Profilaxia para Úlcera de Stress em Unidade de Terapia Intensiva
Introdução
O sangramento gastrointestinal por úlcera de stress é uma importante
complicação observada em pacientes que necessitam de cuidados intensivos, e que
se encontram em condições de grave estresse fisiológico, tanto inflamatório
como hemodinâmico1, acarretando uma estadia mais prolongada na Unidade de
Terapia Intensiva (UTI), custos mais elevados, maior morbidade e mortalidade2.
Devido à natureza difusa das lesões, úlceras de stress geralmente não são
passíveis de terapia endoscópica3. Assim, torna-se de extrema importância a
prevenção desta condição, que pode ser alcançada por terapias que reduzem a
secreção ácida ou reforçam os mecanismos de proteção da mucosa. Neste contexto,
é importante o conceito de que a sua fisiopatologia é um fenómeno
multifatorial, em que se destacam a vasoconstricção esplâncnica e hipoperfusão
orgânica, com importante alteração da circulação sanguínea da mucosa, associada
à redução da secreção de bicarbonato e à difusão retrógrada de ácido, além de
mudanças na motilidade gastrointestinal2-3. A hipoperfusão gástrica leva a um
desequilíbrio entre oferta e necessidade de oxigênio, e a isquemia da mucosa
acarreta uma acumulação suprafisiológica de óxido nítrico.
Disto resulta a formação de espécies reativas de oxigénio, conformando um
cenário de lesão por isquemiareperfusão, com infiltrado inflamatório e
diminuição na síntese de prostaglandinas e muco, tornando a parede gástrica
vulnerável à ação do suco gástrico 4-5. Nas últimas décadas, no entanto,
observa-se que a taxa de hemorragia clinicamente importante vem diminuindo de
forma independente do uso de profilaxia medicamentosa6. Desta forma, o
reconhecimento dos fatores de risco implicados na génese da úlcera de stress é
fundamental para definir de forma precisa a indicação de medicamento
profilático em cada caso, uma vez que efeitos colaterais importantes podem
advir desta conduta1. É importante assinalar que a profilaxia dessa condição,
tanto com antagonistas dos receptores h2como com inibidores de bomba de
protões, aumenta o risco de pneumonia associada à ventilação mecânica7-8. Além
disso, a alcalinização gástrica pelo uso desses medicamentos pode contribuir
para a variação de absorção entérica de medicamentos9. O esquema profilático
escolhido deve levar em conta, portanto, os fatores de risco e estado de doença
subjacente dos pacientes para proporcionar a melhor terapia com maior
probabilidade de benefício3. Há considerável desacordo sobre este assunto, mas
o consenso é que os pacientes que apresentam risco muito alto de sangramento
relacionado com o stress devam receber a profilaxia. A aplicação de check list,
em ronda diária à beira do leito do paciente, por toda a equipa
multiprofissional de cuidados intensivos, configura-se como uma alternativa
para identificar e conferir alguns pontos-chave nos cuidados gerais dos
pacientes criticamente doentes, entre os quais, destaca-se a profilaxia de
úlcera de stress10. Observa-se uma rotina do uso de medicamentos profiláticos
para úlcera de stress, considerando apenas o fato do paciente estar internado
em uma UTI, mas nem sempre constituindo indicação precisa para a aplicação da
profilaxia. Dessa forma, o presente artigo propõe-se a descrever a utilização
de medicamentos profiláticos para úlcera relacionada ao estresse nos pacientes
internados numa UTI, analisando sua prescrição e indicação clínica, conforme
protocolo estabelecido na mesma, revisto e modificado de acordo com diretrizes
internacionais.
Métodos
Realizou-se um estudo observacional prospectivo, numa UTI com dez leitos para
pacientes adultos, de um hospital geral de médio porte, onde atua uma equipe
multiprofissional, incluindo médicos de diversas especialidades, enfermeiros,
fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e farmacêuticos. O levantamento
bibliográfico, para a revisão do protocolo da UTI em estudo, foi realizado pela
busca por trabalhos científicos na base de dados Medline, pesquisada através da
Pubmed, usando os seguintes termos: stress ulcer prophylaxis, stress ulcer
syndrome, gastrointestinal prophylaxis, gastrointestinal hemorrhage, intensive
care unit, proton pump inhibitors, histamine2-receptor antagonist, publica-dos
em um período inferior a dez anos.
