanomateriais manufaturados (neste texto designados por NM) que englobam
aqueles que são sintetizados deliberadamente para um fim específico1, porque
constituem um novo desafio, em termos de saúde pública. Efetivamente,
depositam-se grandes expectativas nas tecnologias baseadas nestes NM
(nanotecnologias) como impulsionadoras do crescimento económico dos países
industrializados, devido ao seu potencial para melhorar a qualidade e o
desempenho de muitos tipos de produtos e de processos. Assim, o estímulo
crescente ao desenvolvimento, produção e aplicação em grande escala de NM, bem
como a sua utilização numa vasta gama de produtos de consumo e em biomedicina,
tem conduzido, inevitavelmente, ao aumento da exposição humana e à disseminação
no ambiente, sendo o seu potencial impacto ainda desconhecido. Este facto
justifica a necessidade de realizar estudos que permitam garantir uma
utilização segura dos nanomateriais, durante todo o seu ciclo de vida,
protegendo o ambiente e a saúde humana.
Nanomateriais e nanotecnologia
O prefixo 'nano-', com origem na palavra grega
νάνοζ (anão), significa, no meio científico,
uma medida de 10-9 unidades. Contudo, a procura de uma definição para
"nanomaterial" tem gerado alguma polémica. Numa tentativa de obviar
a essas inconsistências, a Comissão Europeia emitiu em 2011 uma recomendação
sobre a definição de nanomaterial (NM), que se transcreve: "por
"nanomaterial", entende-se um material natural, incidental ou
fabricado, que contém partículas num estado desagregado ou na forma de um
agregado ou de um aglomerado, e em cuja distribuição número-tamanho 50% ou mais
das partículas têm uma ou mais dimensões externas na gama de tamanhos
compreendidos entre 1 nanómetro e 100 nanómetros"2.
Se as propriedades dos materiais, em geral, dependem da sua composição físico-
química e do meio ambiente na interface (estado físico, temperatura, pressão),
no caso dos NM as suas propriedades distintas e atrativas devem-se,
fundamentalmente, à reduzida dimensão das partículas e a modificações ao nível
da estrutura que conduzem a um aumento da área superficial em relação ao
volume, tendo por consequência um aumento do número de moléculas/átomos na
superfície. Esta característica confere-lhes propriedades de superfície únicas,
que, por sua vez, modificam a sua reatividade, frequentemente melhorando as
suas propriedades mecânicas, óticas, elétricas e magnéticas, comparativamente
às dos materiais com a mesma composição físico-química mas de dimensões
maiores3,4. Estas modificações de reatividade têm dado uma contribuição
significativa para o desenvolvimento e produção em quantidades significativas
de uma geração de produtos inovadores contendo NM, com um vasto campo de
aplicações em áreas como a eletrónica, a alimentação, a cosmética e a
biomedicina5, tal como se especifica na Tabela_1. A título de exemplo, o
dióxido de titânio é utilizado na forma "nano" em protetores
solares exibindo as mesmas propriedades de filtro ultravioleta que a forma
convencional, com a vantagem de ser invisível na pele6. Estes NM são usados nos
protetores solares desde 19906 e inserem-se numa das categorias de produtos que
tem tido um maior incremento, a dos "produtos de cuidado pessoal e
cosméticos"5. Outro exemplo é a utilização de nanotubos de carbono para
controlar ou aumentar a condutividade de materiais, com aplicações variadas que
vão desde embalagens antiestáticas até aparelhos eletrónicos.
A clara expansão deste mercado nos últimos anos é visível na base de dados da
Woodrow Wilson "Nanotechnology Consumer Products Inventory", onde
são identificados 1 317 produtos contendo NM, produzidos por 587 empresas em 30
países7. Relativamente a produtos de consumo humano contendo NM, o seu número
no mercado europeu cresceu 6 vezes nos últimos 3 anos, totalizando 858 produtos
em 20105. Para além disso, a crescente aplicação dos NM à biomedicina, a
nanomedicina4, preconiza cuidados de saúde mais eficientes e menos
dispendiosos. Assim, plataformas como a "European Technology Platform on
NanoMedicine"8 têm surgido um pouco por todo o mundo, na expectativa de
desenvolver novas soluções terapêuticas com o consequente valor acrescentado
para a saúde humana e para a sociedade.
A maioria da produção e utilização de NM, especialmente por grandes
multinacionais, tem ocorrido nos Estados Unidos da América (49%), sendo a União
Europeia (UE) responsável por 30% do mercado produtor9. Entre 2000 e 2010, os 5
principais requerentes de patentes na área da nanotecnologia foram a IBM, a
Samsung Electronics, a TDK Corp, a Canon KK e a Fujitsu Ltd10. A atividade de
patenteamento na área da bionanotecnologia em 2003 era liderada por empresas
americanas, com 70% de patenteamento10. Em 2008, 5 anos depois, a atividade de
patenteamento teve um aumento de 160% com 7399 patentes registadas10.
Relativamente a Portugal, o número de patentes é bastante inferior, ou seja,
foram pedidas apenas 14 patentes10.
Na tentativa de melhor caracterizar a situação portuguesa relativamente à
produção e ao desenvolvimento de NM, uma pesquisa no site http://
www.nanowerk.com (consulta em 24 Mar 2012) revela a rede de investigação
existente em Portugal, bem como a existência de 3 empresas especificamente
envolvidas na produção de nanomateriais. No entanto, tudo leva a crer que este
seja um cenário incompleto devido à inexistência de um sistema centralizado de
dados, a nível nacional. Um trabalho muito recente analisou os projetos de I&D
realizados sobre NM em Portugal11, em que se concluiu que, entre 2006-2009,
foram financiados 108 projetos no domínio das nanotecnologias, dos quais
somente 2 abordavam o tema da nanossegurança. Portugal participou ainda em 24
projetos de I&D no âmbito do 7.° programa-quadro da UE e numa ação concertada
sobre a segurança de NM promovida pela Agência Executiva para a Saúde e
Consumidores (Executive Agency for Health and Consumers, EAHC) da Comissão da
UE11. Estes números sugerem o elevado interesse nacional, em particular na área
das aplicações em nanotecnologia.
Pelo que foi mencionado, reconhece-se que o crescente desenvolvimento, produção
e utilização de NM manufaturados tem conduzido a um aumento real da exposição
humana, especialmente no contexto ocupacional, com consequências para a saúde
ainda desconhecidas. No entanto, a informação sobre os níveis de NM a que a
população humana pode estar sujeita ainda é escassa12, quer relativamente aos
consumidores, quer aos locais de trabalho ou ao ambiente.
