Calcinose na Dermatomiosite Juvenil: Um Desafio Terapêutico
A calcinose cutânea corresponde a uma deposição de sais insolúveis de cálcio em
tecidos não articulares, subdivide-se em 4 tipos clínicos: distrófica,
idiopática, metastática eiatrogénica. É uma complicação da dermatomiosite
juvenil (DMJ) no tipo distrófico, cuja incidência é de 10% a 70% (1, 2). Pode
ser dolorosa e debilitante, resultando em incapacidade funcional. A patogénese
é desconhecida, mas parece envolver a acção de células inflamatórias, citocinas
e proteínas da matriz mineralizada, como a osteocalcina (3).
O diagnóstico tardio, atraso no tratamento, a presença de vasculite e a
gravidade da doença subjacente são factores de risco para o aparecimento de
calcinose (4,5,6).
Diversos fármacos são utilizados para tratar a calcinose. Destacam-se o
probenicid (7,8), hidróxido de alumínio (9,10), diltiazem (11,12), varfarina
(13), colchicina (14), bifosfonatos e a imunoglobulina IV (IGIV) (15-18),
embora nenhum apresente resultados consistentes.
CASO CLÍNICO
Doente de 14 anos, sexo feminino, caucasiana, observada em Dermatologia por
apresentar pápulas eritematosas violáceas, dispersas nos membros superiores e
inferiores com 3 meses de evolução. A biopsia das lesões cutâneas revelou
inflamação perivascular com necrose capilar.
Dezasseis meses após a doente referia artralgias das grandes articulações,
fadiga com envolvimento simétrico dos músculos proximais e agravamento das
lesões cutâneas, sendo referenciada à consulta de Medicina Interna, não tinha
até então efectuado qualquer tratamento.
Apresentava-se emagrecida, referindo perda ponderal de 10 kg, com alopécia
difusa, rash frontal e malar e eritema periorbitalvioláceo. Exibia pápulas
avermelhadas nas metacarpofalângicas, interfalângicas distais, cotovelos e
joelhos (pápulas de Gottron - Figura 1) e telangiectasias periungueais
(Figura 1). Não apresentava sinuvite, artrite, ou dor à palpação das massas
musculares.
Laboratorialmente apresentava citolise hepática, LDH e aldolase elevadas, auto-
anticorpos negativos (incluindo anti-jo 1, anti Mi2). O restante estudo que
incluiu marcadores víricos, ECA, prova de Mantoux, ceruplasmina foi normal.
Assumido o diagnóstico provável de dermatomiosite, baseado na presença de 3 dos
5 critérios de Bohan and Peter (lesões cutâneas típicas, fraqueza simétrica dos
músculos proximais, elevação sérica das enzimas musculares). Instituiu-se
tratamento com prednisolona 1 mg/ kg/ dia e hidroxicloroquina.
Ao sétimo mês de tratamento apresentava melhoria das artralgias, remissão dos
sintomas gerais e normalização das provas hepáticas, persistiam as lesões
cutâneas com surgimento de calcinose em placas (Figura 2) dispersas nos membros
superiores e inferiores, com retracção cutânea.
Fig. 1 -Pápulas de Gottron e telangiectasias periungeais.
Fig. 2 -Placas de calcinose.
Foi adicionada à corticoterapia, metotrexato 7,5 mg/ semana, colchicina 1 mg/
dia e diltiazem 60 mg/dia.
Reavaliada após quatro meses, apresentava ausência de novas placas, com
regressão discreta da dimensão e induração das previamente existentes.
DISCUSSÃO
A DMJ é uma doença sistémica, caracterizada por inflamação do músculo estriado e
da pele. O envolvimento muscular observado, é a fraqueza proximal simétrica dos
membros superiores e inferiores, discreta a intensa, promovendo grave
incapacidade. O envolvimento dos músculos do pescoço e tronco é menos comum.
Outros sintomas musculares podem surgir, tais como, mialgias, sensibilidade ao
toque e edema muscular.
As manifestações cutâneas apresentam nível de gravidade variável, desde eritema
da face ao eritema difuso, as lesões mais características são as pápulas de
Gottron e eritema heliotropo, observadas em 50 a 70 % dos casos (19). Menos
comuns são o livedo reticularis, nódulos subcutâneos, púrpura e alopécia.
Acalcinose é a complicação mais comum, costuma surgir na fase activa da doença
e está relacionada à doença cutânea grave, à vasculite grave, ao atraso
diagnóstico e terapêutico, como é exemplo o caso clínico. A doente apresentava
doença activa expressa pelo atingimento sistémico, atingimento cutâneo difuso,
vasculite e lise hepatocelular grave, exibindo factores de risco para o
desenvolvimento de calcinose.
A instalação da calcinose ocorre um a três anos após
a. o início da doença, tendo já sido relatada 20 anos após
b. o diagnóstico (20).
