Micobacterioses Não-Tuberculosas: Das Manifestações Clínicas ao Tratamento
Introdução
São consideradas micobactérias não-tuberculosas (mycobacteria other than
tuberculosis -MOTT) todas aquelas que não pertencem ao mycobaterium
tuberculosis complex (Mycobacterium tuberculosis e Mycobacterium bovis) e ao
Mycobacterium leprae, tendo sido identificadas mais de 125 espécies capazes de
causar doença nosseres humanos.
São microorganismos ubíquos comummente isolados a partir do solo e de fontes de
água natural ou canalizada. Não há evidência de transmissão animal/ humana ou
humana/humana, resultando a doença de exposição ambiental, embora a fonte de
infecção não seja geralmente encontrada.1nos países industrializados a taxa de
incidência ronda os 1-2 casos por 100 000 habitantes, mas como as
micobacterioses atípicas não são doenças de declaração obrigatória, a sua
verdadeira incidência é desconhecida.2
A manifestação clínica mais frequente é a doença pulmonar crónica
correspondendo a 90% dos casos, seguida da doença disseminada, da infecção dos
gânglios linfáticos e da doença da pele/tecidos moles.
Após a inoculação no organismo, as micobactérias sofrem fagocitose por parte
dos macrófagos. Uma vez no meio intracelular, as micobactérias levam à produção
de il-12 por parte destes. A il-12 estimula a secreção de ifn-? que promove a
activação dos neutrófilos e macrófagos com a produção de tnf-a e consequente
morte de patógeneos intracelulares, onde estão incluídas as micobactérias.
Defeitos na imunidade humoral (produção de il-12, ifn-?, tnf-a e seus
receptores) e na imunidade celular ' essencial para o controlo de patógeneos
intracelulares, predispõem para a doença disseminada por MOTT.3A existência de
doença pulmonar estrutural predispõe ao desenvolvimento de doença respiratória
por micobactérias não-tuberculosas quer por compromisso das defesas primárias
(ex. compromisso da clearance ciliar nas bronquiectasias), quer por defeitos
genéticos presentes (ex. associação de alguns genótipos de fibrose quística e
doença micobacteriana). Interessante é a associação entre um determinado
morfotipo feminino ' biótipo longilíneo, escoliose, pectus excavatum, prolapso
da válvula mitral e hipermobilidade articular ' e a susceptibilidade à infecção
por micobactérias não-tuberculosas.4Desconhece-se se essa susceptibilidade
surge de características genéticas traduzidas por tal morfotipo, ou se esse
morfotipo condiciona circunstâncias, como má drenagem das secreções
traqueobrônquicas, que favorecem a infecção micobacteriana.
Apresentação clínica
Doença Pulmonar
A doença pulmonar crónica constitui a manifestação clínica mais comum das MOTT,
sendo a maioria dos casos provocados pelo mycobacterium avium complex (M.
aviume M. intracellulare)e M. kansasii. O risco de infecção está aumentado na
presença de imunossupressão e de doença pulmonar estrutural ' em particular,
DPOC e bronquiectasias, mas também fibrose quística, pneumoconioses, fibrose
pulmonar. A ocorrência prévia de tuberculose pulmonar com sequelas também
aumenta o risco de infecção por MOTT.5Os sintomas provocados pela infecção
activa são inespecíficos e semelhantes aos de uma doença estrutural previamente
existente ' tosse crónica ou recorrente, expectoração, dispneia. As hemoptises
são raras. Sintomas constitucionais, frequentemente associados à tuberculose
pulmonar ' febrícula, astenia, hipersudorese nocturna, emagrecimento ' podem
ser registados. A doença pulmonar por MOTT pode ser dividida em 3 tipos com
epidemiologia, curso clínico e manifestações radiológicas distintas: doença
cavitária fibronodular, doença nodular bronquiectiásica e pneumonite de
hipersensibilidade like.