Exposição humana a nanomateriais manufaturados e potenciais efeitos na saúde
A exposição humana a NM pode ocorrer durante as várias fases do ciclo de vida
do NM (Figura_1), desde a síntese, produção e inclusão nos produtos (exposição
ocupacional) até à utilização desses mesmos produtos (exposição do consumidor);
a eliminação dos NM e consequente acumulação no ambiente poderá constituir
ainda uma fonte de exposição humana13 (exposição ambiental). A presença de NM
no ar pode dever-se a processos de erosão de materiais fabricados ou à
produção/utilização/manipulação de pós-nanoparticulados em processos
industriais, sendo que a via inalatória constitui a via de exposição humana
mais relevante, particularmente, em contexto ocupacional14. Em relação à
exposição por via oral, sabe-se que os NM incorporados em alimentos,
suplementos alimentares ou mesmo em embalagens alimentares, bem como os
originários de solos ou águas contaminadas, poderão ser absorvidos através do
intestino de mamíferos14 e, assim, originar, eventualmente, efeitos sistémicos.
A via transdérmica é também importante14, quer em termos ocupacionais quer
quando se trata da utilização de produtos de cosmética e higiene pessoal
contendo NM na sua composição, apesar de o conhecimento sobre a capacidade de
os NM penetrarem (ou não) na pele permanecer ainda inconclusivo.
Se, por um lado, foi estimado que, entre 1981-83, cerca de 2,7 milhões de
trabalhadores se encontravam expostos a nanomateriais de dióxido de titânio nos
EUA15, por outro lado, apenas temos conhecimento de um estudo nos EUA que se
preocupou em avaliar a exposição inalatória e dérmica aos nanotubos de carbono
durante a manipulação de material não refinado16. Na UE, a Agência Europeia
para a Segurança e Saúde no Local de Trabalho (European Agency for Safety and
Health at Work, EU-OSHA) estima que entre 300 000 a 400 000 postos de trabalho
lidam diretamente com a nanotecnologia. Os nanomateriais fabricados são
manuseados em muitos mais locais de trabalho ao longo da cadeia de
abastecimento e 75% desses locais de trabalho são pequenas e médias empresas
(http://osha.europa.eu/pt/press/press-releases/risks_of_very_small, consulta em
23 Jun 2012). No Reino Unido, um outro estudo identificou 53 empresas
envolvidas em manufaturar, processar ou utilizar NM em 2005, para além de mais
55 envolvidas na I&D associada à nanotecnologia9. Em França, de acordo com um
estudo do Instituto Francês de Investigação e Segurança (INRS), a produção
industrial de nanomateriais envolve entre 2000 e 4000 trabalhadores17. Por sua
vez, o ponto da situação para os países nórdicos (Dinamarca, Finlândia,
Islândia, Noruega, Suécia) foi apresentado no relatório de Schneider18,
mostrando a existência de uma grande diversidade de cenários de exposição
humana durante o ciclo de vida dos NM, envolvendo não só trabalhadores mas
também utilizadores. Em Portugal, que se conheça, não existem dados
publicamente disponíveis sobre exposição a NM.
Para além disso, na maioria dos países, a colocação da designação
"nano" nos rótulos dos produtos de consumo não é fundamentada
legalmente e, de acordo com o relatório do Instituto Holandês para a Saúde
Pública e Ambiente (RIVM), alguns produtos com esta indicação não contêm
realmente NM, enquanto outros incorporam NM e não o referem19. Não existe,
portanto, um sistema de rastreabilidade que possibilite aos consumidores
estarem corretamente informados sobre a presença de NM nos produtos existentes
no mercado e, como tal, estarem cientes da possibilidade de estarem expostos a
esses materiais, dificultando a perceção e a comunicação do risco.
Do que ficou exposto, é inequívoco que, por um lado, as nanotecnologias têm já
um enorme impacto económico e estão a ser alvo de uma expansão que é impossível
de reverter e que, por outro, a exposição humana a uma ampla variedade de NM é
já uma realidade que não pode ser ignorada. Por sua vez, a EU-OSHA refere a
exposição ocupacional aos NM como o risco emergente mais premente20,
considerando existir necessidade de investigação de todo o ciclo de vida de
modo a identificar todas as situações de exposição dos trabalhadores, bem como
as implicações na sua saúde.
Após a absorção e uma vez no interior do organismo, as nanoparticulas, em
consequência das suas pequenas dimensões, têm a capacidade de se translocarem
para o sistema circulatório e linfático, podendo atingir diversos órgãos e
tecidos, incluindo o cérebro1. Diversos estudos em roedores têm investigado as
consequências da exposição aos NM, essencialmente por inalação, relativamente à
ocorrência de lesões nos pulmões, inflamação e formação de tumores12, tendo
globalmente confirmado o potencial tóxico dos NM. A resposta inflamatória que
tem como consequência a produção de radicais livres de oxigénio (ROS) e de
azoto é, de facto, a via mais evidente que correlaciona a exposição a NM com a
ocorrência de lesões nos tecidos e que, ao causar lesões no genoma das
células21, tem o potencial de contribuir para o desenvolvimento de neoplasias.
De facto, este tipo de resposta dos tecidos, quando em contacto com NM, tem
levado ao estabelecimento de analogias com os conhecidos casos da silicose e
asbestose em que a inflamação crónica pode levar a genotoxicidade, mutações,
morte celular e cancro22. A estrutura fibrosa de alguns NM, semelhante a
asbestos, acentua esta analogia.
No que se refere a outros efeitos na saúde humana, até à data, com base em
diversas experiências in vivo sobre a toxicidade dos NM, pode sugerir-se que
uma variedade de patologias do sistema respiratório e cardiovascular estejam
potencialmente associadas à exposição aos NM, tais como mesotelioma, tumores
benignos e enfarte do miocárdio21.
Os nanomateriais no contexto da saúde pública
Análise de risco
Considerando o paradigma de análise de risco (risk analysis) convencional, que
incorpora 3 componentes &-avaliação do risco (risk assessment), gestão do risco
e comunicação do risco23&- tem surgido a dúvida sobre a sua aplicabilidade ao
caso dos NM. A avaliação do risco inclui a identificação do perigo, através de
estudos sobre a toxicidade dos NM, a avaliação da exposição humana e, por
último, a caracterização do risco, através de estudos de índole mais
mecanística.
Relativamente à toxicidade dos NM, tem-se assumido que estes apresentam, pelo
menos, a mesma toxicidade que os materiais na forma não "nano". No
entanto, a observação de que os mesmos constituintes, quando estruturados na
forma "nano", revelam propriedades físico-químicas distintas das do
material de origem, com consequente alteração potencial da sua reatividade nos
sistemas biológicos4, coloca em causa a aplicabilidade das metodologias
convencionais à avaliação de efeitos adversos dos NM, gerando também incertezas
sobre a robustez dos resultados já publicados. Assim, tais especificidades dos
NM devem ser consideradas para uma adequada avaliação de risco, através do
conhecimento gerado pela nanotoxicologia4, conforme se sugere na Figura_2.
Neste contexto, a Resolução do Parlamento Europeu, de 24 de abril de 2009, a
propósito dos aspetos regulamentares dos nanomateriais, destaca a ausência de
informação e de conhecimentos científicos suficientes para tal extrapolação na
área dos NM, aconselhando a intervenção da Comissão das Comunidades Europeias
para colmatar estas falhas e adequar a legislação existente24.
