Gestão integrada da doença renal crónica: análise de uma política inovadora em
Portugal
Comentário
Portugal foi o primeiro país do mundo a conceber e implementar um programa de
gestão de doença renal crónica em todo o território nacional, assim, importa
fazer a análise desta medida política, cujo modelo de coordenação e integração
de cuidados tenta responder aos desafios da medicina baseada na evidência, da
eficiência técnica e económica, da melhoria contínua da qualidade dos cuidados
de saúde e da satisfação dos doentes.
A política de saúde de gestão integrada da doença, aplicada à doença renal
crónica (DRC) de estádio 5, demonstrou ser capaz de incrementar a qualidade dos
cuidados, melhorar a partilha de risco entre os doentes, os prestadores de
cuidados e o Estado, assim como garantir a sustentabilidade do sistema de
saúde.
Introdução
Na última década têm-se desenhado programas de gestão da doença crónica para
melhorar a acessibilidade, eficiência e a qualidade dos cuidados1. A gestão da
doença crónica é uma política de melhoria da prestação de cuidados de saúde aos
doentes crónicos2 que desenvolve iniciativas multidisciplinares de coordenação
de cuidados, cooperação entre setores, estratificação do risco da população,
melhoria dos processos de interação e comunicação entre doentes e prestadores3
garantindo-se, assim, que aos grupos-alvo se ofereçam cuidados custo-eficientes
e de elevada qualidade1,3,4.
O modelo de gestão integrada da doença renal crónica (GIDRC) implementado em
Portugal continental, desde 20085, assenta nos princípios basilares dos modelos
de gestão da doença crónica, incorporando: maior rigor na gestão clínica,
através de normas de atuação clínica e definição de perfis de cuidados;
reorganização do modelo de prestação de cuidados; financiamento específico;
sistema de informação partilhado para monitorização e avaliação dos resultados
e o envolvimento ativo dos prestadores e das associações de doentes6.
Este modelo, dirigido inicialmente à DRC, veio reestruturar por completo a
relação contratual do Estado com os prestadores, o acompanhamento dos doentes e
a prestação de cuidados na área da diálise em Portugal7, tendo esta medida sido
descrita como um exemplo a seguir por outros países8. O objetivo deste artigo é
(i) descrever e analisar os processos de planeamento, negociação, implementação
e avaliação da política de GIDRC, desde o momento da sua conceção até ao
presente, e (ii) identificar de forma crítica as áreas de decisão política que
podem ser alvo de reformulação e melhoria.
Metodologia
Para a concretização dos objetivos propostos decidimos optar pela investigação
fundamental com um desenho de estudo epidemiológico observacional descritivo
que nos permita narrar a intervenção de forma detalhada respeitando as
variáveis "pessoa", "tempo" e "espaço",
compreender o fenómeno em causa, bem como evidenciar a complexidade das
interações sociais, económicas e políticas de forma dinâmica e assim produzir
informação útil ao decisor político9,10.
Assim sendo, através do modelo de Walt e Gilson (1994) procura-se analisar a
política de forma detalhada caracterizando9:
* -"contexto", de acordo com fatores sistémicos que podem ter
influenciado a decisão política, a saber: fatores estruturais nacionais e
internacionais, normalmente estáveis numa sociedade no curto prazo (como
sejam a demografia, o tipo de sistema de saúde ou as diretivas da União
Europeia), fatores culturais e sociais (como sejam a religiosidade ou a forma
como a sociedade se organiza), fatores situacionais e transitórios (por
exemplo, uma catástrofe natural ou uma crise governamental)9,11;
* -os "atores", que podem ser indivíduos ou grupos reconhecidos
como governamentais (por exemplo, organismos do governo central, regional ou
local), não-governamentais (por exemplo, ordens profissionais ou associação
de doentes), grupos de interesse e pressão (por exemplo, a indústria
farmacêutica ou os prestadores privados de cuidados) e opinion makers (com
sejam os media e a universidade)11;
* -e o processo", cujo conceito enquadra a forma como a política foi
desenhada, negociada, implementada, disseminada e avaliada, pressupondo: a
identificação do problema e da forma como foi incorporado na agenda política;
a análise das partes envolvidas no desenho da política e a forma como foi
comunicada aos interessados; a análise de "como" e "com que
recursos" a política fora implementada (incentivos, sanções); e,
finalmente, a avaliação da política e o acompanhamento das suas
consequências10.
