Centros Universitários de Saúde
Centros Universitários de Saúde
Manuel Cardoso de Oliveira
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; Serviço de Cirurgia B, Hospital
de São João, Porto
Em 1989, a propósito da reestruturação do Serviço de Urgência do Hospital S.
João, de que fui encarregado, eu escrevia que repensar o Serviço de Urgência
significava mexer em toda a vida do Hospital, sendo este uma estrutura em
permanente evolução. Referi-me também a outros conceitos: revisão do
funcionamento global do Hospital, articulação com os Cuidados Primários e
outros Hospitais, insuficiência de instalações, necessidade de obras, carências
de equipamento, quadro próprio para o serviço de Urgência, menos e melhores
camas, e expansão do intensivismo. De então para cá nunca deixei de intervir
publica e institucionalmente sobre os mais diversos aspectos da vida do
Hospital S. João e da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Foi,
pois, com uma grande satisfação que verifiquei que algumas das minhas velhas
preocupações eram também das actuais autoridades hospitalares do Hospital S.
João.
Na Grã-Bretanha, Dainton, em 1981, definiu a interface entre o Sistema de Saúde
e as Universidades como o lugar onde o presente encontra o futuro nos cuidados
de saúde. Actualmente poucas Universidades apostam na investigação clínica, e
os Hospitais Universitários são cada vez mais hospitais assistenciais, com
regras rígidas e pressões de natureza economicista, prejudicando as ideias e a
investigação. No entanto, para preparar líderes, transferir conhecimentos,
fomentar a investigação fundamental, melhorar a qualidade da assistência,
preparar profissionais (médicos, especialistas, enfermeiros e técnicos
auxiliares) para o sistema nacional de saúde e a reflexão interdisciplinar
fundamental, é indispensável uma profunda interligação entre a clínica e a
investigação. As autoridades envolvidas parecem, por vezes, querer resolver com
palavras aquilo que é uma questão cultural de imensas implicações e
susceptibilidades. Uma premissa fundamental deste problema é afirmar que se
quisermos ser inteligentes, não há qualquer antagonismo entre a Educação e a
Saúde, bem pelo contrário. Aceite esta premissa, o que vier a seguir tem de a
respeitar totalmente. Junta-se, assim, a um problema cultural, um problema de
inteligência. Com raras excepções, o desrespeito por estes pontos de vista tem
acontecido por todo o mundo, pelo que o problema não é exclusivamente nacional.
No entanto os portugueses parecem chegar sempre tarde às questões
estruturantes, pelo que a nossa linha de base não está acautelada.
Perante o volume e a complexidade desta matéria, julgo pertinentes algumas
questões. Torna-se indispensável saber o que é hoje um Hospital Universitário,
aquilo que lhe confere características distintas, sendo também necessário
reconhecer o que se espera de um Hospital Universitário a curto e a médio
prazo. Estas questões já afloraram à mente de muitos responsáveis e as
respostas não têm sido fáceis nem lineares. Significa isto que não façamos
qualquer esforço no sentido de nos comprometermos com uma alteração substancial
à situação que vivemos? Claro que não. Deve ser criada uma dinâmica funcionante
entre assistência, investigação e ensino. Mais do que definições institucionais
necessitamos de propósitos, iniciativas e exemplos. Temos de criar um ambiente
institucional e político que dê garantias para que possamos evoluir
definitivamente para um rumo certo. E temos de ser avaliados. Não podemos mais
andar a fazer de conta, de costas viradas uns para os outros. Este ênfase na
colaboração e o combate à política de fragmentação que nos atormenta exige
líderes esclarecidos, exemplares e respeitados, sem os quais as diversas
tensões culturais não serão resolvidas. É ingénuo acreditar que uma solução
abrangente e satisfatória possa ser conseguida com a manutenção da actual
estruturação das nossas instituições, não podendo nós continuar a gerir
contradições. Não há soluções mágicas, mas há soluções. Assim o país prefira
uma política de verdade e haja autoridade e transparência suficientes para a
implementar. Se assim não for, continuaremos a iludir o sistema até que, quando
não houver mais por onde fugir, outros farão, tarde, aquilo que nós não fomos
capazes de fazer em melhor altura. À boa maneira portuguesa.
