Avaliação das possibilidades de controle da hanseníase a partir da
poliquimioterapia
Introdução
A hanseníase é doença infectocontagiosa crónica associada ao bacilo
Mycobacterium leprae (M. leprae), com lesões cutâneas como principais
manifestações, bem como acometimento de nervos periféricos, este podendo
resultar em deformidades e incapacidades físicas (IF). Atualmente, os
princípios básicos para o controle do agravo consistem em diagnóstico precoce e
tratamento com poliquimioterapia (PQT), associação farmacológica preconizada
pela Organização Mundial da Saúde (OMS): doentes multibacilares (MB) são
tratados durante 12 meses com dapsona (DDS) e clofazimina (CLO) diariamente
mais rifampicina (RFP) e dose suplementar de CLO mensalmente, sob supervisão;
os paucibacilares (PB) recebem por 6 meses DDS diariamente e RFP, administração
mensal supervisionada1.
A reorientação na prática assistencial, o aumento da cobertura de serviços e a
reorganização do sistema de informação dos países foram fatos que se deram
simultaneamente à terapêutica adotada. Entretanto, nem assim a aplicação maciça
da PQT se revelou suficientemente adequada para refrear a ascensão da
incidência da hanseníase e sua eliminação num futuro próximo torna-se pouco
plausível2. Em 2011, emergiram 219.075 casos novos no mundo3.
A persistência da endemia sinaliza necessidade de revisão, aprimoramento e
criação de estratégias. Nesse sentido, classificação dos doentes, prevenção
primária e novas abordagens terapêuticas, incluindo variação da duração e
composição dos regimes, têm sido discutidas. Diante deste contexto, o presente
projeto buscou, num plano mais geral, contribuir para avaliação do controle da
hanseníase a partir da adoção da PQT. Em outros termos, procurou-se recuperar
as fases evolutivas das possibilidades de eliminação da doença enquanto
problema de saúde pública e destacar colaborações de centros universitários de
referência.
Material e métodos
Foi desenvolvido estudo bibliográfico de análise do conteúdo de textos,
utilizando-se modalidade de revisão narrativa/crítica, a qual, de caráter
descritivo-discursivo, dedica-se à apresentação compreensiva e à discussão de
temas de interesse científico no campo da saúde pública4.
Procedeu-se prioritariamente de forma qualitativa a quantitativa de pesquisa:
vale dizer, para além do tamanho amostral e indicadores numéricos, os textos
foram tomados como elementos de estudo, segundo contemplassem categorias, como
impacto, interesses, significados, saturações e intencionalidades5.
Nesse sentido, Mantellini e Gonçalves6 sintetizam os critérios de inclusão
adotados: referência aos objetos de interesse; redação em idiomas
contemporâneos e de compreensão imediata pelo meio universitário do país em que
o projeto se dá; apresentação tanto sob suporte técnico de papel quanto como
recursos informatizados, seja "online" ou sob forma de arquivo
digitalizado; representação de bases de dados correntes e atualizadas, situadas
nos contornos temáticos e cronológicos definidamente conexos.
Para o caso, os dados foram coletados por meio de levantamento da bibliografia
publicada em periódicos nas bases de dados PUBMED, BVS, Academic One File e
Evidence Based Medicine Reviews e no "site" da OMS, no período de
2005-2011, nos idiomas inglês e português. Os descritores utilizados foram:
leprosy/multidrugtherapy, leprosy/treatment, hanseníase/poliquimioterapia e
hanseníase/tratamento. Dos textos encontrados, foram eleitos para a análise
aqueles que incluíssem especificamente repercussões do tratamento sobre o
controle da endemia e foram exploradas as referências pertinentes ao assunto aí
contidas.
De fato, a seleção de informação visou, num primeiro momento, reconstruir o
chamado estado atual da arte, isto é, destinou-se a recolher a matéria em
causa, para, de seu interior, fazer emergir o corte epistemológico da
singularidade almejada como objeto de estudo7.
Uma vez obtido, o material foi analisado e fichado, com extração das
informações relevantes e processamento subsequente,isto é, recorte de
informações, tipificação das mesmas em categorias e representação sob forma
quantitativa condensada, para, a seguir, submetê-las à inferência e à
interpretação.
Resultados
O levantamento bibliográfico identificou 111 referências nas fontes citadas. Os
artigos foram então distribuídos segundo ano de publicação e categorias de
interesse, criadas a partir dos mencionados objetivos específicos (Tabela_1).