Doença Cavitária Fibronodular
A doença cavitária fibronodular é reconhecida como a manifestação tradicional
da infecção pulmonar por micobactérias não-tuberculosas. Atinge sobretudo
indivíduos do sexo masculino entre a 4ª e 5ª década de vida, estando associada
ao tabagismo, alcoolismo e DPOC. Tosse, sintomas constitucionais e mesmo
hemoptises, são comuns. Radiologicamente tem apresentação muito parecida com a
tuberculose pulmonar com o aparecimento de imagens fibrocavitárias nos vértices
pulmonares. As cavitações tendem a apresentar paredes finas com o parênquima em
redor não tão condensado como na tuberculose pulmonar. O atingimento pulmonar é
mais contíguo, não seguindo um padrão broncogénico e é registado um maior
envolvimento da pleura contígua às áreas afectadas. Também se pode manifestar
sob a forma de nódulo pulmonar solitário sem cavitação (sobretudo as infecções
por MAC). O estudo por telerradiografia torácica é suficiente, não sendo
necessário recorrer à tomografia computorizada (TC) para uma boa caracterização
da doença. Contudo, a existência de tal quadro é compatível com tuberculose
pulmonar (TP) e só o isolamento microbiológico permite um diagnóstico
definitivo. A doença pulmonar é rapidamente progressiva e sem tratamento pode
levar a cavitação e fibrose pulmonar extensa com insuficiência respiratória.6
Doença Nodular Bronquiectásica
A doença nodular bronquiectiásica ocorre mais frequentemente em mulheres
caucasianas acima dos 70 anos de idade, sem história de doença pulmonar. As
pacientes partilham um morfotipo particular: biótipo longílineo, pectum
excavatum, cifoscoliose, hipermobilidade articular e prolapso da válvula
mitral. A telerradiografia do tórax revela pequenos nódulos periféricos com
distribuição broncovascular, mas é a TC, preferencialmente de alta resolução,
que permite uma melhor caracterização do atingimento pulmonar ' nódulos com
padrão de distribuição tree-in-bud e bronquiectasias focais cilíndricas a
nível do lobo médio e língula. Esta distribuição anatómica resulta das
anomalias torácicas (pectum excavatum e cifoscoliose) que prejudicam a
clearance mucociliar a esses níveis. Esta forma da doença é mais indolente e
progride lentamente durante anos, contudo a ausência de intervenção durante o
seu curso pode levar a disfunção pulmonar grave com morte dos pacientes.6
Pneumonite de Hipersensibilidade
Entidade recentemente descrita afectando sobretudo pacientes jovens e não
fumadores. É comummente referida como pulmão da banheira quente. isto porque
epidemiologicamente está associada à frequência de termas, spas e piscinas
públicas aquecidas. Nestes locais, o uso de desinfectantes que eliminam a
restante microflora, as temperaturas mais elevadas e o ambiente húmido
favorecem o crescimento das MOTT, sobretudo as pertencentes ao MAC. O curso da
doença é frequentemente subagudo manifestando-se por tosse, dispneia e febre,
podendo progredir até à insuficiência respiratória hipoxémica. A
telerradiografia torácica revela infiltrados nodulares difusos e a TC pode
mostrar áreas em vidro despolido. Contrariamente a outras formas de pneumonite
de hipersensibilidade e à sarcoidose, os nódulos apresentam distribuição
centrolobular ou broncocêntrica. histopatologicamente é caracterizada pela
presença simultânea de granulomas não-necrotizantes e pneumonia em organização,
sendo essencial o isolamento da micobactéria para que possa ser feito o
diagnóstico. Para além da evicção ambiental e do tratamento com antibacilares,
nesta forma da doença pulmonar é recomendado o uso de corticoides sistémicos
diminuindo a inflamação e promovendo as trocas gasosas. O prognóstico é bom,
com uma rápida resolução dos sintomas após o início do tratamento.7
Outras manifestações
Linfadenite Micobacteriana
A linfadenite é uma manifestação invulgar da infecção por micobactérias não-
tuberculosas, sendo extremamente rara em adultos não-infectados pelo vírus da
imunodeficiência humana (VIH), sendo primariamente uma doença pediátrica.8De
facto, em crianças, a linfadenite cervical é mesmo a manifestação mais comum da
infecção por MOTT. A doença é insidiosa e raramente acompanhada por sintomas
constitucionais. Os gânglios mais atingidos são os cervicais, submandibulares,
submaxilares e pré-auriculares. em mais de 90% dos casos o atingimento envolve
apenas um gânglio, que de forma não-dolorosa, aumenta progressivamente de
tamanho. O crescimento rápido com ruptura e fistulização é raro. Aquando da
suspeita de linfadenite micobacteriana é obrigatória a cultura da micobactéria
a partir de macerado do gânglio linfático, devendo o tecido ser obtido por
biopsia excisional de forma a prevenir a formação de fístulas. O principal
agente etiológico é o M. avium, seguido do M. scrofulaceum, M. malmoense e M.
haemophilum. É obrigatória a exclusão do M. tuberculosis, sobretudo em adultos,
onde este é o principal agente etiológico das linfadenites micobacterianas.9
Doença Cutânea, Óssea e dos Tecidos Moles
Quase todas as espécies de micobactérias já identificadas são capazes de
condicionar infecção da pele e do tecido subcutâneo, sendo o M. fortuitum, o M.
abcessus, o M. chelonae, o M. marinum e o M. ulcerans os principais agentes
isolados. Para além de abcessos cutâneos em locais de solução de continuidade,
estão descritos casos de osteomielite e granulomas tenossinovais. A infecção
nosocomial de cateteres de longa duração, locais de inserção de drenos e
feridas cirúrgicas estão também descritas.