A fragmentação das nossas actividades tem de ser combatida, com a certeza de
que se formos capazes de caminhar no sentido certo, ficaremos mais fortes e os
doentes serão mais bem tratados, os alunos mais bem formados e as instituições
mais prestigiadas. Não há visão central de uma missão integrada e, por isso, os
diversos poderes políticos nunca puderam nem poderão resolver esta questão se
não se alterar completamente o que vem sendo praticado. Nós não podemos andar
nos bastidores das nossas instituições pensando ingenuamente que finalmente os
Ministérios envolvidos encontraram a política certa. Podem as autoridades de
Saúde mostrar a melhor das boas vontades no sentido de respeitar o tal estatuto
especial para os Hospitais Universitários, mas enquanto as regras de jogo não
forem outras, nenhum passo significativo será dado. Quanto às autoridades da
Educação, eu fico pasmado com a bonomia com que vão permitindo que as coisas se
desenrolem e com a inacreditável política de admitir mais alunos nas actuais
Faculdades de Medicina. É preciso dizer que as condições pedagógicas mínimas
para ensinar alunos no ciclo clínico foram já largamente ultrapassadas, e há
vários anos. É necessário proceder atempada e seguramente à afiliação de
hospitais e centros de saúde que possam colaborar no ensino médico com
garantias pedagógicas adequadas. Somos assim conduzidos à necessidade da
criação de Centros Universitários de Saúde, concepção entre nós razoavelmente
nova, mas já testada noutras paragens. Estas interrelações entre a Saúde e a
Educação são muito complexas e susceptíveis e não devem por isso ser alteradas
bruscamente. Simplesmente isso não pode ser razão para sucessivos adiamentos no
encarar desta situação com realismo. Sucede, pelo contrário, que vão sendo
introduzidos sucessivos remendos que acabam por deixar tudo mais fragmentado e
mais complicado. Há estrangulamentos nas carreiras que são absolutamente
inadmissíveis. Como é possível admitir-se que para progredir na carreira alguns
universitários tenham de esperar por títulos que o Ministério da Saúde tarda em
atribuir, não cumprindo sequer a lei que rege os respectivos concursos? Refiro-
me à obtenção do grau de consultor, indispensável para que os nossos jovens
professores auxiliares concorram ao lugar de professores associados. Por outro
lado, é sabido que a contagem de tempo dos professores convidados tem em
Medicina particularidades que qualquer pessoa de bom senso e recta intenção
reconhece. Como é então possível que essa contagem de tempo seja feita
incorrectamente e de modo diverso entre várias Faculdades de Medicina, sem que
essa inacreditável assimetria seja definitivamente ultrapassada? E o que está
em causa é a paralisia das nossas instituições por não termos vagas disponíveis
para contratar jovens assistentes, nem professores que assegurem a desejável
renovação da Universidade. Todas estas dificuldades serão ultrapassadas quando
se decidir que nos Hospitais ditos Universitários haja apenas uma carreira.
A experiência holandesa parece aquela que na Europa está mais evoluída e,
apesar de não completamente avaliada, a verdade é que tem permitido avanços
sensíveis. Os Hospitais Universitários não se podem excluir de um contributo ao
mais alto nível para o Sistema Nacional de Saúde. Eles estão no fim de uma
linha de importância crescente, têm que ser exemplares no seu modo de
funcionamento global, são os responsáveis pela preparação de gente fundamental
ao funcionamento da Saúde, e eles, melhor do que quaisquer outros, devem
preparar não só os futuros líderes, como serem os principais agentes de
programas de Educação Médica Contínua. Os Hospitais Universitários não se podem
excluir de participar na carta hospitalar portuguesa, nem podem deixar de ser o
centro principal e modelar de uma série de hospitais e de centros de saúde que
com ele devem estar relacionados. Os Hospitais Universitários, portanto, serão
uma estrutura pivot dos Centros Universitários de Saúde, e só assim poderão
desempenhar eficientemente a sua função. O que em Portugal está mal todos nós
sabemos e o que nos faz falta é quem saiba o que está certo.
Uma outra necessidade é a de parcerias com instituições académicas não médicas
como, de resto, a Faculdade onde trabalho tem desenvolvido. Mas para além de
todas estas parcerias é necessário um aprofundamento destes conceitos destinado
a combater a fragmentação dos diversos saberes e iniciativas. As ciências
básicas devem ter uma inserção hospitalar formalizada e os planos de estudo das
Faculdades necessitam de ser alterados, criando novas áreas e reestruturando a
organização dos saberes estabelecidos. Também nesta área as Faculdades devem
fazer bem o seu trabalho, escolhendo aqueles que pela sua prática mais
garantias dêem de idoneidade, seriedade e sucesso. Numa palavra, também as
Faculdades não se podem dispensar de dar um contributo qualificado à questão
dos Centros Universitários de Saúde.
No fundo não devemos desejar uma solução administrativa para um problema que é
cultural. Isto significa que estas questões não se resolvem apenas com medidas
de gestão, seguramente bem intencionadas, mas que não dispensam experiências e
saberes e uma grande maturidade. Actualmente os nossos departamentos são
estruturas administrativas obsoletas, mais do que verdadeiros locais de
ciência, sendo um dos principais problemas a falta de compromisso entre a
investigação e os serviços à comunidade. É preciso juntar as pessoas e os
grupos para que possam gerar ideias e projectos comuns.
Correspondência:
Prof. Manuel Cardoso de Oliveira
Serviço de Cirurgia B
Hospital de São João
Alameda Prof. Hernâni Monteiro
4200-319 Porto
e-mail:maco@med.up.pt