Os resultados da busca destacam a categoria Fases Evolutivas, da qual emergiram
textos informativos dos aspectos básicos da doença, de teor histórico, clínico,
epidemiológico e notadamente acerca das controvérsias da eliminação da
hanseníase. Reacionalmente aos anúncios da OMS, a maioria dos autores contesta
o impacto das medidas de controle e os critérios de sucesso das mesmas. Em
Possibilidades de Eliminação apontam-se temas acerca das dificuldades de
classificação dos doentes para tratamento, das propostas de uniformização e
acompanhamento da PQT, das drogas atualmente disponíveis e suas combinações e
de aplicações terapêuticas a serviço da prevenção primária. Notam-se picos nas
frequências de textos publicados em ano inferior ou igual a 2005 e em 2008, não
sendo registrada razão para tal na literatura pertinente disponível.
O tratamento poliquimioterápico depende da alocação dos doentes em PB e MB. O
material produzido sobre classificação aborda diferentes versões, falhas da
utilizada atualmente, ferramentas para aperfeiçoamento e enfatiza equívocos que
acarretam tratamento inadequado, o que predispõe a maior número de reações e
recidivas. A PQT uniforme (PQT-U) é questão polêmica nas referências e são
aguardados resultados dos ensaios clínicos da OMS. Conteúdo sobre a PQT
acompanhada (PQT-A) é escasso, de forma que se torna difícil compreender se em
decorrência de falência da proposta ou à adoção restrita.
Dentre as subcategorias, sobressaem-se produções relacionadas a outras
abordagens farmacológicas. A descoberta de novas drogas bactericidas tem
possibilitado formulação de diferentes combinações que almejam, entre outras
características, máxima eficácia e adesão e mínima taxa de resistência
medicamentosa. Na prevenção primária, avultaram-se ponderações concernentes à
contribuição da vacina de BCG e à adoção de quimioprofilaxia. As categorias de
interesse são tratadas a seguir.
Discussão
Fases evolutivas da poliquimioterapia - controvérsias da eliminação
A PQT foi adotada como estratégia terapêutica oficial da OMS para hanseníase em
1982. Durante a década subsequente houve sua divulgação e implementação com
aumento gradual de cobertura e acessibilidade8. Alguns países, como o Brasil,
em princípio, decidiram pela não expansão da PQT para a rede de serviços
básicos de saúde, por considerar impeditivos eficiência não demonstrada, riscos
de paraefeitos, custos, disponibilidade de drogas e decorrentes alterações
estigmatizantes da pele9; gradualmente, no entanto, foram cedendo às pressões
internacionais em direção à implementação do novo tratamento.
Em 1991, baseada na adoção da PQT, foi proposta pela OMS a eliminação da
hanseníase como problema de saúde pública até o ano de 2000, significando
prevalência de menos de um caso por 10.000 habitantes. Esperava-se que, por
meio da diminuição do número de casos, a transmissão declinasse e, assim,
desaparecesse. A extensão geográfica alcançada pela terapia alcançou 100% em
1997, referente a 637 projetos executados em 75 nações, e, em 2000, a
eliminação foi atingida, se tomada toda a população planetária conjuntamente
como denominador10.
Em 2000, 12 países permaneciam endêmicos, o que ensejou a prorrogação do prazo
de eliminação para 2005. O Plano Estratégico para Eliminação Hanseníase 2000-
2005 da OMS os incentivava a assumirem o compromisso de tratar dos desafios
lançados pelo controle da doença. A pedra angular consistia na integração das
respectivas atividades aos serviços básicos de saúde, onde estariam disponíveis
e acessíveis ao doente11. Ao final deste período, 6 regiões continuaram a ter a
enfermidade como problema de saúde pública e a hanseníase era promovida à
categoria de doença negligenciada, isto é, que não só prevalece em condições de
pobreza, mas também contribui para a manutenção do quadro de desigualdade12. No
Relatório Epidemiológico Semanal da OMS, a necessidade de criação de
ferramentas e a inexistência de sistemas de vigilância epidemiológica efetivos
acabaram sendo, enfim, admitidas13.