Doença Disseminada
A forma disseminada da doença por MOTT é quase exclusiva de doentes em estadio
3 (linfócitos T CD4+ <200) da infecção por VIH, sendo rara entre outras
populações de imunodeprimidos. Nos doentes com SIDA (síndrome de
imunodeficiência Adquirida), o risco de doença disseminada aumenta com a
diminuição do número de linfócitos t cD4+, estando recomendada quimioprofilaxia
a partir das 50 células/mm3. Azitromicina 1200mg/semana ou claritromicina
1000mg/dia são regimes de eficácia já comprovada. rifabutina 300mg/dia também é
eficaz, mas menos tolerada. O principal agente é o M. avium, seguido do M.
kansasii. A doença manifesta-se por febre, anemia, hipersudorese nocturna,
emagrecimento e hepatoesplenomegalia, sintomas que podem ser reflexo de
numerosas outras condições patológicas no doente infectado pelo VIH. Em 90% dos
casos o diagnóstico etiológico é conseguido por hemoculturas. Nos restantes
casos, perante a suspeita diagnóstica e a ausência de isolamento no sangue,
poder-se-á recorrer a biopsia hepática, óssea ou cutânea. A eficácia
terapêutica está dependente, não só do tratamento dirigido à infecção
micobacteriana, mas também do tratamento da infecção retrovírica, com redução
da carga viral e aumento da contagem linfocitária. O início da terapêutica
anti-retrovírica em doentes com a forma disseminada da doença pode ser
acompanhado pelo surgimento de linfadenite supurativa dolorosa, infiltrados
pulmonares e abcessos cutâneos, resultantes duma reacção inflamatória local por
parte do sistema imunitário em reconstrução contra as populações indolentes de
micobactérias atípicas.10 Na tabela que se segue estão sumarizadas as
principais formas de doença por MOTT.
Tratamento
O tratamento das micobacterioses não-tuberculosas é pouco recompensador. Grande
número de doentes apresenta sintomas mínimos, e a duração prolongada do
tratamento, assim como os seus custos e efeitos adversos, fazem com que eles o
descrevam como pior do que a doença, sendo rara a erradicação da mesma. Daqui
se depreende que a decisão de tratar deve ser muito bem ponderada, tendo em
conta o risco de progressão da doença e a exposição desnecessária a toxicidade
farmacológica e a custos acrescidos, assim como, o padrão e extensão da doença,
a espécie de MOTT envolvida e o estado geral do paciente. Antes de ser iniciado
o tratamento há que ter o diagnóstico de certeza. Na tabela que se segue são
apresentados os critérios de diagnóstico de doença pulmonar por MOTT.
Doença afectando grandes áreas pulmonares ou provocada por micobactérias
consideradas quimiossensíveis deve ser tratada farmacologicamente. Doença
pulmonar localizada, especialmente aquela provocada por MOTT difíceis de tratar
pode ser manejada através da cirurgia de ressecção pulmonar sempre acompanhada
de terapêutica médica. A vigilância clínica sem tratamento é também uma opção,
sobretudo nos pacientes com doença lentamente progressiva que se prevê que seja
difícil de tratar. uma palavra em particular para a pneumonite de
hipersensibilidade like, cujo tratamento preconizado consiste na evicção da
exposição acompanhada de corticoterapia sistémica, embora alguns autores
recomendem um curto curso de 3 a 6 meses de tratamento com antibióticos.11
Para aqueles que iniciam tratamento, um objectivo razoável será a melhoria
sintomática, radiológica e microbiológica, não sendo a cura da infecção um
objectivo exequível em todos os doentes.2 A terapêutica das micobacterioses
não-tuberculosas deverá incluir múltiplos fármacos de modo a actuar em
simultâneo em diferentes mecanismos e evitar o desenvolvimento de
resistências.2,3 O sucesso terapêutico é definido pela resolução ou controlo
dos sintomas e conversão das culturas da expectoração. As culturas de
expectoração deverão ser feitas mensalmente para avaliação da resposta
terapêutica e servir de guia para a decisão da duração do tratamento. A
melhoria clínica surge habitualmente por volta dos 4-6 meses de tratamento e a
negativação das culturas por volta dos 6-12 meses. O tratamento deve ser
mantido durante 12 meses após a obtenção de culturas negativas, daí que a
duração média deste ronde os 18-24 meses. É considerada falência terapêutica
quando não há melhoria clínica após 6 meses ou quando há persistência da
positividade das culturas após 12 meses de tratamento. A falência é comum,
podendo ser devida a não-adesão, anomalias estruturais (bronquiectasias) ou
resistência aos fármacos.