Toda a informação aqui reconstituída foi recolhida através de estudo de caso,
painel de peritos, inquéritos por questionário, revisão de literatura, análise
de documentos técnicos, governamentais e legislação assim como por análise de
artigos de imprensa e consulta de páginas web institucionais.
O estudo de caso realizado em 5 hospitais, durante o ano de 2007, permitiu
conhecer a produção e a atividade clínica das seguintes tipologias de unidade
de diálise: hospitais com diálise ambulatória, hospitais universitários com
diálise de doentes renais crónicos com complicações e de hospitais com diálise
concessionada a entidade privada. A recolha de informação incidiu sobre os
custos, atos clínicos e consumo de medicamentos.
O inquérito, por questionário, realizado às 5 Administrações Regionais de Saúde
(ARS) em 2007 permitiu aferir os custos globais havidos com o tratamento dos
doentes em hemodiálise e identificar a prática clínica das unidades privadas de
diálise, naquilo que era a prescrição de meios complementares de diagnóstico e
medicamentos.
O inquérito de avaliação do nível de satisfação do doente em hemodiálise,
realizado em 2009, foi distribuído aos doentes diretamente pelas unidades de
hemodiálise. A resposta ao questionário era anónima e voluntária sendo a
devolução do mesmo assegurada pelo próprio doente através de envelope de
resposta sem franquia. O inquérito obteve uma taxa de resposta de 30% (2.720
respostas).
O painel de peritos consultado, em 2009, para apreciação do modelo GID envolveu
representantes das seguintes entidades: Direção-Geral da Saúde (DGS),
Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), ARS, programas nacionais de
saúde, bem como representantes das sociedades científicas, ordens e associações
profissionais.
Resultados
Contexto
A Constituição Portuguesa consagra que "todos têm direito à proteção da
saúde e o dever de a defender e promover" e que esse "direito à
proteção da saúde é realizado através do Serviço Nacional de Saúde"
(abreviadamente, SNS)12. O SNS, criado em 1979, "universal, geral e
tendencialmente gratuito", possibilitou o acesso universal aos cuidados
de saúde, através de um financiamento do sistema assente, essencialmente, na
coleta de impostos13.
A criação do SNS fez parte do processo de democratização política e social do
país, permitindo uma notável cobertura da população portuguesa. Essa expansão
deu-se em contexto de grande fragilidade financeira e de inovação de modelos de
gestão14. Assim, a incapacidade de prestar "todos os cuidados" a
"todos" resolveu-se através da aquisição de serviços ao setor
privado, representando, atualmente, esse setor (convencionado) cerca de 10% do
total dos custos do SNS13.
O SNS é um importante "segurador público de saúde", contando com
cerca de 10 milhões de "segurados" e uma oferta de serviços de 218
unidades hospitalares (116 públicas), 388 unidades de cuidados de saúde
primários15 e 5.948 camas em unidades de cuidados continuados16. O SNS
empregava, em 2012, 128.526 trabalhadores, dos quais, 26.136 médicos e 40.283
enfermeiros17.
Apesar da dificuldade de documentar a realidade do pluriemprego, sabe-se que a
prática simultânea da mesma atividade no setor público e privado se verifica,
especialmente, entre os médicos hospitalares, dos quais apenas 50% têm
dedicação exclusiva à instituição pública18.
Doença crónica
Os progressos da economia e medicina, que aumentaram a esperança média de vida
das populações, foram acompanhados também de novos fatores de risco, incluindo
novos estilos de vida, menos saudáveis e promotores do desenvolvimento de
doenças crónicas4,19.
Em 2010, um terço da população europeia tinha, pelo menos, uma doença
crónica20. A este cenário associam-se inevitáveis implicações económicas
graves, relacionadas com a limitação da capacidade de trabalho e produtividade,
a reforma ou aposentação precoce, o elevado número de baixas ou faltas ao
trabalho, assim como o baixo rendimento escolar destes doentes crónicos1. Para
além do peso da carga da doença, no consumo das famílias e no produto interno
bruto, estima-se que as despesas com os cuidados de saúde, dirigidos às doenças
crónicas, ocupem proporções cada vez maiores nos orçamentos públicos e
privados21,22.