Com a finalidade de concluir o plano de eliminação e de reduzir mais os valores
de detecção e prevalência, a OMS lançou a Estratégia Global para Maior Redução
da Carga da Hanseníase e a Sustentação das Atividades de Controle da Hanseníase
(2006-2010), que, partindo da percepção das dificuldades, propunha acesso
baseado nos princípios de equidade e justiça social. Um dos reptos assinalados
consistia em assegurar apropriada alocação de recursos externos no contexto da
mudança nas prioridades. Como resultados até 2010 eram esperados: maior redução
da carga da doença até níveis muito baixos; aprimoramento da qualidade dos
diagnósticos, práticas de gestão e registro de casos e bom sistema de
informações; atendimentos de hanseníase sustentáveis em todas as áreas
endêmicas; assistência de qualidade, através da rede básica de atenção à saúde,
incluindo rede integrada e eficiente de encaminhamento; ferramentas e
procedimentos adequados para a prevenção de incapacidades e a reabilitação;
fortalecimento das parcerias e atividades colaborativas entre todos os
participantes14.
No quinquênio considerado para tais intervenções, foi produzida variedade de
textos acerca das controvérsias da eliminação. Lockwood15 ressalta aspectos que
contribuíram para o alcance da meta, entre os quais: o denominador utilizado
para o cálculo foi a população mundial, o número de registros ativos declinou
muito em decorrência da redução do esquema de doses, que, ao passar de 24 para
12 meses, concede alta por cura ao paciente antes que este passe a constar nos
registros do ano subsequente; alguns países não têm registrados casos de lesão
única. Fine16 acrescenta a esta lista a ação primordial da melhora das
condições de vida, comprovada pela diminuição da incidência antes da adoção da
PQT, além de pressões políticas que influenciaram a maneira de reportar as
estatísticas, de modo que alguns países dispuseram-se a forjar seus resultados.
A PQT fortaleceu ações para a eliminação da hanseníase, embora muitas vezes
tenha passado, intencionalmente ou não, essa imagem pelo emprego inadequado de
termos epidemiológicos. Tanto a eliminação da infecção como da doença implicam
redução da incidência a 0, definição não compatível com valores de indicadores
utilizados pela OMS. "Eliminação como problema de saúde pública"
foi considerada denominação aparentemente mais impactante para divulgação e
motivação de governos e do público em geral para trabalhar eficientemente
contra a moléstia, mas seria mais bem designada, mesmo com restrições, como
controle da hanseníase. Entendido como redução de incidência, prevalência,
morbidade ou mortalidade a nível localmente aceitável, controle tem sido
alcançado, de fato, como resultado de esforços deliberados, por muitos países e
esta terminologia implica em medidas de intervenção contínua, indispensáveis
para manter a redução17. Todavia, o equívoco não se limitou à semântica, mas
surtiu efeitos indesejados, desencorajando pesquisas, investimentos,
treinamento e, principalmente, atenção em campo para detecção precoce. No ano
de 2007, Brasil e Nepal persistiam na lista; em 2008, Brasil e Timor Leste
figuravam como remanescentes; em 2009, destacou-se a questão da resistência
medicamentosa e, com ela, o monitoramento de recidivas18.
De acordo com Fine19, a leitura dos boletins periódicos da OMS permite a
identificação de inúmeros problemas que comprometem validade e compreensão, ou
ainda, funcionalidade dos dados à saúde pública - dificuldades e incerteza dos
padrões para diagnóstico e classificação, estigma e confidencialidade que
dificultam a documentação, omissões e impontualidade quanto às informações
fornecidas, mudanças operacionais e ausência de padronização dos registros,
valorização de prevalência, indicador dependente da duração e das técnicas de
registros de casos, e adulteração de estatísticas por países indevidamente
engajados. A exemplo do citado, de 1989-1994 a índia incluía como área coberta
pela PQT todos os distritos que a tivessem implementado, mesmo que em única
instalação, com a maioria tratada com monoterapia sulfónica, sendo que apenas
em 1998 todos os doentes tiveram acesso ao regime da OMS8. Além disso, a
detecção anual de casos relatada por este país providencialmente declinou 66%
em 3 anos, 2002-200513. Essas falhas geram variações e distorções entre regiões
que, aliadas a ausência de criticidade mínima, tornam comparação e
interpretação inviáveis.
Os esforços para eliminação priorizaram a redução da prevalência, a qual não
foi acompanhada, na mesma proporção, pela diminuição da detecção de casos
novos. A incidência de casos traduz com maior fidelidade a situação atual do
agravo de saúde por não ser afetada pela duração do tratamento, tampouco por
alteração da definição de casos, refletindo o número de indivíduos que
realmente está transmitindo a doença. Entretanto, ainda não se pode esclarecer
em que medida a PQT contribui para suas variações, já que outros fatores, como
o longo período de incubação, a proteção conferida pela vacina BCG e a
instabilidade das medidas de controle também as influenciam20. Na tentativa de
avaliar o impacto da PQT sobre transmissão e controle da hanseníase foi
desenvolvido programa de computador, o SIMLEP, capaz de fazer projeções e
estimativas acerca de indicadores epidemiológicos. Previsões otimistas munidas
desse artifício apontam para 5 milhões de casos detectados até 202021.