Em relação ao tratamento, há alguns anos, as MOTT foram divididas em 2 grandes
grupos. As fáceis de tratar, das quais o M. kansasii é o melhor exemplo, e as
difíceis de tratar, tipificadas pelo MAC. Apesar do surgimento de novos
fármacos, nomeadamente, dos macrólidos, ter alterado as perspectivas de
tratamento, pode afirmar-se que duma forma geral este cenário se mantém.
A doença pulmonar provocada pelo M. kansasii e M. szulgai habitualmente
responde bem ao tratamento farmacológico. Os regimes usualmente utilizados
incluem rifampicina 450-600mg/dia, etambutol ' 25mg/kg durante 2 meses e depois
15mg/kg até ao final do tratamento ' e isoniazida 300mg/d.3,11 Quando a doença
pulmonar é grave ou extensa pode ser adicionado um aminoglicosídeo ao esquema,
por norma estreptomicina 0.5 a 1 g ev três vezes por semana durante os 2-
3 meses iniciais.11 A demonstração da sensibilidade in vitro do M. kansasii à
claritromicina deu azo a que esta seja usada nos pacientes intolerantes ao
esquema referido e nos casos de re-tratamento, sobretudo quando existe
resistência à rifampicina.
MAC, M. simiae, M. xenopi, M.malmoense são mais difíceis de tratar, sobretudo
se a doença for extensa. Os macrólidos ' claritromicina e azitromicina ' são
neste momento a pedra angular do tratamento da doença pulmonar por MAC. No
esquema terapêutico, para além dos macrólidos, deve estar incluído etambutol e
rifampicina nas doses já referidas. Embora esteja descrita uma eficácia
ligeiramente inferior da azitromicina (250-300mg/dia) esta é melhor tolerada
que a claritromicina (500-1000mg/dia). A adição dum aminoglicosídeo durante 2-
3 meses deverá ser feita nos pacientes com doença cavitária, extensa ou com
elevada contagem de bacilos no esfregaço. Apesar de poder ser realizado
tratamento intermitente (três vezes por semana) este está contra-indicado nos
pacientes com DPOC, doença cavitária ou previamente tratados contra o MAC.
Dentro das MOTT de difícil tratamento encontramos as micobactérias de
crescimento rápido ' (RGM ' rapidly growing mycobacteria) onde se incluem M.
fortuitum, M. abcessus e M. chelonae. Estas não respondem aos agentes
farmacológicos habitualmente usados nas micobacterioses. Quando o tratamento se
torna obrigatório deve ser guiado pelo resultado de testes de sensibilidade a
fármacos. Devem ser testados a amicacina, claritromicina, quinolonas (sobretudo
a moxifloxacina), sulfametoxazol, doxiciclina, imipenem, linezolide e
tigeciclina. O M. fortuitum e o M. chelonae devem ser tratados com duas ou mais
drogas de acordo com o teste de sensibilidade. O tratamento de outras condições
patológicas que predisponham para estas infecções (ex. alterações da motilidade
esofágica) também deve ser feito. O M. abcessus apresenta-se como a RGM de mais
difícil tratamento farmacológico. Como a doença provocada por este agente é
frequentemente de progressão lenta e envolve pacientes mais idosos, a
vigilância clínica exclusiva pode estar recomendada. Tratamento com um
macrólido e um dos seguintes fármacos ' amicacina, cefoxitina ou imipenem ' por
via endovenosa durante 2 ou 4 meses pode ser útil para a redução dos sintomas.
se a doença for localizada e o doente um bom candidato cirúrgico, a ressecção
cirúrgica precedida e seguida de tratamento farmacológico deve ser considerada.
Nas tabelas que se seguem estão exemplificados os principais esquemas
terapêuticos usados no tratamento da doença pulmonar por MOTT e as respectivas
doses.