Em Portugal, o fenómeno do crescimento da doença crónica veio salientar a
natureza fragmentária do setor de prestação de cuidados de saúde e reforçar o
potencial papel da gestão da doença6, enquanto instrumento de coordenação de
cuidados, com impacte significativo na duração e qualidade de vida dos
doentes21.
Os decisores, para enfrentarem as crescentes restrições orçamentais, procuram
novas metodologias de utilização dos recursos em saúde mais custo-efetivas,
verificando-se, nos últimos anos, em vários países da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a implementação de políticas e
programas de abordagem da doença crónica, centrados na eficiência, qualidade e
coordenação efetiva dos cuidados23.
Essas iniciativas têm-se materializado, em Portugal, na reforma dos cuidados de
saúde primários e na reorganização da rede hospitalar, "através de uma
visão integrada e mais racional do sistema de prestação, que permita maior
equidade territorial e uma gestão mais eficiente dos recursos"24.
Destaca-se, dentro das principais medidas políticas recentemente adotadas, o
desenvolvimento do modelo de GID que, num contexto de grande contenção
económica, é capaz de atingir objetivos de eficiência e qualidade, centrados na
medicina baseada na evidência, e ser, igualmente, um instrumento de coordenação
de cuidados, socialmente aceitável6,8,25,26.
Doença renal crónica severa
A DRC é caracterizada pela perda gradual e inexorável da função renal. O nível
mais avançado da DRC, também designado de "severa" ou
"estádio 5", exige que a substituição da função renal seja assegura
por hemodiálise, diálise peritoneal ou transplante renal27.
Portugal apresenta, face à maioria dos países da Europa, uma das maiores taxas
de incidência (226,5 novos casos por milhão de habitantes [pmh]) e de
prevalência (1661,9 casos pmh) de DRC estádio 5, sob tratamento de substituição
da função renal1,28.
A distribuição destes doentes DRC em estádio 5 por modalidade de tratamento, em
Portugal, caracteriza-se pelo predomínio da hemodiálise face à diálise
peritoneal (94 versus 6%)29, o que acompanha a tendência da maior parte dos
países europeus30.
Contudo, Portugal, com 54,5 transplantes pmh, ocupa o primeiro lugar no ranking
dos países da OCDE com uma elevada prevalência de doentes vivos com enxerto
renal funcionante1.
A prestação de cuidados de hemodiálise é, atualmente, assegurada, na sua quase
totalidade (cerca de 90% dos doentes) por prestadores privados de saúde. No
território nacional 71,3% das unidades de diálise são privadas, 25% são
públicas e 3,7% são unidades dos hospitais públicos concessionadas a entidades
privadas31. Cerca de 2,5% da despesa pública global em saúde é com o pagamento
da hemodiálise, percentagem similar à de outros países da Europa7.
A política de gestão integrada da doença
A alternativa que se vislumbra à prestação de cuidados tradicional é o desenho
de novas formas de coordenação de cuidados32 e a implementação de modelos
inovadores de gestão doença33 cujas diferenças se caracterizam em diversos
parâmetros apresentados na Tabela_1.
A GID, como veículo importante e permanente de informação de apoio à decisão
política e à melhoria da saúde dos portugueses, foi adotada, em 2008, como uma
estratégia central e uma ferramenta de melhoria da qualidade e da eficiência
dos cuidados prestados5.
A política de GID, cujo modelo conceptual se apresenta na Fig_1, prevê:
* -uma adequada gestão clínica, através da produção de normas, da
estratificação dos doentes por níveis de risco e da criação de perfis de
cuidados por patologia;
* -um novo modelo organizativo da prestação de cuidados, no qual os doentes são
orientados no sistema para que sejam tratados no nível de cuidados adequado
de forma custo-efetiva;
* -um modelo de financiamento adaptado, que inclua o acompanhamento e
monitorização dos resultados obtidos pelas unidades prestadoras de cuidados;
* -a partilha de um sistema de informação modular, integrador de vários
sistemas já existentes, que apoiam a decisão clínica (com alertas,
guidelines, resultados clínicos, etc.), a decisão política (com informação
detalhada sobre a evolução epidemiológica da doença e seus custos) e a
decisão do próprio doente e família (informação sobre a doença, prestadores
de cuidados, etc.).
