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EuPTCVHe0871-34132011000200003

EuPTCVHe0871-34132011000200003

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0871-3413
ano2011
Issue0002
Article number00003

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Síndrome de Fisher-Bickerstaff

Introdução A síndrome de Fisher (SF) é uma doença caracterizada pela tríade clínica de oftalmoplegia, ataxia e arreflexia de evolução aguda1,2,3, cujas características clínicas se sobrepõem em muitos casos à encefalite de Bickerstaff (EB), a qual se caracteriza por oftalmoplegia, ataxia e alterações do estado de consciência1,2,4. Estas duas entidades clínicas parecem ter uma fisiopatologia comum: auto-imune, com associação aos anticorpos anti-GQ1b e à infecção precedente por Campylobacterjejuni1,2. É frequente haver sobreposição de características clínicas das duas situações e tanto numa como noutra podem surgir alterações sugestivas de síndrome de Guillain-Barré1,2,4, podendo haver casos de classificação complexa. A SF e a EB parecem ser entidades auto-imunes, de etiopatogenia comum,dentro do mesmo espectro clínico e que podem afectar de forma variável o sistema nervoso central e periférico ' por estas razões tem sido proposta uma designação global nosológica de síndrome de Fisher- Bickerstaff situações sugestivas de SF, EB ou de classificação indeterminada1,2,4.

Os autores descrevem um caso clínico de síndrome de Fisher-Bickerstaff e discutem as suas características clínicas, evolução e tratamento.

Caso clínico Doente do sexo masculino de 61 anos de idade. Antecedentes: doença vascular cerebral (AVC hemorrágico em 2005, sem sequelas), enfarte agudo de miocárdio (em 1995), hipertensão arterial, diabetes mellitustipo 2, dislipidemia e tabagismo. Valor prévio na escala de Rankin modificada: 1.

Em Julho de 2010, iniciou, de modo súbito, disartria, sem outros sintomas. Foi observado no serviço de Urgência, onde não se objectivaram outras alterações ao exame neurológico e onde foi submetido a TAC cerebral, que revelou lacunas nos núcleos da base, provável lesão sequelar de hemorragia na região lentículo- capsular à esquerda, leucoencefalopatia isquémica de predomínio frontal e atrofia córtico-subcortical. Foi internado com a suspeita de AVC isquémico agudo. Subsequentemente, ao longo de uma semana, sofreu agravamento neurológico progressivo com instalação de oftalmoparésia (limitação na abdução, supraversão e infraversão; sem diplopia), parésia facial periférica bilateral, anartria, disfagia, alterações na mobilidade da língua e do palato e ataxia. Não tinha alterações dos reflexos ósteo-tendinosos nem défices sensitivos ou motores nos membros.

Para esclarecimento etiológico deste quadro, realizou: -eco-doppler cervical e transcraniano: placas ateroscleróticas junto à bifurcação das carótidas comuns e início da interna direita, sem estenoses significativas (20-25% à esquerda e 25-30% à direita). Artérias vertebrais e basilar com fluxos sanguíneos conservados. Sinais hemodinâmicos compatíveis com estenoses superiores a 50% na cerebral posterior esquerda (porção P2) e na porção terminal da carótida interna direita e inferior a 50% na cerebral média direita. -RMN cerebral (Figura_1 ): lesão isquémica recente na coroa radiada esquerda; lesões isquémicas não recentes nos gânglios da base à direita e em ambas as coroas radiadas e cápsulas externas; leucoencefalopatia isquémica. Em T2 e FLAIR, observou-se hipersinal focal na ponte de isquemia crónica de pequenos vasos, mas sem enfarte franco. As sequências de angio-RM do polígono de Willis mostraram alterações consistentes com as demonstradas pelo eco-Doppler. -exame do LCR: proteínas elevadas (0,86 g/l), 10 células µ/l, representando ligeira dissociação albumino-citológica.

Perante estes exames auxiliares de diagnóstico, foi colocada a hipótese de poder tratar-se de um statuspseudo bulbar precipitado pelo aparecimento de nova lesão isquémica (coroa radiada esquerda). Foram ainda ponderados diagnósticos alternativos: síndrome de Fisher-Bickerstaff, botulismo ou miastenia gravis (embora estas duas últimas hipóteses de diagnóstico parecessem menos prováveis, pelo enquadramento clínicoe epidemiológico).