Outro indicador recentemente recomendado pela OMS na Estratégia Global
Aprimorada para Redução Adicional da Carga da Hanseníase (2011-2015) foi a taxa
de casos novos com grau 2 de incapacidade física por cada 100.000 habitantes,
que pode ser usado para monitorar o progresso, avaliar a detecção e medir a
qualidade dos serviços. Nesse plano, propõe-se redução desse número de no
mínimo 35% entre os finais de 2010 e 201522. Para tanto, são necessários
diagnósticos e tratamento precoces, assim como acompanhamento da evolução do
quadro neurológico e manejo adequado dos episódios de neuropatia e reações
imunológicas. Até então, o regime terapêutico com a PQT demonstrou eficiência
ao reduzir a taxa de deformidades entre casos novos. Entretanto, pouco é feito
no sentido de aperfeiçoar as técnicas aplicadas e ainda não há profissionais
capacitados para detecção em momento oportuno das lesões23. A partir da
construção de cenários de possibilidades relativos à viabilidade de consecução
da meta e ao efeito desta, Alberts et al.24 verificaram resultados distintos em
cada país analisado e sinalizaram necessidade de manutenção por longo prazo das
propostas da estratégia.
Possibilidades de controle da doença
Classificação dos doentes de hanseníase
A classificação apropriada do doente é considerada fundamental para tratamento
e prognóstico. Em 1953, foi proposta a classificação de Madri que definiu os
grupos polares, tuberculoide (T) e lepromatoso (L); o grupo transitório e
inicial da doença, a forma indeterminada (I); e o intermediário, a forma
borderline (B)25. Ridley e Jopling26 descreveram a hanseníase em formas
espectrais, enfatizando aspectos imunológicos do hospedeiro: lepromatoso-
lepromatoso (LL), borderline-lepromatoso (BL), borderline-borderline (LL),
borderline-tuberculoide (BT) e tuberculoide-tuberculoide (TT).
Em 1982, a OMS instituiu diferentes modalidades de PQT para o tratamento dos
casos MB e PB, segundo índice bacteriológico (IB) de Ridley. Indivíduos (BB, BL
e LL) com IB maior ou igual a 2 eram considerados MB e aqueles (TT e BT) com IB
menor do que 2, PB. Em 1988, já atendendo a necessidades operacionais, os
esfregaços positivos tornaram-se suficientes para distinguir MB e, em 1995, a
OMS recomendou a divisão atual na qual os doentes foram alocados de acordo com
o número de lesões: PB até 5 lesões, e MB, mais de 527.
São inconveniências do método em vigor de contagem de lesões: necessidade de
profissionais treinados para conduzir o exame clínico; inabilidade de
investigar todas as partes do corpo por questões culturais; dificuldade, mesmo
para experientes, de realizar o diagnóstico em alguns casos, como de lesões
hipopigmentadas e sem alteração de sensibilidade, de somente lesões ulceradas
ou hiperceratóticas, de distúrbio de sensibilidade localizado sem lesões ou
espessamento de nervos, ou em crianças; subjetividade nos achados; tamanho das
lesões não é considerado. Dessa forma, muitos MB podem ser alocados como PB e,
por receber o regime farmacológico destes, favorecer resistência bacteriana e
recidivas28. De fato, estudo desenvolvido nas Filipinas mostrou que 38-51% dos
pacientes classificados como PB segundo as recomendações da OMS eram MB por
meio de critérios histológicos e microbiológicos, estando, portanto, sob risco
de subtratamento29.
Segundo Scollard30, a simplificação da classificação operacional pode mascarar
as verdadeiras relações da resposta imunológica e outros fatores genéticos
intrínsecos, limitando a informação e inibindo a busca por meios moleculares
que apoiem coleta de dados, tratamento e estratégias de controle. De acordo com
Barreto et al.31, nenhum método analisado de forma isolada é sempre 100%
sensível e específico para se classificar acuradamente a forma clínica da
hanseníase, quer esse critério seja o número de lesões, a manifestação clínica
inicial, o resultado da histopatologia ou da baciloscopia, ou status
imunológico/sorológico. Todas essas abordagens não se mostraram suficientes,
sendo necessárias novas investidas para que se obtenha classificação mais
assertiva, principalmente no que concerne à redução da taxa de recidivas.