A coleta de dados foi realizada posteriormente à revisão do protocolo e sua
publicação ao corpo clínico atuante na UTI. Foram analisados os prontuários e
prescrições médicas de todos os pacientes maiores de 18 anos, com internação em
UTI superior a 24 horas, entre julho e dezembro de 2009. Foram excluídos os
pacientes com evidência de sangramento gastrointestinal prévio à internação na
UTI, que apresentaram hematemese, sangue no aspirado nasogástrico ou melena,
pacientes submetidos a gastrectomia total e pacientes internados mais de 6
meses antes do início da coleta de dados.
As seguintes variáveis categóricas foram investigadas, utilizando as
respectivas legendas: medicamento para profilaxia de úlcera de stress prescrito
e indicado (A); prescrito e não indicado (B); não prescrito e indicado (C); não
prescrito e não indicado (D). A indicação clínica da prescrição foi analisada a
partir do prontuário dos pacientes e segundo o protocolo da instituição de
estudo modificado após revisão. A coleta de dados foi feita por busca ativa no
prontuário em planilha própria, elaborada após estudo piloto realizado em um
período de um mês, para testar o instrumento de coleta quanto a clareza,
estrutura e organização. Cada paciente foi identificado pelo número do leito de
internação.
A análise descritiva dos dados foi feita utilizando-se as frequências. A
proporção de profilaxia correta prescrita foi obtida pela fórmula (A+D)/
(A+B+C+D); de profilaxia indevidamente prescrita, (B +C)/(A+B+C+D) e profilaxia
não prescrita, c/(A+C).
A digitação e análise do banco de dados foram efetuadas no programa Microsoft
Office excel 12.0. este estudo foi aprovado pelo comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal de Juiz de Fora CEP/ UFJF sob nº 002/2010, com
consentimento formal da chefia da unidade pesquisada.
Resultados
A UTI apresentou, no segundo semestre do ano de 2009, uma ocupação média de
91,0%, com um número total de 151 pacientes internados, sendo 28,5% pacientes
cirúrgicos. O tempo de permanência média foi de 10,6 dias, a média da idade dos
pacientes foi de 68 anos, e a mortalidade foi de 24,5% no período. Nenhum
paciente atendeu aos critérios de exclusão do estudo, sendo todos prontuários e
prescrições analisados nesse período.
Segundo a literatura consultada, o protocolo da UTI avaliado atende aos
critérios estabelecidos para a indicação de profilaxia, porém não contempla a
correta estratificação do risco de sangramento gastrointestinal por úlcera de
stress.
O medicamento utilizado para a profilaxia em todas as prescrições avaliadas foi
o pantoprazol, sendo administrado por via endovenosa, na dosagem de 40 mg, a
cada 24 horas.
Os dados expressos na Tabela_1
demonstram uma grande frequencia da prescrição de medicamento para a
profilaxia de úlcera de estresse sem indicação clínica precisa, em todos os
meses avaliados segundo o protocolo do hospital modificado após revisão.