Da investigação etiológica, adicionalmente efectuada, salientam-se:

electromiografia, estudos de condução nervosa dos membros e estudo de estimulação repetitiva 10 dias após início dos sintomas: sem evidência electrofisiológica de neuropatia periférica ou sinais de disfunção da placa motora; estudo imunológico: sem alterações; negativo para anticorpo anti-GQ1b; serologia de Campylobacter jejunino soro: igG negativa, igMpositiva. Foi ainda repetida a RMN cerebral com contraste endovenoso, 20 dias após o início dos sintomas, que não mostrou alterações de novo. especificamente, não foram detectadas alterações morfológicas ou de sinal na região infratentorial e pares cranianos baixos. tendo em conta estes resultados, a síndrome de Fisher-Bickerstaff tornou-se a mais provável das hipóteses de diagnóstico sugeridas. Entretanto, o doente iniciou um programa diário de Fisioterapia, bem como de terapia da Fala. Dado o contexto de doença auto-imune, foi introduzida terapêutica com imunoglobulinas intravenosas.

Gradualmente, o doente recuperou dos défices neurológicos (primeiro, movimentos oculares; depois, sintomas bulbares e ataxia, por esta ordem). À data da alta hospitalar (62 dias após início dos sintomas),o doente não tinha limitação dos movimentos oculares, parésia facial ou disfagia. Apresentava disartria e disfonia, assim como ataxia ligeira do tronco e da marcha, sendo capaz de realizar marcha autónoma, sem auxiliares. Pontuava 3 na escala de Rankin modificada.

Os diagnósticos finais foram: síndrome de Fisher-Bickerstaff, sem anticorpo anti-GQ1b, provavelmente secundária a infecção por Campylobacter jejunie AVC isquémico lacunar do território da artéria cerebralmédia esquerda coincidente.

Discussão A síndrome de Fisher-Bickerstaff cursa tipicamente com dissociação albumino- citológica2,3e positividade para o auto-anticorpo anti-GQ1b2(em 85% dos casos5,6). Na maioria dos doentes, os estudos imagiológicos não revelam alterações específicas2, tal como no doente que apresentámos. Porém, em alguns, a RMN demonstra alterações no mesencéfalo, cerebelo ou pedúnculo cerebeloso médio7, que geralmente surgem hiperintensas em T2 ou, mais comummente, como áreas captantes de contraste em T12. O diagnóstico diferencial inclui uma lesão aguda do tronco cerebral, principalmente encefalite do tronco3. Na síndrome de Fisher-Bickerstaff, o sintoma inicial mais frequente é a diplopia, seguida de perturbações da marcha7. Sintomas de apresentação menos comuns incluem parésia facial, ptose palpebral, fraqueza muscular dos membros, disfagia, fotofobia, hipovisão, tonturas e cefaleias2. Neste doente, os sintomas de apresentação foram disartria e parésia facial. A oftalmoplegia é o achado mais prevalente e consistente na fase aguda da doença19, sendo, na maioria dos doentes, bilateral e relativamente simétrica2. A ataxia pode ser bastante severa, originando uma perturbação da marcha; asua patogénese ainda não está completamente estabelecida, acreditando-se que possam estar implicados mecanismos periféricos (proprioceptivos) e centrais (cerebelosos)2. A maioria dos doentes recupera de forma espontânea e completa dentro de 2 a 3 meses após o início da doença2. O tempo médio desde o começo dos sintomas neurológicos até o início da recuperação é 12 dias para a ataxia e 15 para a oftalmoplegia. O tempo médio para a resolução completada a taxia é de 1 mês e de 3 meses para a oftalmoplegia. Aos 6 meses após o início da doença, os doentes não apresentam normalmente limitações significativas na actividade. A rapidez de recuperação é independente da idade do doente, sexo, evidência de infecção precedente, grau de incapacidade no pico da doença ou tempo de latência até ao pico8. O tratamento com imunoglobulinas intravenosas não tem habitualmente efeito no resultado global, provavelmente porque os doentes tipicamente têm uma boa recuperação espontânea9. É difícil estabelecer uma relação directa entre a recuperação neurológica deste doente e a aplicação da imunoglobulina, não se podendo, contudo, excluir a sua contribuição. Um programa adequado de reabilitação multidisciplinar é fundamental, sendo mais importante do que a imunoterapia. O programa de reabilitação tem como objectivos auxiliar na regressão dos sintomas, prevenir as complicações da doença e compensar os défices funcionais e deve ser começado numa fase precoce da doença, assim que a situação clínica o permita. Na fase aguda, a intervenção da Medicina Física e de Reabilitação (seja através de Fisioterapia ou terapia da Fala) visa a prevenção e o tratamento de complicações, muitas das quais associadas à imobilidade: retracções músculo-tendinosas, fenómenos tromboembólicos, complicações respiratórias (atelectasias, infecções respiratórias), úlceras de pressão, úlceras de córnea (sequelares a não encerramento palpebral completo), disfunção autonómica e problemas de deglutição. Posteriormente, visa o tratamento do défice motor (parésia facial), ataxia, anartria e disfagia10. No caso do doente descrito, o prognóstico funcional está agravado pela concomitância de doença vascular cerebral marcada. O caso acima descrito realça ainda a importância de uma colaboração estreita entre a Neurologia e a Medicina Física e de Reabilitação.


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