Atores
O anexo 1 sistematiza as entidades que mais ativamente estiveram envolvidas na
conceção e implementação da medida política de GIDRC; as suas pretensões e o
nível de participação e influência.
Processo
O processo de implementação da política GIDRC incluiu: identificação do
problema, definição, implementação e avaliação da política a adotar.
Identificação do problema
Relativamente ao sistema de informação, até 2007 não existia, a nível dos
serviços centrais do Ministério da Saúde, qualquer registo sobre os doentes em
diálise34.
Quanto ao financiamento, o que existia, até 2007, na área da diálise, era o de
"pagamento por ato", ou seja, as unidades de diálise faturavam
aquilo que elas próprias prescreviam e ofereciam como serviço, a saber: sessões
de diálise, medicamentos, exames complementares de diagnóstico, entre outros.
Para a aferição dos custos globais com o tratamento dos doentes em diálise
foram inquiridas as ARS, as quais demonstraram, em 2006, ter uma despesa de 200
milhões de euros para os cerca de 7.700 doentes (2.164/doente/mês), e realizado
estudo de caso em várias unidades públicas e privadas de diálise, através do
qual se verificou grande disparidade nos custos, com uma variação de 2.000-
20.000 €/doente/ano34.
No que respeita à gestão clínica, verificou-se, durante o estudo de caso, que
as unidades de diálise apresentavam diferenças significativas na tipologia e
periodicidade dos seus protocolos terapêuticos e de exames complementares de
diagnóstico, que faturavam integralmente ao Estado.
Para além desta assimetria de prescrição, para uma mesma tipologia de doentes,
verificou-se, ainda, a repetição indiscriminada de exames complementares de
diagnóstico sem qualquer objetividade clínica.
Quanto à organização de cuidados, constatou-se que o doente em diálise, por se
deslocar várias vezes por semana à unidade de hemodiálise, encontrava, nesse
espaço, uma oportunidade para assegurar a vigilância do seu estado de saúde
global. De acordo com um estudo realizado em 2009, 46% dos doentes
hemodialisados recorriam, para cuidados gerais de saúde, ao nefrologista da
unidade de diálise e que somente 7% dos doentes tinha recorrido, nos últimos 6
meses, ao centro de saúde35. Esta discriminação involuntária dos doentes fazia
com que os mesmos ficassem privados de integrar os programas nacionais de
prevenção e controlo de doenças, pois toda a atividade de medicina preventiva
era assegurada pelo nefrologista na unidade de diálise, sem qualquer
articulação com o médico de família e centro de saúde.
Definição e implementação da política
O desenho da mencionada medida política foi despoletado a 9 de janeiro de 2007,
quando é anunciado, através da comunicação social, pela Associação de
Prestadores de Diálise (ANADIAL), que as suas unidades de hemodiálise
associadas não receberiam nenhum novo doente até ser revisto o preço por sessão
de diálise, acordado com o Ministério da Saúde em 200636,37. A crise, que se
perspetivava, entre o Estado português e os prestadores de cuidados de diálise
privados, foi a "janela de oportunidade" para a implementação do
primeiro projeto de GID.
A DGS ficou responsável por coordenar e orientar a implementação do modelo
conceptual da GIDRC e envolver todos os atores mencionados na tabela_25.
Ao longo do processo de desenho do modelo de GIDRC várias foram as reuniões de
trabalho entre o Ministério da Saúde (DGS e ACSS) e os diferentes stakeholders,
em sede de governo ou em fóruns científicos alargados, procurando auscultar os
principais intervenientes neste processo.
Esta abordagem integrada e global da DRC foi objeto de uma intervenção
multidisciplinar e intersetorial5 (tabela_2).
Para garantia da qualidade e segurança dos doentes foi acordado, entre os
interessados, um conjunto mínimo de metas e objetivos que os prestadores de
cuidados teriam que cumprir para efeitos de pagamento, numa lógica de Pay for
Performanc8,25,26,38 e que, centralmente, era monitorizado pela Comissão
Nacional de Acompanhamento da Diálise (CNAD), constituída em 2008, através de
um sistema de informação desenhado para o efeito, designado de Plataforma de
Gestão Integrada da Doença39.