Discussão
O protocolo ideal para indicação de profilaxia para úlcera de stress deve
definir claramente os pacientes que apresentam alto risco de desenvolvê-la, a
fim de orientar corretamente a prescrição médica11. Em face dos resultados
obtidos, observa-se a necessidade de revisão do protocolo aplicado na UTI do
hospital analisado neste trabalho (Tabela_2
), que apresentou falta de critérios para estratificação das condições de risco
que podem conduzir o paciente a um sangramento gastrointestinal. A modificação
do protocolo (Tabela_3
) seguiu conduta recomendada pela American Society of Health-Service
Pharmacists (ASHP), que define os critérios de alto risco para pacientes
internados em UTI12, assim como também preconizado por outros autores13-14. A
diretriz da ASHP, publicada em 1999, preconiza a profilaxia para úlcera de
stress em pacientes que apresentem um dos dois fatores independentes
estabelecidos por cook et al.15 mais fortemente relacionados ao sangramento,
por isso de maior risco, que são falência respiratória com necessidade de
ventilação mecânica por mais de 48 horasOR 15,6, e coagulopatiaOR 4,3. E também
naqueles pacientes em que ao menos duas das seguintes condições sejam
detectadas: história de hemorragia gastroduodenal, úlcera péptica ou gastrite
menos de um ano antes da internação; lesões térmicas superiores a 35% da
superfície corporal; hipoperfusão orgânica ou hipotensão arterial (seps's,
choque ou disfunção orgânica); permanência em terapia intensiva acima de uma
semana; transplante de órgãos; traumatismo craniano; politraumatismo; índice de
coma de Glasgow inferior a 10; hepatectomia parcial; insuficiência hepática;
lesão de medula espinal; e uso concomitante ou recente de corticosteróides em
dose elevada (hidrocortisona de 250 mg/dia ou equivalente)12. Os dados da UTI
em análise concordam com os de diversos estudos nacionais e internacionais16-
19. no entanto, a média de 10,6 dias de internamento está acima da verificada
no segundo censo Brasileiro de UTIs, realizado pela Associação de Medicina
Intensiva Brasileira20, onde o tempo médio de permanência variou de 3 a 6 dias,
com média entre 3 e 4 dias. Não há consenso firmado sobre o medicamento de
escolha e a dosagem definida para a profilaxia da úlcera de stress. Os
antagonistas dos receptores h2 de histamina são agentes profiláticos muito
utilizados, no entanto, os inibidores de bomba de prótons têm mostrado os
melhores resultados em pacientes de alto risco, fazendo com que esta classe
terapêutica constitua a opção de primeira escolha para sua profilaxia em
diversas instituições11-21, assim como no hospital em estudo. Os inibidores da
bomba de protões vêm ganhando crescente aceitação, provando ser tão ou mais
efetivos que aqueles, por fornecerem supressão ácida mais potente, mantendo o
ph gástrico superior a 4 por períodos mais prolongados, com um perfil de
efeitos adversos mais favorável, várias vias de administração, não estarem
relacionados ao desenvolvimento de tolerância, e com menos propensão a causar
interações medicamentosas ao nível do citocromo P45022-23.
Os resultados demonstraram o uso sem critérios clínicos da profilaxia
medicamentosa para úlcera de estresse na UTI do hospital avaliado, o que também
está de acordo com a literatura. Um questionário foi aplicado aos membros da
seção de Farmácia e Farmacologia da sociedade de Medicina Intensiva dos estados
Unidos, onde representantes de 86% das instituições afirmaram que os
medicamentos para a profilaxia da úlcera de stress eram usados na maioria
(>90%) dos pacientes internados na UTI23. Outro estudo, transversal e realizado
em um único dia, com coleta de dados de todos os pacientes internados em 21
UTIs, analisou um total de 235 pacientes. Dos 55 pacientes considerados de
risco intermediário para úlcera de estresse, 70,9% estavam recebendo
profilaxia, e dos 14 pacientes de baixo risco, 71,0% recebiam profilaxia13. Em
outro estudo transversal e randomizado, realizado em um departamento de
medicina interna, 73,0% dos pacientes utilizavam inibidores de bomba de prótons
de forma inadequada e a maioria deles não tinha essa indicação no momento da
alta24. As ações farmacêuticas no cuidado intensivo tem evoluído mundialmente,
com transição da posição tradicional de supervisão da dispensação de
medicamentos para a participação da equipe de cuidado à beira do leito25 e
garantia da assistência farmacêutica na UTI26. Neste estudo, foi este
profissional quem revisou e sugeriu as modificações no protocolo da UTI. Além
disso, houve intervenção farmacêutica durante a visita à beira do leito, em
momento posterior à coleta de dados, que resultou em alteração da prescrição do
dia pelo médico plantonista. O presente estudo permite descrever algumas das
atuais práticas de prescrição dos médicos em relação à profilaxia da úlcera de
estresse, porém, sugere-se aqui o desenvolvimento de novos trabalhos que
explorem o tema, para que os resultados possam, em conjunto, ganhar
consistência na literatura. Espera-se, portanto, que este estudo venha a
contribuir para a utilização racional da profilaxia medicamentosa para úlcera
relacionada ao estresse. Além disso, encorajar a participação ativa do
profissional farmacêutico na rotina da terapia intensiva, de maneira a ampliar
o conhecimento da equipe multiprofissional, e fornecer ao médico a orientação
necessária para pautar sua atuação em critérios definidos na literatura.