Ainda em 2009, com base no Regulamento REACH sobre Registo, Avaliação,
Autorização e Restrição dos Químicos (Registration, Evaluation, Authorisation
and Restriction of Chemicals), a UE iniciou projetos de implementação do REACH
para NM (REACH Implementation Project on Nanomaterials, RIPoN) com vista a
adaptar os guias de orientação REACH aos NM. Estas ações de implementação
visaram fornecer informação científica relevante à Agência Europeia dos
Químicos (ECHA), nomeadamente no sentido de adaptar os protocolos experimentais
do REACH aos NM. Foi concluído ainda que substâncias nas formas nano devem ser
registadas separadamente, independentemente do seu volume e sempre que as suas
propriedades forem diferentes da substância original.
Atualmente, de acordo com o REACH25, a avaliação da segurança dos nanomateriais
deve seguir a metodologia de avaliação de risco adotada para os químicos
convencionais, que se baseia nos seguintes pontos: 1) avaliação de efeitos; 2)
avaliação da exposição; e 3) caracterização do risco.
No que diz respeito à avaliação de efeitos (passo 1), o quociente de risco
(risk characterisation ratio, RCR) é considerado aceitável quando o valor
estimado da exposição é inferior à dose/concentração do agente em que não se
observou efeito adverso (no observed adverse effect level, NOAEL) no estudo
experimental levado a cabo para avaliar o endpoint em estudo (p. ex.,
toxicidade por inalação, genotoxicidade), ou seja, quando RCR < 1. No caso de
ser necessário efetuar ensaios in vivo ou vitro para avaliar os efeitos, torna-
se necessário caracterizar primeiro o NM em estudo, recolhendo informação sobre
os parâmetros físico-químicos mais relevantes e que poderão influenciar a
toxicidade, tais como distribuição de tamanhos, estado de agregação/
aglomeração, forma, área superficial, reatividade, solubilidade em água, carga
superficial e estabilidade. Salienta-se desde já, no entanto, que o poder
preditivo em termos de toxicidade, do binómio propriedades intrínsecas-efeitos
observados é ainda baixo, devido à já referida insuficiente evidência
científica24 e à falta de protocolos experimentais validados, impossibilitando
a extrapolação de resultados ou a associação de um determinado perfil
toxicológico a um certo(s) tipo(s) de NM26.
Para avaliar a exposição (passo 2), torna-se necessário identificar todas as
potenciais fontes de exposição. Neste sentido, é importante conhecer o processo
de fabrico, as atividades envolvidas e os diferentes cenários de exposição,
assim como identificar as vias de exposição mais prováveis. Este tipo de
informação também é relevante para decidir a estratégia de teste adequada (que
estudos e que vias de administração) e a elaboração de recomendações sobre
medidas de prevenção do risco. Estas podem incluir o uso de equipamento de
proteção individual com especificações definidas (máscaras de proteção nível 3
-FFP3), uso de filtros HEPA, e ainda a implementação de medidas operacionais
tais como a extração forçada de ar no posto de trabalho&-LEV (local exhaust
ventilation), redução da duração das tarefas e, de uma maneira geral, formação
relativa a boas práticas de fabrico.
Logo após a implementação do RIPoN, uma análise de incerteza demonstrou que
existem lacunas no conhecimento em quase todos os aspetos relacionados com
potenciais riscos para a saúde e o ambiente associados aos NM27. Mais
recentemente, a Comunicação da Comissão das Comunidades Europeias sobre aspetos
reguladores dos nanomateriais28 expressou a mesma incerteza, ao salientar a
existência de lacunas relativamente às questões de segurança dos NM,
salvaguardando a possibilidade de modificar a legislação existente mediante
novas informações. é também referido o esforço internacional que se encontra em
curso para avaliação e gestão dos riscos associados à exposição a estes
materiais, por forma a garantir a sua utilização em consonância com elevado
nível de saúde pública, segurança e proteção dos consumidores, trabalhadores e
ambiente.
Presentemente, perante os novos produtos baseados em nanomateriais e as
incertezas no que se refere à sua segurança aplica-se, de uma forma geral, o
princípio da precaução, enquadramento utilizado para a regulação de tecnologias
emergentes que possam constituir potenciais ameaças graves para a saúde ou para
o ambiente29. O princípio da precaução preconiza a necessidade de atuar para
reduzir perigos potenciais antes de existir uma prova cabal do perigo, tendo em
consideração os prováveis custos e benefícios da ação versus inação.
Lamentavelmente, são variados os exemplos de um passado recente em que
tecnologias emergentes com enorme potencial para aplicações industriais ou
médicas se revelaram tardiamente como nocivas para o ser humano e para o
ambiente. Um desses exemplos foi a produção e ampla utilização das fibras de
asbestos para fins industriais e revestimentos na construção civil, que se
verificou na segunda metade do século XX. Apesar de repetidos alertas quanto
aos seus potenciais efeitos adversos para o homem, estes foram ignorados,
prevendo-se, em consequência, um acréscimo da ordem dos milhares de casos de
mesotelioma e de cancro do pulmão, nos próximos 25 anos. Outro caso
paradigmático é o dos raios-X, cuja utilização se banalizou após a sua
descoberta no final do século XIX, dadas as suas potencialidades para
diagnóstico e terapêutica. Embora os seus efeitos agudos tenham sido
precocemente reconhecidos, os efeitos crónicos, resultantes da exposição
repetida, foram ignorados durante mais de 50 anos, sendo que apenas em 1949 o
International Commission on Radiation Protection (ICRP) reconheceu que se
deveria minimizar a exposição ao raio-X devido ao seu efeito cancerígeno.
Contudo, só em 1996 foi publicada a Diretiva Europeia sobre radiação ionizante
baseada nos limites de dose estabelecidos pelo ICRP alguns anos antes, cuja
implementação se tornou mandatória para todos os Estados-Membros30. Em qualquer
destes casos, as consequências só se tornaram evidentes décadas após as
primeiras exposições ocorrerem, devido aos longos períodos de latência dos
processos cancerígenos, impedindo a ação no sentido de minimizar ou impedir a
exposição. Até que ponto os alertas que foram surgindo nos casos ilustrados
poderiam ter conduzido a ações precoces para reduzir os perigos, a um custo
mais baixo para a sociedade, se tivesse sido aplicado o princípio da precaução?
Assim, deveremos ter aprendido com estes exemplos e, face ao novo desafio
colocado pela crescente produção e utilização de nanomateriais, importará
expandir a base do conhecimento através de avaliações integradas que permitam
gerar evidência para que os decisores e todas as partes interessadas possam
prever as consequências possíveis da regulamentação e das ações e inações.
Enquanto a incerteza persistir quanto aos potenciais efeitos adversos dos NM,
procura-se que a aplicação do princípio da precaução permita o equilíbrio entre
os riscos que possam vir a ser reconhecidos e os benefícios societais que deles
advêm.