Na tentativa de aprimorar a distribuição dos doentes nas classes operacionais,
têm sido desenvolvidas ferramentas laboratoriais. O "M. leprae serum
lateral flow test" (ML Flow) é teste que detecta anticorpos IgM,
provenientes do contato com o antígeno glicolipídeo fenólico-1 específico do M.
leprae. Trata-se de método menos invasivo do que a baciloscopia, de execução
fácil, prescinde de equipamento especial e refrigeração, e gera resultados em
5-10 minutos. A associação do teste sorológico com critérios clínicos pode
permitir alocação apropriada do paciente no esquema terapêutico. O tratamento
adequado previne doses insuficientes em caso PB com sorologia positiva e
excessivas no caso de MB com sorologia negativa. Ademais, o ML Flow é técnica
operacional e financeiramente acessível32.
Poliquimioterapia uniforme
Para eliminar erros de classificação, bem como simplificar e abreviar o
tratamento da hanseníase, o grupo assessor técnico da OMS (TAG), em 2002,
propós a uniformização da PQT com esquemas iguais para PB e MB, consistindo em
RFP, DDS e CLO por 6 meses33. Desde então, a proposta tornou-se bastante
polêmica.
Evidências mencionadas sugerem que a PQT, mesmo depois de reduzido número de
doses, é capaz de diminuir a infectividade e matar o bacilo de Hansen. Ademais,
o encurtamento é possível sem aumento da resistência à RFP devido à atividade
bactericida das drogas e da combinação entre elas. Também se alega que o risco
de possível inadequação para MB é de 2% de todas as detecções. E, mesmo nesse
grupo, não é certo que o alto índice de recidivas demonstrado em algumas
circunstâncias deva-se à reativação ou à reinfecção. No caso de recidivas,
estas poderiam ser facilmente retratadas com dose adicional de PQT. Além disso,
adição de CLO ao regime PB possibilitou melhora clínica e produziu
desaparecimento das lesões e regressão de granulomas, e em ensaio conduzido na
índia reduziu a proporção de lesões cutâneas em atividade, de reações tardias e
de recidivas. Para comprovar operacionalidade e custo benefício do regime
único, iniciou-se estudo multicêntrico cujos resultados parciais indicam
eficácia em melhorar a condição clínica das lesões cutâneas e aceitação da CLO
pelos doentes, com pigmentação mínima que desapareceu rapidamente após
conclusão da terapia34. Ao encontro dessas informações, tratamento de doentes
PB com esquema MB por 6 meses ajudou a resolver lesões clínica e
histologicamente35.
Contrariamente à adoção da PQT-U, foi devidamente comprovado que as
características imunológicas e bacteriológicas dos diferentes espectros da
doença determinam taxas de recidivas e resistência próprias e que, por isso,
demandam tratamentos distintos. Além disso, não há sequer seguimento adequado
dos pacientes MB a partir da mudança de 24 para 12 meses para justificar maior
redução. Também em relação à taxa de recidivas, o valor considerado aceitável,
5% ao final, vai muito além do verificado em programas rotineiros, 1% após 9
anos da conclusão. Vale ressaltar ainda que, devido à dificuldade de distinção
entre lesões reacionais e lesões da doença em atividade, os marcadores para
recidivas são frágeis e o ensaio da OMS não é comparativo, invalidando
equivalência nos resultados. Sendo assim, doentes com alta positividade bacilar
ficariam sob risco de subtratamento e PB cuja eficácia do atual tratamento não
é questionada seriam sobretratados, portanto, com adição de custos
desnecessários e mais efeitos colaterais36. Nesse sentido, ensaio realizado na
índia não encontrou diferenças significativas na melhora clínica dos PB e,
entre os MB, o grupo controle obteve cifras superiores37.