O cálcio deposita-se na fáscia muscular ou intramuscular, com predilecção por
áreas propensas a traumatismos, como cotovelos, joelhos, nádegas e superfícies
articulares flexoras condicionando o movimento articular (19).Acalcificação
superficialgeneralizada, formando um exoesqueleto, também já foi descrita. A
rápida instalação e o atingimento difuso das placas de calcinose deixam antever
no caso da nossa doente a provável evolução para um exoesqueleto.
A calcinose pode causar atrofia muscular secundária, contracturas articulares e
úlceras cutâneas com episódios recorrentes de inflamação ou infecção local.
O tratamento da calcinose é um grave problema terapêutico. Esta dificuldade
resulta da raridade da ocorrência, da imprevisibilidade da evolução e da
heterogeneidade da resposta às diversas terapêuticas.
Na literatura existem referencias a várias terapêuticas, algumas de sucesso não
comprovado.
O diltiazem é um bloqueador dos canais de cálcio, inibe o influxo de cálcio para
as células, o crescimento e a proliferação do tecido muscular liso dos vasos e
dos fibroblastos. O mecanismo da acção será pela diminuição da concentração de
cálciointracelular muscular, reduzindo a formação de cristais. Os autores que
preconizaram a sua utilização usaram doses que variam entre 1,8 a 5 mg/kg/dia
(11,12).
No presente caso, o diltiazem foi utilizado em doses inferiores (1 mg/kg/dia)
devido à hipotensão induzida, associada á colchicina 1 mg/dia.
Acolchicina previne ou reduz ainflamação secundária aos depósitos de cálcio, não
sendo constatada a redução dos depósitos já estabelecidos (14).
O probenocid, um derivado da sulfanamida, é um agente uricosúrico que inibe a
reabsorção do ácido úrico no tubúlo renal proximal. Há casos de sucesso
terapêutico com probenocid (250-1500 mg/dia) em pacientes com calcinose severa
(7,8). O mecanismo de acção, na regressão da calcinose, parece resultar da
diminuição da concentração sérica do fósforo consequente ao aumento da sua
excreção urinária, diminuindo os depósitos de cálcio. Não é claro como este
mecanismo actua na resolução das calcificações já estabelecidas.
O hidróxido de alumínio tem o mesmo mecanismo de acção do probenocid (9,10).
Baixas doses de varfarina, 1mg/dia, podem prevenir a calcinose, contudo não tem
eficácia na calcinose estabelecida (13). O mecanismo de acção envolve a produção
de ácido gamma carboxiglutamico dependente da produção de vitamina K. O ácido
gamma carboxiglutamico é encontrado nos depósitos de cálcio e a sua produção
está aumentada em paciente com DMJ, evidenciada pelo aumento da sua excreção
urinária (13).
Há casos de melhoria da calcinose com bifosfonatos. Os bifosfonatos inibem a
reabsorção óssea, causam destruição dos macrofágos e inibem a produção de
citocinas inflamatórias como a IL1B, IL6, e TNF α, inibindo posteriores
depósitos de cálcio (15, 16). O mecanismo da melhoria na calcinosejá
estabelecida é desconhecido. O seu benefício não é aplicado a todos os
bifosfonatos. Existem estudos demonstrando a falta de eficácia do etidronato
(16). Esta diferença pode ser explicada pelas diferenças biológicas destes
fármacos. Alguns autores observaram melhoria da calcinose subcutânea com o
alendronato (10 mg/dia) (3, 15).
A IGIV é um bloqueador do receptor FC dos capilares endoteliais e inibidor da
activação do complemento, prevenindo o dano mediado pelo complemento aos vasos
sanguíneos e às fibras musculares. Existem estudos que demonstram eficácia da
IGIV no tratamento da DMJ resistente aos corticóides e a
outrosimunossupressores, sendo também demonstrada melhoria da calcinose (18).
O anti TNF α (infliximab) ainda necessita de estudos para avaliar sua eficácia no
tratamento de DMJ com calcinose (21). Maillard et al, observaram regressão
parcial da calcinose em pacientes após dois a dez meses de tratamento com
infliximab na dose de 3-5 mg/kg (21).
Nalguns pacientes com calcinose difusa, dor crónica importante, perda da função
articular, infecções recorrentes e ulcerações, a cirurgia pode estar indicada.
Todos os doentes devem evitar traumatismos.
CONCLUSÃO
Não existe um tratamento específico e eficaz para a calcinose. Não há relatos de
terapêutica com eficácia absoluta, nem estudos randomizados controlados. A
terapêutica empírica é muitas vezes justificada em casos refractários e em casos
de deterioração clínica, rapidamente progressiva.
Esta complicação ocorre na vigência da actividade da doença. É importante ter
presente que a inexistência de fraqueza muscular e/ou do aumento das enzimas
musculares, pode não ser suficiente para excluir doença activa, sendo a
calcinose a única expressão.