Na prática, a aplicação do princípio da precaução implica a implementação de
medidas de prevenção baseadas na redução da exposição humana, ao longo de todas
as fases do ciclo de vida do NM, tendo em conta as vias de exposição de maior
preocupação e incluindo, necessariamente, planos de emergência em caso de
acidente. O National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH)
recomendou o desenvolvimento e a implementação de medidas de proteção
temporárias no caso da exposição ocupacional29.
Contudo, urge que sejam tomadas decisões regulamentares com base em evidência
científica, caso seja identificado algum risco para a saúde humana, pelo que é
premente aprofundar os estudos epidemiológicos e toxicológicos sobre NM.
Tratando-se de materiais manufaturados para utilização em produtos de uso
humano, tem de ser considerado para esta avaliação o continuum da investigação,
desenvolvimento e produção até ao consumidor, bem como todos os seus
intervenientes, propondo-se para esse fim o enquadramento ilustrado na Figura
2. Neste enquadramento, a governança de potenciais riscos para a saúde
associados aos NM deve ser adaptativa, à medida que o conhecimento científico
progride, de modo a assegurar uma adequada análise do risco em tempo útil,
considerando as características específicas dos nanomateriais sem menosprezar
os seus grandes benefícios societais.
Toxicidade dos nanomateriais: a nanotoxicologia
Datam de 1990 dois trabalhos na revista científica Journal of Aerosol Science,
que sugeriam a ideia de que as partículas inaladas de diâmetro inferior a 100
nanómetros produziam uma resposta exacerbada nas células pulmonares (Ferin et
al., 1990 e Oberdörster et al., 199031). A associação entre os efeitos
biológicos e a dimensão das partículas, sugerido por estes autores, tem sido
progressivamente confirmada através de outros estudos31. Na Tabela_2 resumem-se
as principais características, biocinética e efeitos biológicos das
nanopartículas, em comparação com os seus análogos de dimensão superior a 500
nanómetros, que se considera terem maior impacto no seu perfil toxicológico e
modo de ação. Salientam-se, assim, as 2 características fundamentais dos NM que
condicionam também a sua toxicidade31, designadamente, a dimensão das
partículas e o seu comportamento dinâmico em meio gasoso e líquido4,31. O
comportamento dinâmico dos nanomateriais, ou seja, a sua capacidade de formação
de agregados ou aglomerados, determina a dimensão real das partículas que vão
interagir com os sistemas biológicos4. Enquanto os agregados de NM consistem em
partículas primárias unidas por ligações químicas fortes (tipo covalente), nos
aglomerados as partículas primárias estão unidas por forças de van der Waals
fracas, sendo as suas propriedades fortemente influenciadas pelo meio em que se
encontram4. Assim, as propriedades químicas dos NM, tais como hidrofobicidade,
funcionalização, carga, estado de dispersão e adsorção de proteínas na sua
superfície, são determinantes para a sua aptidão para serem absorvidos,
metabolizados e eliminados ou acumulados no organismo. Estas propriedades
podem, no entanto, ser modificadas de um modo dinâmico quando em condições
biológicas ou ambientais distintas32. Por este motivo, mesmo quando o perfil
toxicológico dos constituintes de um NM é conhecido, podem existir casos em que
os seus efeitos na saúde e no ambiente sejam distintos relativamente aos dos
mesmos constituintes na forma não nanométrica.
Como foi anteriormente referido, a deposição de NM nos tecidos pode desencadear
uma resposta inflamatória em que células como macrófagos e neutrófilos são
recrutados para o local do contacto, levando ao stress oxidativo a nível
celular (produção de ROS) que, por sua vez, podem causar alterações no genoma
das células adjacentes, produzindo efeitos genotóxicos secundários. Em
situações de inflamação crónica, o stress genotóxico será permanente, com
consequente acumulação de alterações genéticas que facilitarão o processo de
transformação das células em direção a um fenótipo maligno. Contudo, mesmo na
ausência de uma resposta inflamatória, os NM podem induzir, primariamente,
efeitos genotóxicos mediados por stress oxidativo, através da sua interação com
constituintes celulares, incluindo as mitocôndrias e oxidases NADPH ligadas à
membrana celular ou através da depleção de antioxidantes (e.g., glutationo).
Sabe-se, por exemplo, que os iões metálicos de transição contidos na composição
de muitos NM (e.g., cádmio, crómio, cobalto, cobre, ferro, níquel, titânio e
zinco) podem ser libertados, causando a conversão dos metabolitos do oxigénio
celular em ROS33. Jacobsen et al.34 demonstraram a indução de ROS em células
expostas a negro de carbono, nanotubos de carbono de parede simples e fulerenos
C60. Até que ponto, na situação de exposição por via inalatória a NM, este tipo
de mecanismo de transformação celular pode ser generalizado, ainda permanece
uma questão em aberto que deverá ser objeto de investigação futura.
Para além das lesões oxidativas no DNA, também os efeitos genotóxicos diretos
dos NM podem contribuir de forma determinante para gerar instabilidade genética
que, por sua vez, pode contribuir para o desenvolvimento de processos
cancerígenos. Teoricamente, a capacidade de penetração dos NM nos sistemas
celulares será superior à dos seus análogos não nanométricos, permitindo-lhe
atravessar as membranas celulares e atingir o núcleo, onde poderão interagir
diretamente com o genoma da célula ou com as proteínas nucleares. Os NM que não
consigam transpor a membrana nuclear poderão, ainda assim, ter acesso ao DNA e
proteínas nucleares no decurso do processo mitótico, podendo originar fenómenos
de aneuploidia. Este tipo de acontecimentos foi já descrito para os NM de
dióxido de titânio e sílica que penetram no núcleo e causam a formação de
agregados de proteínas intranucleares, levando à inibição da replicação,
transcrição e proliferação celular33. Estudos mais recentes sugerem que o
dióxido de titânio é capaz de se inserir também nas bases de DNA, ligando-se
aos nucleótidos e alterando a estrutura secundária do DNA35. Outro exemplo diz
respeito às nanopartículas de ouro que parecem exibir a capacidade de se
ligarem ao DNA, quer exteriormente, quer intercalando-se parcialmente na cadeia
de DNA36. Apesar destes efeitos observados, outros estudos, porém, têm revelado
resultados negativos para as mesmas classes de NM.
Embora os mecanismos descritos, consistindo numa ação primária direta ou
indireta dos NM sobre o genoma ou numa ação secundária, via resposta
inflamatória, tenham vindo a ser propostos com base em evidências
experimentais, ainda persistem muitas incertezas que justificam uma
intensificação dos estudos sobre os potenciais efeitos adversos destes
materiais com vista a uma correta avaliação de risco.
Perante esta fragilidade do conhecimento, tem-se assistido a uma conjugação de
esforços de organismos internacionais, como o Centro para o Controlo de Doenças
(Center for Disease Control, CDC), a OCDE e a UE, no sentido de promover
projetos e grupos de trabalho com vista a assegurar a utilização segura dos NM.