Poliquimioterapia acompanhada
A PQT-A consiste em estratégia terapêutica na qual toda medicação é provida na
primeira consulta após o diagnóstico. Nessa ocasião, o doente e o acompanhante
escolhido por ele são informados e orientados a voltar ao serviço de saúde ao
término do regime ou no caso de dúvidas e/ou complicações. A proposta do TAG
baseou-se em dificuldades encontradas em campo - frequentemente tem-se que
interromper o tratamento por falta de medicamentos no centro de saúde, por
problemas para acessar este, ou porque quando vão até lá não há ninguém. Dessa
forma, espera-se melhorar a acessibilidade à PQT pelo público em geral e,
especificamente, por populações móveis, que vivem em áreas remotas ou afetadas
por guerras civis. O TAG também acredita que a PQT-A pode empoderar o doente da
responsabilidade por sua saúde, o que, juntamente com a observação pelo
acompanhante, aumenta a regularidade da ingestão dos fármacos. Experimento
procedido na índia, comparando adesão ao tratamento com PQT-A e com PQT
entregue rotineiramente, obteve sucessos superiores com PQT-A38.
A mudança na estratégia atual é extremamente controversa (Tabela_2). O
Instituto Regional de Treinamento e Pesquisa em Hanseníase pode verificar
experiência na índia com PQT-A, na qual, após retirada dos fármacos, pacientes
não receberam seus medicamentos, não souberam que unidade de saúde procurar e
não tinham informação sobre a doença ou foram consultados39. Em 6 hospitais
missionários, Rao40 constatou não aderência em aproximadamente 50% dos doentes
próximos aos hospitais e 60% dos que viviam mais distantes. Na mesma direção,
Honrado et al.41 conduziram estudo em 12 áreas endêmicas que mostrou
descumprimento de 30% com PQT. Devido à baixa adesão na auto-administração, a
supervisão é a única forma de assegurar a regularidade do tratamento. Essa
medida, até então preconizada pela OMS, garante a ingestão mensal das doses e
proporciona oportunidade ao profissional de saúde de observar diretamente as
necessidades do doente e de reforçar a importância da assiduidade e da
conclusão com êxito do esquema prescrito. Além disso, a tuberculose, semelhante
à hanseníase no quesito baixa adesão, é abordada de forma bem-sucedida por meio
do tratamento diretamente observado, o que levaria a admitir que não há motivo
para descontinuar a supervisão da PQT. Excepcionalmente, para aqueles com
dificuldades em acessar unidades de saúde, o supervisor pode ser membro da
comunidade, contanto que devidamente treinado. Sendo assim, o contato com os
serviços de saúde e a ingestão da medicação vigiada por profissional devem ser
encorajados para garantir qualidade43.
Outras abordagens farmacológicas
O regime terapêutico preconizado pela OMS vem sofrendo modificações em sua
relação com as realidades em campo: introdução do esquema diferenciado para
lesão única (ROM - rifampicina [RFP], ofloxacina [OFLO] e minociclina [MINO]);
redução de 24 para 12 doses; adaptação de doses para doentes com tuberculose.
Também surgiram diversas irregularidades na adoção da PQT advindas, em países
desenvolvidos, como Estados Unidos e Reino Unido, da rejeição da aplicação
recomendada pela OMS44. A padronização dos regimes, a substituição ou inclusão
de drogas em situações especiais e a avaliação constante das repercussões da
PQT são necessárias para aperfeiçoamento da medicação.
A RFP é o principal antibiótico contra a hanseníase e seu efeito bactericida
advém da ação sobre a subunidade beta da RNA polimerase. Resistência a esta
droga foi associada a mutações da região rpo-. A CLO, por sua vez, é
imunofenazida bactericida e, em menor extensão, anti-inflamatória, que possui
muitos mecanismos de ação ainda não esclarecidos. Não foram detectadas cepas
mutantes para este fármaco. Por fim, a DDS é sulfona sintética que atua como
inibidor competitivo do ácido paraminobenzóico na síntese do folato pela
bactéria. Resistências primária e secundária, relacionadas a mutações no gene
folP, foram verificadas e devem-se ao emprego da monoterapia sulfónica45.
O desenvolvimento de novas substâncias e combinações farmacológicas deve ser
incentivado com os seguintes propósitos: precaução ou postergação da emergência
de resistência à PQT, redução da duração do tratamento, bem como de toxicidade/
efeitos colaterais46 e da ocorrência de reações e recidivas47 e administração
supervisionada de todo o esquema48. Cinco drogas parecem ter sido as mais
exploradas no período considerado: MINO, claritromicina (CLARI), OFLO,
moxifloxacina (MOXI) e rifampetina (RFT).
