Ricardo Jorge Saúde Pública
Ricardo Jorge
Saúde Pública
Henrique Barros
Serviço de Higiene e Epidemiologia, Faculdade de Medicina da Universidade do
Porto
Ricardo Jorge, merece ser visitado como um marco e enquanto personagem em si.
Merece até a reparação simbólica, pois viveu essa forma poeticamente glosada de
esta pátria flagelar os melhores - e, como sempre, à sombra póstuma do seu
brilho deixar larvar muitos medíocres. Mas, muito mais que isso, os 150 anos
que simbolicamente no seu nascimento se iniciam transportam as mudanças
essenciais nos paradigmas da saúde, do ensino das profissões que à saúde
respeitam e nos caminhos da investigação, que levaram a uma radical mudança na
nossa forma de viver, de querer viver e de pensar a vida.
A saúde, vista sobretudo como a ausência de doença, passou a ser percebida como
o resultado de interacções subtis entre hospedeiros que se acreditavam centrais
- as pessoas - e agentes microbianos que invadiam fortalezas para as quais não
se conheciam as estratégias de protecção. Depois, foi a invasão dos estilos de
vida, a subtileza da passagem das vinganças divinas - as doenças como castigo
por escolhas desconhecidas - para as flagelações pessoais - porque escolhi um
trabalho, uma alimentação, um parceiro(a) - agora posso morrer. Ah! E
inventadas que foram as protecções sociais perante a doença - afinal eram
desígnios de Deus - podem agora arder as ajudas no altar das vítimas culpadas
das suas escolhas evitáveis: e já não temos que pagar!
A saúde pública - conceito de subtis ressonâncias - foi também mudando
radicalmente neste século e meio. No limite, ao propor-nos visões para o mundo
em que desejamos viver e ao organizar respostas para os desafios que o desenho
desse mundo sempre apresenta, a saúde pública nunca deixou de estar presente,
desde que as pessoas se encontraram e organizaram socialmente. Mas no tempo que
nos interessa, viveu muito da passagem de um lugar de autoridade (que por vezes
teima em não ser ultrapassado) para um lugar de génio e inteligência: o
exercício difícil de harmonizar interesses e saberes e, ainda por cima, fazê-lo
de forma quantificada e com mecanismos de avaliação. Até para resultados que nos
invadem, como as mortes evitáveis ou as condições reconhecidamente insalubres -
físicas, intelectuais, económicas e sociais - em que nos vemos obrigados a
viver! Por isso, a ciência, com os seus instrumentos, tomou o lugar da polícia
sanitária (ainda que ela - a ciência - continue por vezes a ser usada com a
ligeireza do bastão!) e a aventura de se pertencer ao mundo da saúde pública
tornou-se muito mais atraente e parte natural de um desafio com o recato, a
liberdade e o risco do mundo universitário.
Mas o desafio verdadeiro destes 150 anos cuja visita agora se inicia - porque
foi imaginada como um envolver que culmina no dia da exposição a apresentar
quando estiver habitável e habitada a casa do Instituto de Saúde Pública da
Universidade do Porto - será compreender porque mudou tanto, mas só na
aparência, a nossa capacidade de conhecer e mudar o mundo na perspectiva que a
saúde pública nos propõe: enquanto aventura social. Afinal somos visitados pelas
mesmas doenças, mais graves até na subtileza da fuga selectiva, conhecemo-las
melhor mas isso resulta apenas numa área maior de desconhecimento que a cada
pedaço de sombra conquistado se segue maior e maior, na sua noite a visitar. E
a nossa função, sobretudo de cientistas, é promover excursões a essa noite
desafiante. E fazê-lo bem, cada vez melhor! Inventamos a precaução mas não
descobrimos novos mundos, vamos mais depressa mas pelos mesmos caminhos,
deslumbramo-nos ciclicamente com descobertas que afinal devanecem fora da escala
do laboratório. Os micróbios perderam para a caixa negra do ambiente, o
ambiente para a caixa colorida dos genes, no impasse vem a escolha pelas
interacções salvadoras e agora vamos descascando o conhecimento como uma cebola
em busca do centro. Ganhamos anos de vida, muitos, mas não soubemos reparti-
los. Verdadeiramente, estamos quase só perigosamente mais perto uns dos outros,
mais parecidos e portanto menos livres e ainda não percebemos se era esse o
nosso destino. Primeira etapa: conhecer como aqui chegamos para pensar como
saímos. E, claro está, fazê-lo como se deve: com trabalho criativo, competindo
e cooperando. Mas diga-se, também porque chega de quixotismo, com os meios a
que temos objectivamente direito e por isso já cansa de pedir. Envergonha, até.
Mais 150 anos virão. Acreditamos que sim: para isso a saúde pública
contribuirá. E não esqueçam que alguém se irá lembrar disso. Em 150 anos!
Porto, 7 de Maio de 2008