Neste contexto, a nanotoxicologia &- visando a avaliação dos efeitos adversos
dos NM no organismo humano e ecossistemas, levando em consideração as
especificidades destes, para proteger a saúde &- tem vindo a desenvolver-se
como uma área de relevo no âmbito da saúde pública4. Esta área recente da
toxicologia deverá produzir o conhecimento científico dos mecanismos de ação
dos NM nos sistemas biológicos, que contribuirá para a realização de uma
análise de risco, conforme esquematicamente representado na Figura_2. Assim, a
nanotoxicologia irá contribuir para uma abordagem preditiva, como a proposta
por Nel et al. (2012). De acordo com este autor, a necessidade de uma
plataforma para a investigação das interações na interface nano/bio pode ser
respondida através de metodologias com elevado rendimento (High-Throughput
Screening) para o rastreio in vitro das propriedades toxicológicas dos NM,
fundamentadas no seu modo de ação, procurando prever-se quais as propriedades
físico-químicas dos NM que podem conduzir a patologias in vivo37. Espera-se que
a utilização deste tipo de nanotoxicologia preditiva permita, futuramente,
estabelecer uma abordagem de safe-by-design38 que pressupõe a síntese de NM
seguros após modificação das propriedades responsáveis pela sua toxicidade.
Para isso, é essencial conhecer o seu modo de ação, bem como as propriedade(s)
diretamente associadas à sua toxicidade, para que se possam modificar,
minimizando os efeitos tóxicos e promovendo a síntese de NM seguros, que terão,
ainda assim, de ser analisados quanto à sua segurança.
Avaliação da genotoxicidade e potencial carcinogénico dos nanomateriais
Segundo o Joint Research Center (JRC), a avaliação de segurança dos
nanomateriais deve ser enquadrada ao nível da investigação básica e
translacional, procurando produzir-se conhecimento sobre os mecanismos de
toxicidade específicos dos NM e aplicar esse conhecimento para reduzir os seus
impactos na saúde38. Assim, sugere o desenvolvimento de metodologias inovadoras
para análise de riscos nanoespecíficos e a validação de modelos in vitro e in
vivo recorrendo a NM de referência38. Por outro lado, os muitos esforços
internacionais realizados têm vindo a produzir uma grande quantidade de dados
sobre a toxicidade das diversas classes de NM, sendo de estimular também a
adequada partilha e difusão do conhecimento, incluindo a apresentação de
resultados negativos, e a realização de meta-análises de toda esta a
informação39. Por fim, preconiza-se como prioridades de investigação a
definição de curvas dose-resposta em órgãos alvo e sistemas complexos,
recorrendo a materiais bem caracterizados38.
Por outro lado, os pareceres emitidos pelo Comité Científico para os Riscos
Emergentes e Identificados de Novo3 (Scientific Committee on Emerging and Newly
Identified Health Risks, SCENIHR) e pela UE destacam as nanopartículas livres e
os NM de baixa solubilidade como uma preocupação prioritária no contexto do
risco humano e ambiental.
Uma das principais preocupações relativamente aos efeitos adversos dos NM na
saúde humana é o seu potencial efeito carcinogénico, que importa avaliar e
caracterizar. Contudo, os ensaios de carcinogénese são demorados (cerca de 2
anos) e muito dispendiosos, uma vez que se baseiam na exposição de um elevado
número de animais ao agente em estudo e na observação do estado de saúde ao
longo da sua vida, com vista à deteção da eventual formação de tumores. Dado
que a carcinogénese é um processo complexo, com múltiplos passos, em que estão
frequentemente envolvidas mutações em genes críticos e instabilidade genómica,
grande parte dos agentes carcinogénicos atua por uma via genotóxica, i.e.,
através da indução de lesões irreversíveis no genoma cuja acumulação contribui
para a tumorigénese. Estabelecida a associação entre genotoxicidade e
carcinogénese, foram desenvolvidos ensaios de genotoxicidade (de curto termo)
para permitir prever de uma forma mais rápida e económica o efeito
carcinogénico de qualquer agente físico, químico ou biológico. Assim, a
avaliação da segurança no que se refere ao seu efeito genotóxico é geralmente
baseada numa combinação de ensaios que permitem avaliar 3 tipos de alterações
genéticas com particular relevância na determinação de cancro: mutação génica e
clastogenicidade (quebra cromossómica) e aneuploidia (perda cromossómica). Dado
que um único teste é insuficiente para caracterizar estes três eventos-chave,
têm sido propostas várias abordagens baseadas na combinação de testes de
genotoxicidade de curto termo in vitro e in vivo, conforme preconizado na
revisão das linhas orientadoras elaboradas pelo grupo de trabalho da
International Conference on Harmonisation of Technical Requirements for
Registration of Pharmaceuticals for Human Use (ICH)40,41 e, mais recentemente,
da Organização Mundial de Saúde/Programa Internacional de Segurança Química
(OMS/IPCS)42. Ensaios deste tipo têm vindo a ser realizados utilizados no
Departamento de Genética Humana do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo
Jorge com vista à caracterização de efeitos genotóxicos de agentes físicos,
químicos e biológicos e seus mecanismos de ação a nível molecular, celular e do
organismo43,44.
No entanto, as considerações expostas sobre as propriedades específicas dos NM
conduzem novamente à questão que tem sido amplamente discutida no meio
científico4,45,46: será a metodologia atual de avaliação de risco utilizada na
UE para os compostos químicos diretamente aplicável aos NM, ou deverá ser
modificada para se adequar às características específicas dos NM?
A resposta a esta questão depende, por um lado, da existência de conhecimento
científico detalhado sobre o comportamento dos NM nos sistemas biológicos
similares aos humanos, ou que sejam extrapoláveis para a espécie humana. Por
outro lado, implica a validação das metodologias de avaliação de toxicidade, em
especial de genotoxicidade, já existentes, bem como da sua capacidade para
detetarem os efeitos dos NM nesses sistemas biológicos. Surgiu, assim, a
nanogenotoxicologia, que tem o objetivo de avaliar o potencial genotóxico dos
NM tentando, em paralelo, esclarecer as propriedades físico-químicas mais
relevantes para esse tipo de efeitos33.
Globalmente, numa primeira abordagem, procura-se realizar a avaliação dos
efeitos genotóxicos dos NM, utilizando os ensaios e os modelos experimentais já
validados33. Contudo, a maioria dos estudos publicados tem revelado resultados
muito diversos e até contraditórios para uma mesma classe de NM, evidenciando
limitações inerentes à especificidade de trabalhar com materiais à escala nano,
bem como diferenças na execução experimental que dificultam a comparação dos
resultados, não permitindo uma análise conclusiva. As secções seguintes
ilustram estas dificuldades, através da informação relativa à avaliação da
segurança dos NM de dióxido de titânio e de nanotubos de carbono, amplamente
utilizados em produtos de consumo.
