Dor somatoforme persistente na criança: caso clínico
INTRODUÇÃO
Na população pediátrica identifica-se um amplo espectro de patologias que se
manifestam por coxalgia associada a impotência funcional (1). Uma história
clínica rigorosa, incluindo aspectos psicossociais, um exame físico estruturado
e o apoio em alguns exames complementares de diagnóstico são por vezes
suficientes e evocadores do diagnóstico. Causas específicas e comuns de dor na
anca em crianças incluem a patologia infecciosa, sinovite transitória, Doença
de Legg-Calvé-Perthes, Epifisiólise da cabeça do fémur, artrites inflamatórias
ou patologia tumoral (1).
Apesar de, frequentemente, se identificar uma causa orgânica ou estrutural
subjacente à dor, existem outros diagnósticos menos comuns que é importante
considerar.
Recentemente, tem crescido o reconhecimento da associação de sintomas
psicossomáticos a situações de maus tratos e agressão psicológica ou física em
ambiente escolar. Dado ao aumento da prevalência dos quadros de somatização e
das suas consequências a curto e longo prazo, este é um diagnóstico que deverá
estar presente na abordagem da criança com dor crónica, após investigação
criteriosa de afecções orgânicas mais frequentes (2).
CASO CLÍNICO:
MISC, 9 anos de idade, sexo feminino, caucasiana, natural e residente em
Matosinhos, estudante do Ensino Básico e pertencente a família em Classe III de
Graffar. Sem antecedentes pessoais de relevo.
Em Novembro de 2009 início de gonalgia direita secundária a traumatismo por
agressão no estabelecimento de ensino. Recorreu ao Serviço de Urgência (SU) do
Hospital da área de residência, realizando RMN (Ressonância Magnética Nuclear)
do joelho que revelou diminuto derrame articular, hipersinal da gordura da
bolsa de Hoffa, traduzindo muito discreta sinovite e hipersinal de pequena
extensão junto ao pólo inferior da rótula sugestivo de edema pós-contusão
óssea(Figura_1). Recomendado repouso, medicada com anti-inflamatórios não
esteróides (AINE) e posteriormente programa de reabilitação funcional com
melhoria da sintomatologia.
Em Janeiro de 2010 foi novamente vítima de violência escolar, com traumatismo
do mesmo joelho, verificando-se resolução das queixas dolorosas após duas
semanas. Nesta altura, inicia coxalgia ipsilateral de padrão mecânico com
incapacidade progressiva para a marcha. Realizou RMN que revelou aspectos
sugestivos de stress avulsivo na inserção local do tendão do músculo íleo-psoas
homolateral de carácter subagudo, sem verdadeira avulsão traumática ou
descontinuidade/insuficiência do tendão, não se verificando alterações nas
restantes estruturas articulares e musculo-tendinosas da bacia (Figura_2).
Desde então com múltiplos internamentos no Serviço de Ortopedia de outra
Instituição Hospitalar por provável tendinite do íleo-psoas. Do estudo
diagnóstico realizado destaca-se nova RMN da anca que revelou resolução
completa do processo inflamatório por stress avulsivo da apófise do pequeno
trocanter femoral direito, sem outras alterações. Realizou, ainda, Ecografia ,
Rx bacia e ancas, Cintigrafia óssea e estudo analítico que não evidenciaram
alterações significativas.
Em Novembro de 2010, por persistência do quadro clínico doloroso, foi
referenciada para Consulta de Reumatologia, apresentando marcada incapacidade
funcional para a marcha que obrigava à utilização de duas canadianas. Ao exame
físico, constatava-se discrepância notória entre as queixas e o exame objectivo
músculo-esquelético, que apenas revelava discreta rigidez das amplitudes
articulares da anca direita, sem qualquer outra alteração, sendo também o exame
neurológico sumário normal. Perante a negatividade do exame físico e dos exames
complementares de diagnóstico e forte presunção de somatização funcional,
iniciou tratamento com anti-depressivo tricíclico e afastamento do ambiente
agressor com rápida e completa resolução das queixas. Actualmente, em
acompanhamento por Psicologia.
CONSIDERAÇÕES DIAGNÓSTICAS
A dor na anca é uma queixa comum na criança, comportando vários diagnósticos
diferenciais desde afecções frequentes e geralmente benignas como a sinovite
transitória da anca, Doença de Legg-Calvé-Perthes ou Epifisiólise da cabeça do
fémur, a outras não tão comuns e de gravidade variável como as artrites
inflamatórias, infecciosas ou tumorais (1).