O acordo entre a ANADIAL e o Ministério da Saúde celebrou-se a 18 de janeiro de
2008 e foi renovado a 31 de janeiro de 2011, com a inclusão no pagamento por
"preço compreensivo" da componente dos acessos vasculares, até
então suportada exclusivamente pelo SNS.
Em 2011, este pagamento por "preço compreensivo" consubstanciava-se
num valor médio por doente/semana de 547,94 €40, para o qual se considerava um
conjunto de atos clínicos, medicamentos, meios complementares de diagnóstico e
a manutenção dos acessos vasculares.
Neste projeto da GIDRC, o financiamento da prestação por "preço
compreensivo" funcionou como um instrumento modelador da gestão dos
cuidados de saúde, pois ao contrário do anterior, este passou a estar associado
a uma carteira de serviços e a um conjunto de resultados de saúde,
ultrapassando-se, assim, alguns dos constrangimentos relacionados com o
deficiente controlo dos custos e qualidade da atividade35.
Avaliação da política
Apesar do crescimento médio anual do número de doentes em diálise de cerca de
3%41, verifica-se que, ao longo dos anos de implementação da medida política, o
controlo de custos foi progressivamente alcançado, sem que a qualidade da
prestação de cuidados e a segurança do doente fossem ameaçadas40.
As metas e os objetivos negociados entre o Estado e os prestadores de cuidados
de diálise, para acompanhamento da qualidade da prestação de cuidados,
monitorizados semestralmente pela CNAD, apresentam, de 2009 a 2011, uma
evolução francamente positiva. A taxa de mortalidade (fig._2) e a taxa de
internamento hospitalar (com valores de 4,9% em 2009 e 4,4% em 2011) dos
doentes em hemodiálise têm vindo, progressivamente, a diminuir.
Os parâmetros de controlo da qualidade do tratamento, tais como, os valores de
hemoglobina, do fósforo sérico, do eKt/V (parâmetro que avalia a adequabilidade
do tratamento dialítico), encontram-se dentro dos valores estabelecidos pela
DGS (fig._3) e de acordo com as melhores recomendações internacionais38.
Ainda no âmbito da qualidade da prestação de cuidados e considerando o último
inquérito, dirigido aos doentes em hemodiálise, realizado em 2009, realça-se a
elevada satisfação dos doentes para com os profissionais de saúde e condições
da própria unidade de diálise (75% das classificações em "Bom" e
"Muito Bom"), o elevado reconhecimento dos próprios, no que diz
respeito a: (i) garantia de acesso a outros cuidados especializados (84% não
tiveram problemas de acesso a outro médico especialista); (ii) transporte para
realizar as sessões de diálise (90% tem o transporte assegurado pelo SNS);
(iii) medicamentos e exames complementares de diagnóstico (100% suportado pelo
SNS)35. Verifica-se, também, que mais de 2 terços dos doentes (68%) sente-se
devidamente esclarecido e envolvido na tomada de decisão sobre a escolha de
modalidade de diálise35.
O modelo de GID e a experiência da GIDRC têm sido apresentados em vários fora
científicos nacionais e internacionais e em reuniões científicas e políticas da
Comissão Europeia, tendo a 11 de outubro de 2008 merecido o prémio inovação
Casemix Innovation Prize42, de entre 93 projetos internacionais apresentados no
24th Patient Classification Systems International Working Conference - Casemix
Beyond Funding: Contributions for Health Policy.
Com o objetivo de avaliar o nível de penetração e aceitação da medida política
GID na prática clínica e de gestão das unidades de saúde, a DGS, ACSS e a
Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL)
organizaram uma reunião de discussão estratégica, a 25 e 26 de junho de 2009,
com a participação dos principais quadros de gestão de topo de instituições e
órgãos de saúde ao nível nacional e com a presença da Kaiser Permanente
(seguradora de saúde americana, fundada em 1945).
Este evento, para além de privilegiar a sensibilização, informação e
envolvimento direto destes atores no processo de implementação na medida
política, constituiu ainda uma oportunidade de validação do modelo estratégico
de GID, no contexto nacional, por auscultação direta do painel de peritos
convidado.
Das conclusões da reunião com o painel de peritos, sobre o processo de
implementação da medida GID, os autores construíram uma análise SWOT
apresentada na Tabela_3.