O caso dos nanomateriais de dióxido de titânio
Existem vários tipos de pigmento branco de dióxido de titânio, utilizados na
produção de tintas e revestimentos. O dióxido de titânio é usado também em
papel, plástico, cerâmica, borracha, tinta de impressoras, revestimentos do
chão, catalisadores, tecidos e têxteis, cosméticos (e.g. em protetores
solares), corantes alimentares, medicamentos e componentes eletrónicos47. Os
diferentes nanomateriais de dióxido de titânio, embora com a mesma composição
química, podem apresentar-se com 4 estruturas cristalinas diferentes: rutilo,
anatase, broquite ou dióxido de titânio (B)1, sendo que as formas rutilo e
anatase são as mais frequentemente usadas em produtos de consumo.
Recentemente, o National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH)43
recomendou limites de exposição de 0,3 mg/m3 de ar para o dióxido de titânio
nas formas nano. O limite de exposição em Portugal para esta substância é de
10 mg/m3 de ar, considerando o TWA (8-h tempo médio ponderado)15.
Como referimos anteriormente, embora não existam dados atuais sobre a exposição
de trabalhadores aos NM de dióxido de titânio, os dados de 1981-83 indicam que
2,7 milhões de trabalhadores estavam potencialmente expostos a estes NM15,
especialmente por via inalatória. No entanto, de acordo com a revisão recente
da NIOSH, os 5 estudos epidemiológicos já realizados sobre a exposição dos
trabalhadores e da população aos nanomateriais de dióxido de titânio (em pó)
não evidenciaram um risco acrescido de mortalidade ou morbilidade por cancro do
pulmão43. Assim, a NIOSH considera não existir evidência suficiente para
classificar os NM de dióxido de titânio como potenciais agentes carcinogénicos
em contexto ocupacional47. Porém, na classificação da Agência Internacional
para a Investigação em Cancro (International Agency for Research on Cancer,
IARC), o dióxido de titânio na forma nano é considerado como
"possivelmente carcinogénico para humanos" (Grupo 2 B), pois, muito
embora não exista evidência adequada para a sua carcinogenicidade em humanos,
há evidência suficiente de efeitos carcinogénicos em animais15. No que se
refere ao seu potencial genotóxico, a investigação até ao momento não foi
conclusiva: enquanto vários estudos realizados em bactérias revelaram não
existir genotoxicidade induzida pelo dióxido de titânio15,47, foram já
reportados efeitos positivos em células eucariotas e em animais. Os diferentes
resultados refletem, possivelmente, diferentes características dos NM
investigados, como a forma cristalina ou a pureza, diferentes procedimentos
usados para a sua dispersão em meio aquoso (p. ex. meio para cultura celular ou
veículo para administração em animais), diferentes vias de exposição, nem
sempre explicitadas na literatura, ou ainda diferenças entre os modelos
experimentais utilizados. Globalmente, o "corpo de evidência"
relativamente à existência ou não de genotoxicidade associada aos NM de dióxido
de titânio, bem como o modo como essa genotoxicidade surge, necessita ainda ser
esclarecido.
Outro tipo de efeitos adversos a considerar, em termos de impacto a longo termo
para o ambiente e para a saúde humana, é a desregulação endócrina. Num estudo
recente, Wang et al. (2011) observaram que uma exposição prolongada a NM de
dióxido de titânio afetou negativamente a reprodução de peixes-zebra e a
sobrevivência dos embriões, independentemente da concentração48. Ainda que as
condições de exposição não tenham sido igualmente seguidas para o grupo de
controlo, os resultados da análise histológica e do estudo de expressão génica
permitiram, respetivamente, caracterizar um atraso na foliculogénese bem com um
perfil de expressão génica compatível com alterações da maturação e da função
dos ovários dos peixes expostos a dióxido de titânio, confirmando que este NM
pode ser tóxico ao nível do sistema reprodutor dessa espécie. Assim, sugere-se
que a contaminação de ambientes aquáticos com NM de dióxido de titânio, mesmo
em baixas doses, pode ter impacto na reprodução das espécies, efeito que, até
ao momento, não tinha sido descrito, constituindo mais um motivo para a
investigação do potencial impacto dos NM no ambiente e na saúde humana.
O caso dos nanotubos de carbono e o paradigma dos asbestos
Os nanotubos de carbono (CNT) são um tipo de nanomateriais manufaturados cujas
aplicações têm vindo a aumentar muito significativamente. Consistem em
cilindros de carbono à escala nano, constituídos por grafenos, podendo variar
na sua forma, dimensão, características físicas, revestimentos, composição
química ou funcionalização49. Os nanotubos de carbono de parede simples (SWCNT)
têm um diâmetro de cerca de 1 nm, sendo formados por um só cilindro, enquanto
os nanotubos de carbono de parede múltipla (MWCNT) são constituídos por
numerosos SWCNT concêntricos, possuindo diâmetros de cerca de 2-100 nm; existem
ainda as nanofibras de carbono com diâmetros entre 40 e 200 nm50. Os CNT são
mecanicamente muito resistentes, flexíveis e bons condutores de eletricidade, o
que permite a sua utilização em diversas aplicações, nomeadamente, em
compósitos reforçados, sensores e eletrónica50.
Durante o seu ciclo de vida, os CNT podem atingir o ambiente, não se sabendo,
porém, como se comportam na cadeia alimentar51. Não existem dados de estudos
epidemiológicos ou de biomonitorização até à data14 que apontem para efeitos
adversos no Homem.
No entanto, as semelhanças no tamanho e forma entre os CNT e as fibras de
asbestos têm gerado preocupações sobre a sua segurança. A principal questão
deriva não só da sua dimensão nano, mas também da estrutura fibrosa que os
torna semelhantes, neste aspeto, aos asbestos. Num estudo recente, após injeção
intraperitoneal de MWCNT em ratinhos, foi mesmo sugerido um mecanismo de
patogenicidade semelhante ao dos asbestos. Porém, em vez de se desenvolver
cancro, verificou-se antes a encapsulação dos CNT pelas células multinucleadas
do sistema imunitário, numa aparente "fagocitose frustrada". Em
contraste, Takagi et al., após exposição de ratinhos p53+/− (que se sabe
serem sensíveis aos asbestos) a uma dose elevada de MWCNTs, observaram a
indução de mesotelioma, uma neoplasia maligna associada à exposição a
asbestos52. Mais recentemente, os trabalhos de Muller et al. não revelaram
indução de carcinogénese em ratos expostos a MWCNT53, ficando assim por
esclarecer a questão da analogia com os asbestos.