As tetraciclinas inibem síntese proteica ao se ligarem à unidade 30S
ribossomal, sendo a MINO a única dessa classe ativa contra o M. leprae. Não há
relatos de resistência para este fármaco. Os macrolídeos, como a CLARI, agem
inibindo a unidade 50S do RNAr. A OFLO é fluorquinolona que atua como inibidor
da subunidade alfa da enzima DNA girase. Mutações no gene gyrA conferem
resistência a quinolonas49. A MOXI, também fluorquinolona, mostrou ser mais
eficaz que OFLO, CLARI ou MINO e equivalente à RFP. A RFT, por sua vez, é
derivada da RFP com propriedades farmacocinéticas superiores às desta50,
contudo, ainda não foi testada sua atividade contra o bacilo em humanos51.
Outras comparações mostram que MINO, 100 mg por dia, pode substituir DDS e CLO
na PQT; CLARI é menos potente do que RFP, mas 500 mg podem substituir qualquer
outra droga; OFLO tem ação bactericida inferior a da RFP e, na dosagem de 400
mg, pode substituir CLO em adultos52.
Dentre as combinações experimentadas, RFP, OFLO e MINO (ROM) foi a primeira
totalmente supervisionada e surgiu no final da década de 90. A OMS conduziu
ensaio multicêntrico com objetivo de comparar efetividade e taxa de recidivas
de dose única de ROM à PQT convencional (6 meses) como terapia em 2 vertentes:
estudos duplo-cego, para PB com 2-3 lesões, e aberto, para PB com lesão única.
No primeiro grupo de doentes houve maior eficácia e menor taxa de recidivas com
PQT e no segundo grupo ocorreu resolução da lesão em 88% dos indivíduos e a
taxa de recidivas foi de 0,003% por ano53. Todavia, revisão sistemática e meta-
análise conduzidas por Setia et al.54 mostraram que dose única de ROM é menos
eficaz que PQT-PB para hansenianos PB. Além disso, associação de MINO, MOXI e
RFT (PMM) demonstrou superioridade à ROM em ratos55. Ainda não estão
disponíveis dados sobre PMM em humanos, porém, ensaio piloto com MOXI verificou
rápida atividade bactericida (equiparada somente à da RFP), com resolução de
lesões cutâneas e boa tolerância, o que sugere fortemente sua incorporação à
nova geração de esquemas terapêuticos56.
Outras opções com associação de OFLO vêm sendo avaliadas em 15 centros desde
1991 e 1992 por meio de 4 diferentes regimes para MB: (1) OFLO mais RFP por 4
semanas, (2) PQT-MB por um ano acrescida de OFLO nas 4 primeiras semanas e,
para comparação, (3) PQT-MB por um e (4) 2 anos. Até o presente momento,
resultados provenientes das Filipinas e do Brasil apontaram números
significativamente maiores de recidivas entre doentes com a versão sem PQT,
principalmente naqueles com IB elevado, bem como nenhuma diferença estatística
entre PQT por 12 ou 24 meses51,57.
Mais recentemente, no 17.º Congresso Internacional de Hanseníase destacaram-se
sugestões de combinações relacionadas com resistência à RFP e à PQT que devem
ser testadas em ensaios clínicos. Propõe-se, para indivíduos MB suscetíveis,
administração mensal supervisionada de RFT-900 mg (ou 600 mg de RFP), MOXI-400
mg e CLARI-100 mg (ou 200 mg de MINO). Para aqueles com cepas resistentes,
espera-se eliminá-las em 2 fases: na primeira através de MOXI-400 mg, CLO-50
mg, CLARI-500 mg e MINO-100 mg, diariamente, por 6 meses, e na segunda
utilizando-se de MOXI-400 mg, CLARI-1.000 mg e MINO-200 mg, mensalmente, por
mais 18 meses. Também se salientou que, apesar de se conhecerem as atividades
bactericidas destes fármacos, suas aptidões em liquidar organismos
metabolizadores lentos que sobrevivem à eliminação inicial são ignoradas e
essas informações seriam fundamentais para embasar abreviação do tratamento58.
A necessidade por novas propostas farmacológicas para hanseníase tem seus
obstáculos. A Federação Internacional de Associações Anti-Hansênicas estima que
o gasto em pesquisa tenha sofrido redução de mais de 50% de 1990-199859. No
Brasil, dos medicamentos novos lançados no mercado poucos têm avanço
terapêutico e/ou são direcionados para atender as necessidades de tratamento da
saúde pública. O SUS, como maior comprador da indústria de medicamentos, deve
se munir do grande arsenal de conhecimento científico produzido e direcionar
pesquisa e desenvolvimento também para atender à carga de doença da saúde
pública60.