O alargamento da medida política a outras patologias foi igualmente discutido e
consensualizado em 2007, num painel Delphi, com peritos de reconhecido mérito
académico e profissional na área da saúde, um conjunto de patologias
prioritárias a integrar futuramente no modelo de GID6,43.
Discussão
Em Portugal, como nos outros países da União Europeia, o envelhecimento da
população é uma realidade e reflete não só o sucesso das novas tecnologias de
saúde, como, também, a melhoria das condições socioeconómicas e da oferta de
cuidados promotores de uma maior longevidade, comum aos países mais
desenvolvidos44. A DRC, à semelhança de outras doenças crónicas, assume
particular atenção por parte da maioria dos países desenvolvidos.
Existem vários fatores explicativos para a elevada incidência e prevalência da
DRC de estádio 5, sob tratamento de substituição da função renal, em Portugal,
a saber: (i) a acessibilidade garantida à diálise a todos os doentes com DRC;
(ii) a elevada taxa de transplantação de rim associada a melhores taxas de
sobrevida (um doente transplantado continua a ser DRC estádio 5); (iii) o
aumento generalizado, na população em geral, da esperança média de vida,
acompanhado de uma crescente prevalência de diabetes e hipertensão arterial;
(iv) o aumento de sobrevivência de doentes com patologia cardiovascular e
neoplásica, com sequela de DRC1,45.
Em Portugal, a modalidade de diálise predominante é a hemodiálise, como na
maioria dos países da União Europeia30, no entanto, por falta de oferta do
serviço público, esta atividade é convencionada, desde 1980, na sua quase
totalidade, ao setor privado.
Para estimular o incremento de outras modalidades de diálise, a DGS tem
desenvolvido alguns programas de incentivo à diálise domiciliária para promoção
da diálise peritoneal.
A prestação de cuidados de saúde, na Europa, não tem conseguido acompanhar as
necessidades de cuidados dos doentes/populações com doença crónica pois é um
sistema reativo, dependente da iniciativa do doente, fragmentado,
desorganizado, muitas vezes duplicado e com enfoque na agudização ou
complicação da doença21.
Por outro lado, os governos, fruto da conjuntura social e económica atual,
estão cada vez mais comprometidos em demonstrar que a alocação dos dinheiros
públicos é adequada e justa46. No entanto, essa accountability (gestão
eficiente e transparente) é difícil de demonstrar, pois a grande maioria das
entidades públicas não consegue tomar decisões com base na evidência ou em
análise do impacte previsto10. Na génese dessa dificuldade estão: (i) a
ausência de bons sistemas de informação; (ii) o curto espaço de tempo para
agir/reagir; (iii) a grande dificuldade em adaptar-se à mudança; (iv) os
compromissos ideológicos/valores públicos a defender; (v) a liderança de
diferentes atores com múltiplos interesses; (vi) os problemas com que se
deparam, normalmente, complexos atendendo à natureza turbulenta do setor10,47.
Para além destas questões, constata-se, ainda, que o conteúdo das medidas
políticas nem sempre incide sobre procedimentos ou técnicas baseados na
evidência, mas, também, sobre aquilo que é concretizável na altura da decisão
política9.
As políticas que não conseguem interagir num contexto dinâmico, incerto e em
constante mudança, como é atualmente o da saúde47, correm o risco de não
conseguirem atingir os seus propósitos e de se tornarem, rapidamente,
capturadas e obsoletas48.
A política de prestação de cuidados de diálise, até 2007, é um bom exemplo de
uma política de saúde reativa e não previsional da eventual monopolização do
mercado por parte das unidades privadas de diálise, o que inevitavelmente veio
a acontecer ao fim de alguns anos.
A crise política instalada, em Portugal, entre o Governo e os prestadores
privados de diálise proporcionou um "meio de cultura" favorável à
reestruturação da forma como se definia, revia, negociava e implementava a
política de saúde de regulação da oferta de cuidados aos doentes em diálise7.
A decisão política é um processo dinâmico que, perante mudanças económicas,
sociais e políticas, encontra "janelas de oportunidade", ou seja,
encontra momentos oportunos para a tomada de decisão em que se consegue, em
simultâneo, o alinhamento de 3 fatores fundamentais: (i) reconhecimento, por
parte dos políticos e comunidade, do problema e sua integração na agenda
política; (ii) desenho de eventuais soluções, por parte de organismos públicos,
academia, think-tanks, etc., que sejam técnica, cultural e eticamente
aceitáveis, assim como economicamente viáveis; (iii) clima político favorável à
mudança e à adoção da nova política47.