A carcinogénese induzida por fibras é, provavelmente, um processo complexo
envolvendo um stress genotóxico de longo termo. Poder-se-á assumir que as
fibras do NM são genotóxicas primariamente através da interação direta com o
DNA, o aparelho mitótico ou via stress oxidativo e, secundariamente, em
consequência da resposta inflamatória. Considerando o paradigma das fibras,
sustentado na inflamação crónica como precursora do processo carcinogénico,
vários estudos têm investigado a ocorrência de respostas inflamatórias após
exposição de animais a CNTs. Inicialmente, os estudos de Muller53 mostraram a
indução de inflamação por instilação intratraqueal de MWCNT. Ensaios em ratos
expostos por inalação de MWCNT demonstraram a ocorrência de lesões no pulmão
(inflamação e formação de granulomas), embora não tenham revelado toxicidade
sistémica54. Porter et al. (2010) observaram também inflamação pulmonar e
fibrose em ratinhos expostos a MWCNT55. Por outro lado, em ratinhos C57BL/6,
outros autores não verificaram inflamação dos pulmões nem lesões, mas sim
alterações imunitárias sistémicas após inalação de MWCNT56. Porém, estudos de
toxicogenómica identificaram a exposição a MWCNT como causa de alterações da
expressão génica num conjunto de biomarcadores de cancro do pulmão em
ratinhos57. Os estudos de Ryman-Rasmussen et al. (2009) sugeriram que uma
inflamação alérgica preexistente poderia aumentar a sensibilidade à inalação de
MWCNT, efeito confirmado no estudo de Park et al58.
Relativamente a genotoxicidade, existem muitas evidências de indução de lesões
no DNA pelos MWCNT, mas ainda existem resultados contraditórios. Por exemplo,
ensaios de mutagénese em bactérias e ensaios citogenéticos em linfócitos
humanos (análise de micronúcleos e trocas de cromatídeos irmãos) revelaram-se
negativos59. Contudo, a exposição de linfócitos humanos a MWCNT aumentou a
incidência de quebras no DNA de um modo dependente da dose, com concomitante
declínio da proliferação celular56. Estudos de genotoxicidade em linhas
celulares humanas derivadas do epitélio respiratório revelaram também
resultados positivos60. Ou seja, também no caso dos nanotubos de carbono, os
dados são inconsistentes e existe a necessidade de esclarecer as suas
propriedades e mecanismos de genotoxicidade para garantir a segurança da sua
utilização.
Nanotoxicologia: as lacunas e os progressos no conhecimento
Grande parte dos trabalhos publicados sobre nanotoxicologia não descreve
adequadamente a caracterização físico-química dos NM testados, tais como
tamanho, forma, composição química, cristalinidade e propriedades de superfície
(e.g., área, porosidade, carga, funcionalização), que condicionam fortemente a
sua cinética e atividade biológica. Para além disso, aspetos relacionados com o
procedimento experimental, tais como o método de preparação e controlo de
dispersões dos NM, as condições de exposição, a falta de controlos positivos e
a utilização de metodologias ainda não estandardizadas, podem ser determinantes
nos resultados obtidos. Por exemplo, a agregação dos NM pode condicionar
mecanismos como a eliminação efetiva das partículas maiores pelos macrófagos.
Muitos estudos são conduzidos em intervalos de concentrações muito elevadas,
favorecendo a agregação e, consequentemente, reduzindo a sua potencial
toxicidade4. Por isso, em muitos dos estudos poderão não ser detetados efeitos
mais subtis que podem ocorrer a baixas concentrações, com risco para a saúde
humana, como é o caso da indução de lesões no DNA em células somáticas ou em
células germinais, que podem contribuir a longo prazo para, respetivamente, o
desenvolvimento de um processo cancerígeno ou para o aparecimento de doenças
hereditárias na descendência.
Procurando responder a algumas destas necessidades de conhecimento, iniciou-se
em 2010 a Ação Concertada Europeia "NANOGENOTOX- Safety Evaluation of
Manufactured Nanomaterials by Characterisation of their potential Genotoxic
Hazard" (projeto cofinanciado pela EAHC e 11 Estados-Membros da UE, no
qual o INSA participa como representante de Portugal). Este projeto pretende
colmatar a escassez de conhecimento científico relativamente aos potenciais
riscos para a saúde associados aos NM e contribuir, assim, para a melhoria da
saúde e segurança dos cidadãos, no que diz respeito à utilização de
nanomateriais. O plano de trabalho inclui o recurso a um painel de NM de
dióxido de titânio, de sílica e de nanotubos de carbono, que serão adequada e
completamente caracterizados do ponto de vista físico-químico e cuja dispersão
em meio aquoso será otimizada no âmbito do projeto, para minimizar a
variabilidade inerente a esses fatores. Os parâmetros toxicocinéticos serão
caracterizados em modelos murinos para análise da biopersistência e
identificação de órgãos-alvo. Por sua vez, a potencial genotoxicidade desses NM
será avaliada utilizando-se uma combinação de ensaios de genotoxicidade
estandardizados, quer em linhas celulares quer em roedores. Assim, espera-se
obviar a maioria das limitações apontadas aos estudos anteriores e produzir
dados consistentes que permitam o estabelecimento de metodologias robustas,
isto é, específicas e sensíveis, para caracterização dos potenciais efeitos
genotóxicos dos NM, contribuindo também para a avaliação de risco. Em
complemento, espera-se também fornecer suporte científico para apoiar as
decisões regulamentares que é urgente delinear, à escala europeia.
Conclusões
Verifica-se, presentemente, um incremento significativo no desenvolvimento,
produção e utilização de nanomateriais manufaturados a nível mundial. A
nanotecnologia foi identificada, em vários relatórios de referência, como um
fator-chave de desenvolvimento, fornecendo a base para a inovação em termos de
aplicações e produtos, nomeadamente, na área da medicina e produtos de consumo,
sendo atualmente considerada essencial para a competitividade num mercado
global. No entanto, o desenvolvimento sustentado e a comercialização e
aceitação dos seus produtos, por parte da sociedade em geral, tem como pré-
requisito basear-se em processos e usos seguros para o homem e com baixo
impacto para o ambiente. Ora, como vimos, embora a informação sobre os níveis
de NM a que a população humana se encontra exposta (em contexto ambiental ou
ocupacional) seja ainda escassa, existem vários estudos in vitro e in vivo que
indiciam efeitos biológicos adversos dos NM com potencial impacto na saúde
humana. Assim, as necessidades "societais57 previstas para o futuro dos
nanomateriais manufaturados relacionam-se, por um lado, com o desenvolvimento
de novas aplicações e, principalmente, com o desenvolvimento um paradigma de
nanotoxicologia preditiva que permita evitar os seus potenciais efeitos
adversos, garantindo a sua utilização segura durante todo o seu ciclo de vida.
Para esse fim, é necessária uma congregação de esforços que permita, por um
lado, preencher as lacunas do conhecimento acerca dos potenciais efeitos
nocivos dos NM e, por outro, estabelecer níveis de exposição aceitáveis para a
preservação da saúde humana e do ambiente. Enquanto não for rigorosamente
demonstrada a segurança dos nanomateriais, isto é, perante a incerteza quanto
ao risco decorrente da exposição a nanomateriais, deverá aplicar-se o princípio
da precaução visando a proteção da saúde pública.