Aplicações terapêuticas a serviço da prevenção primária
Alguns sustentam a concepção de que os grupos de maior potencial para
desenvolver a doença podem tornar-se alvo de quimioterapia profilática. Com
essa finalidade, estudo randomizado, controlado, duplo-cego, prospectivo,
mostrou que dose única de RFP promove redução de 57% da incidência geral de
hanseníase em contatos. Os resultados foram obtidos após seguimento por 2 anos,
sendo que, depois de 4 anos do início do ensaio, a efetividade da medida
terapêutica foi mantida, porém não houve diferenças estatísticas significativas
entre o grupo controle e com RFP61. Essa intervenção mostrou ser custo-
efetiva62. Entretanto, algumas questões foram levantadas: devido ao longo
período de incubação da doença, a redução da incidência pode significar
infecção subclínica e, em função da existência de outras fontes de transmissão
além da domiciliar, o doente poderia reinfectar-se a qualquer momento,
inutilizando a profilaxia63; para identificação dos contatos seria necessário
expor o caso índice, o que poderia agravar o estigma relacionado à doença, e a
absorção de RFP pode ser prejudicada por características individuais, como
doença intestinal, o que exigiria nova ingestão64. Ademais, Goulart e Goulart65
sustentam que quimioprofilaxia deva ser indicada para aqueles com testes ML-
Flow positivo e Mitsuda negativo.
Encontra-se também o entendimento de que vacinas são a melhor forma de
prevenção primária. Atualmente, no Brasil, aplica-se BCG, medida que, segundo
meta-análise realizada por Merle, Cunha e Rodrigues66, confere proteção de 20-
90%, porém em níveis variáveis. Revisão sistemática realizada por Lockwood67
ressalta 3 demais intervenções com alta qualidade de evidência e seus
respectivos efeitos: as vacinas BCG acrescidas do bacilo M. leprae morto,
desenvolvida pelo Centro de Pesquisa Indiano do Câncer (ICRC), e Mycobacterium
w, composta por cepa atípica não patogênica68 reduziram a incidência da
moléstia quando comparada com placebo após seguimento de 5-9, 6-7 e 9 anos,
respectivamente. A primeira é igualmente efetiva a BCG; a segunda carece de
resultados em outras regiões e quanto à sua formulação; a terceira não possui
comparação com as demais69.
A vacina contra hanseníase hipoteticamente preveniria o desenvolvimento de
resistência medicamentosa, quebraria a transmissão, protegeria contra a
infecção e poderia melhorar a resposta à PQT, reduzindo a incidência de
recidivas. A análise genética da hanseníase vem sendo empregada na tentativa de
identificar indivíduos suscetíveis tanto à infecção quanto à evolução clínica.
Dessa forma, ferramentas para identificação de antígenos proteicos, clonagem de
genes e expressão de proteínas recombinantes podem ser utilizadas para
caracterização imunológica e confecção de vacinas eficazes70. Entretanto,
elucidação das bases moleculares e celulares da suscetibilidade depende de
tecnologia avançada, atualmente disponível apenas em centros de pesquisa
restritos71.
Considerações finais
A resistência medicamentosa, fator interpretado como responsável pelo insucesso
da dapsonaterapia, já é também registrada para os demais fármacos do esquema da
OMS; muitas metas são traçadas, mas a complexidade e as necessidades dos
hansenianos continuam sendo avaliadas e defrontadas insuficientemente; a
"eliminação" da hanseníase baseou-se em dados não precisos, medidas
impróprias e conceito distorcido; a redução de profissionais qualificados na
matéria e a persistência de grau 2 de incapacidades físicas refletem
respectivos efeitos colaterais; faltam informações sobre aspectos biológicos
imprescindíveis para estimativas epidemiológicas e aperfeiçoamento da
terapêutica, bem como acurácia em coletar e registrar dados. Os resultados
apontam para a impossibilidade de eliminação da hanseníase por meio somente da
PQT.
Trata-se de construir sobre as consequências da "eliminação". Nesse
sentido, discutem-se métodos para ajustes no esquema operacional, como a PQT-
A e mais significativamente a PQT-U, bem como espera-se que novas drogas e
combinações supram as necessidades vindouras. A vigilância caminha para ser
realizada dentro de contexto integrado utilizando indicadores clinicamente
relevantes. O seguimento dos pacientes após alta por cura é indispensável para
verificação de recidivas, reações e reinfecções, e subsequente avaliação dos
resultados terapêuticos. é possível, então, que a partir do registro desses
dados sejam fornecidos subsídios fidedignos para tomada de decisões pautadas
nas reais necessidades dos doentes.