De acordo com Swanson et al.49, o que torna uma política verdadeiramente
adaptativa é o seu desenho e forma de implementação focada na capacitação do
homem e do seu ecossistema para lidar com o imprevisto. Esta forma inovadora de
fazer política em Portugal, através de um modelo de gestão da doença, procurou
desenhar um processo pró-ativo, participado e adaptativo que, de acordo com os
mesmos autores, respondesse às condições previamente previstas/antecipadas
(garantindo a manutenção da sua performance, através, por exemplo, da garantia
da continuidade das sessões de diálise a todos os doentes) e às não previstas
(procurando integrar na agenda política assuntos emergentes, como sejam, por
exemplo, a responsabilização das unidades de diálise para com os doentes que
tratam, através de uma forma inovadora de financiamento da prestação de
cuidados)49.
Portugal é, assim, identificado como o 1.º país do mundo a conceber e
implementar, à escala nacional, um modelo de GID, dirigido à DRC severa, capaz
de incrementar a qualidade dos cuidados, melhorar a partilha de risco entre os
doentes, os prestadores de cuidados e o Estado, assim como garantir a
sustentabilidade do sistema de saúde8,25,26.
Um dos mecanismos que os políticos têm vindo a desenvolver para controlar os
custos na saúde é a atribuição de um pagamento fixo por condição/doença e
período, pois, em teoria, este incentivo financeiro melhora a coordenação,
transição de cuidados e reduz, por exemplo, as readmissões hospitalares3. Na
prática, o sucesso de alguns programas de gestão da doença tem sido
comprometido por falta de incentivo financeiro50.
O pagamento dos prestadores de cuidados de saúde por preço compreensivo é uma
modalidade inovadora de financiamento e tem sido visto como um bom exemplo de
gestão por parte de outros países51, pois abandona o "pagamento por
ato", causa de desperdício de recursos e incentivo à multiplicação de
atos médicos, eventualmente desnecessários52.
Vários têm sido os relatos internacionais alusivos a esta prática inovadora de
gestão da DRC realçando a partilha de risco como fator de garantia de
sustentabilidade dos sistemas de saúde, pela gestão mais eficiente dos
recursos, assim como a importância de um acompanhamento rigoroso da qualidade e
segurança dos doentes7,8,25,26.
O projeto de GIDRC parece-nos, assim, ser um instrumento apropriado para no
atual contexto prosseguir a eficiência, a qualidade e a segurança, bem como os
novos desafios inerentes à prática de uma medicina moderna.
Apesar dos ganhos económicos e financeiros, associados a programas de gestão da
doença, não serem imediatos, os resultados finais em qualidade de vida e ganhos
de saúde são rapidamente observados1,23,32, tendo-se já verificado a replicação
do modelo de GIDRC em Espanha26 e, mais recentemente, em janeiro de 2011, nos
EUA53.
Estas iniciativas de coordenação de cuidados podem não ser cost saving, mas são
uma ferramenta de garantia de value for money no sistema de saúde23.
A medida GIDRC, apesar do seu curto período de follow-up, parece demonstrar ser
um instrumento de coordenação de cuidados, partilha de risco e garantia da
qualidade da prestação de cuidados, pois, para além do progressivo controlo de
custos tem, igualmente, demonstrado uma melhoria gradual dos indicadores de
resultado, como sejam a mortalidade, o internamento hospitalar e os parâmetros
de monitorização da qualidade, tais como a hemoglobina, o fósforo sérico e o
eKt/V.
No tocante ao nível de satisfação dos doentes em diálise pudemos verificar,
como em outros estudos54, que a grande maioria da população se encontra
globalmente satisfeita com a prestação de cuidados e com o comportamento dos
profissionais de saúde.
O relatório "Patient survey and analysis of renal care across the
European Union"55 veio realçar, a par dos nossos resultados, que os
doentes em Portugal se consideram devidamente esclarecidos e envolvidos na
tomada de decisão sobre a escolha de modalidade de diálise.