Neste contexto, a nanotoxicologia poderá dar um contributo inestimável
relativamente à avaliação dos efeitos nocivos dos NM e, em particular, os
estudos de genotoxicidade poderão fornecer evidências quanto ao potencial de os
NM contribuírem para o desenvolvimento de doenças crónico-degenerativas e
genéticas e, em particular, de cancro. Contudo, devido à complexidade associada
às suas propriedades físico-químicas únicas, a caracterização da genotoxicidade
destes materiais e a comparação dos resultados de diversos estudos constitui um
desafio para cientistas e reguladores. Em resposta a esse desafio, a construção
de repositórios de NM de referência e a sua partilha entre a comunidade
científica afigura-se como essencial para possibilitar a comparação
interlaboratorial dos efeitos observados para um mesmo NM ou para uma classe de
NM. Para além disso, a complexidade inerente à nanotoxicologia tem vindo a ser
ultrapassada através de uma abordagem alargada e multidisciplinar, envolvendo a
integração de resultados de toxicocinética e toxicodinâmica com os da
caracterização exaustiva das propriedades físico-químicas dos NM e do seu
comportamento dinâmico em meios biológicos. Dessa integração têm vindo a surgir
conhecimentos sobre as interações dos NM com os sistemas biológicos e os
mecanismos de ação subjacentes aos efeitos observados, ao nível tecidular,
celular e molecular, contribuindo para um reforço da evidência científica sobre
a potencial toxicidade dos NM. Deste modo, poderão ser preenchidas as lacunas
de conhecimento acerca da toxicidade dos NM e ser estabelecida uma evidência
alicerçada numa base de conhecimento científico sólido, em consonância com a
visão de uma toxicologia do século XXI61. Esta plataforma de evidência
permitirá abordar o segundo desafio que surge para a saúde pública: efetuar uma
avaliação de risco ao longo do ciclo de vida dos NM, desde a sua síntese e
produção até à sua eliminação, com a ponderação dos riscos colocados a todos os
intervenientes em contexto ocupacional, ambiental ou de consumidor/utilizador.
Por sua vez, a liderança e a coordenação das ações de análise de risco deve ser
centralizada, quer ao nível nacional, quer europeu, envolvendo todas as partes
interessadas, nomeadamente, a indústria, as associações empresariais, os
investigadores, as autoridades de saúde, os consumidores e os reguladores. Tal
análise pressupõe o registo dos produtos e produtores de NM e, bem assim, a
determinação das exposições reais a que o ser humano pode estar sujeito,
procurando estabelecer níveis de exposição aceitáveis para a preservação da
saúde humana e do ambiente. Preconiza-se a implementação de algumas medidas de
base, com vista a contribuir para a avaliação de risco, tais como: 1) organizar
um registo nacional de todas as unidades industriais produtoras e utilizadoras
de NM; 2) implementar um registo nacional de produtos de consumo humano
contendo NM; 3) efetuar o registo de trabalhadores potencialmente expostos a NM
na realização das suas tarefas e, logo que possível, fazer uma estimativa da
sua exposição; 4) envolver a indústria para fornecer informação sobre as
abordagens utilizadas para avaliação dos riscos de exposição aguda (acidental)
e planos de contingência em caso de acidente, bem como os riscos de exposição
crónica (baixas doses), incluindo medidas preventivas; 5) estabelecer uma base
de dados de casos clínicos associados a efeitos nefastos de exposição a
nanomateriais; e 6) monitorizar eventuais efeitos a longo prazo associados à
exposição crónica a NM.
Finalmente, importa partilhar o conhecimento através da construção de bases de
dados partilhadas e de repositórios de informação sobre as metodologias de
avaliação de risco, resultados de investigação e medidas de vigilância e
estimular a sua disseminação no meio científico e na sociedade62.
Contudo, o conhecimento atual ainda não é suficientemente sólido para permitir
uma regulação da produção e aplicação das variadas classes de nanomateriais
totalmente baseada na evidência científica. Neste caso, a adoção do princípio
da precaução pode ajudar em simultâneo a inovação e a ciência. Como foi
anteriormente referido, este princípio preconiza a necessidade de agir perante
uma situação de incerteza de perigo potencialmente grave ou irreversível para a
saúde ou para o ambiente, com o objetivo de o reduzir antes de se vir a provar
cabalmente que ele existe de facto, tendo em conta os custos e benefícios da
ação e da inação. Este princípio inclui elementos como: 1) investigação e
monitorização para deteção precoce dos perigos associados aos NM; 2) redução
geral da carga ambiental; 3) promoção de uma produção de NM ecológica e
inovadora; e 4) princípio da proporcionalidade, onde os custos das ações para
prevenir os perigos não deverão ser desproporcionados relativamente aos seus
prováveis benefícios. Embora por vezes se tema que uma abordagem precaucionária
possa asfixiar a inovação, ela pode, na realidade, proporcionar oportunidades
de compreensão de sistemas complexos emergentes, tendo em conta as necessidades
humanas, com menores custos para a saúde e para o ambiente. Assim, acomodar a
avaliação de risco no processo de inovação tecnológica poderá ajudar a
ultrapassar a relação controversa entre inovação e regulação.
Um outro desafio prende-se com o desenvolvimento de metodologias inovadoras, em
especial abordagens de elevado rendimento, forte poder preditivo e custo
controlado que possibilitem antecipar o risco associado à colocação no mercado
de novos NM que vão sendo desenvolvidos. Significa isto que é necessário
implementar métodos de avaliação de uma eventual toxicidade numa fase precoce
do desenvolvimento do NM, antes de entrar na fase de produção industrial, para
evitar grandes perdas económicas decorrentes de uma descoberta tardia de
toxicidade e poder dirigir a síntese no sentido de obter moléculas mais
seguras. De facto, considerando o elevado potencial de aplicações dos NM,
deverá recorrer-se aos dados da nanotoxicologia, no sentido de dirigir a
síntese de nanomateriais manufaturados que sejam safe-by-design, isto é,
eliminando as características responsáveis pela sua toxicidade e possibilitando
o progresso tecnológico e "societal" que a aplicação dos novos
nanomateriais prenuncia.
Na área da saúde pública, a evidência científica não é em si mesma suficiente
&- é necessário também atuar atempadamente e tomar decisões regulamentares
relativamente os NM que permitam uma governança de risco mais adaptativa e
eficaz. Não apenas a avaliação de risco, mas também a gestão do risco e a
comunicação do risco, deverão ser reformuladas perante estes novos materiais. é
essencial também a partilha de informação fidedigna entre todas as partes
envolvidas para uma ação política efetiva e também a participação ativa de
todos, incluindo dos cidadãos atentos e informados, nas tomadas de decisão.
Acima de tudo, a saúde pública terá de assegurar a interligação e o equilíbrio
entre a evolução tecnológica e a garantia da segurança dos nanomateriais e das
nanotecnologias, por forma a que possamos beneficiar da inovação assegurando a
proteção do ambiente e da saúde humana.