Na criança, uma coxalgia aguda resulta mais frequentemente de uma sinovite
transitória ou artrite séptica, sendo essencial a sua distinção, dado à rápida
destruição articular que a última condiciona quando não diagnosticada
precocemente. Ambas as patologias apresentam sintomas inaugurais semelhantes
com aparecimento espontâneo e progressivo de dor na anca ou região inguinal,
associada a claudicação ou incapacidade na marcha. A sinovite transitória é
frequentemente precedida por uma infecção viral, sendo auto-limitada e sem
sequelas a longo prazo. Por outro lado, as crianças com artrite séptica da anca
normalmente apresentam mal-estar geral e febre, estando indicada a drenagem
cirúrgica urgente e a instituição de antibioterapia parentérica, de modo a
prevenir a destruição óssea e preservar a função articular (1,3). No contexto
da patologia infecciosa, a osteomielite femoral, frequente em idade pediátrica
e de localização proximal, pode mimetizar um quadro clínico de artrite séptica.
(1,4).
A dor na anca isolada pode também corresponder, embora menos frequentemente, a
uma manifestação inaugural de uma doença reumática inflamatória, nomeadamente
as espondiloartropatias. Estas consistem num grupo de artrites seronegativas
que podem ter início na adolescência sob a forma de artrites assimétricas dos
membros inferiores com entesopatia e envolvimento geralmente posterior do
ráquis e sacro-ilíacas (5).
Adicionalmente, a anca dolorosa nesta população pode resultar de afecções
associadas ao crescimento e maturação esqueléticas que condicionam alterações
da biomecânica articular. A Doença de Legg-Calvé-Perthes traduz-se por um
achatamento e deformidade da cabeça femoral, dependendo da extensão de necrose
e apresenta um pico de incidênca entre os cinco e sete anos de idade. O
diagnóstico exige um alto índice de suspeição, dado que a radiografia
convencional é frequentemente normal nos estadios iniciais. A Epifisiólise da
cabeça do fémur predomina em crianças obesas na pré-adolescência. Na
radiografia convencional observa-se um alargamento e irregularidade da epífise
de crescimento com desvio póstero-inferior da cabeça femoral (1,3,6).
As fracturas por avulsão devem ser sempre consideradas na anca dolorosa dos
doentes cuja maturação esquelética não está, ainda, concluída. Este tipo de
lesão é mais comum em jovens atletas e é, normalmente, secundária a sobre-
solicitação e tracção repetida sobre as inserções musculo-tendinosas (7).
Um processo neoplásico, benigno ou maligno, deverá ser sempre excluído. O
osteoma osteóide constitui um tumor ósseo benigno relativamente comum nesta
população, manifestando-se, por vezes, por uma coxalgia, por ser o fémur
proximal uma das suas localizações mais frequentes. Tipicamente, a dor é
nocturna e responde favoravelmente aos AINE. Dos tumores malignos, os mais
comuns neste grupo etário incluem o Sarcoma de Ewing, sarcoma de partes moles e
as lesões metastáticas (1).
O Síndrome Complexo Regional Doloroso (SCRD) caracteriza-se por dor persistente
numa extremidade acompanhada por um ou mais sinais de disfunção autonómica. É
um diagnóstico a considerar perante uma coxalgia, já que na população
pediátrica o SCRD ocorre preferencialmente no sexo feminino e a nível dos
membros inferiores, com sintomas neurológicos e simpáticos menos pronunciados e
na sequência de trauma minor, desempenhando os aspectos psicológicos um papel
mais proeminente do que nos adultos (8,9).
A dor somatoforme persistente caracteriza-se por dor severa, persistente e
perturbadora, não completamente explicada por um processo fisiológico/físico e
que ocorre num contexto de conflito emocional cuja magnitude é suficiente para
ser considerado como elemento causador. Esta afecção pode-se reflectir num
amplo espectro de severidade, desde uma dor ligeira e auto-limitada até uma dor
crónica e incapacitante (2).
O presente caso clínico é demonstrativo do impacto significativo dos quadros
somáticos dolorosos na qualidade de vida dos doentes e custos associados aos
cuidados de saúde. Reforça-se a importância do reconhecimento da dor crónica
como sintoma somático que deve ser considerado de forma cautelosa mas
convincente, após a exclusão de lesão estrutural e num contexto biopsicossocial
apropriado, para não prorrogar o sofrimento da criança e respectivo agregado
familiar.