Com este modelo é reconhecido um papel relevante aos principais atores deste
processo de cuidados, sendo garantido, por medidas Win Win:
* -aos doentes: o acesso a todos os cuidados de que necessitem, uma prestação
de cuidados integrados, uma monitorização contínua da qualidade dos cuidados
e um papel ativo no processo de gestão da sua doença56.
* -aos prestadores de cuidados de diálise: uma clarificação do modo de
funcionamento do mercado possibilitando, através da informação de retorno
sobre os seus resultados clínicos, uma melhoria da gestão interna dos
processos, o alcance de maiores níveis eficiência técnica e financeira, sem
compromisso da qualidade dos cuidados e da segurança do doente.
* -ao SNS: instrumentos de monitorização, da prestação de cuidados de saúde aos
doentes DRC em diálise, fiáveis e permanentemente atualizados, que permitem,
em tempo útil, responder às necessidades de cuidados, reduzir as
desigualdades de acesso, normalizar as práticas clínicas, focar os cuidados
no doente em prol de mais ganhos de saúde, contribuindo para a
sustentabilidade do sistema.
Esta medida política foi alargada, posteriormente, a outras patologias, como
sejam a esclerose múltipla e a obesidade de grau 36, pretendendo-se, no futuro,
vir a incluir a hipertensão pulmonar arterial.
Poderá ser considerado como eventual limitação, a esta análise de política, o
fato de 2 dos autores, no estrito âmbito do cumprimento das suas funções
enquanto dirigentes do Ministério da Saúde/DGS, terem estado envolvidos na
conceção, implementação e monitorização da medida política GIDRC.
Considerações finais
Desta análise podemos retirar algumas lições, como sejam:
* i. incentivo da hemodiálise no setor privado, desde 1980, criou a
monopolização da prestação, sendo extremamente difícil reverter esta
dependência a favor do setor público, pois exigiria um investimento em
infraestruturas extremamente elevado;
* ii. os políticos, muitas vezes são reféns das medidas políticas definidas no
passado tendo grande dificuldade em reverter benefícios, serviços ou
incentivos atribuídos anteriormente;
* iii. a crise política, instalada em 2007, devidamente contextualizada,
discutida e trabalhada com todos os interessados, transformou-se numa
verdadeira oportunidade de mudança e melhoria do sistema, pois teve o forte
comprometimento do Ministério da Saúde, profissionais, doentes e unidades de
diálise na procura de uma adequada reforma dos cuidados de saúde, onde todos
ficariam a ganhar (Win Win);
* iv. a medida política GIRDRC é uma política adaptativa, pois, através do
exaustivo entendimento dos atores, contexto e processos, procurou responder
ao meio envolvente de forma pró-ativa;
* v. a regulação da prática clínica e o combate ao desperdício, garantidos
através de medidas de GID orientadas para qualidade da prestação de cuidados
e segurança dos doentes, são cruciais em ambientes com elevado grau de
incerteza e, particularmente, em momentos de grande constrangimento
financeiro;
* vi. a medida política GIDRC permite controlar os custos com a hemodiálise,
partilhar o risco com as unidades de diálise, regular a prática clínica,
tornando-a eficiente e equitativa, envolver os doentes na gestão da sua
doença e garantir a melhoria da qualidade da prestação e dos resultados de
saúde;
* vii. reconhecimento internacional da medida política GIDRC, tem sido
demonstrado através da replicação da iniciativa em outros países, da
atribuição de um prémio internacional de inovação e da participação em vários
"Peer Reviews" europeus;
* viii. com as metas e objetivos, permanentemente atualizados, o Ministério da
Saúde pode definir planos de ação focalizados, bem como criar mecanismos de
prevenção, acompanhamento e monitorização da evolução da DRC em Portugal;
* ix. a medida GI DRC deve alargar o seu nível de integração a outros níveis de
cuidados, como sejam a prevenção da doença, através de um maior envolvimento
dos médicos de cuidados de saúde primários e outros profissionais de saúde,
dos doentes e família;
* x. e por fim, são necessários estudos de investigação dirigidos à avaliação
custo-efetiva da intervenção e aos resultados de saúde alcançados no longo
prazo, assim como à avaliação do modelo conceptual GID, para apoiarem, de
forma mais consistente, as eventuais futuras decisões políticas.